ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE
ÓNUS DA PROVA / FACTO IMPEDITIVO
CONFISSÃO / DIREITOS INDISPONÍVEIS
REMESSA PARA A 1.ª INSTÂNCIA / FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE FACTOS
Sumário

I - A descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito que o autor se arroga, e a sua prova compete à ré na ação, de acordo com os critérios gerais de repartição do ónus da prova.
II - Sendo os direitos à prestações e créditos infortunísticos, inalienáveis e irrenunciáveis - artigo 78º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro -, não valem como confissão as que tivessem sido produzidas nos autos pelo Sinistrado.
III - “Aos documentos nos quais constam declarações designadamente do sinistrado prestadas a terceiro incumbido pela ré da averiguação de acidente não se lhe pode atribuir força probatória plena, sendo irrelevante que a parte contrária não se tenha oposto à sua junção, nem tenha impugnado tanto o seu teor como a assinatura, ou, ainda, não argua a sua falsidade.”
IV - Estando em causa a ocorrência da irregularidade prevista na alínea d), do nº 2 do artigo 662º, do Código de Processo Civil - se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada - a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância, a fim de preencher essa falha.

(Sumário da responsabilidade da Relatora - (inclui texto do sumário Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Processo nº 2384/17.2/98VCT.G1))

Texto Integral

Processo nº 706/21.0T8PNF.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este Juízo do Trabalho de ...

Relatora: Teresa Sá Lopes

1ª Adjunta: Desembargadora Sílvia Gil Saraiva

2º Adjunto: Desembargador Rui Manuel Barata Penha

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório (aproveitando o relatório efetuado na sentença):

“Por participação entrada neste juízo de trabalho no dia 09/03/2021, foi dado conhecimento da eventual ocorrência de um acidente de trabalho em que teria sido vítima AA, sendo entidades responsáveis a A... – Companhia de Seguros, S.A. e B..., Lda..

Decorrida a fase conciliatória nos termos legais, as partes não chegaram a acordo (fls. 98 e ss.).

A fls. 102 e ss. veio o sinistrado requerer a abertura da fase contenciosa do processo contra B..., Lda. e A... – Companhia de Seguros, S.A., alegando, em síntese, que no dia 24/11/2020 sofreu um acidente quando, no exercício das suas funções de carpinteiro de cofragem por ordens e instruções da 1ª R., foi vítima um acidente de trabalho, tendo sofrido lesões. A responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho encontrava-se parcialmente transferida para a 1ª R.. Considera padecer de sequelas correspondentes a uma IPP de 4%, ter despendido € 10,00 com despesas de deslocações, ter tido período de IT e despendido a quantia de € 472,98 referente a tratamentos, cirurgia e medicamentos, valores estes que não lhe foram pagos.

Conclui peticionando que deve a presente ação ser julgada provada e procedente e, por via disso, serem as RR., na medida das respetivas responsabilidades, condenadas a pagar ao A. as quantias de: a) – capital de remição da pensão anual de €662,48, no valor de €10.408,22; b) – €10 relativo a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de ... e a este Tribunal; c) – a quantia de €9.891,92 relativo à indemnização pelos períodos de incapacidade temporária, devendo todos os valores ser acrescidos de juros, vencidos e vincendos, taxa legal, e até integral e definitivo pagamento; d) – a quantia €472,98 referente a tratamentos, cirurgia e medicamentos.

A 2ª R. deduziu contestação à petição inicial a fls. 113 e ss., na qual aceita a ocorrência do acidente e a existência do contrato de seguro e alega que o acidente decorreu exclusivamente de negligência grosseira e violação, sem causa justificativa, de normas de segurança impostas pela 1ª R. por parte do A.. Impugna as sequelas invocadas. Conclui pela improcedência da ação, por não provada, e sua absolvição do pedido.

A 1ª R., devidamente citada, não apresentou contestação no prazo legal.

A fls. 139 e ss. foi proferido despacho saneador, no qual se procedeu à seleção dos factos assentes e fixação dos temas da prova.

Entretanto, por decisão proferida a fls. 19 do apenso foi decidido que o ora A., por força do sinistro em causa nos autos, é portador de uma IPP de 4%.

Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.

Em consequência do apuramento, em sede de audiência de julgamento, que o A. é canhoto, foi ordenada a realização de esclarecimentos em sede de junta médica quanto à rúbrica da TNI aplicável e respectiva IPP, o que se verificou a fls. 160-161 dos autos, e no âmbito da qual os Srs. Peritos esclareceram que a rúbrica aplicável é a mesma, mas com os coeficientes referentes ao lado passivo, e a IPP a fixar é de 3%.”

Após o que foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:

“Pelo exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:

1) Declara-se que o A., AA, sofreu acidente de trabalho;

2) Absolvem-se as RR. do pagamento ao A. dos danos decorrentes do acidente em causa, face à sua descaracterização.


*

Custas a cargo do A., nos termos do disposto no artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC. *

Valor da ação – € 20.676,46 (cfr. artigo 120º do CPT).”

Não se conformando com o assim decidido, o Sinistrado apelou.

Foram as seguintes as suas conclusões:

“1ª O presente recurso irá versar sobre a matéria de direito e de facto e visa, no essencial, pugnar pela devida ponderação das seguintes questões:

a) – erro/falta de notificação (via citius) dos mandatários que teve como consequência o trânsito em julgado de dois despachos (um deles saneador) no qual iria ser impugnado o relatório de averiguação de acidente de trabalho, junto aos autos pela Ré;

b) - os factos dados como provados com base na prova testemunhal;

c) - a falta de idónea fundamentação para a descaracterização do acidente de trabalho com base na prática de ato consubstanciador de negligência grosseira por parte do A./R.te.

2ª Quanto à 1ª questão - erro na notificação eletrónica aos mandatários do A. – pelas razões aduzidas – comparência meramente acidental da mandatária BB – e erro na consideração de sócios que nunca o foi, devia o Tribunal ter deferido o requerimento interposto do dito despacho.

3º O despacho em crise não é consentâneo com as boas práticas em matéria de cooperação entre os intervenientes processuais.

4ª Com todo o respeito, o Tribunal a quo, com o despacho em crise, adotou uma interpretação puramente formal para justificar aquilo que foi (e que acontece a qualquer pessoa que trabalhe) um mero lapso – mas com negativas consequências para o A.

5ª O objetivo do R.te era e é, nesta sede, impugnar o documento junto pela Ré, donde consta o depoimento escrito do sinistrado, uma vez que todo esse depoimento está redigido pela perita averiguadora e, apenas e só, assinado pelo sinistrado.

6ª Não sendo considerado facto assente, facilmente constataremos que tal relatório/alegadas declarações do sinistrado, jamais deveriam ser acolhidas pelo Tribunal a quo. Há que ter em conta que a Srª perita averiguadora não se recordou do porquê de ter sido ela a redigi-lo e, bem assim, o local em que reuniu com o A.

7ª O ter do documento em apreço e o facto J) jamais deveriam ser dados como assentes.

8ª Quanto à matéria de facto – sinalizamos que o R.te considera incorretamente julgados os seguintes concretos pontos de facto provados:

O) – “Na parte final do corte da peça em madeira o A. aproximou demasiado a sua mão do disco de corte e cortou a ponta do dedo indicador da mão direita;”

P) – “O empurrador de peças e a paralela indicados em J) servem para evitar o contacto das mãos com o disco;”

Q) – “O A. tinha perfeita noção para que serviam aqueles instrumentos e, mesmo assim, escolheu não fazer uso deles;”

9ª Quanto aos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, consideramos os seguintes: prova por declaração de parte do A. e depoimento da perita averiguadora – Dª. CC.

