RECURSO PER SALTUM
INDEFERIMENTO LIMINAR
NULIDADE DE DESPACHO
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CONSTITUCIONALIDADE
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRINCÍPIO DA COINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CONTRATO DE MANDATO
PATRIMÓNIO
Sumário


Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente (cfr. artigo 590.º, n.º 1, do CPC).

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrentes: AA e BB

Recorridos: CC e DD

1. Nos presentes autos foi proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, em 23.05.2024, a seguinte decisão:

Face ao exposto e pelas razões aduzidas, decido indeferir liminarmente a presente petição inicial”.

2. Notificados desta decisão, vieram os autores interpor recurso per saltum, “nos termos do artigo 678.º do Código de Processo Civil, que prevê a possibilidade de recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça”.

Concluem as suas alegações do seguinte modo:

“I - A decisão recorrida errou ao dar excessiva importância ao domicílio dos réus como factor determinante da competência dos Tribunais portugueses.

II - A competência dos Tribunais portugueses justifica-se quer com base no princípio da causalidade, quer com base no princípio da necessidade, que a decisão recorrida obliviou totalmente, desconsiderando os impactos financeiros jurídico português e a dificuldade dos Autores em obter justiça noutra jurisdição.

III - É incorreto aplicar que a decisão baseada no statute of limitations americano corresponde a uma prescrição da obrigação ou a uma caducidade do direito de ação no ordenamento jurídico nacional, dado que a decisão americana não tem efeitos em Portugal sem revisão e confirmação conforme o artigo 978.º do Código de Processo Civil Português.

IV - E, por outro lado, é completamente diversa a causa de pedir invocada.

V - O direito de ação baseado no enriquecimento sem causa não prescreveu em Portugal, e o tribunal a quo falhou ao não permitir que este argumento fosse devidamente explorado e considerado.

VII - A decisão recorrida contém uma contradição flagrante ao afirmar que a sentença americana não pode produzir efeitos em Portugal sem uma revisão formal, enquanto simultaneamente aplica efeitos dessa mesma sentença, especificamente o statute of limitations, para fundamentar a prescrição em Portugal. Esta aplicação contraditória demonstra uma falha crítica na interpretação e aplicação do direito internacional e do princípio da independência das ordens jurídicas.

VIII - O instituto do enriquecimento sem causa foi corretamente invocado, considerando a apropriação indevida de bens e valores sem causa jurídica que a justifique, e os tribunais devem considerar esta causa de pedir, independente de outras relações jurídicas.

IX - A decisão recorrida padece de nulidade processual ao configurar-se como uma decisão surpresa, dado que os Recorrentes não foram devidamente ouvidos ou informados sobre o enquadramento jurídico e fático adotado pelo juiz a quo.

X - Esta omissão do contraditório constitui uma violação grave dos direitos processuais, impedindo que os Recorrentes apresentassem uma defesa adequada e influindo diretamente na decisão da causa.

XI - A decisão recorrida constitui uma denegação de justiça, pois impediu os Recorrentes de fazerem valer os seus direitos ao rejeitar a ação sem uma análise substancial, violando os princípios do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva”.

3. Em 4.07.2024, proferiu o Tribunal Judicial da Comarca de Faro despacho com o seguinte teor:

Alegações de recurso que antecedem:

Nas suas alegações, os autores sustentam a nulidade da decisão final proferida nos autos, decorrente da violação do princípio do contraditório, por não lhes ter sido dada a possibilidade de se pronunciarem sobre aquele que veio a ser o entendimento do tribunal.

Salvo melhor opinião, não lhes assiste razão.

Com efeito, os autos foram conclusos para despacho liminar em face do domicílio dos réus, por forma a que o tribunal apreciasse a questão das formalidades a seguir quanto à sua citação, porquanto os mesmos possuem residência nos E.U.A.

Deste modo, em nosso entender, ao apreciar as condições de procedência da ação, o tribunal atuou no âmbito dos poderes de gestão inicial do processo, tal como são definidos no n.º 1, do artigo 590.º, do C.P.C. Todavia, V. Exas, Colendos Conselheiros, melhor decidirão, com a mais sábia Justiça!


