A circunstância de o arguido beneficiar de apoio judiciário não é suficiente para demonstrar que se encontra em situação de manifesta carência económica para pagar a multa processual devida pela interposição de recurso fora de prazo e também não lhe basta alegar conclusivamente que é pobre e está a atravessar dificuldades financeiras.
Porém, tendo o tribunal indagado no julgamento a situação económica do arguido e dado os respetivos factos como provados na sentença, dispunha no processo de informação suficiente, que devia oficiosamente conhecer, para decidir se era ou não de conceder a despensa da multa, não podendo indeferir o requerimento por omissão de alegação de factos, quando esses já estavam apurados e eram conhecidos.
O arguido que integra agregado familiar cuja única fonte conhecida de subsistência é o rendimento social de inserção, que constitui uma prestação de solidariedade social para assegurar a satisfação das necessidades mínimas e se destina a pessoas e famílias em situação de pobreza extrema, encontra-se em situação de manifesta carência económica para suportar o pagamento de uma multa processual de 255 euros.
1.1. Decisão recorrida
Despacho proferido em 25nov2024, no qual o tribunal indeferiu o requerimento do arguido AA para ser dispensado do pagamento da multa devida pela interposição de recurso da sentença no terceiro dia útil posterior ao termo do prazo.
1.2. Recurso, resposta e parecer
1.2.1. O arguido recorreu do despacho, pedindo a sua revogação e substituição por outro que lhe conceda a dispensa do pagamento da multa.
Invocou, em suma, os seguintes fundamentos:
- Requereu a dispensa do pagamento da multa alegando que é pobre e beneficia de apoio judiciário;
- A concessão de apoio judiciário pressupõe a prova da insuficiência económica;
- Na sentença ficou provado que vive com a companheira e um filho de 1 mês de idade, em casa emprestada, que não tem ocupação laboral, limitando-se a fazer trabalhos pontuais de mecânica, que a sua companheira realiza de forma inconsistente trabalhos rurais, que o casal recebe 430 euros mensais de RSI e 183 euros de abono do filho, que não têm despesas significativas e que conseguem assegurar as suas necessidades básicas;
- Como tal, o tribunal tinha elementos suficientes para dispensar o pagamento da multa;
- Prevendo a lei prevê duas causas de dispensa ou redução da multa: manifesta carência económica ou desproporção manifesta do valor da multa, a sua interpretação deve ter o enfoque nas garantias de acesso à justiça e não na natureza sancionatória da norma pelo incumprimento do prazo;
- No caso, o recorrente não tem condições de pagar a multa e o efeito do indeferimento do seu pedido será o trânsito em julgado da decisão de condenação em prisão efetiva, o que implicará a privação da liberdade apenas por razões económicas.
1.2.2. O Ministério Público respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido de o mesmo não obter provimento, pelas seguintes razões resumidas:
- O recorrente apenas invocou ser pobre, estar desempregado e deparar-se com muitas dificuldades, mas não alegou factos suscetíveis de fundamentar essa alegada pobreza, sendo que a circunstância de se encontrar desempregado não equivale, só por si, a uma insuficiência económica que impeça o pagamento dos encargos do processo;
- O benefício de apoio judiciário não permite presumir a incapacidade para o pagamento da multa, pois a análise que é feita no momento dessa concessão antevê o custo global do processo e as condições financeiras para esse objetivo e não a possibilidade de pagar uma multa em concreto;
- Resulta da sentença que o agregado familiar do recorrente tem rendimento, o qual, embora baixo, não necessita de ser usado para enfrentar despesas fixas significativas, pois vivem em casa emprestada e ainda fazem trabalhos esporádicos;
- A possibilidade de dispensa ou redução da multa é excecional e a obrigação de pagamento constitui uma sanção por violação de um prazo processual, pelo que não deve haver dispensa apenas com base numa alegação genérica, sem que esteja efetivamente comprovada a impossibilidade de pagar;
- O pagamento da multa pelo recorrente não colide com o direito constitucional de acesso à justiça, na medida em que a insuficiência económica, se efetivamente comprovada, permite a sua dispensa ou redução.
1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, aderindo aos fundamentos da resposta acima resumida.
2. Questões a decidir
A única questão controversa a decidir é a de saber se o tribunal aplicou corretamente a lei quando decidiu indeferir o requerimento de dispensa do pagamento da multa processual devida pela interposição de recurso fora de prazo.