10ª No que diz respeito aos depoimentos invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que constam da gravação - passamos, a indicar as respetivas passagens das mesmas.

11ª Declarações de parte do A. – dia 11/04/2024, das 10:12h às 10:26h e 00:03:35 às 00:06:47

Meritíssima Juíza - Esta máquina tinha também um empurrador?

Autor - Sim.

Meritíssima Juíza - E uma paralela?

Autor - Geralmente a paralela só se usa para cortar as tábuas à esquadria.

Meritíssima Juíza - Olhe... tente-nos explicar. Não temos aqui nenhuma fotografia no processo. Como é que era a máquina? Os senhores têm uma mesa?

Autor - É tipo uma mesa assim, mais alta, não é? Meritíssima Juíza - Certo.

Autor - E o disco é ao meio.

Meritíssima Juíza - E o disco é ao meio.

Autor - Não é bem ao meio, é um bodinho mais ao lado do meio.

Meritíssima Juíza - Mas fica na horizontal para si ou na vertical?

Autor - Fica direito para mim.

Meritíssima Juíza - A direto para si… a cortar para a frente, não é para o lado, pronto. Ok. E a paralela está do lado direito ou do lado esquerdo?

Autor - A paralela geralmente está sempre do lado direito.

Meritíssima Juíza - E o senhor estava a dizer que normalmente utilizam a paralela para fazer a esquadria?

Autor - Sim. Para cortar as tábuas [impercetível].

Meritíssima Juíza - O senhor na altura cortou foi um dedo da mão direita. Autor - Sim. O indicador.

Meritíssima Juíza - O indicador. O senhor, no momento em que estava a fazer este corte, não estava a usar a paralela?

Autor - Sim, estava.

Meritíssima Juíza - Tinha a paralela? A que distância do disco?

Autor - A distância tinha a vinte e sete, vinte e oito centímetros. Depende da madeira que a gente corta. Às vezes vinte e cinco, vinte e sete, trinta, trinta e cinco.

Meritíssima Juíza - Neste caso aqui… qual era a distância face à peça que o senhor estava a cortar?

Autor - Neste momento já não me recordo porque já foi há bastante tempo, mas vinte cinco ou trinta centímetros.

Meritíssima Juíza - Mas dava para o senhor passar a mão ao lado da paralela e ao lado do disco?

Autor - Sim, tinha muita distância. Eram praí trinta centímetros. Vinte e oito, trinta centímetros, não me recordo.

Meritíssima Juíza - Olhe, e o empurrador? Estava a usar?

Autor - Sim.

Meritíssima Juíza - Estava?

Autor - O empurrador é só para empurrar, não dá para tirar a madeira. Meritíssima Juíza - Então explique-me, por favor, como é que ocorreu o acidente?

Autor - Nem eu sei.

Meritíssima Juíza - O que é que o senhor estava a fazer no momento em que se acidenta?

Autor - Quando acabei de cortar a tábua, empurrei com o empurrador, acabei de cortar a tábua, tirei a tábua e depois é que vi sangue no chão.

00:06:54 às 00:07:07

Meritíssima Juíza - Mas em que momento é que o senhor se aproxima do disco de corte?

Autor - Eu à frente não consigo [impercetível], foi na parte de trás.

Meritíssima Juíza - Ao empurrar? Autor - Não, a tirar a tábua. Meritíssima Juíza - Ao tirar a tábua? Autor - Sim, certo.

12ª Testemunha CC – depoimento prestado no dia 15/04/2024, das 14:27h às 14:50h.

01:35 a 03:17

Adv. da Ré - Começava por lhe perguntar novamente quais foram… já percebemos que fez a averiguação do sinistro, quais foram as diligências que levou a cabo? Onde foi, com quem falou?

Testemunha - Dado que o acidente ocorreu no estrangeiro, desloquei-me apenas junto do sinistrado, no sentido de preenchermos a documentação habitual e em relação à empresa, solicitei a documentação que necessitava por e-mail, visto que como o acidente não ocorreu nas instalações, não havia necessidade de deslocação presencial, digamos assim.

05:02 a 05:44

Adv. da Ré - Recorda-se em que instituição foi recolhido esse depoimento? Em que local, nomeadamente.

Testemunha - Eu penso, eu fiz a pesquisa antes de vir, porque, por norma, eu recordo-me de todas averiguações que faço. Só que, de facto, esta aqui não houve, eu não fui ao local do acidente propriamente dito e fiz a pesquisa pela morada do senhor e, de facto, aquele local não me é muito familiar. Portanto, eu devo ter ido ter com o senhor quando ele foi a uma consulta, a um tratamento de fisioterapia, mas não consigo precisar exatamente. Dado que o acidente ocorreu no estrangeiro, desloquei-me apenas junto do sinistrado, no sentido de preenchermos a documentação habitual e em relação à empresa, solicitei a documentação que necessitava por e-mail, visto que como o acidente não ocorreu nas instalações, não havia necessidade de deslocação presencial, digamos assim.

(…)

06:21 a 07:09

Adv. da Ré - Relativamente às declarações, essas declarações foram escritas por quem?

Testemunha - Por mim, é a minha letra. Adv. da Ré - Por que razão?

Testemunha - (…) A noção que eu tinha seria porque o senhor, como tinha lesionado o dedo indicador da mão direita, não podia escrever, que é o que normalmente acontece nestas situações e, portanto, eu redijo a declaração. Mas sendo que na outra audiência foi comentado que o senhor seria canhoto e por isso é que havia aqui uma dúvida sobre a razão pela qual teria sido eu a escrever.

14:50 a 15:23

Adv. do A. - Eu pergunto, para retirar a tábua, é necessário o empurrador ou já não é necessário?

Testemunha - Deve ser sempre utilizado. O empurrador deve ser sempre utilizado no momento, ou ainda mais nos momentos em que o trabalhador tem necessidade de aproximar a mão à zona de corte e aqui, a questão é que, por norma, as pessoas pensam em retirar, ou seja, deslocar para si, quando aquilo que deveriam fazer seria empurrar, daí empurrador. [sublinhado nosso].

20:34 a 20:42

Adv. do A. - Se tem assistido, se este sinistro aqui em causa é um caso completamente isolado ou se, de facto, é frequente?

Testemunha - É extremamente frequente.

13ª Com o devido respeito, parece-nos que o depoimento da Srª perita não justifica a relevância que o Tribunal lhe atribuiu. Teria justificado exatamente o contrário.

14ª Do depoimento do R.te (confirmado pela senhora averiguadora) ficou-se a perceber que o mesmo, ao não usar luvas estava apenas a cumprir com as regras. O R.te também explicou (novamente confirmado pela senhora perita) que a paralela tem mais como função o processo do corte propriamente dito do que a segurança do trabalhador. Facilmente se constata que o Tribunal a quo sustentou esta consideração com o “depoimento escrito do A.” – o que, a nosso ver, e com o devido respeito, merece censura.

15ª Concluindo, somos da opinião que o Tribunal a quo¸ mesmo estando perante um facto assente, perante a falta de fundamentação e explicação da senhora perita em torno de todo o relatório de averiguação, em contraste com a clareza e objetividade do depoimento do A., deveria considerar que o acidente ocorreu tal como descrito por este.

16ª Quanto aos factos P) e Q) – não percebemos as considerações do Tribunal. Ficou claro que a única peça que, efetivamente, desempenha a função protetora do trabalhador é o empurrador.

Mesmo do depoimento da perita CC, concluiu-se que a paralela está relacionada com o corte propriamente tido e não para evitar a aproximação entre a mão do trabalhador e o disco.

No segundo foi referida a falta de luvas, paralela e empurrador, criando a ideia de várias regras de segurança violadas pelo sinistrado adequadamente causais à ocorrência do sinistro em apreço.

