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DECISÃO ARBITRAL
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
CADUCIDADE
CONDENAÇÃO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO
Sumário
I – Consideram-se conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, da prestação de serviços ou da transmissão de quaisquer direitos destinados a uso não profissional e fornecidos por pessoa singular ou colectiva, que exerça com carácter profissional uma actividade económica que visa a obtenção de benefícios. II – A competência dos tribunais estaduais é excepcional e sujeita a um numerus clausus em questões que sejam submetidas a arbitragem, já que se determina na LAV que nas matérias que regula, os tribunais estaduais só podem intervir nos casos em que esta o prevê. III – Há que distinguir entre o prazo geral da arbitragem previsto na lei (cfr. art. 43º, nº 1, LAV) e o prazo para proferir a sentença previsto nas regras processuais fixadas para a arbitragem e que só a ultrapassagem do primeiro prazo (e não do segundo) é geradora da caducidade do processo arbitral, implicando a sua imediata extinção. IV - O Tribunal está impedido de condenar em objecto diverso do que for pedido (art.º 609.º n.º. 1 do Código de Processo Civil), pelo que não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, nomeadamente, no que respeita ao seu próprio objecto, sob pena de o aresto a proferir ficar afectado de nulidade. V – É, no entanto, lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter.
Texto Integral
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I–Relatório
EMP01... – EMPRESA DE ÁGUA, EFLUENTES E RESÍDUOS DE ..., E.M., NIPC ...92, com sede na Praça ..., ... ..., veio deduzir, ao abrigo do disposto no artigo 46.º/n.º 3 a) iii), v) e vii) da LAV, pedido de anulação de sentença arbitral contra AA, NIF ...97..., residente na Rua ..., ..., ... ..., pedindo que a acção seja julgada provada e procedente e, em consequência, seja a sentença arbitral anulada.
Como fundamento, invoca que a sentença não foi notificada ao mandatário da Autora, mais tendo sido proferida e notificada após o prazo máximo fixado para o efeito, devendo, por isso, ser anulada, ao abrigo do disposto no artigo 46.º/n.º 3 a) vii) da LAV.
Alega, ainda, que, conforme decorre do disposto no artigo 4.º/n.º 1 do Regulamento do CIAB, aquele Tribunal Arbitral apenas tem competência para a resolução de conflitos de consumo, pelo que, tendo no processo de reclamação o Réu vindo responsabilizar a Autora pela fuga de água que originou os consumos de água anormais e pelos danos que a sua canalização apresentava e respectivos danos patrimoniais sofridos, tal reveste responsabilidade civil extracontratual, pelo que o Tribunal Arbitral é incompetente para apreciar e dirimir o litígio,
Por fim, refere que o prazo máximo de duração do processo de mediação se encontrava largamente ultrapassado à data da notificação da sentença arbitral (140 dias – 90 dias), pelo que considera que a sentença arbitral deve ser anulada, ao abrigo do disposto no artigo 46º/nº 3 a) v) da LAV, por ter conhecido questões que não podia conhecer por ter ocorrido a caducidade do processo de reclamação.
E, ainda que se considere que o litígio em questão estava abrangido pela convenção de arbitragem (o que apenas se concede por mera hipótese de raciocínio), invoca que a sentença arbitral condenou a Autora em objecto diverso do pedido e em quantidade superior, o que constitui causa de anulação da sentença nos termos do disposto no artigo 46.º/n.º 3 a) v) da LAV.
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O R./requerido, notificado, não apresentou resposta.
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Objecto do pedido de anulação
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir tendo em conta as questões de que deve conhecer-se e que definem e delimitam o objecto do recurso, ou seja, apurar da competência do tribunal arbitral, do alcance da nulidade arguida, extemporaneidade quanto à decisão proferida e, por último, se ocorreu uma decisão para além do pedido e em sentido diverso.
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Fundamentação de facto
Factos dados como provados
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Fundamentação jurídica
Começa o Recorrente por arguir, para além da incompetência do tribunal arbitral, a falta de notificação da sentença arbitral ao seu Il. Mandatário apesar de se ter feito representar na audiência de julgamento, bem como o facto da referida sentença ter sido proferida após o prazo máximo fixado para o efeito.
