I - Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas, pelo que não é admissível a alegação, na instância de recurso de facto novos - ius novarum nova.
II - As normas de protecção cuja violação integra a segunda cláusula de ilicitude, disposta na lei como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual subjectiva, não deixam de ser relevantes, ainda que aquela modalidade de ilicitude seja consumida pela 1.ª cláusula, da mesma espécie, da violação de direitos subjectivos, embora apenas como elemento indiciador do cuidado objectivamente devido, sempre que essas normas de protecção, como sucede com as normas de comportamento contidas no CEst, contenham tipificações legais do dever de cuidado.
III - A imputação delitual negligente é negativamente delimitada pelo chamado princípio da confiança, de harmonia com o qual quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo.
IV - Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, com fundamento numa culpa negligente, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, sendo ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório.
AA pediu ao Sr. Juiz de Direito do Juízo Central Cível de..., do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, que condenasse Generali – Companhia de Seguros, SA, a pagar-lhe a quantia global de € 139 000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros contados da citação até pagamento.
Fundamentou esta pretensão no dano patrimonial e não patrimonial que suportou por, no dia 3 de Agosto de 2018, no IC 1, ao Km ...00, o veículo pesado de mercadorias matrícula ..-..-DL, propriedade de A..., SA., conduzido por BB, que tinha a responsabilidade civil transferida para a ré e circulava no sentido S.../A..., se ter desviado, sem fazer qualquer sinal e sem se encostar ao eixo da via, para a sua esquerda para passar a circular no acesso à Herdade ..., surpreendendo o autor que conduzia o seu motociclo matrícula ..-L.-.. na sua rectaguarda e, entretanto, havia iniciado, a manobra de ultrapassagem, e foi embater, ao tentar desviar-se, guinando para o seu lado direito, na sua traseira, tendo sido projectado para o solo, com o que sofreu lesões corporais graves.
Oferecido, pela demandada, o articulado de contestação – no qual imputou o acidente ao autor por este, de forma desatenta, irreflectida, sem cuidado nem prudência, ter iniciado a ultrapassagem antes de um entroncamento sem accionar a devida sinalização se sem se certificar de que podia realizar tal manobra sem perigo de colidir com o veículo pesado – e concluída a instrução, discussão e julgamento da causa, a Sra. Juíza de Direito, por sentença proferido no dia 2 de Maio de 2024, com fundamento em que lhe parecia fora de dúvida que os danos, pessoais e materiais decorrentes do acidente referido nos autos resultaram única e exclusivamente da condução imprudente levada a cabo pelo conduto do ..-..-DL, violando os deveres de cuidado e atenção a que estava obrigado, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a Ré a pagar ao autor a quantia de € 108 093,00, a que acrescem os juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, desde a data desta sentença até integral pagamento, absolvendo-a do demais pedido.
A demandada interpôs desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, no qual impugnou, por erro na avaliação da prova testemunhal, a decisão da matéria de facto. Aquele Tribunal, por acórdão proferido no dia 18 de Janeiro de 2025, julgou parcialmente procedente a impugnação da decisão da questão de facto e, com fundamento em que a culpa pela ocorrência do acidente deve ser atribuída, em exclusivo, ao recorrido, que o condutor do DL em nada contribuiu para que o acidente ocorresse, apenas foi surpreendido pelo embate do LI quando terminava uma manobra de mudança de direcção para a esquerda devidamente executada, julgou o recurso procedente e absolveu a demandada, apelante, do pedido.
É este acórdão que o autor impugna no recurso de revista, no qual pede a sua revogação e a correta imputação de culpas, a cada um dos condutores e se determine a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Évora, para apreciação das demais questões suscitadas pela Ré Generali Seguros, cuja apreciação ficou prejudicada pela posição tomada relativa à culpa dos condutores.
Os fundamentos do recurso, expostos, nas conclusões são os seguintes:
a) É sabido que o Supremo Tribunal de Justiça, em regra, não interfere na fixação da matéria de facto, princípio desde logo enunciado no art. 46º da Lei da Organização do Sistema Judiciário aprovado pela Lei nº 62/2013, de 26.08: “Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito.”
b) Assim e não obstante a fixação da matéria de facto, pode ainda o STJ julgar reinterpretar a mesma e retirar as suas conclusões, designadamente, se com base na matéria de facto dado como provada será de decidir, a final, a qual dos condutores é o acidente imputável, e/ou no caso concreto, atento os factos agora dados como provados, verificasse pelo menos uma necessária e competente repartição de culpas.
c) Mesmo tendo sido dado como provado, que o veículo DL, tenha realizado a manobra de mudança de direção à esquerda, de forma perpendicular, fê-lo e sem se certificar que podia fazer tal manobra em segurança, afirmando em sede audiência, que não viu o motociclo LI atrás de si, quando se encontra provado que o LI (autor) ultrapassou os veículos que o precediam, pelo que não existia assim nenhum outro veiculo entre ambos;
d) As manobras de mudança de direção obedecem ao princípio geral que assenta no facto de o condutor só a poder realizar em local e de forma que dela não resulte perigo ou embaraço para o trânsito e restantes utentes da via (Cfr. art.º 35.º 1 do Código da Estrada, doravante apenas designado por C.E.).
e) Encontra-se assente que o local do acidente é constituído por uma reta, em patamar e de boa visibilidade, o tempo estava bom (facto provado 3 e 4) e que o motociclo (LI) tinha ultrapassado os veículos ligeiros que procediam igualmente o DL (factos provados 8 e 9).
f) Ficou provado que o local provável do acidente, ocorre na faixa da esquerda, mais encostado ao eixo da faixa de rodagem atento o sentido de trânsitos dos veículos envolvidos no sinistro a 3,10 metros do limite, sendo que a largura da faixa de rodagem é de 7,20 (factos provados 12 e 13) e que o LI (Autor) embate na traseira direita do veículo DL (facto provado 10).
g) Ficou provado que o local, à data do sinistro, não existia sinal indicador de existência e entroncamento e o eixo da faixa de rodagem é delimitado por uma linha longitudinal descontinua (factos provados 15 e 17) e resulta ainda da fundamentação do Acórdão (fls. 32 primeiro parágrafo), que o entroncamento, não era visível à distância e apenas dava acesso às diversas herdades, e às instalações de apoio às portagens (cfr., ponto 16 dos factos dados como provado).
h) Resulta dos factos dados como não provados, que o autor iniciou e realizou a ultrapassagem sem acionar a devida sinalização, e que, quando iniciou a ultrapassagem, não lhe era percetível que iria prolongar tal manobra sobre o entroncamento (pontos 2 e 3 dos factos não provados).
i) Recordamos que ficou dado como não provado que o motociclo fizesse a ultrapassagem sem acionar a sinalização e nada ficou provado ou não provado que o mesmo circulasse em excesso de velocidade.
j) Ambas as manobras realizadas pelos condutores dos veículos (DL e LI), estão abrangidas pelo dever geral previsto no art.º 35.º n.º 1 do Código da Estrada.