Por outro lado, dos depoimentos já se conclui que, no máximo (e com o qual não concordamos) apenas poderia ser causa do acidente a falta de empurrador, o que acaba por, em última instância e em abstrato, “retirar” peso à eventual falha do trabalhador.

17ª Decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Atento o supra exposto, é patente que, jamais deveria ter sido dado como assente o facto J) e como provados os factos O) P) e Q) da sentença.

18º O facto J), ao não ser dado como assente, atendendo à produção de prova, seria, inevitavelmente, dado como não provado.

Quanto ao facto O) entendemos que a redação deveria ter sido a seguinte: “Na parte final da tarefa, mais concretamente ao retirar a tábua, o A. aproximou demasiado a sua mão do disco de corte e cortou a ponta do dedo indicador da mão direita”;

19ª Quanto à matéria de direito - No que tange ao direito aplicável, apenas se discute aqui se estamos ou não perante uma descaracterização do acidente de trabalho em virtude da verificação de negligência grosseira do A.

20ª Com o devido respeito, o Tribunal a quo explicou de uma forma quase perfeita toda a teoria em torno da negligência grosseira, apenas errou na sua aplicação prática.

Sobre o tema em apreço, a al b) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 14º da Lei 98/2009, de 04 de setembro prevê o seguinte:

1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: (…) b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”[…].

21ª O douto teor do acórdão citado devia ter conduzida à não descaracterização do acidente em causa nos autos por negligência grosseira do A.

22ª A ausência de memória quanto ao depoimento escrito deveria tê-lo posto totalmente em causa. Dando-lhe credibilidade, como o fez o Tribunal a quo, está-se a contribuir para futuras situações de extrema vulnerabilidade para sinistrados.

23ª Com todo o respeito, a decisão aqui em crise é extremamente perigosa e contrária à lei, pois não só exige muito pouco da 2ª Ré para provar a descaracterização, como também cria a sensação que cabe ao sinistrado o ónus de alegar a ausência de negligência grosseira, uma verdadeira diabolica probatio.

24ª Concluindo, a 2ª Ré pouco ou nada demonstrou de efetivamente relevante para provar a negligência grosseira do sinistrado, motivo pelo qual deve a decisão aqui em crise ser revogada, concluindo-se pela responsabilização da R.da.

Concluindo, com base no exposto, com destaque para as concretas passagens supra discriminadas, cujo teor aqui se dá por reproduzido e integrado nas presentes conclusões, somos da opinião de que, ao absolver a Ré, o Tribunal violou, designadamente, o disposto nos arts. 615º, nº 1, al. c) e d) do CPC. devendo, por isso, alterar-se a resposta às sinalizadas questões, em termos de se poder concluir pela condenação da Ré, conforme peticionado, assim se fazendo JUSTIÇA.”

A Ré Seguradora contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença proferida, aduzindo para tal:

“1. Carece o Recorrente de qualquer razão nas críticas que tece à sentença recorrida, não podendo, face ao constante dos presentes autos, ser outra a decisão a proferir que não a já constante da douta sentença recorrida e que, nessa medida, deverá ser mantida.

Senão vejamos,

A) Da reapreciação da prova

A.1 – Do ponto J) dos factos provados

2. Insurge-se o recorrente pelo facto de o constante do ponto J) da sentença recorrida ter sido dado como assente. O que tudo ocorreu já, como sabemos, em sede de despacho saneador, e que, no entender da recorrida, se deverá manter.

3. No entanto, e mesmo que tal facto não estivesse já assente, não se poderá olvidar que o mesmo resultou da prova produzida.

4. Isto porque, pese embora em sede de depoimento de parte prestando em audiência julgamento o Autor tenha referido exatamente o contrário, resulta do depoimento da testemunha CC, pessoa encarregue de fazer a averiguação do sinistro ocorrido, que o Autor/sinistrado lhe prestou, em data mais próxima do acidente, as declarações de fls. 123 frente e verso dos autos.

5. Das mesmas resulta, de forma inequívoca, que o Autor não fez uso nem de paralela nem de empurrador.

6. Tais declarações, pese embora não manuscritas pelo Autor, encontram-se assinadas pelo mesmo. Não sendo verossímil que o mesmo assinasse as mesmas caso não correspondessem à verdade ou não o tivesse declarado. Nem o mesmo alegou qualquer eventual outro motivo para o fazer.

7. E a testemunha CC confirmou as mesmas. Sendo que o facto de não se recordar do porquê de ter sido a própria a redigir as declarações manuscritas, e não o sinistrado, não descredibiliza a mesma, nem as declarações por ela prestadas. Na realidade, a testemunha apresentou uma série de situações em que tal ocorre nas averiguações que leva a cabo e que podem ter-se verificado no caso concreto, como por exemplo não se ter apercebido que o Autor é esquerdino.

8. Recorde-se, aliás, que os próprios peritos médicos incorreram, em sede de junta médica, em erro por não se terem apercebido de tal facto, e que levou a posterior correção da incapacidade atribuída. Aliás, a circunstância de ser esquerdino apenas foi referida pelo sinistrado em sede de julgamento, nunca antes tendo sido alegada nos presentes autos.

9. Por outro lado, o Autor mais não faz do que tentar especular quando refere que “os Senhores Desembargadores terão perfeito conhecimento das condições em que, muitas vezes, estes depoimentos são elaborados, nem sempre coincidindo com real vontade do sinistrado”

10. Tratam-se, até, de afirmações incriminatórias e difamatórias, sem qualquer base de apoio ou fundamento, em especial quando tido em conta o depoimento sério, credível e imparcial da testemunha CC.

11. De onde tudo resulta que o constante do facto J) da matéria de facto provada, por um motivo ou pelo outro, sempre deverá manter-se

A.2 – Ponto O) dos factos provados

12. O facto em causa mais não é do que uma transcrição do declarado pelo Autor nas diligências de averiguação do acidente onde o mesmo refere “devo ter encostado o dedo indicador direito ao disco de corte por baixo da proteção já no final do corte e não me apercebi”.

13. E, conforme devidamente explanado e justificado na sentença recorrida, aquele depoimento escrito, aliado às declarações da testemunha CC, foi suficiente para formar a convicção do tribunal e descredibilizar o depoimento do recorrente que, para além das fragilidades inerentes a qualquer depoimento de quem é parte no processo e, nessa medida, tem interesse no mesmo, se revelou contrário à restante prova.

14. Aliás, foi no depoimento do Autor em sede de julgamento que se referiu, pela primeira vez, a possibilidade de ocorrência do corte aquando da retirada da tábua e não durante o processo de corte. Tal não foi alegado em sede de auto de conciliação nem em sede de petição inicial. Nem, muito menos, pelo próprio sinistrado, em sede de averiguação do sinistro ou sequer na participação do mesmo inicialmente feita à aqui recorrida.

15. Sendo que não nos podemos esquecer que o Autor/sinistrado foi ouvido em julgamento em sede de depoimento de parte – e não em declarações de parte -, estando os efeitos ou consequências de tal depoimento limitados por lei. Pelo que, mesmo que se considerasse tal depoimento como credível e plausível, sempre estaria o tribunal recorrido impedido de valorar as palavras do Autor/sinistrado da forma pretendida pelo mesmo.

16. A apreciação feita pelo tribunal recorrido está, pois, conforme à prova e foi devidamente justificada, devendo manter-se.

A.3 – Pontos P) e Q) dos factos provados

17. Também aqui se insurge o recorrente, defendendo que os factos em causa deverão ser excluídos do elenco de factos provados.