Vejamos.
Veio a Ré/Recorrente arguir a incompetência do tribunal arbitral em razão da matéria, alegando para o efeito que os pedidos deduzidos pelo Réu se fundamentam na responsabilidade civil extracontratual da Autora e não no âmbito de um conflito de consumo.
A competência do tribunal é entendida como a medida do respectivo poder jurisdicional. A contrario sensu, existe incompetência do tribunal nos casos em que no seu âmbito de poderes jurisdicionais não cabe o de julgar certo litígio ou categoria de litígios (cfr. PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, 4ª edição, Almedina, 2005, p. 259).
Especificamente, a LAV estipula no seu art. 18.º, n.º 1, que ‘o[O] tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção’.
Consagra-se, assim, o princípio da competência do tribunal arbitral para esse efeito, dado que inicialmente se entendia que a questão deveria ser analisada pela jurisdição estadual comum.
A competência do tribunal arbitral é, como tal, delimitada pela arbitrabilidade do litígio.
O Supremo Tribunal de Justiça (cfr. acórdãos do STJ de 20 de Janeiro de 2011 — processo n.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1 —, de 10 de Março de 2011 — processo n.º 5961/09.1TVLSB.L1.S1, de 28 de Maio de 2015 — processo n.º 2040/13.0TVLSB.L1.S1 —, de 2 de Junho de 2015 — processo n.º 1279/14.6TVLSB.S1 —, de 26 de Abril de 2016 — processo n.º 1212/14.5T8LSB.L1.S1 —, de 21 de Junho de 2016 — processo n.º 301/14.0TVLSB.L1.S1 —, de 8 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 461/14.0TJLSB.L1.S1 —, de 20 de Março de 2018 — processo n.º 1149/14.8T8LRS.L1.S1 — ou de 12 de Novembro de 2019 — processo n.º 8927/18.7T8LSB-A.L1.S1) tem considerado constantemente que o princípio do actual art. 18.º da Lei da Arbitragem Voluntária tem como corolário lógico a prioridade do tribunal arbitral no julgamento da sua própria: os árbitros são os primeiros juízes da sua própria competência — e, em consequência, antes de o tribunal arbitral se pronunciar, os tribunais estaduais devem abster-se de intervir - Cf. acórdão do STJ de 20 de Janeiro de 2011, processo n.º 2207/09.6TBSTB.E1.S1.
Como se diz no acórdão do STJ de 20 de Março de 2018 — processo n.º 1149/14.8T8LRS.L1.S1 —, “[s]uscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio”.
CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, in “Convenção de Arbitragem: Conteúdo e Efeitos”, I Congresso do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, Almedina, 2007, p. 86, observa que a disponibilidade ou indisponibilidade de direitos não se afere instituto a instituto, mas deve ser avaliada questão a questão, considerando a causa de pedir e, eventualmente, os termos em que é formulado o pedido’.
In casu, decorre do art. 4.º, n.º 1, do Estatuto do CIAB, que o Centro tem por objecto promover a resolução de conflitos de consumo, no seu âmbito de actuação, através da mediação, conciliação e arbitragem, bem como outros conexos com aqueles, desde que devidamente autorizado para tal e estabelecer um serviço de informação para os utentes do Centro sobre os seus direitos e deveres, abrangendo as matérias para que possua autorização para realizar arbitragens institucionalizadas.
Relativamente à sua competência materal, o respectivo regulamento, no seu art. 4.º, n.º 2, refere que se consideram conflitos de consumo os que decorrem da aquisição de bens, da prestação de serviços ou da transmissão de quaisquer direitos destinados a uso não profissional e fornecidos por pessoa singular ou colectiva, que exerça com carácter profissional uma actividade económica que visa a obtenção de benefícios.
Por sua vez, o seu n.º 3, especifica que se consideram incluídos no âmbito do número anterior o fornecimento de bens, prestação de serviços ou transmissão e direitos por organismos da Administração Pública, pessoas colectivas públicas, empresas de capitais públicos ou detidas maioritariamente pelo Estado ou pelas autarquias locais, e por empresas concessionárias de serviços públicos essenciais.