k) O condutor do veículo DL, mesmo que sinalizando a manobra de mudança de direção, não preclude o dever geral de cuidado de não iniciar qualquer manobra sem se certificar de que a pode realizar sem perigo de colidir, designadamente, com outro veículo neste caso o motociclo que tinha feito a ultrapassagem dos veículos precedentes (Cfr. art.º 35.º n.º 1 do CE);
l) O DL, caso tivesse se apercebido da presença do LI, podia ter evitado o acidente não tendo continuado a sua mudança de direção;
m) O DL, que pretendia mudar de direção para a esquerda no entroncamento com que se deparou, e que não se encontrava sinalizado, ao não se certificar que o podia fazer em segurança, admitido que não viu o LI, violou frontalmente a norma suprarreferida;
n) O acidente dos autos, foi o resultado da ação conjugada de ambos os intervenientes, o DL também deu causa ao acidente;
o) A manobra de ultrapassagem realizada pelo Autor (LI), precedeu necessariamente a manobra de mudança de direção do DL, pois de outra forma se já tinha ultrapassado os outros veículos, qual o motivo para se manter na faixa da esquerda;
p) Se o DL, já estivesse a terminar a manobra de mudança de direção, qual a razão para o LI, não regressa a sua faixa de rodagem e seguir o seu caminho, ao invés de ir embater na traseira do veículo !!!, encontram-se assim erradas as apreciações e conclusões retiradas dos factos dados como provados e não provados, constante do Acórdão da Relação.
q) É unanime da jurisprudência e na doutrina, que em abstrato a realização de uma manobra de mudança de direção numa Estrada Nacional, sem atentar aos veículos que circulavam atrás de si, é idónea a provocar um acidente, como o dos autos.
r) Nesta esteira citamos Dr. Eurico Heitor Consciência, que escreve: “Com razão se observa que o condutor que vira para a esquerda é normalmente o único que poderá evitar o acidente -se olhar para trás (ou para o retrovisor) imediatamente antes de virar (Cfr. Eurico Heitor Consciência, Sobre Acidentes de Viação e Seguro Automóvel, 2a ed., 2002, p. 132-133)
s) Ora, para aferir a culpa no caso em concreto, a jurisprudência tem vindo socorrer-se do critério da temporalidade, resolvendo a favor de quem iniciou a manobra em primeiro lugar, sem prejuízo de analise e ponderação de todas as demais circunstâncias de facto do caso concreto.
t) Como se considerou no Ac. do STJ de 10-04-2014, processo 805/10.4TBPNF.P1.S1 “A simultaneidade da execução de manobras de ultrapassagem e de mudança de direção para a esquerda suscita, nos acidentes entre os veículos envolvidos nessas manobras, um conflito que, segundo um critério temporal, deve ser resolvido a favor do condutor que, em primeiro, iniciou uma dessas manobras.”;
u) O tribunal a quo realizou uma incorreta aplicação do direito à factualidade, incorrendo em erro de julgamento e aplicação do direito;
v) Deve haver, pois no limite, uma repartição da responsabilidade pela ocorrência do acidente entre ambos os condutores nos termos do art.º 506.º CC.
w) O acórdão revidendo viola o disposto nos artigos 506.º e 570.º, ambos do Código Civil e 35.º, nº 1 do Código da Estrada;
x) O acórdão ora em crise deve ser revogado e substituído por outro que determine a concorrência de culpa dos intervenientes no acidente, fixando-a com o livre critério, em conformidade, fixar o montante indemnizatório a atribuir ao ora recorrente e/ou após a fixação da responsabilidade, ordenar a sua baixa ao tribunal da Relação, para apreciar as demais questões suscitadas pela Ré Generali Seguros, designadamente, apreciado os montantes a arbitrar.
Na resposta, a recorrida – depois de observar, designadamente que o Recorrente, em sede de alegações, defende e pretende é efectivamente uma decisão que, em bom rigor, produza uma alteração à decisão de facto que decorre do Acórdão recorrido, o que, evidentemente, não se pode aceitar, porquanto não estamos perante nenhuma das situações em que tal se insere nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça – concluiu pela improcedência do recurso.
2. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e individualização das questões concretas controversas.
O recurso tem por objecto o dever de indemnizar que decorre de uma responsabilidade delitual ou aquiliana emergente de acidente de viação resultante da circulação de veículos automóveis, fundando-se aquele dever de indemnizar no tocante à recorrida no contrato de seguro através do qual assumiu aquela responsabilidade relativamente aos danos causados por um dos veículos intervenientes naquele acidente (art.ºs 483.º, n.º 1, do Código Civil, 1.º, 4,º e 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, na sua redacção actual).
A sentença da 1.ª instância foi terminante em assacar aquela responsabilidade a uma culpa negligente exclusiva do condutor do veículo automóvel relativamente ao qual a recorrida assumiu, contratualmente, a responsabilidade civil por danos causados com ele a terceiros; diferentemente, o acórdão impugnado imputou aquela responsabilidade também a uma culpa negligente, igualmente exclusiva , mas do autor; este, na revista sustenta que uma tal responsabilidade deve, em última extremidade, ser atribuída, por uma culpa da mesma índole, a ambos os condutores.
Como o âmbito objetivo da revista é delimitado, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, é uma só a questão concreta controversa que importa resolver: a de saber se a demandada se mostra constituída no dever de indemnizar o autor do dano suportado pela última em consequência das lesões corporais que sofreu por ter embatida no veículo automóvel pesado de mercadorias relativamente ao qual a recorrida assumiu, por força de contrato de seguro, a responsabilidade civil por danos causados com ele a terceiros. A resolução deste problema exige, evidentemente, que se determine se o evento danoso é imputável a uma culpa negligente exclusiva do condutor do veículo automóvel pesado – como decidiu o Tribunal de 1.ª instância, antes, do autor – como concluiu o acórdão impugnado – ou de ambos, como por último o autor advoga na revista ((art.º 635.º n.º 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, ex-vi art.º 663.º, n.º 2, do CPC).
O recorrente, ordenado para demonstrar o error in iudicando do acórdão recorrido, alega que o condutor do veículo pesado de mercadorias realizou a manobra de mudança de direcção à esquerda, de forma perpendicular, sem se certificar que o podia fazer tal manobra em segurança, conclusão que seria imposta pela circunstância de, desde logo, não ter visto o motociclo, conforme o mesmo afirmou e serviu de fundamentação no Acórdão onde podemos ler: “É crível a afirmação de BB que não se apercebeu da aproximação do LI no momento em que iniciou a manobra de mudança de direção para a esquerda (vide fls. 30)e que foi confirmado pela testemunha CC (vide últimas linha da página 25 do Acórdão recorrido). O que, neste fundamento da revisto, logo fere a atenção é a circunstância de conter a invocação de facto comprovadamente novo – o de que o condutor do veículo pesado não viu a aproximação do motociclo conduzido pelo autor na execução da manobra de ultrapassagem.
Uma leitura, ainda que meramente oblíqua do segmento do acórdão impugnado no qual discrimina os factos que considerou provados, mostra, concludentemente, que entre os factos materiais que considerou adquiridos para o processo não consta o de que o condutor do veículo pesado não viu a aproximação do motociclo conduzido pelo autor no momento em que deu início à execução da manobra de mudança de direcção. Constatação que não deve surpreender dado que um tal facto, não foi objecto de oportuna alegação, maxime, pelo recorrente, parte objectivamente interessada na sua demonstração.