18. Nada de mais errado!

19. Quanto ao constante do ponto P), o mesmo foi desde logo admitido pelo Autor em sede de depoimento de parte. Tendo, inclusivamente, sido reduzido a escrito na ata da audiência de julgamento do dia 11.04.2024.

20. Na mesma pode ler-se: “Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 463.º do C.P.C., reduz-se a escrito a seguinte assentada contendo a parte do depoimento do depoente Autor/sinistrado, em que houve confissão ou admissão por parte da mesma quanto à matéria a que foi inquirida, sem prejuízo da regra da indivisibilidade da declaração confessória: O depoente confessou o art.º 11.º da contestação da 1.ª Ré/Entidade Responsável/Seguradora, apenas quanto ao empurrador e à paralela.”

21. Pelo que muito se estranha que venha agora o mesmo defender o contrário.

22. Sendo que o constante no ponto Q) mais não é do que uma decorrência necessário e irrefutável dos pontos J) e P), aliado aos meios de prova dos autos – depoimento da testemunha CC e declarações escritas prestadas pelo Autor em sede de averiguação e assinadas pelo mesmo.

23. Inexistem, pois, por tudo o exposto, razões para qualquer alteração à matéria constante dos pontos J), O), P) e Q) dos factos dados como provados, devendo os mesmos manter-se inalterados.

24. Do direito

25. Discordando da apreciação dos factos feita pelo tribunal recorrido, pretende o Autor/sinistrado uma alteração substancial da decisão de direito, defendendo a não descaracterização do acidente em causa com base em negligencia groseira do sinistrado.

26. Sem qualquer razão, no entanto!

27. Começa o Autor por afirmar que a entidade patronal do mesmo “não foi tida nem achado no presente processo”.

28. Erradamente, contudo. A empregadora em causa – B..., Lda – é parte nos presentes autos. Mais precisamente 1ª ré. Tendo o próprio Autor intentado a ação também contra aquela entidade. Que, por opção, não apresentou contestação nem teve qualquer intervenção nesta querela.

29. Mas, mesmo que não fosse parte, tal em nada alteraria o desenrolar dos autos. Nada foi invocado – nem mesmo pelo Autor, pelo embora agora pareça pretender valer-se de especulações quanto a isso – quanto a eventual violação das regras de segurança por parte da entidade patronal.

30. O que a aqui recorrida invocou, e conseguiu comprovar, foi a atuação do sinistrado com negligência grosseira e o nexo de causalidade entre a mesma e o acidente.

31.De facto, dúvidas não restaram que os meios de segurança necessários para desenvolver a tarefa em condições de segurança – neste caso, o empurrador e a paralela – estavam à disposição do trabalhador, que o admitiu.

32. Também resultou inequívoco que o sinistrado tinha perfeito conhecimento da função dos meios de segurança em causa, e sabia como utilizá-los.

33. Não o tendo feito por opção própria. Conforme se refere na decisão recorrida o Autor decidiu, de forma consciente, cortar a peça de madeira em causa sem usar o empurrador e a paralela, sabendo que, com isso, estava a aproximar perigosamente as mãos da zona de corte da máquina, com todos os riscos inerentes.

34. E sem que al momento algum se tenha alegado ou provado que a tarefa em concreto não poderia ser levada a cabo com o uso destes meios. Pelo contrário!

35. Se este comportamento não é integrador do conceito de negligência grosseira, que comportamento o será???

36. Nem mesmo se poderá integrar tal atitude, como tenta o recorrente, na habitualidade do perigo ou numa mera distração. Sob pena de todo e qualquer comportamento negligente em que o sinistrado pura e simplesmente escolhe não usar os meios de segurança exigidos, seja qual for a sua gravidade, ser passível de ser classificado como tal.

37. É mister que a proteção dos trabalhadores é, e deve ser, uma constante preocupação, quer da lei quer das entidades responsáveis. No entanto, tal proteção não pode ser feita a qualquer custo e em qualquer circunstância. Urge também responsabilizar os trabalhadores pelo cumprimento das normas de segurança e pelos seus comportamentos, como a decisão recorrida muito bem o fez.

38. A sentença recorrida não merece, pois, qualquer reparo estando de acordo quer com a prova produzida em audiência de julgamento e constante dos autos, quer com a lei.

Pelo que a mesma deverá ser mantida na integra.

TERMOS EM QUE o presente recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, com o que se fará JUSTIÇA!”

O Mm.º Juiz a quo, proferiu os seguintes despachos:

“Por a decisão ser recorrível (cfr. artigo 79º alínea b) do CPT), ter sido interposto em tempo (cfr. artigo 80º nº 1 do CPT) e por quem para tal tem legitimidade, admito o recurso interposto sob refª 9871757, o qual é de apelação (cfr. artigo 79º-A nº 1 alínea a) do CPT), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. artigos 83º nº 1 e 83º-A nº 1 do CPT).

Devem os autos ir acompanhados do processo principal e respectivos apensos.


*

Relativamente ao ponto I das alegações de recurso, atentos os fundamentos constantes do Despacho recorrido, os quais, salvo o devido respeito por posição contrária, correspondem à mais estrita legalidade, adere-se ao exposto no despacho em causa.

Vªs. Exªs., no entanto, decidirão como for de inteira justiça.

(…)”

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, apresentados que foram ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, foi exarado parecer, no qual nomeadamente se lê:

“Tendo em consideração o que consta das conclusões formuladas pelo Recorrente as quais delimitam o objeto do presente recurso jurisdicional, constata-se que o mesma começa por atacar o despacho proferido no apenso B sob refª 93684095 (que indeferiu a invocada falta de notificação ao seu I. Mandatário Dr. DD da tramitação processual após a notificação da contestação no processo principal), e prosseguindo com o ataque à douta sentença recorrida, tendo por fundamento a impugnação do ponto J) dos factos assentes e da matéria de facto dada como provada (os ponto O), P), e Q) e subsequente decisão de direito.

Pugna pela revogação da decisão em ordem a ser reconhecido que sofreu um acidente de trabalho no dia 24.11.2020 e que não se verifica a exceção de descaracterização do acidente e, dessa forma, ser condenada a recorrida Seguradora nos pedidos contra ela formulados.

Por seu lado, só a recorrida A... – Companhia de Seguros, S.A. contra-alegou, de modo proficiente, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção do decidido.

Ressalvado o respeito devido por melhor opinião em contrário, nenhum reparo ou censura há que ser feito ao despacho proferido no apenso B sob refª 93684095, pelas razões aduzidas no mesmo e com as quais estamos de acordo, nada mais se oferecendo acrescentar.

Relativamente à douta sentença recorrida, deverá a mesma ser integralmente confirmada, ante o rigor e a justeza argumentativa nela expressa, quanto à matéria de facto e consequentemente quanto à matéria de direito.

A factualidade dada como provada, com sua correta e adequada fixação, assente nos factos apurados em audiência de julgamento, não merece a pretensa censura que a recorrente lhe pretende imputar.

Temos que a prova foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da ilustre julgadora, tendo em consideração os objetivos fornecidos pelos documentos e demais provas estruturadas com a análise crítica conjugada das declarações e depoimentos, que foram prestadas em audiência de julgamento. Daí que não restem dúvidas sobre a legalidade na tramitação dos presentes autos e sobre a qualidade dos depoimentos prestados pelo sinistrado e testemunhas, pelo que está necessariamente prejudicada a alegação de que o douto Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento e o que afasta a pretendida alteração do ponto J) dos factos assentes e os pontos O), P), e Q) da factualidade dada como provada, o qual se mostra corretamente apreciado.

