CONTRATO DE FORNECIMENTO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA RESOLUTIVA
RESOLUÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
TEORIA DE IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
Sumário


Estando contratualmente estipulado que, em caso de resolução do contrato de fornecimento fundada no seu incumprimento por parte do adquirente, a parte faltosa pagaria à outra parte uma determinada quantia, calculada com base no valor da prestação que seria devida pela parte inadimplente em caso de cumprimento do contrato (aquisição, no mínimo, de uma determinada quantidade de café), deve o contrato ser interpretado no sentido de que, em caso de resolução do contrato por incumprimento do adquirente, o fornecedor fica dispensado da sua contraprestação (entrega do café correspondente ao valor dessa quantia).

Texto Integral


Processo n.º 2545/22.2T8MAI.P1.S1

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. “Tenco Cafés, Lda.”, propôs ação declarativa, com forma de processo comum, contra Associação Desportiva e Cultural das Arregadas, e AA, pedindo que:

- seja declarada válida e eficaz a resolução do contrato celebrado em 6 de maio de 2015, com fundamento no incumprimento definitivo e culposo por parte da R.;

- subsidiariamente, seja declarada a resolução do contrato celebrado em 6 de maio de 2015, com fundamento no incumprimento definitivo e culposo por parte da R.;

se condenem os RR. a pagar-lhe solidariamente a quantia de € 31 866,47, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos contados desde a citação até integral e efetivo pagamento, calculados à taxa legal.

Para fundamentar a sua pretensão a A. alegou, em síntese, que em 6 de maio de 2015 celebrou com a R. um contrato de fornecimento de café, pelo prazo de 66 meses, mediante o qual esta se obrigou a adquirir a quantidade mínima global de 990 quilogramas de café, em quantitativos mensais mínimos de 15 quilogramas. No âmbito do referido contrato, concedeu um desconto de € 10,08 por cada quilograma de café, no total de € 9 985,00. Tal quantia, a título de desconto antecipado, foi entregue em bens e equipamentos. A R. incumpriu o contrato em apreço, tendo deixado de comprar café da marca Tenco, apenas tendo adquirido a totalidade de 80 quilogramas de café. Depois de ter interpelado a R., sem sucesso, para regularizar o cumprimento contratual, a A. procedeu à resolução do contrato. O R. subscreveu o contrato supra aludido na qualidade de avalista.

2. Os Réus contestaram e reconviram, alegando que a A. não entregou a totalidade dos equipamentos previstos no contrato, sendo que aqueles que foram entregues eram usados e sofreram sucessivas avarias. Não obstante ter assumido a obrigação de entregar equipamentos novos, entregou equipamentos em mau estado de conservação e sem valor comercial. O contrato celebrado estabelece prestações desequilibradas e não foi sujeito a negociação prévia, o que implica a sua nulidade. Se a A. receber o valor da cláusula penal deverá entregar os quilogramas de café correspondentes a esse valor. A A. atua com abuso de direito.

Os RR. concluíram considerando que a presente ação devia ser julgada improcedente e se a ação procedesse a Autora deveria ser condenada a entregar aos RR. ou a quem estes indicarem novecentos e dez quilogramas de café.

3. Notificada para o efeito, a R. não procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida, nem da correspondente multa. Nessa medida, foi considerada sem efeito a contestação apresentada em nome da R.

4. A A. apresentou réplica concluindo como na petição inicial e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.

5. Realizou-se audiência final e em 29.02.2024 foi proferida sentença em que se julgou a ação procedente e em consequência:

- se declarou válida e eficaz a resolução do contrato celebrado em 6 de maio de 2015, com fundamento no incumprimento definitivo e culposo por parte da R.;

- se condenou os RR. Associação Desportiva e Cultural das Arregadas e AA a pagarem solidariamente à A. a quantia de € 31 866,47 (trinta e um mil, oitocentos e sessenta e seis euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos contados desde a citação até integral e efetivo pagamento, calculados à taxa legal.

Mais se decidiu julgar o pedido reconvencional procedente e, em consequência, se condenou a A./reconvinda a entregar aos RR./Reconvintes novecentos e dez quilogramas de café, de marca Tenco, lote Massimo.

6. A A. apelou da sentença e em 18.6.2024 a Relação do Porto julgou o recurso procedente e, consequentemente, absolveu a A. do pedido reconvencional.