*


Considerando que os autores estão em tempo, admito o recurso interposto do despacho de indeferimento liminar da petição inicial, com subida imediata e efeito meramente devolutivo (cfr. artigos 638.º, 639.º, 644.º, n.º 2, al. g) e 647.º, n.º 1, aplicáveis por força do disposto no n.º 3, do artigo 678.º, todos do C.P.C.), o qual deverá ser processado como revista.

D.N., com vista à remessa para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 4, do citado artigo 678.º, do C.P.C.”.

4. Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal, proferiu a ora Relatora decisão em que pode ler-se a final:

Pelo exposto, determina-se a baixa dos autos à 1.ª instância para que aí se dê cumprimento ao disposto no artigo 306.º, n.º 3, e no artigo 641.º, n.º 7, ambos do CPC, devendo ser ordenada a subida dos autos a este Supremo Tribunal de Justiça somente após a apresentação, pelos recorridos, de contra-alegações ou do decurso do prazo legal de que dispõem para o efeito”.

5. Em 26.09.2024 foi proferido no Tribunal de 1.ª instância o seguinte despacho:

Em cumprimento do determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça, decido:

A) Fixar o valor da causa em 700 000,00 (setecentos mil euros), valor que tem em consideração o valor do pedido formulado pelos autores e o disposto no artigo 297.º, n.º 1, do C.P.C.;

B) Determino a citação dos réus, tanto para os termos do recurso como para os termos da causa (artigo 641.º, n.º 7, do referido diploma), recorrendo aos regulamentos internacionais aplicáveis com vista à concretização de tal citação”.

6. Os réus / recorridos apresentaram as suas contra-alegações de recurso, que concluíram assim:

1 - Julgou corretamente o Douto Tribunal “a quo”.

2 - Os réus/ recorridos residem nos EUA

3 - Existe sentença proferida por tribunal arbitral nos EUA.

4 - O tribunal português não tem competência.

5 - Estamos perante uma exceção do caso julgado.

6 - A regra geral no direito processual interno português é a de que “é competente para a ação o tribunal do domicílio do réu” – artigo 85º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

7 - Nenhum fato foi praticado em território nacional.

8- o direito que os autores vêm exercer através da presente ação já foi anteriormente apreciado tendo sido proferida sentença no tribunal arbitral americano.

9 - Dispõe o artigo 978.º do Código de Processo Civil (CPC): “Não é necessária a revisão quando a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa”.

10 - Ora duvidas não restam que os próprios Autores fazem uso da sentença proferida junto do tribunal arbitral dos EUA. Artigo 77º e seguintes da petição inicial.

11 - As sentenças proferidas por tribunais estrangeiros podem, em conformidade com o exposto, gozar, no nosso sistema jurídico, de plena aplicabilidade e produção dos efeitos jurídicos previstos na legislação do país onde foram prolatadas.

12 - No caso, conforme decorre do supra elencado, a ação proposta no tribunal de origem, foi instaurada e julgada anteriormente, com as mesmas partes dos presentes autos e onde está em causa a mesma causa de pedir e pretensão de idêntico sentido.

13 - Duvidas não restam que estamos perante uma exceção de caso julgado formal nos termos do artigo 620 CPC

14 - A exceção de caso julgado tem por objetivo impedir, em nome da segurança e paz jurídica, bem como de imperativos de economia processual, que uma causa se repita quando já existe uma sentença tornada firme sobre uma primeira causa, por já não ser admissível a interposição de recurso ordinário.

15 - Sendo certo que contrariamente ao alegado pelos recorrentes, o pedido e a causa de pedir são iguais.

16- Pelo que carece de total fundamento a propositura de ação, pretendendo que a mesma seja novamente julgada em território nacional, com o mesmo pedido e causa de pedir”.

7. Em 6.03.2025 foi proferido despacho no Tribunal de 1.ª instância com o seguinte teor:

Cumpridas as formalidades legais regressem os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) a decisão recorrida enferma de nulidade processual por violação do princípio do contraditório / proibição das decisões-surpresa;

2.ª) a acção deve ser liminarmente indeferida pelo facto de os tribunais portugueses carecerem de competência e / ou a acção ser manifestamente improcedente.