Acrescenta-se, nos números seguintes, que o Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL, podendo, ainda, recusar litígios em que se verifique o disposto nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 11.º da lei RAL.
Na Lei RAL, estipula-se no art. 2.º o seguinte:
A presente lei é aplicável aos procedimentos de resolução extrajudicial de litígios nacionais e transfronteiriços promovidos por uma entidade de resolução alternativa de litígios (RAL), quando os mesmos sejam iniciados por um consumidor contra um fornecedor de bens ou prestador de serviços e respeitem a obrigações contratuais resultantes de contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, celebrados entre fornecedor de bens ou prestador de serviços estabelecidos e consumidores residentes em Portugal e na União Europeia.
2 - Encontram-se excluídos do âmbito de aplicação da presente lei:
a) Os serviços de interesse geral sem contrapartida económica, designadamente os que sejam prestados pelo Estado ou em seu nome, sem contrapartida remuneratória;
b) Os serviços de saúde prestados aos doentes por profissionais do sector para avaliar, manter ou reabilitar o seu estado de saúde, incluindo a prescrição, a dispensa e o fornecimento de medicamentos e dispositivos médicos;
c) Os prestadores públicos de ensino complementar ou superior;
d) Os litígios de fornecedores de bens ou prestadores de serviços contra consumidores;
e) Os procedimentos apresentados por consumidores junto dos serviços de reclamações ou de natureza equiparada dos fornecedores de bens, prestadores de serviços ou autoridades reguladoras sectorialmente competentes, geridos pelos próprios.
Já no art. 15.º, n.º 1, da Lei 23/96, de 26.07, preceitua-se que ‘o[O]s litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados’.
A competência dos tribunais estaduais é, assim, excepcional e sujeita a um numerus clausus em questões que sejam submetidas a arbitragem, já que se determina na LAV que nas matérias que regula, os tribunais estaduais só podem intervir nos casos em que esta o prevê.
Posto isto, segundo o entendimento da Recorrente, não se está no âmbito de um conflito de consumo pelo facto de, em suma, o Recorrido ter fundamentado o seu pedido nos danos patrimoniais por si sofridos, traduzidos em consumos mais elevados de água e na despesa com a reparação da sua canalização, decorrente do facto da aqui recorrente ter permitido a ocorrência de uma fuga de água na rede pública (cfr. ponto 30, do seu articulado recursivo).
Pedido esse que foi formulado no sentido de ser decretada a suspensão das prestações do acordo de pagamento celebrado e a EMP01... condenada na devolução da quantia global de € 227,42 paga em cumprimento das obrigações assumidas naquele acordo de pagamento, bem como no pagamento da quantia de € 300,00 respeitante a obras por si realizadas para reparar a canalização.
Ora, em termos sucintos e simplistas o que se verifica é que, julgando o requerente AA ter um consumo de água exagerado subscreveu um acordo por forma a proceder ao seu pagamento faseado.
Constatando posteriormente que a fuga de água não se verificou na sua rede interna, mas sim externa, pretende a devolução do que foi indevidamente pago.
Ora, dúvidas não restam de que em causa está apurar se os consumos que lhe foram debitados e que acordou pagar lhe são ou não devidos, considerando a sua responsabilidade por os ter realizado ou não, por a tal ser alegadamente alheio.
Como tal, tem de se considerar enquadrar-se o caso num conflito abrangido pela competência do tribunal arbitral.
Já quanto à 2.ª questão, como decorre do disposto no art. 15.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, ‘o[O]s litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados’.
Por sua vez, decorre do artº. 43, nº. 1 da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei nº. 63/2011 de 14/12, que “salvo se as partes, até à aceitação do primeiro árbitro tiverem acordado prazo diferente, os árbitros devem notificar às partes a sentença final proferida, sobre o litígio que por elas lhe foi submetido dentro de um prazo de 12 meses a contar da data da aceitação do último árbitro.”
Por outro lado, dispõe-se no seu nº. 3, da mesma lei, que “a falta de notificação da sentença final dentro do prazo máximo determinado de acordo com os números anteriores do presente artigo, põe automaticamente termo ao processo arbitral, fazendo também extinguir a competência dos árbitros para julgarem o litígio que lhes fora submetido, sem prejuízo de a convenção de arbitragem manter a sua eficácia, nomeadamente para efeito de com base nela ser constituído novo tribunal arbitral e ter início nova arbitragem”.