O objecto do processo, i.e., a matéria o assunto que tribunal é chamado a decidir, é constituído por dois elementos: o pedido e a causa de pedir. O primeiro destes elementos objectivos da instância é constituído pela forma de tutela jurisdicional requerida para o direito ou para o interesse legalmente protegido, o efeito jurídico que a parte pretende obter com a acção; o segundo – a causa petendi – é constituído pelos factos necessários para individualizar aquele direito ou este interesse1 (art.ºs 5.º, n.º 1, e 532.º, n.º 1, d), do CPC). Os factos integrantes da causa de pedir são apenas os factos essenciais de que emerge a situação jurídica alegada pela parte: dado que a qualificação jurídica dos factos pertence ao tribunal, a causa de pedir é o facto concreto e não a categoria legal em que se enquadra o facto alegado, é o acto ou facto jurídico concreto do qual o autor faz derivar o direito a tutelar – e não a valoração jurídica que lhe atribui2. O objecto do processo condiciona o objecto da decisão ou seja, aquilo que é pedido e alegado pela parte é aquilo que pode ser apreciado e decidido pelo tribunal, ponto que é dominado por esta regra: o tribunal deve apreciar tudo o que é pedido pela parte – mas não pode apreciar mais do que aquilo que foi pedido. Dito doutro modo: a relevância intraprocessual da causa de pedir, nos processos dominados pelo princípio da disponibilidade objectiva, concretiza-se nesta regra: a causa de pedir fixa os limites de cognição do tribunal (art.ºs 5.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, d), do CPC).
De modo deliberadamente simplificador, mas sem erro, bem pode dizer-se que a repartição de poderes entre as partes e o tribunal no tocante à matéria de facto, obedece ao regime seguinte: as partes têm o ónus de alegação da causa de pedir – que, como se viu, é integrada apenas pelos factos necessários e essenciais para individualizar o direito ou o interesse para que é pedida a tutela jurisdicional - e dos fundamentos das excepções; sem prejuízo da sua alegação pelas partes, o tribunal pode considerar os factos complementares, ou concretizadores, e os factos probatórios ou instrumentais que sejam adquiridos durante a instrução da causa (art.º 5.º, n.º 2, a) e b), do CPC). Os factos complementares são, deste modo, os factos que sendo exteriores à causa de pedir, são, no entanto, essenciais para que se possa obter a procedência da acção ou da excepção. Ou noutra formulação: os factos complementares são aqueles que, não integrando a causa petendi, são, todavia, necessários para assegurar a concludência da petição inicial, i.e., para que esse articulado contenha todos os factos indispensáveis á procedência da acção3.
Note-se que apesar da sua natureza complementar ou concretizadora, a parte não está desvinculada do ónus da sua alegação – embora a omissão da sua invocação não importe a sua preclusão, dado que podem ser adquiridos durante a instrução da causa. Por sua vez, os factos instrumentais – ou probatórios – são os factos que constituem a base de uma presunção legal ou judicial (art.ºs 349.º e 351.º do Código Civil). Por força do princípio da aquisição processual não é exigível requerimento das partes e, muito menos, a sua concordância quanto à utilização do facto complementar ou probatório, embora de modo a evitar decisões surpresa o tribunal deva, ao menos em certos casos, advertir as partes de que pretende utilizar o facto complementar adquirido para o processo (art.º 3.º, n.º 3, e 413.º do CPC).
Simplesmente, há que conjugar este efeito não preclusivo da omissão de invocação de factos complementares com as regras a que obedece a alegação, no tribunal de recurso, de factos novos.
Na verdade, considerados a partir da finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida. No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa acção foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação4.
No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento, o que significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância ou instâncias recorridas ou sobre pedidos que nelas não hajam sido formulados: os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas5. Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso6.
Serve isto para dizer que, no caso, está inteiramente afastada a possibilidade de considerar na decisão do recurso – como inequivocamente pretende o recorrente – o facto apontado, dado que não foi alegado nas instâncias recorridas e, mais do que isso - nem sequer foi julgado em nenhuma delas. Este recurso tem apenas por finalidade controlar a decisão impugnada, nas exactas condições que foi proferida, pelo que é inadmissível a invocação de factos novos que podiam e deviam – em cumprimento pontual do ónus de alegação que vincula as partes - ter sido invocados na instância ou instâncias recorrida e nelas sido julgados.
De resto, um tal facto nem sequer se deve ter por meramente instrumental ou complementar – qualificação que permitiria excluir o efeito preclusivo da falta da sua oportuna alegação – antes deve ter-se por essencial, dado que se refere à violação, pelo condutor do veículo pesado, do cuidado objectivamente devido no caso concreto que inequivocamente resulta de uma norma jurídica de comportamento contido no Código da Estrada (art.º 44.º). Efectivamente, o núcleo fundamental e constante da causa petendi invocada pelo recorrente é a imputação ao condutor do veículo automóvel pesado de uma culpa negligente, resultante da violação daquela norma de comportamento e, consequentemente, do dever objectivo de cuidado a cuja observância aquele estava adstrito e de que era capaz. Neste sentido, o facto novo referido não é simplesmente meramente complementar, uma vez que se não limita a concretizar os factos que integram a causa de pedir desenhada pela apelante e a assegurar a concludência da sua alegação – antes se trata de um facto que se situa no perímetro do núcleo mesmo da causa de pedir, essencial para individualizar a pretensão ressarcitória que o recorrente dela faz emergir. Tal facto participa, pois, da causa de pedir e, consequentemente, a omissão da sua alegação produz um irremediável efeito preclusivo, pelo que o decisor de facto, quer da 1.ª instância como da 2.º, caso o considerasse, sob a capa de facto complementar ou concretizador, incorreria num inequívoco erro de julgamento ou no desvalor da nulidade substancial da decisão, por um excesso de pronúncia, consoante a orientação que se tenha por preferível no tocante ao vício de limites que decorre da violação do princípio da disponibilidade privada do objeto do processo, de harmonia com qual incumbe às partes a definição deste objecto e que se concretiza, no tocante ao autor, no ónus de invocar a causa de pedir e de a integrar pelos factos necessários à individualização do direito ou do interesse invocado.
E o caso não muda de figura ainda que o facto alegado ex-novo pelo recorrente se devesse ter por meramente complementar ou concretizador.
Este Tribunal é um tribunal de revista e, portanto, não controla a decisão da questão de facto e não revoga por erro de facto, controlando apenas a decisão de direito e só revogando por erro de direito (art.ºs 46.º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 682.º, n.º 1, do CPC). Por isso que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não constitui objecto idóneo do recurso de revista, salvo os casos de ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, i.e., exceptuados os casos de prova necessária, i.e., em que a lei exige certo meio de prova para se poder demonstrar o facto probando, ou de prova legal ou tarifada, quer dizer, em que a lei impõe ao juiz a conclusão que há-de tirar do meio de prova (art.º 674.º, n.º 3, do CPC).
O Supremo Tribunal de Justiça está, pois, vinculado aos factos fixados pelas instâncias e, como consequência dessa vinculação, está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria (art.º 682.º, n.º 2, do CPC). Estas vinculações implicam que não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e a proibição de alterar, implicam, necessariamente, a impossibilidade – e mesmo a desnecessidade – de controlar a sua apreciação. Em especial, o Supremo não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, i.e., que assenta na prudente convicção que o tribunal tenha adquirido das provas produzidas (art.º 607.º, n.º 5, 1.ª parte, do CPC). Trata-se de jurisprudência absolutamente firme ou acorde7.