*


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

A partir da fundamentação do Acórdão recorrido, é possível concluir que o Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

1) Os réus possuem residência nos Estados Unidos da América.

2) A decisão arbitral proferida pelo juiz americano não se encontra transitada em julgado, não foi revista, nem confirmada, ficando por alegar os requisitos de eficácia da mesma em face da lei portuguesa e, por conseguinte, se estão esgotados todos os mecanismos legais para, em face do direito americano, os autores fazerem valer os seus direitos.

O DIREITO

Sobre a admissibilidade do presente recurso per saltum

O presente recurso configura um recurso per saltum, que é regulado no artigo 678.º do CPC.

O artigo 678.º, n.º 1, do CPC tem o seguinte teor:

As partes podem requerer, nas conclusões da alegação, que o recurso interposto das decisões referidas no n.º 1 do artigo 644.º suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que, cumulativamente:

a) O valor da causa seja superior à alçada da Relação;

b) O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada da Relação;

c) As partes, nas suas alegações, suscitem apenas questões de direito;

d) As partes não impugnem, no recurso da decisão prevista no n.º 1 do artigo 644.º, quaisquer decisões interlocutórias”.

Os requisitos indicados nesta norma são cumulativos, o que significa que têm de estar reunidos para que seja admitido o recurso per saltum.

Sendo possível dá-los por verificados no caso dos autos, o presente recurso per saltum não pode deixar de ser admissível.

Observe-se apenas, quanto ao requisito previsto na al. d), que não há dúvidas de que está em causa uma decisão final (não interlocutória), merecendo destaque a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.07.2020 (Proc. 2624.18.0T8FNC.A.L1.S1), de cujo sumário consta:

O art. 671.º, n.º 1, do CPC deve interpretar-se em termos de se admitir o recurso de revista de decisões que põem termo ao processo por razões formais, ainda que não absolvam da instância o réu ou nenhum dos réus”.

I. Da nulidade por violação do princípio do contraditório (ou da proibição das decisões-surpresa)

Nas conclusões IX a XI, os recorrentes alegam, no essencial, violação do contraditório derivada de “os Recorrentes não [terem sido] devidamente ouvidos ou informados sobre o enquadramento jurídico e fático adotado pelo juiz a quo”.

Na decisão recorrida pode ler-se:

Os réus ainda não chegaram a ser citados para a ação (tendo sido indeferida a realização da citação urgente por despacho antecedente) e as questões sob apreciação já foram devidamente explanadas pelos autores na sua petição inicial, considerando-se desnecessário o cumprimento do contraditório, o qual apenas se destinaria a ouvir, novamente, as suas razões de procedência da ação e recurso aos tribunais portugueses”.

E no despacho de 4.07.2024 explica o Tribunal recorrido:

Nas suas alegações, os autores sustentam a nulidade da decisão final proferida nos autos, decorrente da violação do princípio do contraditório, por não lhes ter sido dada a possibilidade de se pronunciarem sobre aquele que veio a ser o entendimento do tribunal.

Salvo melhor opinião, não lhes assiste razão.

Com efeito, os autos foram conclusos para despacho liminar em face do domicílio dos réus, por forma a que o tribunal apreciasse a questão das formalidades a seguir quanto à sua citação, porquanto os mesmos possuem residência nos E.U.A.

Deste modo, em nosso entender, ao apreciar as condições de procedência da ação, o tribunal atuou no âmbito dos poderes de gestão inicial do processo, tal como são definidos no n.º 1, do artigo 590.º, do C.P.C. Todavia, V. Exas, Colendos Conselheiros, melhor decidirão, com a mais sábia Justiça!”.

Dispõe-se no artigo 590.º, n.º 1, do CPC:

Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º”.