Esta norma determina, assim, duas consequências para a falta de notificação da sentença final dentro do prazo máximo para a conclusão do processo arbitral: (i) o fim automático do processo e (ii) a extinção da competência dos árbitros para julgarem o litígio; sem prejuízo da convenção de arbitragem manter a sua eficácia, podendo com base nela ser constituído novo tribunal arbitral e iniciar-se nova arbitragem (cfr. acórdãos da RL de 22/10/2015, proc. nº. 870/15.8YRLSB e de 16/03/2017, proc. nº. 416/15.8YRLSB, disponíveis em www.dgsi.pt).
Do acima exposto resulta que, tendo o prazo para a conclusão da arbitragem findado sem que o Tribunal Arbitral tenha proferido sentença e notificado a mesma às partes, o processo arbitral termina e a competência dos Árbitros extingue-se ope legis, não havendo dúvida sobre a extinção do poder jurisdicional do Tribunal Arbitral constituído para julgar o litígio.
O decurso do prazo para a conclusão da arbitragem sem que a decisão arbitral seja proferida e notificada às partes, determina a caducidade da arbitragem e a extinção automática do processo e do poder jurisdicional/competência dos Árbitros.
Esta é a solução pacificamente perfilhada pela jurisprudência e também por Manuel Pereira Barrocas (in Manual de Arbitragem, 2.ª ed., pág. 445, citado no acórdão da RL de 16/03/2017 acima mencionado): «A falta de notificação da sentença final dentro do prazo máximo estabelecido - acrescenta o número 3, do artigo 43.º - importa a extinção automática do processo arbitral, extinguindo-se igualmente a competência dos árbitros para julgarem o litígio, sem prejuízo de a convenção de arbitragem manter a sua eficácia, salvo se entretanto tiver caducado ou caducar por expiração do prazo da sua vigência ou por outra causa, nomeadamente para o efeito de com base nela ser constituído novo tribunal arbitral.»
Como se refere no acórdão da RL de 22/10/2015 (proc. nº. 870/15.8YRLSB, disponível em www.dgsi.pt): «Nem se procure extrair, do facto de o nº. 3 do art.º 43º prever que a convenção de arbitragem mantém a sua eficácia, qualquer argumento no sentido de que o prazo de prolação da sentença tem carácter meramente indicativo ou procedimental e, assim, nenhuma consequência existiria do não cumprimento do mesmo.
A correcta interpretação desta norma afigura-se-nos não oferecer grandes dúvidas interpretativas e, em nosso entender, é no sentido de que a convenção de arbitragem mantém a sua eficácia, mas “sem prejuízo” das consequências anteriormente cominadas – fim automático do processo arbitral e extinção da competência do árbitro-, além de que a manutenção daquela eficácia tem em vista a constituição de novo tribunal arbitral e início de nova arbitragem. (…) estando findo o processo arbitral e extinta a competência do árbitro, não é possível ser retomado o processo arbitral nem o tribunal arbitral eliminar o tempo decorrido, que constituía o fundamento de anulação.».
Contudo, aqui chegados, importa distinguir entre o prazo geral da arbitragem previsto na lei (cfr. art. 43º, nº 1, LAV) e o prazo para proferir a sentença previsto nas regras processuais fixadas para a arbitragem.
Decorre, ainda, do art. 15.º do Regulamento do CIAB, que ‘a[A] sentença arbitral, cujo original fica depositado no Centro, é notificada às partes com o envio de cópia simples, no prazo máximo de 15 dias seguidos a contar da data da realização da audiência.”
Tal prazo, pode, no entanto, ser prorrogado por igual período, conforme decorre do disposto no nº 3 do mesmo normativo, por impedimento do árbitro.
Diz-nos, por sua vez, o art. 17.º, do mesmo diploma, que ‘o[O]s processos de reclamação não podem ter duração superior a 90 dias, a não ser que o litígio revele especial complexidade, podendo então ser prorrogado no máximo por duas vezes, por iguais períodos, nos termos do n.º 5 e 6 do artigo 10.º da Lei RAL’.