Na espécie sujeita, o acórdão impugnado, apesar de, na apreciação da prova testemunhal e na exposição da sua convicção argumentativa se ter referido aos passos daquela prova em que é referido que o condutor do veículo pesado não viu a aproximação do motociclo conduzido pelo autor, em execução da manobra de ultrapassagem, deliberou – no exercício da sua liberdade de apreciação daquela prova sujeita a sua livre, mas não imprudente, apreciação – não o atender e, mais do que isso, não o julgar adquirido para o processo e, o que é também mais, concluiu pela realidade do facto, essencialíssimo e contrário - porque directamente referido ao dever objectivo de cuidado ou de prudência indiscutivelmente presente no caso, cujo julgamento, aquele facto, a ter-se por instrumental seria susceptível de tornar incorrecto, ou na hipótese mais benigna, por incerto: o de que o condutor do veículo pesado verificou as condições em toda a via e faixas, confirmando que se encontrava em condições de realizar a manobra com segurança.
Simplesmente, um tal – e eventual - error in iudicando da Relação, no julgamento deste facto essencial, constituiria, indiscutivelmente, um erro sobre provas sujeitas à sua livre apreciação. Ora, a valoração que a Relação fe4z destas provas – e a convicção autónoma que delas adquiriu – dado que não constitui um erro em matéria de direito probatório, está inteiramente subtraída à competência decisória ou funcional do Supremo. Como se observou, ao Supremo está irrecusavelmente vedado o conhecimento do – eventual – erro na valoração das provas e na fixação dos factos materiais da causa, apenas dispondo de competência funcional ou decisória para controlar a actuação da Relação nos casos de prova vinculada ou tarifada, ou seja, quando está em causa um erro de direito. E comprovadamente nunca seria esse o caso do recurso.
Os factos materiais sobre os quais este Tribunal Supremo deve assentar a declaração do direito do caso são, assim, aqueles – e só aqueles – que a Relação teve por demonstrados.
3. Fundamentos.
3.1. Fundamentos de facto.
O Tribunal da Relação, no exercício dos seus poderes de correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, estabilizou definitivamente os factos materiais da causa nos termos seguintes:
3.1.1. Factos provados.
1. No dia 03.08.2018, cerca das 12:30 horas, no itinerário complementar IC1, ao Km ..., na União das Freguesias de ... (... e ...) e ..., Concelho de ..., Distrito de ..., ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-DL, conduzido por BB, propriedade de A..., SA., e o motociclo de matrícula ..-LI-.., conduzido e propriedade do autor.
2. O veículo DL, à data do acidente, tinha a responsabilidade civil transferida para a ré através da apólice n.º ...27, que se encontrava válida e eficaz.
3. O IC1 (itinerário complementar), no local do acidente, é constituído por uma recta, em patamar de boa visibilidade e dois sentidos de trânsito, com ligeira inclinação (a subir atento o sentido de trânsito dos veículos envolvidos), com uma via em cada um dos sentidos.
4. Na altura estava bom tempo, o piso encontrava-se regular, seco e limpo.
5. A velocidade permitida para o local onde ocorreu o sinistro era de 90 Km/h.
6. O veículo pesado DL, seguro na ré, circulava no referido IC1, sentido S.../A... e desviou-se para a sua esquerda, para entrar e passar a circular no acesso à Herdade ....
7. O DL iniciou a manobra de mudança de direcção para a esquerda encostando-se ao eixo da via, de forma a fazer a perpendicular, para entrar na via de acesso à Herdade ....
7-A. Antes de iniciar a manobra descrita em 6 e 7, o condutor do DL accionou o sinal luminoso de mudança de direcção para a esquerda e aproximou-se, o mais possível e com a necessária antecedência, do eixo da faixa de rodagem.
7-B. O condutor do DL verificou as condições em toda a via e faixas, confirmando que se encontrava em condições de realizar a manobra com segurança.
7-C. E realizou a manobra dando a esquerda ao centro de intersecção das duas vias.
8. À sua retaguarda seguiam outros veículos, entre eles o autor.
9. O autor ultrapassou os outros veículos que seguiam atrás do DL.
10. O autor embateu na traseira direita do DL, tendo sido projectado para o solo.
11. O DL já se encontrava quase totalmente na estrada de acesso à Herdade ... quando foi embatido pelo LI.
11-A. O autor iniciou e realizou a ultrapassagem antes de um entroncamento, sem se certificar de que podia realizar tal manobra sem perigo de colidir com o DL.
12. O local provável do acidente, ocorre na via da esquerda, mais encostado ao eixo da faixa de rodagem atento o sentido de trânsito dos veículos envolvidos no sinistro, a 3,10 metros do limite dessa via da faixa de rodagem.
13. Sendo que a largura total da faixa de rodagem é de 7,20 metros.
14. O DL já se encontrava posicionado obliquamente à estrada de onde provinha, com a sua dianteira na entrada do caminho de acesso à Herdade ..., quando foi embatido pelo LI.
15. No local, à data do sinistro, não existia sinal indicador da existência de entroncamento.
16. A estrada na qual o DL pretendia passar a circular dá acesso a diversas herdades, entre elas a Herdade de ..., e às instalações dos apoios às portagens.
17. O eixo da faixa de rodagem no local, é delimitado por uma linha longitudinal descontínua (tracejado).
3.1.2. Factos não provados.
1. Na sequência do embate do LI no DL, o autor ficou caído na berma da estrada, do lado direito, atento o seu sentido de marcha.
2. O autor iniciou e realizou a ultrapassagem sem accionar a devida sinalização.
3. E sendo certo que, quando iniciou a ultrapassagem, lhe era perceptível que iria prolongar tal manobra sobre o entroncamento.
3.2. Fundamentos de direito.
3.2.1. Imputabilidade, subjectiva e objectiva, do evento danoso e do dano.
Consabidamente, a generalidade da doutrina – e, correntemente, também a jurisprudência – individualiza como pressupostos da responsabilidade civil subjectiva, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e a causalidade8. A ilicitude decorre, de harmonia com as duas cláusulas gerais dispostas na lei, da violação de direitos subjectivos, maxime de direitos subjectivos absolutos, ou de normas de protecção (artº 483.º, n.º 1, do Código Civil). A primeira modalidade de ilicitude compreende a ofensa a qualquer direito subjectivo, proprio sensu, mesmo os relativos – e não meros interesses - apenas se excluindo os chamados danos puramente patrimoniais, i.e., os danos que não decorram da violação de um direito subjetivo; a segunda cláusula de ilicitude – violação de normas de protecção – exige, uma norma de conduta aplicável, destinada a proteger determinados interesses alheios e a adopção, pelo autor do facto, de um comportamento contrário a essa norma de conduta, que atinja, precisamente, os interesses protegidos pela norma violada. Nesta cláusula, compreendem-se todas as normas que tenham em vista proteger determinadas pessoas ou categorias de pessoas de lesões nos seus bens; se, porém, o dano causado atingir direitos subjectivos, maxime direitos absolutos, dá-se a consunção da cláusula normas de protecção. A infracção destas normas não deixa, contudo, de ser relevante, mas como elemento indiciador da violação do cuidado objetivamente devido, o que sucederá – e sucede com frequência – quando as disposições legais de protecção representem tipificações legais de deveres de cuidado.