Comentando esta disposição legal, explicam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre que, antes da revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, a petição inicial era sempre apresentada ao juiz para este proferir o despacho liminar – a mandar citar o réu ou, sendo caso disso, a indeferir a petição ou a convidar o autor a aperfeiçoá-la, tendo lugar o indeferimento liminar quando, perante a petição inicial, se verificasse, designadamente, a falta manifesta de certos pressupostos processuais, constituindo excepções dilatórias de conhecimento oficioso tidas por insupríveis, como, por exemplo, a incompetência absoluta. O regime-regra posterior àquela revisão excluiu o despacho de citação ou de aperfeiçoamento inicial da petição, excepcionando-se expressamente os casos constantes das als. a) a f) do artigo 226.º, n.º 4, do CPC, em que a citação depende sempre de despacho judicial prévio1.

No quadro legal actual, não fica, contudo, o juiz impedido de, contactando com o processo por alguma razão (mesmo que não explicitamente prevista) e apercebendo-se da ocorrência evidente de uma excepção dilatória insuprível e / ou da manifesta falta de procedência do pedido, indeferir liminarmente a petição.

Foi exactamente o que aconteceu no presente caso: tendo os autos sido conclusos para o efeito de o juiz determinar as diligências adequadas à citação dos réus (residentes num país estrangeiro e fora da União Europeia), o juiz deparou-se com a excepção dilatória insuprível e a manifesta falta de procedência do pedido; assim, em vez de citar os réus, proferiu, sem mais – como podia e devia – despacho de indeferimento liminar.

Nem poderia ser de outro modo, dado que esta é a única interpretação coerente com o princípio da economia processual e a proibição de actos inúteis (cfr. artigo 130.º do CPC).

Escusado será dizer que, neste quadro legal, não há lugar ao contraditório, atendendo à natureza dos vícios em causa, i.e., o carácter ostensivo / patente dos vícios e a sua gravidade / aptidão para afectar irreversivelmente a procedência da acção.

Nem se alegue que a decisão (de indeferimento) em causa configura uma decisão surpresa, dado que, como bem observa o Tribunal a quo, as questões já haviam sido devidamente abordadas pelos autores na sua petição inicial, sendo, em concreto, escusado ouvir, de novo, os seus argumentos para a procedência da ação e para a sua convicção de que os tribunais portugueses eram competentes.

Diga-se, por fim, que, não tendo havido incumprimento do contraditório, não há, consequentemente, denegação de justiça nem violação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (cfr. artigo 20.º da CRP).

II. Do indeferimento liminar da petição inicial

Podendo, como se viu, apreciar as condições de admissibilidade da acção, o Tribunal a quo decidiu:

No nosso entender e salvo melhor opinião, a presente ação não possui condições de procedência, devendo ser liminarmente indeferida (…)”.

As razões apresentadas pelo Tribunal recorrido, e tal como formuladas pelo Tribunal recorrido, são duas: a falta de competência dos tribunais portugueses e a manifesta improcedência da acção, por falta de verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa.

Aprecie-se mais de perto cada um dos fundamentos.

a. Falta de competência dos tribunais portugueses

Pode ler-se a este respeito na decisão recorrida:

As normas de competência internacional delimitam o exercício da função jurisdicional pelo conjunto dos tribunais portugueses no quadro das relações jurídicas conexas com mais de uma ordem jurídica estrangeira.

As regras de competência internacional integram a chamada incompetência absoluta, de conhecimento oficioso, devendo aferir-se face ao pedido e à causa de pedir (Acórdão do STJ, 03/.03/2005, processo n.º 05B316, disponível em www.dgsi.pt).

A regra geral no direito processual interno português é a de que “é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu” - artigo 85º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

É incontestado que os réus possuem residência nos Estados Unidos da América.

O artigo 62.º, do Código de Processo Civil estabelece os fatores de atribuição de competência internacional dos tribunais portugueses, considerando-os competentes nos seguintes casos:

a. Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b. Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c. Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.

Os autores consideram que o tribunal português possui competência para dirimir a presente questão, invocando para o efeito o preceituado nas alíneas b) e c), do citado diploma legal.

Vejamos.

Como se deixou escrito, os autores sustentam que, ao longo dos anos - de 1992 a 2017/2018 - os réus iam enviando aos autores pequenas quantias - das reformas, rendas que estes auferiam nos EUA - quando eles pediam para custear a sua vida em Portugal ou fazer pequenos investimentos cá, movimentavam as suas contas bancárias, sem lhes prestarem contas e efetuaram diversas transações, alienando património que lhes pertencia, sem pagar o correspetivo preço, causando-lhes um prejuízo na ordem dos 700 000,00 € (setecentos mil euros).