Aponta-se, ainda, para efeitos da decisão a proferir, o que se dispõe no art. 10.º, da Lei n.º 144/2015, de 8 de Setembro, que transpôs para a ordem interna a Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, estabelecendo o enquadramento jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo, revogando, em consequência, os Decretos-Leis n.os 146/99, de 4 de Maio, e 60/2011, de 6 de Maio.
Concretamente aí se preceitua que:
1-As entidades de RAL devem assegurar que os procedimentos de RAL são eficazes, estão disponíveis e facilmente acessíveis, tanto em linha (online) como por meios convencionais, para ambas as partes, independentemente do local onde se encontrem.
2 - As entidades de RAL devem também assegurar que as partes não têm de recorrer a um advogado e podem fazer-se acompanhar ou representar por terceiros em qualquer fase do procedimento.
3 - As entidades de RAL devem ainda assegurar que os procedimentos de RAL são gratuitos ou estão disponíveis para os consumidores contra o pagamento de uma taxa de valor reduzido.
4 - As entidades de RAL que tenham recebido uma reclamação devem notificar as partes do litígio assim que receberem todos os documentos contendo as informações relevantes com esta relacionadas.
5 - Os procedimentos de RAL devem ser decididos no prazo máximo de 90 dias a contar da data em que a entidade de RAL receba o processo de reclamação completo.
6 - O prazo referido no número anterior pode ser prorrogado, no máximo por duas vezes, por iguais períodos, pela entidade de RAL, caso o litígio revele especial complexidade, devendo as partes ser informadas da prorrogação do prazo e do tempo necessário previsto para a conclusão do procedimento de RAL.
Considerando que a audiência arbitral ocorreu a 31.10.24 e a sentença arbitral foi proferida e notificada decorridos 20 dias após esse prazo, ou seja, apenas a 2.12.24, entende a requerida, aqui recorrente, que tal é motivo de anulação da decisão proferida, ao abrigo do disposto no artigo 46º/nº 3 a) vii) da LAV.
Pese embora se invoque a falta de notificação da decisão proferida ao Il. Mandatário constituído, daí, isoladamente, não se retira legalmente qualquer consequência.
Contudo, como o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. 5.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), importa analisar e decidir sobre essa alegada omissão.
Tratando-se de um litígio em que não é obrigatória a constituição de advogado, como se deixou já referenciado supra, podem as próprias partes pleitear por si ou ser representadas por advogados estagiários ou por solicitadores.
As notificações às partes que constituam mandatário são feitas na pessoa dos seus mandatários – cfr. art. 247.º, do mesmo diploma.
Diz, por sua vez, o art.º 201.º, n.º 1, do CPC, que a omissão de um acto que a lei prescreva produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Certo é que a lei não comina expressamente de nulidade a falta de notificação do mandatário.
Alberto dos Reis (v. Comentário ao Código de Processo Civil, 2º, pág. 485), diz-nos que “é ao tribunal que compete, no seu prudente arbítrio, decretar ou não a nulidade, conforme entenda que a irregularidade cometida pode ou não exercer influência no exame ou na decisão da causa”.
Ora, se não se dá à parte uma efectiva possibilidade de, proferida uma qualquer decisão na causa, a poder avaliar, analisar, contraditar, impugnar, aferir das suas consequências, etc, por via de notificação directa do advogado constituído, esse seu direito pode ficar enfraquecido, na medida em que esse conhecimento só pode ser plenamente apreendido (designadamente nas suas consequências) por quem possua saber jurídico. É aliás para isso que se busca o patrocínio judiciário. E é também para isso que se impõe, em certos casos, o patrocínio judiciário.
Acresce observar que, como nos diz o Ac da RP de 12.7.94 (Col Jur 1994, 4º, pág. 179), o nº 1 do artº 201º do CPC basta-se, para que haja nulidade, com a mera possibilidade de prejuízo que dela resulta para a parte, não sendo necessária a comprovação de um prejuízo efectivo.