A violação de direitos subjectivos ou de normas de protecção requer uma conduta ilícita e culposa do infractor. Há acordo quanto aos elementos em que se analisa aquela violação, mas não uma concordância quanto ao conteúdo específico de cada um desses elementos, como mostra a controvérsia suscitada pela relação entre a ilicitude e o dolo e a negligência e, portanto, pela caracterização da culpa, dado que a eventual inclusão dos elementos subjectivos na ilicitude implica a deslocação do dolo e da negligência da culpa – onde tradicionalmente são incluídos – para a ilicitude.
Para a doutrina tradicional, que pode dizer-se dominante, para que um comportamento seja qualificado como ilícito, basta que ele constitui uma causa adequada de um resultado antijurídico: a ilicitude é qualificada em função do resultado, pelo que a conduta é ilícita quando o seu resultado for contrário ao direito.
Todavia, para uma orientação mais moderna, baseada na teoria da acção final – que, por isso, parte da verificação de que toda a acção humana se orienta para atingir conscientemente uma finalidade pré-determinada – a ilicitude da conduta não é extraída exclusivamente do resultado que provoca – mas também de certas características intrínsecas dessa mesma conduta. Para que um comportamento seja ilícito exige-se, assim, não só a violação do dever jurídico – mas também a actuação dolosa ou negligente do agente: a ilicitude da conduta pressupõe um desvalor do resultado e um desvalor da própria conduta. Em consequência, a culpa não pode ser apreciada pela relação psicológica do agente com a sua conduta, porque essa relação é estabelecida pelo dolo e pela negligência – que são elementos da ilicitude – pelo que a apreciação da culpa depende de critérios estritamente normativos ou valorativos, referidos ao juízo de censurabilidade do comportamento do agente. Dito doutro modo: dado que o dolo e a negligência, como elementos da ilicitude da conduta, absorvem a relação psicológica do agente com essa conduta, a culpa fica reservada para uma apreciação estritamente normativa sobre a atitude ou motivação interior desse mesmo agente.
A culpa decorre, portanto, de um juízo de censurabilidade ou de reprovação do comportamento do agente, de um juízo de desvalor assente na constatação de que esse agente, nas circunstâncias específicas em que actuou poderia ter conformado a sua conduta – dolosa ou negligente e, portanto, ilícita - de modo a assegurar o dever cujo cumprimento, nessas mesmas condições, lhe era exigível. Como é claro, a que a censurabilidade do comportamento do agente é um juízo feito pelo tribunal sobre a sua atitude ou motivação, tal como pode deduzir-se dos factos provados; na formulação desse juízo de reprovação, o tribunal socorre-se, naturalmente, de regras de experiência e critérios sociais. Como quer que seja, seguro é que a imputação delitual, quer dizer, o esquema pela qual é possível assacar a uma pessoa um dano para efeitos de indemnização, reclama uma conduta ilícita e culposa do infractor (artº 483.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Na imputação delitual, seja dolosa ou simplesmente negligente, o ónus da prova dos factos que fundamentam o juízo de censura ético-social do agente – e não do juízo de censurabilidade em si mesmo - onera o lesado; o não cumprimento desse ónus de prova comporta uma vantagem relevante para o lesante, uma vez que impõe ao tribunal que decida contra quem aquele ónus onera (art.ºs 342.º. n.º 1, 346.º, in fine, e 487.º, n.º 1, do Código Civil, e 414.º do CPC). A prova dos factos que fundamentam o juízo de reprovação da conduta do lesado, cabe ao lesante, mas este está dispensado de os invocar visto que incumbe ao tribunal conhecer deles oficiosamente (art.º 572.º do Código Civil).
A indagação da culpa do responsável revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Para facilitar o funcionamento da imputação delitual, a lei estabelece presunções, através das quais opera a distribuição do ónus da prova da culpa, i.e., o encargo de demonstrar a sua existência. Existindo uma presunção de culpa, é ao autor do dano que fica onerado com o encargo de demonstrar que não teve culpa na ocorrência (art.º 350.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Ao contrário do direito penal, o direito civil conhece um ilícito geral de negligência (art.º 483.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
O que confere especificidade e autonomia ao ilícito negligente é a violação, pelo agente, de um dever objectivo de cuidado a que, no caso, estava juridicamente vinculado. Sempre que se infrinjam regras de cuidado, de prudência, de atenção ou diligência - ocorre um delito negligente. Contudo, a concepção da violação do cuidado objectivamente devido como elemento individualizador do delito negligente é apenas uma proposta de solução possível: o conceito de criação ou de incremente de um perigo não permitido, importado da dogmática penal9, é também apto a densificar o conteúdo do ilícito negligente. De harmonia com a teoria do risco permitido, a imputação do resultado à conduta do agente só ocorre quando o comportamento tenha criado, ou aumentado ou incrementado um risco proibido, desde que esse risco se tenha materializado no resultado danoso10. Sempre que o agente tenha criado um risco não permitido ou aumentado o risco já existente e esse risco conduza à produção do resultado concreto, este deve ser-lhe objectivamente imputado; inversamente, a imputação deve ter-se por excluída, por exemplo, quando a conduta que produziu o evento não tenha ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido. A diferença entre uma e outra proposta de solução é mais aparente do que real, dado que numa perspectiva prático-normativo, os dois conceitos acabam por se equivaler: a determinação do cuidado objectivamente devido corre paralelamente aos limites do risco permitido11.
Seja como for, há sempre que proceder à concretização das normas de cuidado, à determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, i.e., dos deveres que devem ser observados pelo agente para que se possa excluir a imputação por negligência. A imputação negligente não se basta, por isso, com a inobservância do cuidado geral com que toda a pessoa se deve comportar na interacção social; a sua comprovação exige, antes, a violação de normas de cuidado que servem concreta e especificamente o tipo de ilícito respectivo, ou, dito doutro modo: na aferição do preenchimento do ilícito negligente, assume importância nuclear a determinação do cuidado objectivamente devido no caso concreto.
Como é natural, o mais importante elemento concretizador do cuidado objectivamente devido no caso concreto é o que resulta normas jurídicas de comportamento, contidas em leis ou regulamentos, como por exemplo, o Código da Estrada (CE). A violação dessas normas constituirá indício claro de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido12.
É o que decerto ocorre, por exemplo, com a norma jurídica de comportamento contida no artigo 38.º, n.º 1 do Código da Estrada, que impõe ao condutor do veículo que pretenda iniciar a ultrapassagem de outro que se certifique, antes de iniciar essa manobra, que a pode realizar em colocar em perigo de colidir, designadamente com o veículo que transite no mesmo sentido, desde logo com o veículo que pretende ultrapassar13, com as contidas nos artigo 44.º, n.º 1, e 60.º, n.º 2, b), daquele Código, que vinculam o condutor que pretenda mudar de direcção para a esquerda, a aproximar-se com a necessária antecedência o mais possível do limite esquerdo da faixa de rodagem ou do eixo desta, consoante a via esteja afecta a um ou a ambos os sentidos de trânsito, e a indicar, através da luz de mudança de direcção, aos demais utentes da via, a sua intenção - norma comportamental que visa a protecção quer dos veículos que circulam em sentido contrário, quer dos circulam atrás de modo a poderem adequar a velocidade a eventual desaceleração, abrandamento ou imobilização ou se preparem para passar pela direita, caso o espaço disponível da via o permita - e com a que se contém no artigo 24.º, n.º 1, do mesmo Código da Estrada, que impõe ao condutor a regulação da velocidade de modo a que, atendendo, designadamente, às características da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, e a quaisquer outras circunstâncias relevantes possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente – norma de comportamento que fundamenta um excesso de velocidade relativo, entendido como o que se verifica quando, independentemente do valor absoluto da velocidade, o condutor não consegue efectuar a manobra necessária ou imobilizar o veículo, sem que isso se deva a uma circunstância imprevisível ou à ocorrência fortuita de determinado evento.