7. Os RR. interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões:

“A cláusula sétima do contrato, não é uma cláusula penal.

2. A cláusula sétima visa apenas regular o prazo das prestações de pagamento, devidas pelas RR, prevendo a perda do benefício do prazo de pagamento do café em 66 meses, em caso de incumprimento destas.

3. Ainda que fosse uma cláusula penal, a única penalização que pode ser assacada às RR é a de comprar o café mediante o PVP em vigor e nunca a de pagar o café, sem o receber.

4. A decisão do Tribunal da Relação ao considerar que a cláusula sétima obriga as RR a proceder ao pagamento do café que não receberam é iníqua, especialmente à luz do contrato que apenas ditou a perda do direito ao desconto na compra do café.

Termos em que e nos melhores de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer a V. Exa. a admissão do presente recurso, determinando a sua subida ao Supremo Tribunal de Justiça e a revogação do douto Acórdão que antecede, confirmando-se a douta decisão proferida na Primeira Instância.”

8. A A. contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

“A. Os Réus interpuseram recurso de revista, peticionando a revogação do acordo recorrido a fim de ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional formulado;

B. O qual se traduzia na condenação da Autora a entregar aos Réus o café não adquirido.

C. Os Réus fundamentam tal recurso com base no facto de a clausula sétima do contrato em causa nos autos não corresponder a uma cláusula penal, mas, apenas, a uma cláusula que obriga os Réus, em caso de resolução, a adquirir o café em falta com a perda de benefício do prazo associada. – vide transcrição da cláusula sétima constante do ponto 10 do elenco da matéria de facto dada como provada.

D. A argumentação expendida pelos Réus não tem respaldo na ratio da sobredita clausula nem respaldo naquilo que é o instituto jurídico da resolução dos contratos.

E. A sobredita clausula consagra uma verdadeira clausula penal e que apenas pode ser exigida, por parte da Autora, caso esta decida fazer operar a resolução do contrato – o que fez, válida e eficazmente (pontos 14, 15, 16 da matéria de facto dada como provada).

F. A resolução do contrato importa na destruição de todos os seus efeitos, não mais podendo ser prestadas as obrigações inicialmente contratadas;

G. Apenas assistindo à parte credora o direito de reclamar da parte devedora as consequências legais para o incumprimento;

H. Que podem ser, nos termos dos artigos 808.º e ss do Código Civil, a estipulação de uma cláusula penal.

Por conseguinte,

I. A clausula sétima do contrato em causa nos autos configura uma verdadeira clausula penal que substitui o cumprimento da obrigação pelo direito a receber o preço do café correspondente.

J. Admitir-se a interpretação conferida pelos Réus seria desvirtuar o instituto jurídico da resolução e o sentido da clausula penal efetivamente estipulada.

Acresce que,

K. Os Réus sempre souberam que a interpretação da referida cláusula e o seu sentido seria, precisamente, o de substituir a compra do café pelo pagamento de determinado valor, tanto que na interpelação admonitória junta como Doc. N.º 4 da petição inicial foram expressamente alertados de que a não sanação da mora implica no pagamento da indemnização corresponde.

L. A cláusula penal – consagrada na clausula sétima - poderia, eventualmente, ser reduzida, se fosse entendida como desproporcional mas não poderia, como pretendem os Réus, ser interpretada como uma clausula que obriga ao fornecimento e aquisição de café, isto é, ao cumprimento coercivo das obrigações essenciais do contrato, ainda que já tenha sido válida e eficazmente resolvido.

M. Por conseguinte, deverá o recurso de revista ser julgado totalmente improcedente e, por via disso, manter-se o acórdão proferido em segunda instância.

Termos em que e nos melhores de direito, Requer-se a V/ Exas. seja o recurso de revista julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se, por conseguinte, e na íntegra, o acórdão recorrido”.

9. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A questão objeto desta apelação circunscreve-se à interpretação de uma cláusula contratual: trata-se da previsão de uma cláusula penal? Em caso de resposta afirmativa, a parte sancionada estará obrigada ao pagamento do respetivo valor, sem que a parte contrária esteja sujeita à realização de uma contraprestação – que seria a entrega aos RR. de uma determinada quantia de café. No caso negativo, haverá que revogar o acórdão recorrido e repristinar a sentença, que determinou a condenação da A. na prestação da entrega do café, representando a prestação dos RR., determinada na aludida cláusula, o pagamento do preço desse café.