3. Fundamentação
3.1. Factualidade processual relevante
- O recorrente foi condenado por crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, de condução perigosa de veículo rodoviário, de resistência e coação sobre funcionário e de ofensa à integridade física simples na pena única de 4 anos de prisão;
- Requereu a interposição de recurso da sentença no terceiro dia útil após o prazo, não pagando voluntariamente a respetiva multa processual e fazendo o seguinte requerimento:
Nos termos do art.º 139º n.º 6 CPC e 107º -A CPP, vem, muito respeitosamente requerer a V. Exa. nos termos do n.º 8 do art.º 139º do CPC, se digne dispensá-lo do pagamento da aludida multa, uma vez que é pobre.
Com efeito, está a atravessar uma fase complicada do ponto de vista financeiro, deparando-se com muitas dificuldades.
Ora não pagando a quantia referida, a posição do ora requerente vai sair prejudicada, uma vez que lhe é retirada a hipótese de recorrer, por motivos financeiros.
- A secretaria judicial liquidou a multa devida em 255 euros e notificou o requerente para pagar;
- Na sequência, o recorrente apresentou o seguinte requerimento:
(…) notificado da aplicação da multa nos termos do art.º 139º n.º 6 CPC e 107º -A CPP, vem, muito respeitosamente requerer a V. Exa. nos termos do n.º8 do art.º 139º do CPC, se digne dispensá-la do pagamento da aludida multa, uma vez que é pobre.
Com efeito, está a atravessar uma fase complicada do ponto de vista financeiro, uma vez que se encontra desempregada, deparando-se com muitas dificuldades.
Ora não pagando a quantia referida, a posição do ora requerente vai sair prejudicado, uma vez que lhe é retirada a hipótese de contestar, por motivos financeiros.
Logo aquando da interposição do recurso, o arguido efetuou o pedido de dispensa, efetivamente por não ter capacidade financeira para efetuar tal pagamento.
Pede e espera de V. Exa. deferimento.
- Sobre tal requerimento, o tribunal proferiu a seguinte decisão recorrida:
A concessão do apoio judiciário, por um lado, e a dispensa do pagamento da multa devida pela prática tardia do ato têm subjacente a formulação de juízos substancialmente distintos entre si.
O juízo de insuficiência económica subjacente à concessão de apoio judiciário não pressupõe o da dispensa de pagamento de multa. Na verdade, é perfeitamente concebível que alguém seja economicamente insuficiente para suportar as despesas gerais inerentes a um processo judicial e, no entanto, no momento de pagar a multa devida pela prática do ato processual fora de prazo, disponha de liquidez suficiente para o fazer sem colocar em perigo a sua subsistência ou a do seu agregado familiar.
A demonstração da impossibilidade de pagamento da multa devida pela prática tardia do ato processual não se basta com a alegação e a prova da concessão do benefício do apoio judiciário, antes incumbindo ao sujeito processual alegar e provar autonomamente os factos, que fundamentam a impossibilidade económica de pagar a multa, no lapso temporal previsto para o efeito.
Tal interpretação não ofende o direito de acesso à Justiça, por quem não possui meios económicos, consagrado no n.º 1 do art. 20.º da CRP.
A alegação que o arguido é pobre trata-se de uma afirmação conclusiva, sem factos que corroborem tal pobreza.
Pelo exposto indefere-se o requerido.
3.2. Análise
O artigo 107º nº 5 do CPP dispõe que independentemente do justo impedimento, pode o ato ser praticado no prazo com as mesmas consequências do processo civil, com as necessárias adaptações. O artigo 107º-A do CPP determina que, sem prejuízo do disposto no anterior, isto é, da existência de justo impedimento, à prática extemporânea de atos processuais penais se aplica o disposto nos nºs 5 a 7 do artigo 145º do CPC. Com a revisão do processo civil resultante da Lei nº 41/2013, esta remissão deve, numa interpretação atualista, considera-se hoje feita para o artigo 139º do CPC.
Por sua vez, o artigo 139º nº 8 do CPC dispõe que «O juiz pode excecionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respetivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas ações que não importem a constituição de mandatário e o ato tenha sido praticado diretamente pela parte.»
Por força da jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ nº 4/2020, de 18/5, deve ter-se por assente que o disposto naquele nº 8 do artigo 139º é aplicável em processo penal.
Descrito o essencial do quadro legal aplicável, importa prosseguir.