Daí que a descaracterização do acidente como de trabalho se encontre bem materializada e fundamentada na sentença, por se encontrar devidamente alicerçado no elenco das várias circunstâncias que relevaram para esse efeito, face à previsão dos artigos 8º. e 14.º nº. 1, al. b) da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro – cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.11.2018 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21.02.2020.

Assim, a ilustre julgadora “a quo” esteve habilitada a absolver as recorridas nos termos por que decidiu, pelo que, nenhuma das “conclusões” da alegação do recorrente subsiste perante a argumentação que foi expendida na douta decisão “sub iudice”.

Consequentemente, a decisão recorrida é passível de ser mantida na ordem jurídica.”

Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.

Questão prévia:

– Num primeiro segmento, invoca o Apelante erro por falta de notificação, via citius, dos mandatários, que refere teve como consequência o trânsito em julgado de dois despachos (um deles saneador) no qual iria ser impugnado o relatório de averiguação de acidente de trabalho, junto aos autos pela Ré.

Compulsados os autos verifica-se que:

Ainda na fase conciliatória, consta do auto de adiamento de 09.06.2022:

“PRESENTES Drª BB, que neste ato junta procuração para representar o sinistrado AA”.

Do auto de adiamento de 17.10.2022, ainda na mesma fase, consta:

“Presentes: Sinistrado: AA, nascido(a) em ../../1981, NIF - ...41, Endereço: Av. ..., ..., ..., ... Marco de Canaveses, aqui representado pelo seu ilustre mandatário, Dr DD, conforme procuração junta aos autos.”

Do auto de não conciliação de 29.11.2022, consta:

“NÃO SE ENCONTRAM PRESENTE O SINISTRADO: AA, filho(a) de EE e de FF, estado civil: Desconhecido, nascido(a) em ../../1981, NIF - ...41, Endereço: Av. ..., ..., ..., ... Marco de Canaveses, por se encontrar a trabalhar no estrangeiro, fazendo-se representar pelo mandatário o Exm. Sr. Dr. DD que neste ato junta procuração.”

Com a petição inicial foi junta procuração pelo Sinistrado, na qual se lê:

Em 30.05.2023, foi remetida notificação da contestação e documentos dirigida a “Dr(a). DD”.

Na mesma notificação, mostra-se consignado:

“Mandatário/s:

De AA (Sinistrado), BB; identificação fiscal: ...73; domicílio: Avenida ..., Marco de Canaveses, ... Marco de Canaveses

De AA (Sinistrado), GG; identificação fiscal: ...94; domicílio: ..., ...78, ... Marco de Canavezes

De AA (Sinistrado), DD; identificação fiscal: ...06; domicílio: Av. ..., Marco de Canaveses, ... Marco de Canaveses”.

Em 03.07.2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:

“Notifique o A. para, em 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre a exceção invocada pela 1ª R. na respetiva contestação quanto à alegada negligência grosseira do A., ao abrigo do disposto nos artigos 3º nº 3 do CPC, ex vi do artigo 1º nº 2 alínea a) do CPT.

Notifique.”

Tal notificação, foi dirigida:

“Exmo(a) Senhor(a)

Dr(a). BB”

Com teor:

“Fica V. Exª. notificado, na qualidade de Mandatário, e relativamente ao processo supra identificado, de todo o conteúdo do despacho que se anexa.”

Em 15.09.2023, foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes, o objecto do litígio e os temas da prova.

Foi efetuada notificação do mesmo despacho, nomeadamente, à:

“Exmo(a) Senhor(a)

Dr(a). BB”

No apenso B, designada data para realização de junta médica, foi do mesmo despacho, nomeadamente notificada:

“Exmo(a) Senhor(a)

Dr(a). BB

Avenida ...

Marco de Canaveses

... Marco de Canaveses

Fixação da Incapacidade para o Trabalho nº ...

Sinistrado: AA

Entidade responsável: A... - Companhia de Seguros, S.A.

Data: 23-10-2023

Assunto: Data de Exame por Junta Médica

Fica V. Ex.ª notificado, na qualidade de Mandatário, relativamente ao processo supra identificado de que se encontra designado o dia 31-10-2023, às 09:45 horas para se proceder ao exame por junta médica.”

Em 22.11.2023, ao apenso B, foi junto o requerimento que se transcreve:

“AA, A. nos autos à margem identificados, vem expor o seguinte:

1º Os mandatários do A. – Dr. GG e Dr. DD deram entrada da petição inicial no dia 10 de fevereiro de 2023 e foram devidamente notificados da contestação.

2º Acontece que, recentemente, e por mero acaso, aperceberam-se que constava dos autos, não só um primeiro despacho a notificar o A. para responder às exceções alegadas na contestação, como também o despacho saneador.

3º Só nesta altura é que os mandatários se aperceberam que, a partir da contestação, não voltaram a ser notificados da tramitação processual, concretamente, dos despachos em causa.

4º Quem foi notificada de tal foi a Dr.ª BB, que não tem qualquer intervenção no presente processo, motivo pelo qual não foi associada aquando da entrada da petição inicial.

5º A mesma apenas teve uma intervenção (por indisponibilidade dos mandatários aqui em questão) na primeira tentativa de conciliação, que acabou por resultar em auto de adiamento.

6º Na concreta situação dos autos, o facto da Dr.ª BB constar da Procuração constitui apenas uma mera formalidade.

7º Assim, não tendo o Tribunal notificado os efetivos mandatários, e, consequentemente, não tendo estes oportunidade de analisar os despachos em questão, requer-se que lhe seja concedido prazo para tal.”

Foi este o teor do despacho proferido no apenso B sob refª 93684095:

“A fls. 17 dos presentes autos vem o sinistrado alegar a falta de notificação da tramitação processual após a notificação da contestação no processo principal, invocando para o efeito que a I. Advogada notificada, Dra. BB, não tem intervenção no processo e o facto de constar da procuração forense constitui uma mera formalidade.

Ora, analisada a procuração forense junta a fls. 77 dos autos principais, constata-se que a I. Advogada notificada, Dra. BB, consta devidamente mandatada pelo A., aliás, no mesmo parágrafo que o I. Subscritor do requerimento em análise, constando de tal procuração a conferência de poderes gerais e especiais a cada um dos I. Mandatários, isolada ou conjuntamente.

Não consta dos autos qualquer documento a cessar os poderes conferidos à Dra. BB.

Assim, a procuração forense junta é válida para todos os devidos e legais efeitos, tendo a I. Mandatária sido devidamente notificada de todos os atos processuais e, fazendo parte da mesma sociedade de advogados que os demais Mandatários, não se pode afirmar que tal entidade não teve conhecimento dos atos notificados.

Atento o supra exposto, indefere-se o requerido por falta de fundamento legal.

Notifique.”

O Apelante não tem razão nesta parte.

Com efeito, resulta inequívoco da procuração junta com a petição inicial, ter o Sinistrado constituído também como Mandatária, a Causídica Dr.ª BB, a qual antes, logo na fase conciliatória, exibiu procuração outorgada pelo mesmo, não sendo assim, neste caso, decisivo o facto da petição inicial ter sido subscrita por um outro Causídico, a quem na mesma procuração, o Sinistrado constituiu mandatário.

Acompanhamos as considerações efetuadas no despacho proferido no apenso B sob refª 93684095, que se deixou transcrito.

Na notificação da contestação, constam identificados os Mandatários do Sinistrado, entre os quais a referida Causídica.

Não se cometeu qualquer nulidade, quando o tribunal notificou apenas o Apelante na pessoa da sua Mandatária Dr.ª BB, do despacho proferido em 03.07.2023 e do despacho proferido em 15.09.2023.

Existindo uma pluralidade de mandatos - artigo 1160º do Código Civil - as notificações que tivessem lugar no processo, podiam ser validamente efetuadas em qualquer deles.