Lido e relido o teor da petição inicial e ao contrário do alegado, não se encontra qualquer descrição de atos que integram a causa de pedir (atos de empobrecimento dos autores e consequente enriquecimento dos réus, à sua custa) que tenham sido praticados em território nacional.

Por outro lado, não se encontra alegado que a sentença arbitral estrangeira com base na qual os autores sustentam a verificação do requisito da subsidiariedade do instituto do enriquecimento sem causa ao qual recorrem, tenha transitado em julgado, a qual, além do mais, nem sequer foi objeto do necessário procedimento legal de revisão e confirmação, junto do Tribunal da Relação de Évora.

Por fim, sempre se dirá que o direito que os autores vêm exercer através da presente ação já foi apreciado naquele processo que correu os seus termos perante o tribunal arbitral americano, não podendo agora ser invocada dificuldade apreciável de uma ação que já foi proposta, desconhecendo se, nos tribunais comuns, naquele país, a questão ainda poderá ser apreciada judicialmente.

Em nosso ver e salvo o devido respeito por opinião contrária, a falta de exequibilidade da sentença arbitral estrangeira sempre conduziria à manifesta improcedência da presente ação, pelo argumento que se segue.

Nas conclusões I e II, os recorrentes contrapõem, fundamentalmente, que o Tribunal recorrido errou ao concentrar-se no domicílio para a determinação da (in)competência dos tribunais portugueses, sustentando que deveria ter sido dada atenção ao princípio da causalidade e ao princípio da necessidade.

A verdade é que, ao contrário do que entendem os recorrentes, e como bem se vê do trecho acima transcrito, o Tribunal recorrido apreciou a questão da competência dos tribunais portugueses à luz de todos os critérios legalmente estabelecidos – examinando cada um e não sobrevalorizando nenhum. Se, no final, concluiu pela incompetência, não pode dizer-se que tenha sido por falta de observância do que está prescrito na lei mas sim, simplesmente, porque não existem elementos que permitam concluir o contrário.

Decorre do artigo 62.º do CPC que existem três factores de atribuição da competência internacional. A al. a) consagra o critério da coincidência, pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que a acção possa ser proposta em Portugal segundo as regras específicas da competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (cfr. artigos 70.º e s. do CPC). A al. b) consagra o critério da causalidade, pelo qual se determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que o(s) facto(s) integrador(es) da causa de pedir tenha(m) sido praticado(s) em Portugal. Finalmente, a al. c) consagra o critério (subsidiário) da necessidade, pelo qual se admite ainda a competência internacional dos tribunais portugueses quando o direito invocado apenas se possa efectivar por meio de acção proposta em Portugal ou em que seja manifestamente difícil para o autor a propositura da acção no estrangeiro.

Indagando, primeiro, se os tribunais portugueses seriam competentes ao abrigo das regras de competência territorial (cfr. artigos 70.º e s. do CPC), verifica-se que, compulsada a p.i., não se vê possibilidade de justificar a competência dos tribunais portugueses conjugando a al. a) do artigo 62.º do CPC com qualquer das regras específicas ou da regra supletiva geral do artigo 80.º do CPC (anterior artigo 85.º do CPC), segundo a qual é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu2.

Atentando, depois, nos factos integradores da causa de pedir (os actos de que alegadamente resulta o empobrecimento dos autores pelas “mãos” dos réus), não se encontra referência a que algum deles tenha sido praticado em território nacional, pelo que tão-pouco pode justificar-se a competência dos tribunais portugueses ao abrigo da al. b) do artigo 62.º do CPC.

Convocando, por último, o critério constante da al. c) do artigo 62.º do CPC, a verdade é que, compulsada a p.i., não se consegue identificar qualquer circunstância que demonstre que o direito invocado apenas se pode efectivar por meio de acção proposta em Portugal (por impossibilidade (impossibilidade absoluta ou relativa de se efectivar no estrangeiro) ou sequer que é manifestamente difícil (i.e., excessivamente oneroso ou desrazoavelmente exigente) para o autor a propositura da acção no estrangeiro.