2.1. As instâncias deram como provada a seguinte

Matéria de facto

1- A autora dedica-se à produção, comercialização e distribuição de café e seus sucedâneos, sendo titular da marca “Tenco”.

2- A ré “Associação Desportiva e Cultural das Arregadas” explorou o estabelecimento comercial denominado “Bar da Associação Desportiva e Cultural das Arregadas”, sito na Rua ..., na ....

3- Em 6 de Maio de 2015, a autora e a ré celebraram o acordo escrito junto com a petição inicial sob o n.º 1, denominado “acordo comercial”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, referente ao fornecimento de café e demais produtos comercializados pela autora.

4- Nos termos da cláusula 1ª do acordo aludido em 3), ficou estabelecido que a ré “obriga-se a adquirir, em regime de exclusividade, para consumo nos seus estabelecimentos, à Primeira Outorgante, a quantidade mínima de 990 (Novecentos e noventa) Kgs de café, fraccionados pelo período de 66 meses, durante a qual se obriga a publicitar a marca TENCO, a expensas da Segunda Outorgante, em quantidades mensais mínimas de 15 (Quinze) Kgs de café marca TENCO, Lote “Massimo”…”.

5– O café aludido em 4) destinava-se ao consumo no estabelecimento mencionado em 2).

6- Nos termos da cláusula 3ª do acordo aludido em 3), a autora e os réus convencionaram que, no pressuposto do cumprimento das obrigações no seu conjunto a que a ré se vinculou, a autora obrigou-se a conceder-lhe um desconto de Eur. 10,08 por cada kg de café que a ré se obrigou a adquirir, num total de Eur. 9.985,00.

7– Nos termos do acordo aludido em 3), a autora e os réus convencionaram que a quantia mencionada em 6) seria entregue em bens e equipamentos a serem utilizados no estabelecimento comercial explorado pela ré.

8- Na sequência da celebração do acordo aludido em 3), a autora entregou à ré 1 (um) balcão frigorífico, 1 (uma) máquina de café II grupos, 1 (um) depurador, 1 (um) moinho de café, 1 (uma) máquina de lavar chávenas, 10 (dez) mesas de interior redondas, 40 (quarenta) cadeiras de interior, 3 (três) mesas de interior retangulares, 8 (oito) cadeiras de interior, 2 (dois) toldos de braços extensivos (só tela) e 1 (um) luminoso de série.

9– Os bens e equipamentos aludidos em 8) tinham o valor comercial de Eur. 9.985,00.

10- Nos termos da cláusula 7ª n.º 1 do acordo aludido em 3), a autora e os réus convencionaram que: “Consequência da resolução do presente contrato, por motivo imputável, objectiva ou subjectivamente, ao Segundo Outorgante, considera-se perdido o benefício do prazo concedido para aquisição do café, tendo a Primeira Outorgante o direito a receber o valor do café em falta de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo”.

11- Nos termos da cláusula 5ª do acordo aludido em 3), a autora e os réus convencionaram que: “O presente contrato é celebrado pessoalmente com a Segunda e Terceiro Outorgante para todas as obrigações e direitos independentemente a quem sejam facturados ou vendidos os produtos, todas as faturas em débito serão da responsabilidade do Terceiro Outorgante, não se autorizando qualquer cessão contratual”.

12– Desde Janeiro de 2016, a ré deixou de adquirir café à autora.

13– No âmbito do acordo aludido em 3), a ré adquiriu à autora a quantidade de oitenta quilogramas de café.

14– A autora remeteu à ré, que não a recebeu por não a ter reclamado, a carta datada de 9 de Setembro de 2020, junta aos autos com a petição inicial sob o n.º 4, cujo teor se dá por reproduzido.

15– A carta aludida em 14) foi remetida para a morada indicada pela ré como sendo o seu domicílio convencionado.

16– A autora remeteu ao réu, que a recebeu, a carta datada de 9 de Setembro de 2020, junta aos autos com a petição inicial sob o n.º 5, cujo teor se dá por reproduzido.