Note-se, porém, que se o desacatamento de normas dessa natureza constitui um indício da infracção do cuidado objectivamente exigível, poderá não ser suficiente para fundamentar de forma definitiva essa violação: que o que é perigoso em abstracto pode deixar de o ser no caso concreto, é coisa que se compreende por si14. Assim, quando o perigo típico de comportamento pressuposto pela norma jurídica falte excepcionalmente, em virtude da especial configuração do caso concreto, não pode esse comportamento ser considerado como contrário ao cuidado objectivamente devido. E o inverso também pode ser verdadeiro: apesar da observância da norma, legal ou regulamentar, poderá, ainda assim, existir uma violação do cuidado objectivamente exigível, embora, em tal caso, se deva ser particularmente rigoroso na afirmação da existência de um delito negligente.
Negativamente, a imputação delitual negligente é delimitada pelo chamado princípio da confiança. A este princípio bem pode imprimir-se esta formulação: quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo. A justificação substantiva deste princípio e, portanto, a determinação do seu âmbito de actuação, pode sintetizar-se nesta proposição: como regra geral não se responde pela falta de cuidado alheio, antes o direito autoriza que se confie que os outros cumprirão os seus deveres de cuidado15. Encontrando o princípio da confiança o seu fundamento material no princípio da auto-responsabilidade, segue-se que não é juridicamente exigível, que se deva contar sempre com aquelas pessoas que violam as regras jurídicas de comportamento e, por essa via, as normas de cuidado. Há uma tendência frequente para concluir sem mais que não pode socorrer-se do princípio da confiança aquele que se comporta em violação do dever objectivo de cuidado. Feita assim, a afirmação é inteiramente inexacta, dado que bem pode suceder que, v.g., o facto e o dano consequente não possam objectivamente ser imputados àquela violação do dever – logo de acordo, de resto, com o critério da imputação objectiva, de harmonia com o qual é necessário que seja o perigo típico criado ou potenciado pela conduta aquele que se concretiza, ele próprio e não outro, no resultado danoso.
Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (art.º 487.º, n.º 2, do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada pessoa é, assim, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais do agente concreto, caso estas sejam inferiores às do homem médio.
Como as considerações anteriores deixam antever, uma coisa é a constatação da violação objectiva de um dever de cuidado outra bem diferente a imputação objectiva do dano à violação desse dever16. Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta. De harmonia com o princípio que a responsabilidade civil só intervém relativamente a comportamentos humanos e se exige, para a constituição do dever de indemnizar, um resultado, há sempre que verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído – imputado - à conduta. É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento a que se procura dar resposta com a causalidade.
Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado, mas não indiscutível, é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (art.º 563.º do Código Civil)17. A finalidade evidente da teoria da causalidade adequada é a de limitar a imputação do resultado às condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Há, porém, domínios em que as soluções que resultam da aplicação da teoria da causa adequada não são inteiramente satisfatórias, o que ocorre, sobretudo, em actividades que, comportando, em si mesmas, riscos consideráveis são, todavia, legalmente permitidas, como sucede, v.g., com a circulação terrestre de veículos automóveis.
A teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: com este oximoro quer-se significar que o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar. Em face das dificuldades do critério da adequação não são de estranhar as propostas da sua correcção, por recurso, por exemplo, aos conceitos de risco permitido, do fim de protecção da norma, das esferas de risco e de causalidade fundamentadora – respeitante ao nexo dentre a conduta do responsável e o resultado que a norma exige que se verifique para se considerar violada – contraposta à causalidade preenchedora – referida ao nexo que se estabelece entre o evento que obriga à reparação e os danos18.
A adequação deve, naturalmente, referir-se a todo o processo causal e não só ao resultado, sob pena de um alargamento excessivo da imputação. É neste contexto que se situam os problemas da intervenção de terceiros ou da interrupção do nexo de causalidade, que têm em vista aqueles casos em que o resultado se verifica em consequência de uma co-actuação do lesado ou de terceiro.
O critério da causalidade resolve o problema por recurso ao concurso real de causas adequadas, simultâneas ou subsequentes, considerando qualquer dos lesantes responsável pela reparação de todo o dano19. Esta conclusão impõe-se ao menos nos casos em que a causa operante interrompeu a série causal hipotética e em que a causa operante só provocou o dano porque os termos da causalidade hipotética já decorridos favorecem a sua eficácia causal, de tal modo que o dano, tal como concretamente se verificou, não se teria verificado se não fossem esses termos. Quando isso suceda, estamos perante um caso de concorrência efectiva de causas – e não de um caso de causalidade hipotética e, portanto, não se coloca o problema da relevância negativa da causa hipotética.
A obrigação de indemnização tem por escopo fundamental a remoção do dano imputado e, portanto, a medida da indemnização é, por regra, simplesmente a do dano efectivamente imputado ao lesante (art.º 562.º do Código Civil). Questões como o nexo de causalidade transcendem, por isso, a problemática da determinação da indemnização. Todavia, o Código Civil actual rompeu com o princípio da não influência da culpa sobre o quantum respondeatur, permitindo ao juiz, nos casos em que a imputação delitual opere por ilícito negligente, fixar a indemnização, equitativamente, em montante inferior ao dano, desde que o justifiquem não só o grau de culpa do lesante, como também a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (art.º 494.º do Código Civil). E o concurso de riscos - ou, se se preferir, a contribuição causal, v.g. do lesado, para a verificação do dano - é certamente, uma das demais circunstâncias do caso a ponderar pelo tribunal. Todavia, a fixação da indemnização em valor inferior ao do dano justifica-se sempre que os danos sejam provocados por terceiro – e na medida em que o sejam – ainda que não voluntariamente ou ainda que licitamente. Verdadeiramente, não há aqui uma limitação da indemnização – mas apenas uma delimitação dos danos que ao lesante devem ser imputados, pelo que a redução prescinde da comprovação, relativamente a esse terceiro, dos pressupostos da imputação delitual.
Também se aponta como factor limitativo da indemnização o concurso com a eventual culpa do lesado: quando um facto culposo do lesado tiver contribuído para a produção ou agravamento dos danos, o tribunal pode, no caso concreto, decidir se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou excluída (artº 570.º, n.º 1, do Código Civil). A boa interpretação da lei exige dois esclarecimentos: em primeiro lugar, a expressão culpa deve ser muito amplamente entendida, de modo que a indemnização seja reduzida ou excluída sempre que os danos sejam provocados pelo lesado e na medida em que o sejam, ainda que não voluntariamente ou ainda que licitamente; em segundo lugar, também não há aqui uma limitação da indemnização, mas apenas um recorte dos danos que ao lesante devem ser imputados.