“Preceitua este inciso o seguinte:

Se alguém incumbir duas ou mais pessoas da prática dos mesmos actos jurídicos, haverá tantos mandatos quantas as pessoas designadas, salvo se o mandante declarar que devem agir conjuntamente”.

Ora, tendo presente que o mandato forense atribui ao mandatário os poderes para representar a parte em todos os atos do processo e seus incidentes, incluindo os de substabelecer (artigo 44.º, do CPC) e sendo-lhe aplicável as regras gerais do contrato de mandato (artigo 1157.º e seguintes, do Código Civil), atento o preceituado no artigo 1160.º do referido Código, na ausência de declaração do dever de agir conjuntamente, uma vez que a Autora, aqui Recorrente, encarregou o patrocínio dos autos a quatro advogados, não há dúvida de que, cada um delas, assumiu plenos poderes para agir no tribunal em sua representação.

Nestas circunstâncias podem, validamente, ser efetuadas em qualquer dos mandatários as notificações que tenham lugar no processo.” – transcrição do Acórdão desta Relação, proferido no Processo nº20792/22.5YIPRT.P1, em 22.05.2023 (Relator Desembargador Manuel Domingos Fernandes, in www.dgsi.pt, realce introduzido).

Consigna-se que a atual redação do artigo 247º, nº3 do Código de Processo Civil (redação introduzida pelo decreto lei nº 87/2024, de 07 de Novembro) contempla:

«3 - As notificações que devam ser feitas na pessoa do mandatário judicial, quando a parte esteja simultaneamente representada por vários advogados, advogados estagiários ou solicitadores, são feitas:

a) Nos casos em que haja representação por um ou mais solicitadores, apenas na pessoa de todos os solicitadores que constem de procuração junta ao processo;

b) Nos restantes casos, na pessoa de todos os advogados ou advogados estagiários que constem de procuração junta ao processo.»

Porém, a produção de efeitos do decreto lei nº 87/2024, de 07 de Novembro, nos processos pendentes nos tribunais judiciais, ocorre a partir da data da sua entrada em vigor (artigo 16º, nº1, sem prejuízo do disposto nos números seguintes), tendo as notificações em causa sido efetuadas antes.

Improcede, pois, nesta parte a pretensão do Apelante.

Objeto do recurso:

São as seguintes as questões a decidir:

- impugnação da matéria de facto;

- nulidade da sentença;

- saber se ocorre erro de julgamento quanto à exceção de descaracterização do acidente descaracterização por negligência grosseira do sinistrado.

2.Fundamentação:

2.1. Fundamentação de facto:

2.1.1. Na sentença recorrida, consta:

Factos assentes por acordo:

A) O A. nasceu em ../../1981;

B) No dia 24/11/2020, pelas 16h30m, na Bélgica, o A. sofreu um acidente quando exercia as funções de carpinteiro de cofragem, sob as ordens, direção e fiscalização da entidade empregadora, ora 1ª R.;

C) À data indicada em B) o A. auferia a retribuição anual de €1.690,00 x 14, num total de €23.660,00;

D) O acidente ocorreu quando cortava uma peça de madeira numa máquina de serra de mesa, sofreu ferida na falange distal do dedo indicador da mão direita, tendo cortado a ponta do dedo;

E) A 1ª R. dedica-se à atividade de construção civil;

F) Em 28/11/2020 regressou a Portugal e iniciou os curativos na Clínica ... de Marco de Canaveses, por conta da ora 2ª R., ao abrigo da apólice ...94;

G) No dia 05/01/2021, o médico que o vinha assistindo – Dr. HH – deu-lhe indicação que não continuava os tratamentos porque a 2ª R. havia declinado a responsabilidade quanto ao sinistro;

H) À data do acidente, a responsabilidade por acidentes de trabalho em que fosse interveniente o A. encontrava-se transferida para a 2ª R., através de Contrato de Seguro titulado pela apólice nº ...94, limitada ao valor de € 1.200,00 x 14 meses, nos termos constantes de fls. 22 e 23 dos autos e que se dão por integralmente reproduzidas;

I) A peça indicada em D) tinha 1,5 metros de largura, 0,10 metros de comprimento e 0,25 metros de grossura;

J) Para levar a cabo a sua tarefa o A. não usava luvas nem fez uso do empurrador de peças ou da paralela que faz parte da máquina;

Factos demonstrados por produção de prova:

K) No dia do acidente o A. foi transportado para o Hospital de Antuérpia; L) No Hospital de Antuérpia o A. foi sujeito a cirurgia;

M) Devido às dores que sentia, e por ter recebido indicação médica para tal, o A. realizou cirurgia de amputação e desarticulação do dedo no dia 27/04/2021;

N) O A. despendeu com tratamentos, cirurgia e medicamentos a quantia total de € 366,00;

O) Na parte final do corte da peça em madeira o A. aproximou demasiado a sua mão do disco de corte e cortou a ponta do dedo indicador da mão direita;

P) O empurrador de peças e a paralela indicados em J) servem para evitar o contacto das mãos com o disco;

Q) O A. tinha perfeita noção para que serviam aqueles instrumentos e, mesmo assim, escolheu não fazer uso deles;

R) Em consequência do acidente, o A. sofreu amputação traumática da falange distal do indicador da mão direita, tendo como sequelas a perda da terceira falange do dedo indicador da mão direita, que lhe determinam uma IPP de 3%;

S) Em consequência do acidente o A. sofreu um período de ITA desde 25/11/2020 até 30/06/2021, data de alta clínica.

Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:

1) No Hospital de Antuérpia, após cura, foi dada ao A. indicação para ir para casa convalescer;

2) A cirurgia indicada em L) dos factos provados ocorreu em 27/11/2021 e consistiu na limpeza e sutura da ferida;

3) Desde a data do acidente o A. não voltou a receber qualquer retribuição nem tratamento de qualquer das RR.;

4) O A. despendeu a quantia de € 10,00 com deslocações ao gabinete médico-legal e a este tribunal;

5) O A. despendeu com tratamentos, cirurgia e medicamentos a quantia total de € 472,98.”

2.1.2. Impugnação da decisão de facto:

De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 1º, nº 2, al. A) do Código de Processo do Trabalho), o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, «se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 1º, nº 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho), o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, «se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto foram reforçados na atual redação do Código de Processo Civil.

Porém, só após ser devidamente fundamentada a decisão de facto pelo tribunal a quo pode este tribunal de 2ª instância, reapreciar, se a convicção expressa pelo tribunal de 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam, assim como avaliar e valorar, de acordo com o princípio da livre convicção, a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto, por forma a ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, ainda que “não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação”, como se lê no Acórdão desta secção de 14.02.2022, proferido no processo nº 3683/20.1T8VNG.P1 (Relator Desembargador Nélson Fernandes, aqui 1º Adjunto, com intervenção, como adjunta, da aqui relatora).

Preceitua ainda o artigo 640º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil:
«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)».

A omissão de cumprimento dos ónus processuais legalmente previstos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto.

A este propósito, lê-se no Acórdão desta secção de 15.04.2013 (Relatora Conselheira Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt, também citado no acórdão de 22.10.2018), “Na impugnação da matéria de facto o Recorrente deverá, pois, identificar, com clareza e precisão, os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda, o que deverá fazer por reporte à concreta matéria de facto que consta dos articulados (em caso de inexistência de base instrutória, como é a situação dos autos).