17– Na data de interposição da acção o preço de cada quilograma de café do lote “Massimo” ascendia à quantia de Eur. 28,47, acrescido do respectivo IVA.

18– Em 2015, a ré propôs-se à exploração de um café, tendo contactado fornecedores adequados para o efeito, designadamente com a autora.

19– Nessas circunstâncias, a autora apresentou à ré os seus preços para o fornecimento de café, bem como a modalidade de fornecimento de café com um desconto no preço do café vendido.

20– Tendo sido na sequência dessas negociações que foi celebrado o acordo aludido em 3).

As instâncias enunciaram os seguintes

Factos não provados

21- Nos termos do acordo aludido em 3), a autora se tenha comprometido a fornecer um conjunto de pelo menos trinta chávenas de café, um conjunto de colheres de café e quarenta dispensadores de guardanapos, que nunca chegou a entregar à ré.

22- A autora se tenha comprometido a entregar bens e equipamentos aludidos em 8) no estado de novo.

23- Nessas circunstâncias, a autora tenha assegurado à ré que o material seria entregue imediatamente a seguir à assinatura do contrato, uma vez que o material ainda estava no fornecedor e que apenas seria encomendado, após a assinatura do contrato.

24- A autora não tenha entregue à ré o depurador aludido em 8).

25- Os bens e equipamentos aludidos em 8) fossem provenientes de uma penhora efectuada pela autora num outro seu cliente.

26- Os bens e equipamentos aludidos em 8) fossem muito usados e apresentassem vários sinais de mau estado de conservação.

27- Nos dias e semanas que se seguiram à sua entrega, o balcão frigorífico, a máquina do café e a máquina de lavar chávenas, tiveram de ser recolhidas por várias vezes, pelo menos 5 (cinco), para reparação.

28- Essa situação tenha levado a ré a, por várias vezes, manter o estabelecimento aberto, sem possibilidade de atender os clientes e, entre o mais, servir-lhes o café que a ré havia adquirido à autora.

29- Nessas circunstâncias, a ré tenha ficado impedida de laborar convenientemente durante vários períodos consecutivos, alguns dos quais perduraram ao longo de duas semanas (ininterruptamente).

30- O valor dos bens e equipamentos aludidos em 8) fosse inferior a Eur. 9.985,00.

31- Os bens e equipamentos aludidos em 8) não tivessem valor comercial, tal era o desgaste e mau de estado de apresentação e funcionamento.

32- Alguns dos equipamentos aludidos em 8) tivessem mais de 20 anos.

33- O acordo aludido em 3) não tenha sido sujeito a prévia negociação.

34- Aquando da celebração do acordo aludido em 3), a ré não tenha tido qualquer margem de negociação, no que quer que seja do referido contrato.

35- A determinação da duração do acordo aludido em 3) tenha sido imposta pela autora, sem prévia negociação com a ré.

36- O interesse e vontade da ré aquando da celebração do acordo aludido em 3) fosse o de adquirir café à autora, em regime de exclusividade, mas sem prazo definido e sem imposição de quantidades mensais.

37- A autora não tenha explicado ao réu as implicações alusivas à menção de domicílio convencionado.

38- No âmbito do acordo aludido em 3), a ré tenha encomendado produtos que a autora não forneceu.

39- Em 27 de Janeiro de 2016, a ré tenha remetido uma carta à autora, que esta não recebeu, nem levantou.

2.2. O Direito

Resulta dos factos provados que entre a A. e a R. se estabeleceu uma relação comercial duradoura, que não se esgotava em celebrações independentes e autónomas de negócios de compra e venda, mas se subordinava a um contrato-quadro, documentado nos autos, mediante o qual as partes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do Código Civil), estipularam antecipadamente os termos em que se processariam as sucessivas aquisições de produtos por parte da A. à R., as quais decorreriam em termos de exclusividade e com a fixação de limites mínimos de aquisição por parte da R., obrigando-se a A. a fornecer os produtos (café de uma determinada marca) com um determinado desconto.

Concomitantemente, a A. entregou à R. bens e equipamentos em valor correspondente ao desconto acordado.