A multa pela prática do ato fora de prazo constitui uma sanção processual com função disciplinadora do processo, que visa incentivar a prática dos atos processuais nos prazos previstos na lei e, assim, contribuir para assegurar a observância dos princípios da eficácia e celeridade, instrumentais do interesse público da ação penal. O facto que dá origem à aplicação da sanção é sempre um incumprimento negligente ou intencional imputável aos sujeitos processuais – as situações de incumprimento não culposo enquadram-se no regime do justo impedimento, que não tem natureza sancionatória. Por isso, a dispensa ou redução da multa, que a lei admite por razões de justiça material e de igualdade no acesso ao direito e aos tribunais, constitui uma faculdade excecional. De outra forma, admitindo-se a concessão desse benefício como regra, a norma que prevê a sanção e aquilo que visa desincentivar perderiam utilidade.
A dispensa ou redução da multa pode ser requerida pelo sujeito processual afetado pela obrigação de pagamento da multa ou decidida oficiosamente pelo tribunal, uma vez que o artigo 139º nº 8 não estabelece qualquer limitação. Como tal, no caso de ser requerida, compete a quem formula o pedido alegar e provar os factos de que depende a concessão do benefício. Sem prejuízo, evidentemente, de o tribunal poder tomar em consideração os factos já adquiridos no processo e, até, de solicitar os esclarecimentos que tiver por necessários.
São dois os fundamentos que podem em alternativa fundamentar a concessão do benefício da dispensa ou redução da multa: ou o requerente encontrar-se numa situação de manifesta carência económica; ou existir uma desproporção manifesta entre o valor da multa em dívida e a relevância do ato processual praticado fora do prazo normal para a composição dos interesses em jogo.
No que respeita ao segundo fundamento, é evidente que não se verifica. A multa em causa tem o valor de 255 euros e o ato processual que cuja eficácia depende do seu pagamento é a interposição de recurso da sentença que condenou o recorrente numa pena efetiva de 4 anos de prisão. Estando em equação a impugnação de uma decisão que, se transitada, importa o imediato cumprimento de uma pena privativa da liberdade, a sua relevância para a composição dos interesses em jogo é incomparavelmente superior ao montante da multa em dívida. É muito mais importante, no plano do interesse público, assegurar a um arguido o direito constitucional a impugnar uma sentença condenatória, do que o Estado arrecadar os 255 euros da multa processual. Qualquer pessoa razoável, informada, de boa fé, com possibilidade económica, optaria por pagar a multa para não perder o direito a recorrer de uma sentença que a tivesse condenado a uma pena de prisão efetiva relativamente longa.
A questão controversa refere-se à verificação do requisito da manifesta carência económica, que a lei não define.
Temos como segura a correção do despacho recorrido no que respeita a dois pontos em que se fundamentou.
Por um lado, é pacífico na jurisprudência que a circunstância de alguém beneficiar de apoio judiciário não é suficiente para demonstrar que se encontra em situação de manifesta carência económica. Nos termos do artigo 8º nº 1 da Lei 34/2004 (acesso ao direito e aos tribunais), a situação de insuficiência económica para o efeito da concessão de apoio judiciário consiste na falta de condições objetivas para suportar as custas de um processo. Como bem referiu o Ministério Público na resposta ao recurso, trata-se aqui de saber se a pessoa pode pagar o custo global previsível de um processo judicial, do início ao fim, e não o custo específico de uma sanção pontual, para a prática de um concreto ato processual. Para a dispensa ou redução da multa, a lei exige que a carência económica seja manifesta, isto é, que seja evidente e importante para o pagamento em causa, no momento em que se coloca. É um requisito mais exigente do que a mera insuficiência económica que justifica um apoio que em princípio será para vigorar durante todo o tempo da pendência do processo. Se o legislador tivesse pretendido conceder aos beneficiários de apoio judiciário a dispensa do pagamento da multa pela prática de atos fora de prazo de forma automática, não deixaria o de ter previsto expressamente na lei.
Por outro lado, não basta ao requerente do benefício alegar conclusivamente que é pobre e está a atravessar dificuldades financeiras. Uma alegação dessa natureza não permite ao tribunal indagar a situação factual necessária para determinar se está verificado o requisito da manifesta carência económica.
Porém, há um ponto que no despacho recorrido não foi considerado e que é relevante para a análise do pedido do recorrente. É que o tribunal tinha indagado no julgamento a situação económica do arguido e dado os respetivos factos como provados na sentença. Como tal, o tribunal dispunha no processo de informação suficiente, que devia oficiosamente conhecer, para decidir se era ou não de conceder a despensa da multa.