Este viaticum habilita, com suficiência, à resolução da questão nuclear material concreta controversa, objecto do recurso: a da imputabilidade, subjectiva e objectiva, do evento danoso.
3.2.1.2. Concretização.
O acórdão impugnado foi terminante e peremptória na afirmação de que a culpa pela ocorrência do acidente deve ser atribuída, em exclusivo, ao recorrente e que o condutor do DL em nada contribuiu para que o acidente ocorresse, e apenas foi surpreendido pelo embate do LI quando terminava uma manobra de mudança de direcção para a esquerda devidamente executada.
É, portanto, de toda a utilidade recordar, nos seus traços mais marcantes, o processo dinâmico do acidente.
De harmonia com os factos materiais que o Tribunal da Relação, depois do exercício, a pedido da recorrido, dos seus poderes de controlo da correcção da decisão da matéria de facto da 1.ª instância, teve por definitivamente adquiridos para o processo – julgamento que, pelas razões expostas, é inatingível pelo Supremo Tribunal de Justiça – a dinâmica da colisão entre o motociclo conduzido pelo autor, recorrente, e o veículo pesado de mercadorias, que constitui a causa próxima dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, cuja reparação e compensação, respectivamente, é pedida pelo primeiro, na acção e na revista, é, nos suas linhas mais relevantes, a seguinte: o condutor do veículo automóvel pesado antes de iniciar a manobra de mudança de direcção para a esquerda, verificou as condições em toda a via e faixas, confirmando que se encontrava em condições de realizar a manobra com segurança, accionou o sinal luminoso de mudança de direcção para a esquerda e aproximou-se, o mais possível e com a necessária antecedência, do eixo da faixa de rodagem, encostou-se a esse eixo, de forma a fazer a perpendicular para entrar na via de acesso à Herdade ..., e realizou a manobra, dando a esquerda ao centro da intersecção das duas vias; o autor, que conduzia o seu motociclo, com outros veículos, na rectaguarda da viatura pesada, iniciou e realizou a ultrapassagem, sem se certificar que podia realizar essa manobra sem perigo de colisão com aquela viatura, e foi colidir, quando esta já se encontrava posicionada obliquamente à estrada da qual provinha, quase totalmente na estrada de acesso àquela Herdade, na respectiva traseira, colisão de que resultou a projecção do autor para o solo.
Do estrito ponto de vista da causalidade, já sabemos que a imputação objectiva se não basta com a comprovação de que o lesante, com a sua conduta, produziu ou potenciou um risco não permitido de verificação do facto danoso: é preciso ainda determinar se foi esse risco que se materializou ou concretizou naquele resultado. No caso, porém, é patente que o risco que se concretizou no dano é o que foi criado pelo recorrente com o modo como iniciou e concretizou a manobra – especialmente perigosa – de ultrapassagem; o perigo de colisão não foi criado pelo veículo automóvel pesado com a execução da manobra de mudança de direcção para a sua esquerda – considerado o modo como a iniciou e a concretizou - tendo sido antes gerado pela ilicitude do acto de condução do recorrente.
E à mesma conclusão se chega por referência à regra geral da teoria da adequação, dado que, de harmonia com ela, a actuação do lesado ou de terceiro que se integre no processo causal desencadeado pelo lesante exclui a imputação, salvo se essa actuação aparecer como previsível ou provável. Ora, segundo as máximas de experiência e a normalidade do acontecer e, portanto, segundo o que é em geral previsível, não é provável ou previsível que depois de a manobra de mudança de direcção realizada pelo veículo automóvel pesado - iniciada, com a observância da cautela ou do cuidado objectivamente devido - e se mostrar quase concluída, surja um motociclo em execução da manobra de ultrapassagem, animado de uma velocidade, que impediu mesmo a realização de uma manobra de evasão, adequada a evitar a colisão, tendo, antes ido colidir, com violência, na traseira daquela viatura. Segundo as gerais de experiência e o normal acontecer dos factos, o condutor do veículo automóvel pesado nenhuma razão tinha para crer ou dever crer que o recorrente executaria, nos termos concretos como a executou, aquela manobra de ultrapassagem. Assim, em face da observação da conduta do condutor do veículo automóvel pesado, no momento em que foi praticada, a produção do acidente era imprevisível ou, ao menos improvável, e, portanto, a imputação não deverá ter lugar. Portanto, seja qual for, em definitivo, o modelo explicativo que, relativamente à imputação objectiva se deva ter por exacto, a verdade é que, na espécie do recurso, o dano suportado pelo autor é objectivamente imputável à sua própria conduta.
Do mesmo modo, o acidente é também exclusiva e subjectivamente imputável ao autor, o mesmo é dizer, a uma culpa negligente sua – e só sua.
Já se adquiriu, à certeza, que a violação de normas jurídicas de comportamento contidas em lei ou regulamentos, constitui indício claro de uma contrariedade ao cuidado objectivamente devido, mas não pode, em caso algum, fundamentá-lo em definitivo. Como se notou, o que em abstracto é perigoso, pode deixar de o ser em concreto e, portanto, quando o perigo típico de um comportamento pressuposto pela norma jurídica falte, em virtude da especial configuração do caso concreto, não pode um tal comportamento considerar-se contrário ao cuidado objectivamente devido. Assim, por exemplo se um automobilista passa com a luz do semáforo no vermelho, num cruzamento, com plena visibilidade e quando as vias estão com movimento praticamente nulo, não lhe deve ser subjectivamente imputável o atropelamento de um peão parado no passeio e que atravessa subitamente a via fora da passadeira e é colhido pelo veículo automóvel.
Do mesmo modo, o condutor que inicia e concretiza a manobra de mudança de direcção para a esquerda, com escrupuloso observância das norma jurídicas de comportamento reguladoras da realização desse movimento, não actua contra o cuidado exigível, dado que o perigo típico pressuposto pela norma de comportamento correspondente não é o perigo de colisão com motociclos que realizam manobras de ultrapassagem em desrespeito das precauções ou cuidados impostos pela norma jurídica reguladora dessa manobra estradal.
E, mesmo neste contexto, ao condutor do veículo pesado sempre seria possível recorrer ao princípio da confiança, dado que, como se sublinhou, já, o acidente não pode ser objectivamente imputado àquela violação do dever, de harmonia com o critério da imputação objectiva, segundo o qual é necessário que seja o perigo típico o criado ou aumentado pela conduta 1aquele que se concretiza no resultado danoso. Além de ilícita, a conduta do autor é-lhe também censurável, censurabilidade que lhe pode ser dirigida pelo facto de não se ter comportado em conformidade com o dever-ser e de ter violado, com negligência, um imperativo legal, apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que, nas circunstâncias em que actuou, podia ter conformado a sua conduta de molde a assegurar a satisfação do dever objectivo de cuidado cujo cumprimento lhe era exigível nesses mesmos condicionalismos.