Na cláusula 7.ª n.º 1 do acordo outorgado, ficou a constar o seguinte:

Consequência da resolução do presente contrato, por motivo imputável, objectiva ou subjectivamente, ao Segundo Outorgante, considera-se perdido o benefício do prazo concedido para aquisição do café, tendo a Primeira Outorgante o direito a receber o valor do café em falta de acordo com os seus extractos de consumos, ao PVP e IVA em vigor, e sem descontos, à data do efectivo pagamento do mesmo”.

Isto é, nessa regra contratual ficou consignada uma cláusula atinente ao regime de resolução do contrato.

Quanto a isso não existe controvérsia entre as instâncias, nem entre as partes.

As divergências surgem quanto ao sentido a atribuir à aludida cláusula.

Para a A., aí ficou consignada a indemnização devida à A. em caso de incumprimento definitivo do contrato por parte da R. e consequente resolução do mesmo. Para a A., essa indemnização não teria, como contrapartida, a obrigação de entrega de café à R.

Na contestação, os RR., embora admitissem que o aludido item contratual consignava uma cláusula penal, esta não isentaria a A. da entrega do café, pois aí se consignava, tão só, uma perda do benefício do prazo. Daí que os RR. tenham, para o caso de procedência da ação, deduzido, em reconvenção, o pedido de condenação da A. na entrega aos RR. da quantidade de 910 quilos de café.

A 1.ª instância, após arredar os obstáculos invocados pelos RR. para questionarem a validade do contrato e das respetivas cláusulas, tendo, nomeadamente, afastado a aplicabilidade do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, por se ter provado que o contrato havia sido objeto de negociação quanto aos seus aspetos fundamentais, considerou que a R. havia incumprido o contrato e que a A. havia validamente resolvido o contrato. Por isso, conforme fora peticionado, a sentença declarou o contrato validamente resolvido e condenou os RR. no pagamento à A. da quantia de € 31 866,47, montante esse que considerou ser o devido, nos termos da supramencionada cláusula 7.ª n.º 1 do contrato.

Nesta parte, a sentença transitou em julgado.

Porém, a 1.ª instância também julgou procedente o pedido reconvencional.

Transcreve-se a fundamentação do assim decidido:

“No âmbito da presente acção, o réu veio deduzir pedido reconvencional contra a autora, pedindo a condenação desta a entregar 910 quilogramas de café, da marca Tenco, lote Massimo.

Ora, conforme supra se referiu nos termos da cláusula 7ª do contrato em apreço, prevê-se que em consequência da resolução do contrato considera-se perdido o benefício do prazo concedido para aquisição do café, concedendo-se o direito à autora a receber o valor do café em falta e sem descontos.

Nessa medida, a cláusula em apreço não estipula uma verdadeira cláusula penal, mas apenas a perda do prazo concedido para aquisição do café, tornando imediatamente exigível o pagamento do preço global contratado.

No entanto, tal não exime a autora de cumprir a correspondente obrigação de entrega da mercadoria em apreço, sendo que essa ausência ou dispensa de cumprimento não só não está contratualmente prevista, como não traduz a consequência legalmente prevista para a perda do benefício do prazo.

Nessa medida, e sem necessidade de ulteriores considerações, procede igualmente o pedido reconvencional deduzido”.

Foi neste segmento que a sentença foi impugnada, tendo a Relação dado razão à recorrente/A..

A Relação, após realçar que nos autos não existe controvérsia acerca da cessação do contrato por resolução, concluiu que a exigência da entrega do café aos RR. por parte da A. era contraditória com a resolução do contrato.

Transcreve-se o exarado no acórdão:

“Portanto, estamos perante uma cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dito, uma vez que a sua estipulação substitui o cumprimento ou a indemnização, não acrescendo a nenhum deles.

Assim sendo, afigura-se-nos contrário ao regime da resolução do contrato e ao funcionamento e objectivo da cláusula penal exigir que a vendedora entregue à cliente o café que não foi por esta adquirido como se o contrato estivesse plenamente em vigor.

Como refere a Autora, uma interpretação da cláusula em termos divergentes ao aqui propugnado significava que, na prática, apesar do contrato ter sido validamente resolvido, a Autora continuasse obrigada a cumprir a sua prestação de fornecimento de café à Ré, apesar do incumprimento culposo.

Assiste, por isso, razão à Recorrente, devendo ser absolvida do pedido reconvencional”.

Vejamos.