Como se disse atrás, nos termos do n.º 1 do artigo 590.º do CPC, quando seja apresentada a despacho liminar, o tribunal tem o poder-dever de indeferir a petição inicial se verificar que ocorrem, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente.

A incompetência internacional é uma forma de incompetência absoluta, que, enquanto tal, constitui uma excepção dilatória [cfr. artigo 577.º, al. a), do CPC] com a característica da oficiosidade (cfr. artigo 578.º do CPC) e a característica (residual) da unsupribilidade (cfr. artigos 99.º do CPC)3.

Teve, assim, razão o Tribunal recorrido quando proferiu a decisão de indeferimento da petição, constituindo a referida falta de competência fundamento bastante para tal.

b. Manifesta improcedência da acção

Mas, para que não restassem dúvidas sobre a decisão de indeferimento, o Tribunal a quo tomou a iniciativa de ir mais longe, explicando:

A causa de pedir é a fonte concreta do direito invocado, o acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido. É o acontecimento natural ou acção humana de que promanam, por disposição legal, determinados efeitos jurídicos, o princípio gerador do direito, o acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido4 - vide, definição que nos é dada pelo n.º 4, do artigo 581.º, do Código de Processo Civil.

A causa de pedir na presente acção funda-se pois, no instituto do enriquecimento sem causa, o qual vem regulado no art.º 473.º do Código Civil nos seguintes termos:

“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.”.

Afiguram-se como pressupostos deste instituto jurídico:

a. A existência do enriquecimento do réu;

b. O empobrecimento do autor;

c. A obtenção desse enriquecimento à custa do autor (nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento);

d. Ausência de culpa;

e. Ausência de ação apropriada

Deste modo, não basta, que uma pessoa tenha obtido vantagem económica à custa de outra, sendo ainda necessária a ausência de causa jurídica justificativa da deslocação patrimonial. Já que, para que esta existisse, e consequentemente, o respectivo direito à reparação, teria que haver logrado provar a inexistência de uma razão ou, ainda que a tivesse tido, a tivesse perdido, vide neste sentido ANTUNES VARELA, in “Das Obrigações em Geral”, I volume, pág. 482.

Este instituto jurídico tem natureza subsidiária, conforme o disposto no art.º 474.º do Código Civil, “Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.” donde, apenas se poderia lançar mão deste instituto, quando não fosse possível ao empobrecido – autora – obter ressarcimento por outros mecanismos legais, neste sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, volume I, pág. 321.

Destarte, caberia aos autores que pedem a restituição com base no enriquecimento dos réus, à sua custa, sem causa justificativa, por força do preceituado no art.º 342.º, nº 1 do Código Civil, o ónus de alegação e prova dos referidos pressupostos, e necessariamente a ausência de outros mecanismos legais para alcançar a sua pretensão.

Expressamente prescreve aquele normativo legal:

“1 - Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

2 - A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.

3- Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.”.

Tendo, pois, a falta de causa de ser não só alegada, como também provada, por quem pede a restituição. Não bastando, segundo as regras do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição, sendo preciso convencer o tribunal da falta de causa. Traduzindo-se, em suma, a falta de causa justificativa na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento, ou seja, o pressuposto da ausência de causa caracteriza-se, de um modo geral, quando o enriquecimento não encontra justificação na lei ou na vontade do empobrecido, vide MOITINHO DE ALMEIDA, in “Enriquecimento sem causa”, pág. 70, Almedina.

No caso concreto, importa salientar a referência - ainda que, de modo muito superficial - à celebração de um contrato de mandato entre os autores e o seu genro, o réu DD, ao abrigo do qual, este terá praticados diversos negócios na área do imobiliário, sem que, os réus tenham recebido a correspetiva compensação monetária.

Note-se que, os negócios em causa ou os imóveis sobre os quais incidiram nem sequer se encontram suficientemente descritos, admitindo-se, porém, que estejam perante negócios, todos eles, praticados em solo americano.