E, acrescenta que o conhecimento que a própria parte possa ter de um acto eivado de nulidade “não tolera a inferência de que dela soubesse logo também o seu advogado, que os patrocinava e a quem devia ter sido endereçada a notificação omitida (artº 253º, nº 1). A função do patrocínio é justamente a de orientar as partes numa actividade que exige conhecimentos especializados e nada obrigava os requerentes a qualificarem o vício do acto ou a saberem das consequências emergentes”.
Acontece que a parte foi notificada e, podendo e devendo, contactar o seu advogado, nenhuma nulidade veio arguir.
Tal nulidade, não é de conhecimento oficioso - ver artigo 196º e artigo 197º do Código de Processo Civil – pelo que carece de ser invocada pelo interessado e deve ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada, como decorre do art.º 198º, n.º 2 do mesmo diploma.
No caso em concreto, pese embora só agora o tenha feito, o facto é que essa questão não constituiu motivo de não apresentação de impugnação da decisão proferida e a parte interessada na observância da formalidade veio praticar, por via do seu Il.Mndatário não notificado, exercer o seu direito, pelo que se tem de se entender, para além do mais, que a sua omissão em nada influiu no exame da causa, dado que não obstou à prática do pedido de anulação da decisão arbitral, como o pretendia.
Relativamente à questão da caducidade do processo arbitral por intempestividade na notificação do acórdão arbitral às partes, decorre do disposto no citado artº. 43.º, nº. 1 da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), que, salvo se as partes, até à aceitação do primeiro árbitro tiverem acordado prazo diferente, a sentença final deve ser notificada às partes dentro do prazo aí mencionado que se conta da data da aceitação do último árbitro.
Assim, dúvidas não há que o prazo de 12 meses estabelecido no artigo 43.º da Lei da Arbitragem (LAV) inicia-se na data da aceitação do último árbitro. Este prazo refere-se ao tempo que os árbitros têm para notificar às partes a sentença final sobre o litígio que lhes foi submetido, a não ser que as partes acordem um prazo diferente até à aceitação do primeiro árbitro, caso em que esse prazo prevalecerá.
In casu, sendo aplicável o prazo específico de 90 dias, ao abrigo do disposto no art. 17.º, do Regulamento do CIAB, e considerando que igualmente nos termos do art. 10.º, da Lei RAL, o início desse prazo se conta da data da aceitação do último árbitro, tem de se considerar não ocorrer a excepção de extemporaneidade invocada.
Isto porque, não resultando ter sido acordado um outro prazo entre as partes, e contando-se o referido prazo legal da data da designação do árbitro que ocorreu a 25.9.24, conclui-se que a 5.12.24, quando a A. foi notificada da sentença proferida a 2.12.24, ainda não tinha decorrido o prazo de 90 dias.
Por outro lado, há que distinguir entre o prazo geral da arbitragem previsto na lei (cfr. art. 43º, nº 1, LAV) e o prazo para proferir a sentença previsto nas regras processuais fixadas para a arbitragem, como se referiu, e só a ultrapassagem do primeiro prazo (e não do segundo) é geradora da caducidade do processo arbitral, implicando a sua imediata extinção.
Na LAV, não se estabelecem prazos indicativos para os actos a praticar pelo tribunal arbitral, estabelecendo-se tão-só o prazo peremptório referenciado e que não foi ultrapassado.
Deste modo, improcede este fundamento da pretensão recursória.
Importa, por último, apreciar e decidir se a sentença arbitral condenou a Recorrente em objecto diverso do pedido e em quantidade superior.
A propósito, o nosso direito adjectivo civil determina que o Tribunal está impedido de condenar em objecto diverso do que for pedido (art.º 609.º n.º. 1 do Código de Processo Civil), pelo que, o Tribunal não só, não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, nomeadamente, no que respeita ao seu próprio objecto, sob pena de o aresto a proferir ficar afectado de nulidade.
Como sustenta, Teixeira de Sousa, in, Estudos sobre o Novo Processo Civil, página 362, “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e))”, e no mesmo sentido, “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”, Salvador da Costa, in, Os incidentes da instância, Almedina, página 296.
A nulidade ocorre quando o Tribunal condene em objecto diverso do pedido colhe o seu fundamento no princípio dispositivo que atribui às partes, a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório, segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses, que a demanda pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor.