Por último – e a simples benefício de exaustão de fundamentação – sejam quais forem as virtualidades do critério da prioridade temporal para resolver o conflito entre as manobras de mudança de mudança de direcção para a esquerda e de ultrapassagem, no caso da sua execução simultânea, enunciado pelo acórdão deste Tribunal, proferido no dia de 10 de Abril de 2014, no processo 805/10.4TBPNF.P1.S1, invocado pelo recorrente, a verdade é que ele não é operativo no nosso caso, dado que da matéria de facto adquirida para o processo não mostra quem foi o condutor que primeiro deu início à execução da respectiva manobra, sendo certo, de resto, que aquele acórdão não foi fiel ao critério do prior in tempo que adoptou, dado que concluiu pela concorrência de culpas dos intervenientes, porque ambas as infracções na origem do acidente, justificando-se a repartição de culpas entre ambos os intervenientes e não, em estrita coerência com aquele critério de decisão, pela imputação do acidente ao condutor que iniciou em segundo lugar qualquer daquelas manobras.
Nestas condições, a conclusão tirada pelo acórdão recorrido de que o condutor do veículo automóvel pesado não violou o dever objectivo de cuidado indiscutivelmente presente no caso, que o vinculava, não sendo possível imputar-lhe uma qualquer ilicitude nem dirigir ao seu comportamento um juízo de desvalor ou de censurabilidade, dado que, na situação, mostrou uma motivação francamente conformidade com o dever-ser que lhe era imposto e, portanto, não se constituiu no dever de reparar e compensar os danos, patrimonial e não patrimonial, comprovadamente suportados pelo recorrente - é juridicamente exacta. E desde que aquele condutor não se mostra constituído no dever de indemnizar - por facto danoso não se lhe ser, objectiva e subjectivamente imputável, sendo antes assacável, de modo exclusivo, a uma ilicitude e a uma culpa negligente, exclusivas, do recorrente - também o não está, evidentemente, a recorrida.
Todas as contas feitas, não há motivo para dissentir do julgamento contido no acórdão impugnado apelada e, consequentemente, para dar provimento ao recurso.
As proposições mas salientes que fundamentam a improcedência do recurso são, em síntese apertada, as seguintes:
- Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas, pelo que não é admissível a alegação, na instância de recurso de facto novos - ius novarum nova:
- As normas de protecção cuja violação integra a segunda cláusula de ilicitude, disposta na lei como pressuposto da responsabilidade civil extracontratual subjectiva, não deixam de ser relevantes, ainda que aquela modalidade de ilicitude seja consumida pela primeira cláusula, da mesma espécie, da violação de direitos subjectivos, embora apenas como elemento indiciador do cuidado objectivamente devido, sempre que essas normas de protecção, como sucede com as normas de comportamento contidas no Código da Estrada, contenham tipificações legais do dever de cuidado;
- A imputação delitual negligente é negativamente delimitada pelo chamado princípio da confiança., de harmonia com o qual quem se comporta de harmonia com o cuidado objectivo deve poder confiar que o mesmo acontecerá com os outros, excepto se tiver motivo fundado para crer – ou dever crer – de outro modo;
- Para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, com fundamento numa culpa negligente, não é suficiente comprovação do elemento caracterizador do ilícito negligente, que o especializa e que lhe confere autonomia - a violação do cuidado objectivamente devido no caso concreto, sendo ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta.
O recorrente deverá suportar, porque sucumbe no recurso, as respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.
2025.05.13
Henrique Antunes (Relator)
António Magalhães
António Domingos Pires Robalo
_____________________________________________
1. Miguel Teixeira de Sousa, Algumas questões sobre o ónus da alegação e da impugnação em processo civil, Scientia Iuridica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, págs. 401 e 402↩︎
2. Ac. do STJ de 01.10.2019 (20427/16).↩︎
3. João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, 2022, Vol. I, 412, e Miguel Teixeira de Sousa Factos complementares e função da causa de pedir, in blogippc.blogspot.com., entrada de 21/07/2014.↩︎
4. Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, págs. 138 e ss., e Freitas do Amaral, Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss.↩︎
5. A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. do STJ de 11.01.2024 (3547/17), e de 15.12.2022 (125/20).↩︎
6. Ac. do STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.↩︎
7. V.g., Acs. do STJ de 14.07.2023 (19645/18), 03.11.2021 (4096/18), 14.12.2016 (2604/13), 12.07.2018 (701/14) e 12.02.2019 (882/14).↩︎
8. Por último – reponderando, aliás, o seu pensamento, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 432.↩︎
9. Cfr. Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega, Lisboa, págs. 256 a 267.↩︎
10. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, págs. 2004, págs. 313 a 321.↩︎
11. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Sobre os fundamentos da doutrina penal, Sobre a doutrina geral do crime, Coimbra Editora, 2001, págs. 355 e 356.↩︎
12. As normas do Código da Estrada são, tecnicamente, normas de protecção. Ninguém tem um direito abstracto a que outrem cumpra as regras daquele Código. Mas se estas forem violadas e dessa violação resultar um dano, cai-se na segunda modalidade de ilicitude prevista no art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil. Em regra, os danos causados por veículos atingem direitos subjectivos, pelo que a hipótese normas de protecção é consumida. Todavia, a ofensa daquelas regras, servirá como elemento indiciador da violação do cuidado objectivo devido.↩︎
13. Ac. do STJ de 27.07.2007 (07B1750).↩︎
14. Ac. do STJ de 07.11.2000, CJ, III, pág. 104.↩︎
15. Ac. do STJ de 15.04.2015 (1245/07).↩︎
16. A fixação da conexão entre a conduta ou condutas e o evento danoso é uma questão de facto subtraída, portanto, à competência decisória do Supremo Tribunal de Justiça, embora este, muitas vezes, considere a aplicação do art.º 563.º do Código Civil como questão jurídica, com o argumento, talvez pouco consistente, de que é necessário indagar a causa jurídica de certo evento. Cfr. Antunes Varela RLJ, Ano 122, pág. 120.↩︎
17. Cfr., v.g., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 743 e ss., Pereira Coelho, o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil, BGD, Suplemento nº IX, Coimbra, 1976, pág. 201 e ss. e Miguel Teixeira de Sousa, Da Responsabilidade Civil por Factos Lícitos, Lisboa, 1977, pág. 124 e ss. Menezes Cordeiro - Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, págs.. 338 e 338 – sugeria a integração da causalidade na própria conduta e, consequentemente a sua sujeição ao juízo de ilicitude: nesta perspectiva, a averiguação da causalidade adequada limitar-se-ia à indagação da licitude de certo comportamento face a um concreto dano e à identificação da adequação com a verificação do fim visado pelo agente.↩︎
18. Maria de Lurdes Pereira, Direito da Responsabilidade Civil, AAFDL, 2022, págs. 280 a 321.↩︎
19. Pereira Coelho, O Problema da Relevância da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, págs. 31 a 34 e Ac. do STJ de 13.01.09, www.dgsi.pt. Na jurisprudência nota-se, nos casos de conculpabilidade, o recurso tendencial à doutrina da causa adequada, numa metódica que parte frequentemente do tratamento coincidente das questões da culpa e do nexo causal. Verifica-se, na verdade, uma preocupação maior pelos problemas ilicitude e da culpa, secundarizando o aspecto central e decisivo da adequação entre as condutas e o dano, o que tem, decerto, a ver com a constatação de que uma resposta positiva à questão da culpa facilitará a formulação do juízo causal. Cfr. José Carlos Brandão Proença, A Conduta do Lesado e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 457 a 459.↩︎