Ora, se a atuação do réu DD teve lugar ao abrigo de um contrato de mandato, existe uma causa legal para o empobrecimento, cabendo aos autores exigir a prestação de contas sobre o modo como esse mandato foi sendo exercido ao longo dos anos, direito que, de acordo com o alegado, apenas vem a ser exercido em meados de 2020, nos moldes da ação que correu termos no tribunal arbitral americano.

Aqui chegados há que fazer uma leitura conjugada do já citado artigo 474.º (natureza subsidiária do instituto jurídico em causa) com o n.º 4, do artigo 498.º, ambos do Código Civil.

Com efeito, conforme resulta da leitura conjugada das citadas normas legais, se por um lado, a ação de enriquecimento é afastada quando a lei negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento, por outro, a prescrição do direito de indemnização não importa a prescrição da ação de reivindicação nem da ação de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra.

No caso concreto, estamos perante um processo que conhece o seu desfecho numa fase muito prematura. Porém, mostra-se assente que a decisão arbitral proferida pelo juiz americano não se encontra transitada em julgado, não foi revista, nem confirmada, ficando por alegar os requisitos de eficácia da mesma em face da lei portuguesa e, por conseguinte, se estão esgotados todos os mecanismos legais para, em face do direito americano, os autores fazerem valer os seus direitos.

Por fim e atenta a alegação por parte dos autores de que a sentença arbitral julgou a sua pretensão improcedente, com fundamento num instituto jurídico próximo da prescrição e da caducidade do direito de interpor certa ação, em virtude do decurso do prazo, importa fazer valer os ensinamentos de Vaz Serra - que acompanhamos de perto - onde se defende: “Quanto ao direito fundado em enriquecimento sem causa e que teria subsistido após a prescrição do direito de indemnização, ele não seria admissível, pois, para haver um tal direito, seria necessário que o enriquecimento fosse desprovido de causa jurídica, e não é esse o caso quando o devedor se libera por prescrição (o enriquecimento tem, então, uma causa jurídica, que é a prescrição). A prescrição, tal como a usucapião e a caducidade, tem o fim de dar segurança jurídica aos direitos, sendo, por isso, contrário a essa finalidade que o prejudicado com a prescrição pudesse exercer um direito de enriquecimento contra o prescribente. (…) Assim, o enriquecimento derivado da usucapião, da prescrição ou do decurso de um prazo de caducidade tem causa justificativa, que é constituída por esses institutos, cujo fim é garantir a segurança jurídica. Nestes casos, a prescrição, a usucapião ou a caducidade não se destinam apenas a operar uma deslocação do direito de uma pessoa para a outra, mas também uma deslocação patrimonial entre o empobrecido e o enriquecido, assegurando a este uma aquisição ou vantagem substancial, a qual é fundada em razões de segurança jurídica. (…) De modo análogo [à usucapião], o enriquecimento resultante para o devedor da prescrição da sua dívida tem causa jurídica ou justificativa, dado que, segundo a lei, a circunstância de o credor não exercer o seu direito durante certo tempo justifica a liberação do devedor e a consolidação do valor da dívida na titularidade deste (…). Portanto, uma vez operada a prescrição, o valor assim obtido pelo devedor tem causa justificativa e não pode, por isso, ser objecto de uma pretensão fundada em enriquecimento sem causa. [O art. 489.º, n.º 4 CC] Não pode querer dizer que a prescrição do direito de indemnização não obsta a que o lesado exija do lesante aquilo em que este haja enriquecido à sua custa, isto é, o montante da dívida de que, pela prescrição, se liberou, pois isso seria contrário, como já se observou, à razão de ser e à finalidade da prescrição. Portanto, significa apenas que a prescrição do direito de indemnização não determina a prescrição do direito de restituição por enriquecimento sem causa se a este houver lugar (como no mesmo n.º 4 do art. 498.º se acentua); ora, não há lugar a esse direito pelo simples facto de a obrigação de indemnização do devedor ter prescrito, conforme se disse já.” (transcreve-se da contestação, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110, n.º 3591 (1977), p. 83-88).