[(…)]
Pretendendo-se a reapreciação da decisão da matéria de facto, tem o Recorrente que dar cumprimento aos requisitos exigidos pelo art. 640º do CPC/2013 [(…)].
Sendo o objeto do recurso, como é, delimitado pela conclusões, a parte que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto deverá indicar quais os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda. E tal indicação deve ter lugar nas conclusões do recurso, por estas consubstanciarem a delimitação do objeto do recurso no que tange à matéria de facto; ou seja, delimitando as conclusões o que se pretende com o recurso, deverá o Recorrente nelas indicar o ou os concretos factos de cuja decisão discorda. [(…)]
E, nos termos do citado art. 640º, nº 1, al. c), o Recorrente deverá também indicar o sentido das respostas que pretende.
(…)
Por outro lado, na indicação dos meios probatórios [sejam eles documentais ou pessoais] que sustentariam diferente decisão [art. 640º, nº 1, al. b)], deverão eles ser identificados e indicados por referência aos concretos pontos da factualidade impugnada [ou a um conjunto de factos que estejam interligados e em que os meios de prova sejam os mesmos] de modo a que se entenda a que concretos pontos dessa factualidade se reportam os meios probatórios com base nos quais a impugnação é sustentada, mormente nos casos em que se pretende a alteração de diversa matéria de facto. Só assim será possível ao tribunal ad quem perceber e saber quais são os concretos meios de prova que, segundo o Recorrente, levariam a que determinado facto devesse ter resposta diferente da que foi dada.
[(…)]
Quanto à fundamentação dessa impugnação, mormente quanto aos meios probatórios em que assenta a impugnação, entendemos que poderá ela ter lugar em sede de alegações.”, (realce e sublinhado nossos).
O Apelante impugna a matéria dos itens J), O) P) e Q).

“Os pontos A) a J) resultam do acordo das partes e consistem nos factos dados como assentes em sede de despacho saneador.”

E ainda:

O ponto O) foi dado como provado com base no depoimento da testemunha CC, perita averiguadora da R., que confirmou ter reunido com o A. e recolhido do mesmo a sua versão do acidente nos termos constantes das declarações de fls. 123 frente e verso dos autos, assinadas pelo A., e das quais resulta que “A mão direita estava a empurrar a parte mais larga da peça (à direita) e a mão esquerda estava a empurrar a peça do lado esquerdo (mais estreita). A máquina tinha a proteção colocada junta ao topo da tábua/placa pelo que devo ter encostado o dedo indicador direito ao disco de corte por baixo da proteção já no final do corte e não me apercebi. Sei que devo manter as mãos afastadas da zona de corte, mas não me apercebi que a minha mão direita estava próxima ao disco. Não usava luvas. A máquina tem empurrador mas só usamos o empurrador em peças mais pequenas ou seja com 2 ou 3 cm de largura e quando a máquina tem paralela. No momento do acidente não usei a paralela pois só uso paralela para cortar peças mais pequenas”. Face ao teor deste documento, bem como ao dedo lesionado da mão direita, não se considerou credível a versão do acidente apresentada pelo A. em depoimento de parte. De facto, este referiu que o corte teve de ser quando foi tirar a tábua já depois de cortada e que, no corte, usava tanto o empurrador na mão direita como estava a usar a paralela, sendo que a mão esquerda estava atrás. Mas esta versão não se coaduna com as declarações escritas supra transcritas nem é credível, pois se o corte do dedo se tivesse dado já após terminado o corte da peça e ao ir buscar à parte de trás da mesa de corte a peça cortada, o dedo indicador estaria a segurar tal peça, e não “solto” de modo a ser atingido pelo disco de corte, que como referiu o A. tinha o resguardo colocado e encostado à peça, peça essa que tinha 25 cm de grossura, para além de que, se estivesse a usar o empurrador, teria ido buscar a peça com esse mesmo empurrador (como, alias, CC declarou que o mesmo deveria fazer de forma a proteger-se), pelo que não é credível que o acidente se tenha ocorrido desta forma. Assim, considerou-se este documento particular e a versão constante do mesmo, assinado pelo A., como credível.

Os pontos P) e Q) resultaram demonstrados tanto do depoimento do A., que confirmou que ambos os instrumentos servem para proteger, o que evidencia o conhecimento da sua função, como do depoimento de CC, que de modo claro esclareceu que ambos servem para manter as mãos afastadas do disco de corte, sendo que a paralela, embora funcione como um apoio que faz contra força contra o disco e ajuda a manter a peça na linha que deve seguir, serve também como uma extensão da mão, mantendo assim esta afastada. Para além disso, o documento de fls. 123 e declarações escritas aí prestadas pelo A. quanto à justificação para o não uso destes instrumentos é revelador da decisão que o mesmo tomou de não os usar neste tipo de corte apesar de ter conhecimento da sua função de proteção.”

Analisando:

Item J) da factualidade provada, cujo teor é:

- Para levar a cabo a sua tarefa o Autor não usava luvas nem fez uso do empurrador de peças ou da paralela que faz parte da máquina;

Conclui o Apelante que o facto J) jamais deveria ser dado como assente. A Perita averiguadora não se recordou do porquê de ter sido ela a redigi-lo e, bem assim, o local em que reuniu com o Autor. Tal relatório/alegadas declarações do sinistrado, jamais deveriam ser acolhidas pelo Tribunal a quo.

Vejamos:

“I - A descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito que o autor se arroga e, como tal, de acordo com os critérios gerais de repartição do ónus da prova, a sua prova compete à ré na ação, ou seja, à entidade empregadora ou à respetiva seguradora, no caso de seguro válido (art. 342º, nº 2, do Código Civil).” – sumário do Acórdão desta secção, proferido no processo nº272/19.7T8VNG.P1, em 04-04-2022, realce aqui introduzido.

Na contestação, a Ré Seguradora deduziu a exceção da descaracterização do acidente por negligência grosseira do Sinistrado, aí alegando nomeadamente que para levar a cabo a sua tarefa, o Sinistrado não usava luvas e não fez uso do empurrador de peças, que faz parte da máquina, nem fazia uso da paralela – artigos 9 e 10 do mesmo articulado.

O Sinistrado não respondeu a tal matéria.

Aquando da prolação do despacho saneador, nos termos do disposto no artigo 131º nº 1 alínea c) do CPT, considerou o Tribunal a quo assente por acordo a matéria deste item J).

De tal decisão não foi apresentada reclamação.

Porém, a matéria da alínea J) não pode ser considerada assente por acordo.

Sendo os direitos à prestações e créditos infortunísticos, inalienáveis e irrenunciáveis (artigo 78º da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro), não valem como confissão as que tivessem sido produzidas nos autos pelo Sinistrado – neste sentido cfr. Acórdão da Relação de Lisboa proferido no Processo nº 58/12.0TTVFX.L1-4, em 03.12.201,4 (Relator Desembargador Duros Mateus Cardoso, in www.dgsi.pt)

Assim sendo, adianta-se, impõe-se que a Mm.ª Juiz a quo fundamente devidamente, ou seja, de outra forma a respetiva convicção sobre a mesma matéria.

Salienta-se que não obstante ter considerado tal matéria assente aquando da prolação do despacho saneador – artigo 131º, nº1, alínea c) do Código de Processo do Trabalho – a Mm.ª Juiz, em sede de audiência de julgamento, perguntou ao Sinistrado se no momento em que estava a fazer este corte, não estava a usar a paralela, ao que o Sinistrado respondeu que estava, assim como lhe perguntou se estava a usar o empurrador, ao que o Sinistrado respondeu sim.

Ou seja, o Sinistrado foi ouvido em sede de audiência de julgamento a respeito da matéria da alínea J).

Importa, pois, que o Tribunal de 1ª instância, fundamente «tendo em conta os depoimentos gravados ou registados »– artigo 662º, nº2, alínea d) do Código de Processo Civil - a respetiva decisão de considerar como provado, contrariamente ao que foi referido pelo Sinistrado em sede de audiência, que para levar a cabo a sua tarefa o Autor não usava luvas nem fez uso do empurrador de peças ou da paralela que faz parte da máquina.