Não é correto indeferir o requerimento por omissão de alegação de factos, quando esses factos foram já apurados e são conhecidos do tribunal.
Constam na sentença como demonstrados os seguintes factos com relevo:
- O recorrente é proprietário do automóvel … com a matrícula … (é facto notório, de indagação oficiosa, que se trata de automóvel de 1999);
- Vive com uma companheira e com um filho com um mês de idade, em casa cedida pelos pais daquela;
- O recorrente não tem ocupação laboral, executa serviços pontuais de mecânica, no barracão junto à sua casa;
- A companheira, que de forma inconstante exerce trabalhos rurais, encontra-se inativa há vários meses;
- A nível económico, o agregado beneficia do rendimento social de inserção no montante de € 403,00 a que acresce € 183,00 de abono referente à criança;
- O agregado não identificou despesas fixas significativas, assegurando que não se encontram em causa as suas necessidades básicas.
O rendimento social de inserção constitui uma prestação de solidariedade social para assegurar a satisfação das necessidades mínimas (artigo 1º da lei 13/2003) e, de acordo com a informação oficial do Governo, destina-se às pessoas e famílias em situação de pobreza extrema (https://www2.gov.pt/servicos/pedir-o-rendimento-social-de-insercao) – os sublinhados são nossos.
Ora, apesar de a lei não conter uma definição do que deva considerar-se uma situação de manifesta carência económica para suportar uma multa processual, é de ponderar que uma pessoa que integra um agregado familiar de três elementos, que beneficia de um apoio social destinado a assegurar o mínimo de subsistência por se encontrar em situação de pobreza extrema, preenche aquele requisito. Seria, salvo o devido respeito, absurdo interpretar a lei de maneira a concluir que alguém que se encontra em situação de pobreza extrema, recebendo, ao todo, 586 euros mensais de apoios sociais para fazer face ao mínimo necessário de subsistência, não se encontra em manifesta carência económica para pagar uma multa de 255 euros, que atinge quase metade daquele rendimento. Face ao que se conhece – e é só com isso que podemos decidir – não é crível que o agregado familiar do recorrente tenha uma folga de dinheiro disponível para fazer aquele pagamento. Por isso, não seria materialmente justo obrigá-lo a ter de escolher entre prescindir do direito de recorrer da sentença ou consumir quase metade do dinheiro de um mês, necessário para a subsistência básica do seu agregado familiar.
É certo que se provou igualmente que o recorrente e a companheira têm um carro com mais de 25 anos, que fazem trabalhos esporádicos, que vivem em casa emprestada e não têm encargos fixos significativos e que não assinalaram impossibilidade de fazer face às necessidades básicas. Mas isto em nada altera o que acabámos de afirmar. Não se conhece nem a frequência nem o rendimento proporcionado por aqueles trabalhos esporádicos. E o facto de um agregado familiar de três elementos com um rendimento mensal bastante inferior ao salário mínimo nacional não assinalar impossibilidade de suportar as despesas básicas de alimentação, higiene e vestuário, não significa que possa dispor de quase metade do seu rendimento mensal, sem afetar aquele mínimo de sobrevivência.
Em suma, com a situação que se apurou, sobretudo pelo facto de o agregado familiar do recorrente beneficiar do rendimento social de inserção como único rendimento conhecido e determinado, não pode deixar de se presumir que se encontra em situação de manifesta carência económica para pagar uma multa processual de 255 euros. Seria diferente se existissem elementos que permitissem suspeitar da subsistência dos pressupostos do benefício do rendimento social de inserção e se conhecessem outros bens ou rendimentos. Nesse caso, competiria, até, reportar a situação às autoridades competentes. Simplesmente, com os dados conhecidos, a situação não é essa.
Sendo assim, em conclusão, consideramos que o recorrente se encontra em situação de manifesta carência económica para pagar a multa de 255 euros para validar a interposição do recurso fora do prazo normal fixado na lei, pelo que terá de lhe ser concedida a dispensa desse pagamento, ao abrigo do disposto no artigo 139º nº 8 do CPC, aplicável por remissão do artigo 107º-A do CPP, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente e em revogar o despacho recorrido, concedendo-se ao recorrente a dispensa de pagamento da multa processual liquidada pela interposição de recurso da sentença no terceiro dia útil posterior ao termo do respetivo prazo.
Não há lugar ao pagamento de custas.
Évora, 6mai2025
Manuel Soares
Carla Oliveira
Anabela Simões Cardoso