Assim sendo, ainda que os autos devessem prosseguir para apreciação e aderindo àquela posição doutrinal, designadamente às razões de certeza jurídica que a sustentam, sempre haveria de se considerar a preclusão do direito que os autores exercem através da presente ação, por via do decidido no referido processo arbitral”.

Expõe aqui o Tribunal recorrido três argumentos visivelmente adicionais, que não servem senão para confirmar / reforçar a decisão de indeferimento e que, em bom rigor, não seriam necessários.

Em primeiro lugar, recordou o Tribunal recorrido que os autores / recorrentes celebram um contrato de mandato com os réus ou, nas palavras daqueles, confiaram aos réus a gestão do património que deixaram nos EUA (cfr. artigo 24.º da p.i). Consubstanciando uma causa justificativa da prática dos actos que conduziram ao alegado empobrecimento dos autores, a existência de tal contrato torna mais inverosímil a alegação de enriquecimento sem causa. Como reconhecem os autores / recorrentes, “há enriquecimento sem causa quando alguém enriquece à custa de outra sem que haja uma justificação - a lei ou um contrato - para tal” (cfr. artigo 86.º da p.i.).

Tendo presente o carácter subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa – que os autores / recorrentes também reconhecem (cfr. artigos 91.º da p.i.) – referiu também o Tribunal recorrido que a decisão arbitral não transitou em julgado nem foi revista e confirmada pelos tribunais portugueses, não conferindo, portanto, a segurança necessária quanto a terem-se esgotados todos os mecanismos legais para os autores fazerem valer os seus direitos (cfr. facto provado 2), sendo certo que este esgotamento é condição para o recurso àquele instituto.

Por fim, dando atenção à alegação os autores de que a sua pretensão foi julgada improcedente na decisão arbitral com fundamento num instituto jurídico afim ou próximo da prescrição ou da caducidade do direito de acção (cfr. artigos 77.º a 80.º da p.i.), o Tribunal recorrido advertiu que o direito à restituição com base no enriquecimento sem causa pressupõe, justamente, a inexistência de causa, o que não acontece quando o devedor se liberta da obrigação por prescrição do direito. Assim, se se confirmasse a prescrição, poderia, por aí, ficar inviabilizada a acção de restituição por enriquecimento sem causa.

Estes três argumentos são, como se disse, retóricos ou supérfluos na medida em que a decisão de indeferimento da petição já se encontra suficientemente justificada com o fundamento da excepção dilatória da incompetência absoluta.

Este carácter supérfluo é visível, em especial, quanto ao último argumento, a propósito do qual o Tribunal recorrido se limita a equacionar uma hipótese – a hipótese de o fundamento da decisão arbitral ser, como os recorrentes alegam, a prescrição do direito dos autores. Esta é também a razão pela qual não há “contradição flagrante” no raciocínio do Tribunal recorrido (cfr. conclusão VII): o Tribunal recorrido não está, em boa verdade, a aplicar os efeitos de uma decisão arbitral não transitada nem revista e confirmada mas sim a a aventar a possibilidade de a alegação dos recorrentes ser verdadeira, com o intuito de mostrar que o resultado seria igualmente a improcedência da acção.

Os três argumentos servem, não obstante, e como se disse antes, para ilustrar a pluralidade (actual e potencial) de circunstâncias que confluem para a conclusão de manifesta improcedência do pedido, nos termos do artigo 590.º do CC, e, consequentemente, reforçam a convicção quanto ao acerto da decisão proferida pelo Tribunal a quo no âmbito da gestão inicial do processo.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelos autores / recorrentes.

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Lisboa, 28 de Maio de 2025

Catarina Serra (relatora)

Emídio Santos

Fernando Baptista

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1. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código Civil Anotado – volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2017 (3.ª edição), pp. 621-622.

2. Como é sabido, os réus têm residência nos EUA (cfr. facto provado 1).

3. Cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código Civil Anotado – volume 2.º, cit., p. 623.

4. “vide, Acórdão da Relação de Lisboa de 23/2/1989, in CJ, Tomo I, pág. 141 - onde se distingue entre petição inepta e insuficiente - Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de processo civil”, 1963, pág. 107 e 297, Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 29ª edição, pág. 245 e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina, pág. 593 e ss.”.