O vício da decisão que ultrapassa o pedido formulado, sem modificação objectiva da instância, passando a abranger matéria distinta, encerra um desvalor que excede o erro de julgamento, por isso, inutiliza o julgado na parte afectada.
Ora, como já se referiu, pediu-se que fosse decretada a suspensão das prestações do acordo de pagamento celebrado e a EMP01... condenada na devolução da quantia global de € 227,42 paga em cumprimento das obrigações assumidas naquele acordo de pagamento, bem como no pagamento da quantia de € 300,00 respeitante a obras por si realizadas para reparar a canalização.
Por sua vez, a sentença arbitral condenou a Autora a:
a) Proceder ao apuramento do consumo referente ao período de 07.11.2023 a 04.01.2024;
b) Proceder à anulação da diferença entre o valor de € 648,24 e o resultado obtido em a);
c) Proceder à devolução dos montantes pagos pelo Réu que excedam o consumo apurado
Para além do que foi explanado na decisão arbitral proferida quantos aos fundamentos de direito susceptíveis de alicerçar o sentenciado, daqui decorre que o tribunal arbitral levou em consideração o facto do R. consumidor ter tido consumos inferiores aos do valor do acordo celebrado, por os consumos totais que lhe foram imputados resultarem também de uma ruptura na rede externa a que é alheio e, como tal, de valor superior ao devido.
Assim, concluiu-se ser necessário proceder-se a um apuro do que efectivamente consumiu no referido período e o respectivo valor que lhe é devido, por forma a proceder-se ao necessário e inerente cálculo do que já pagou e tem a receber.
Já relativamente ao valor dispendido nas obras por si realizadas para reparar a canalização, a decisão arbitral, perante os factos dados como provados, considerou não ter sido produzida prova desse dano, daí ter absolvido a reclamada desse pedido.
Constata-se de todo o teor da decisão proferida, que a realização da justiça no caso concreto foi conseguida, como devia, no quadro dos princípios estruturantes aplicáveis ao caso e do processo civil, como traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no art.º 20.º, n.º 4, da CRP, tendo sido observado o princípio do pedido.
Para além de se ter considerado o pedido formulado, atendeu-se à causa de pedir em que o mesmo assentou.
Como escreveu o Prof. Lebre de Freitas, a “pretensão (ou pedido, como a nossa lei a usa chamar) apresenta-se duplamente determinada: no seu conteúdo, ao direito material, consiste na afirmação duma situação jurídica subjetiva atual ou, na ação constitutiva, da vontade dum efeito jurídico (situação jurídica a constituir) baseado numa situação subjetiva actual, ou ainda na afirmação da existência ou inexistência dum facto jurídico; na sua função, consiste na solicitação duma providência processual para tutela do interesse do autor”.
A decisão proferida manteve-se, como devia, quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pela pretensão da autora, sem que tenha transposto os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objecto.
Destarte, não se vislumbra violação do princípio do dispositivo, nem inobservância dos limites da condenação.
De referir que a “interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão”.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Abril de 2016: “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular”.
Embora se pense que tal não foi o caso, dado que a decisão se limitou, perante a factualidade apurada, a aplicar o direito, ainda que através de uma configuração normativa do pedido dentro dos seus limites objectivamente delineados pela autora.
Aliás, sempre sendo o valor em causa superior, nunca a condenação real pode ser de valor mais elevado, por se estar perante um consumo efectivamente inferior ao que estava a ser exigido.
Por outro lado, a condenação também não sancionou a R. EMP01... em objecto diverso, mas sim em quantidade inferior ao que estava a exigir da A./consumidora.
Tem, assim, também de improceder nesta parte o pedido de anulação com base neste fundamento, mantendo-se, assim, consequentemente a decisão arbitral proferida.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da 2ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar improcedente o pedido de anulação da decisão arbitral proferida, mantendo-se, consequentemente o decidido.
Custas do processo pela R./Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 15 de Maio de 2025
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária sem observância do acordo ortográfico, à excepção das transcrições efectuadas)
Maria dos Anjos Melo
Afonso Cabral de Andrade
Carla Sousa Oliveira