É que como referido no sumário Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no Processo nº 2384/17.2/98VCT.G1, em 10.10.2019 (Relator Desembargador Eduardo Azevedo, in www.dgsi.pt), “Aos documentos nos quais constam declarações designadamente do sinistrado prestadas a terceiro incumbido pela ré da averiguação de acidente não se lhe pode atribuir força probatória plena, sendo irrelevante que a parte contrária não se tenha oposto à sua junção, nem tenha impugnado tanto o seu teor como a assinatura, ou, ainda, não argua a sua falsidade.”

Explicitando:

A matéria da alínea J) trata-se de matéria essencial.

O Acórdão desta Relação de 31.03.2020, proferido no processo nº 1372/19.9T8VFR-A.P1, (Relatora Conselheira Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt] elucida:

“Sumariamente, os factos podem ser essenciais ou instrumentais.

Os factos essenciais são os factos integradores da causa de pedir, constitutivos do direito alegado tendo em atenção as previsões integradores das normas substantivas invocadas [ou integradores das exceções perentórias].

Os factos essenciais tanto abrangem os factos essenciais stricto sensu ou principais, a que se reporta o art. 5º, nº 1, do CPC/2013 e 72º, nº 1, do CPT, como os complementares, porquanto, sendo estes relevantes à procedência da pretensão, integram-se no conceito amplo de causa de pedir, a estes se reportando o art. 5º, nº 2, al. b), do CPC – cfr. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, anotação ao art. 5º, págs 19 a 25.

Segundo Jorge Augusto Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 13ª edição, Almedina, pág. 305, factos essenciais “São os factos que integram a causa de pedir ou fundamentam as exceções. Por outras palavras, são os factos que concretizam a norma jurídica em que se fundamenta o direito invocado pelo autor ou em que se baseia a defesa do réu. São, em suma, os factos que, se virem a ser provados, são decisivos para que a ação ou a exceção possa ser julgada procedente.

Podemos dizer, em síntese, que os factos essenciais ou fundamentais são os que integram a previsão da norma em que se funda a pretensão do autor (ou reconvinte) ou a exceção deduzida pelo réu (ou reconvinte). São, portanto, os factos cuja prova é indispensável para que seja julgada procedente a ação ou a exceção.”

Dos factos essenciais (integrando estes os principais e os complementares) se distinguem os factos instrumentais, os quais não integram a causa de pedir, sendo antes “factos indiciários ou presuntivos da causa de pedir. (…) de acordo com o artigo 349º CC “as Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. Assim, os factos instrumentais são factos conhecidos que permitem à parte firmar um facto constitutivo (facto desconhecido). Portanto, são factos meramente probatórios e não integram as normas de procedência, i.e., as previsões normativas dos regimes materiais que suportam o pedido do autor.(…)”, categoria esta a que se reporta o art. 5º, nº 2, al. a), do CPC, estando fora do ónus de alegação” – cfr. Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, anotação ao art. 5º, págs 19 a 25” (realce, sublinhado e alteração do tamanho da letra nossos).

[(…)]”

Conforme o disposto no artigo 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”.

A propósito da elaboração da sentença, preceitua o artigo 607º, nº4 do Código de Processo Civil que «Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.»

Sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», dispõe o artigo 607º do Código de Processo Civil:

«1 – A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

2 – A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;

b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;

d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

3 – Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma:

a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância;

b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.

4 – Das decisões da Relação previstas nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»

Está em causa a ocorrência da irregularidade prevista na alínea d), do nº 2 deste artigo.

A este respeito, esclarece, recentemente, o Acórdão deste Tribunal, proferido no processo nº 11158/15.4T8PRT.P1, em 12.09.2024 (Relatora Desembargadora Ana Luísa Loureiro, in www.dgsi.pt) no que da respetiva fundamentação se transcreve:

“[(…)] Sendo certo que a lei não estabelece que a motivação da decisão de facto obedeça a uma metodologia específica, a estratégia discursiva adotada deve permitir apreender a razão pela qual se proferiu determinada decisão sobre os factos considerados provados, o que pode exigir a concreta indicação do/s meio/s de prova considerado/s pelo julgador para a prova de factos concretos – e uma eventual análise crítica desses meios de prova, nomeadamente quanto à valoração de depoimentos prestados e de outros meios de prova –, por forma a permitir perceber qual foi o raciocínio/análise crítica efetuada pelo julgador na formação da sua convicção subjacente à afirmação da ocorrência de determinado facto ou da realidade de determinado facto (bem como da falta de prova da ocorrência/verificação de factos alegados). Quando tal não aconteça, estaremos perante uma parcial deficiência na fundamentação da decisão de facto (art. 662.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Civil).

No entanto, tal vício não gera a nulidade da sentença. [(…)]

A consequência da deteção deste vício é, assim, apenas a determinação da sua supressão, aperfeiçoando-se a motivação, como ato preparatório da pronúncia do tribunal ad quem sobre o objeto da impugnação: o sentido (provado ou não provado) da decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

A utilização da ferramenta prevista na al. d) do n.º 2 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil justifica-se quando a parte impugna (regularmente) a concreta decisão (sobre determinado facto) e a motivação efetuada não satisfaz a exigência legal do estabelecimento de um «(…) fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando porque razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607.º, n.º 5), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos. (…)

Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada, a Relação deve determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância, a fim de preencher essa falha (…)» – António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pp. 359 a 361.”

[(…)]

Ao tribunal a quo cabe apenas aditar a motivação da sua convicção [(…)] sem alterar qualquer segmento da decisão (dispositivo) ou da fundamentação (factos provados e razões de direito). [(…)].
A validade da sentença não é afetada pela remessa transitória, subsistindo os recursos dela já interpostos, devendo os autos subir imediatamente a este tribunal após a sanação da irregularidade.” (sublinhado aqui introduzido)
O que aqui, face ao que ficou já referido, se determina, devendo os autos ser remetidos ao Tribunal a quo, para que a Mm.ª Juiz motive devidamente a sua convicção quanto à matéria da alínea J) que considerou provada.

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Temos por pertinente deixar a apreciação da restante matéria impugnada para depois.

Com efeito, encontra-se a mesma relacionada com a matéria da alínea J) - o Autor não usava luvas nem fez uso do empurrador de peças ou da paralela que faz parte da máquina.

A matéria que o Autor pretende ver eliminada da alínea O) - na parte final do corte da peça em madeira – e que pretende seja aditada - na parte final da tarefa, mais concretamente ao retirar a tábua – está relacionada com a matéria da alínea J).

Assim sucede também quanto à matéria da alínea Q) - O Autor tinha perfeita noção para que serviam aqueles instrumentos e escolheu não fazer uso deles [empurrador e paralela], e porque relacionada com esta, a matéria da alínea P) - O empurrador de peças e a paralela indicados em J) servem para evitar o contacto das mãos com o disco.

Decide-se, em conformidade, não se conhecer desde já da impugnação, na sua totalidade.


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Só uma vez fixado o quadro factual a atender poderá este Tribunal pronunciar-se ainda sobre as demais questões objeto do presente recurso.


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4. Decisão:

Por tudo o exposto, decide-se determinar que os autos sejam remetidos à 1ª instância, por forma a que o Tribunal recorrido fundamente devidamente a decisão proferida em sede de motivação da respetiva convicção, quanto à matéria da alínea J) que considerou provada, efetuando o exame crítico das provas.

Custas a serem decididas a final.

Porto, 12 de Maio de 2025

Teresa Sá Lopes (relatora)

Sílvia Gil Saraiva

Rui Manuel Barata Penha