O contrato poderá, nomeadamente, extinguir-se por resolução, fundada na lei ou em convenção (n.º 1 do art.º 432.º). A lei equipara, como regra que conhece exceções, a resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio (art.º 433.º), imputando-lhe efeito retroativo, a menos que tal contrarie a vontade das partes ou a finalidade da resolução (n.º 1 do art.º 434.º). O efeito retroativo é expressamente afastado nos contratos de execução continuada ou periódica, quanto às prestações já efetuadas (n.º 2 do art.º 434.º), “excepto se entre estas e a causa da resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas” (n.º 2 do art.º 434.º, in fine).

A resolução apresenta-se, em termos gerais, como remédio para situações de desequilíbrio contratual emergentes do incumprimento do lado de um dos contraentes: estando o contraente não inadimplente privado da prestação a que tem direito, desembaraça-se desse negócio ficando isento da obrigação de efetuar a contraprestação a que se obrigara e podendo, se for o caso, exigir a restituição do que prestara (n.º 2 do art.º 801.º, n.º 1 do art.º 802.º).

Paralelamente, o credor mantém o direito ao ressarcimento dos danos correspondentes (n.º 2 do art.º 801.º, n.º 1 do art.º 802.º).

Sendo certo que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor” (art.º 798.º).

No caso dos autos, está assente que a R. associação incumpriu a obrigação de adquirir, no mínimo, 990 quilogramas de café à A., durante o período contratualmente previsto, pelo que a A. resolveu o contrato.

Ou seja, é incontroverso, nos autos, que a resolução do contrato foi justificada e, até, que tal tem consequências para a R., que algo deverá prestar à A..

Nos termos das regras gerais contidas no Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (art.º 562.º), aí se compreendendo “não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” (art.º 564.º n.º 1), sendo a indemnização “fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” (n.º 1 do art.º 566.º), tendo “como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos” (n.º 2 do art.º 566.º), devendo o tribunal “julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”, “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos” (n.º 3 do art.º 566.º).

Como é sabido, e tal é abordado pelas instâncias, a doutrina e a jurisprudência dominantes entendem que, no caso de incumprimento do contrato, se o contraente fiel optar pela extinção do negócio, livrando-se das obrigações inerentes, não poderá reclamar o ressarcimento correspondente à perda dos proveitos que auferiria se o contrato fosse executado, como se afinal este subsistisse. Para esta posição doutrinal e jurisprudencial, a indemnização não poderá, assim, espelhar o interesse contratual positivo, ou seja, conceder ao credor uma prestação que o coloque numa situação patrimonial idêntica àquela em que se encontraria se o contrato tivesse sido cumprido. Nestes casos, defende-se, a indemnização deverá reportar-se ao interesse contratual negativo, isto é, garantirá ao credor a conformação da situação patrimonial em que se encontraria se não tivesse celebrado aquele contrato. Aqui, aliás, poderão incluir-se não só danos emergentes (v.g., despesas suportadas em virtude da celebração do contrato) como lucros cessantes (v.g., proveitos que decorreriam de contrato alternativo que teria sido outorgado se não fora o negócio ora resolvido). Porém, e disso também dão nota as instâncias, admite-se, aliás na sequência das críticas provenientes dos defensores das chamadas posições minoritárias (podendo dizer-se que atualmente avulta o que a este respeito escreveu Mota Pinto no seu estudo “Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo”, Coimbra Editora, 2008), que “o efectivo prejuízo causado pelo incumprimento definitivo deve ser reparado, posto que o postule a tutela dos interesses de reintegração em jogo no caso, à luz da ponderação do princípio da boa fé e na medida do adequado à função e ao equilíbrio nos efeitos da liquidação resolutiva das prestações contratuais” (acórdão do STJ, de 12.03.2013, processo 1097/09.3TBVCT.G1.S1; no mesmo sentido, v.g., os acórdãos do STJ de 04.6.2015, processo 4308/10.9TJVNF.G1.S1; 15.12.2011, processo 1807/08.6TVLSB.L1.S1; 21.10.2010, processo 1285/07.7TJVNF.P1.S1; 12.02.2009, processo 08B4052, todos consultáveis na internet, dgsi.pt).

In casu, a pretensão indemnizatória assentou, como se ajuizou no acórdão recorrido, na consagração contratual de uma cláusula penal.

O Código Civil regula a cláusula penal no âmbito da fixação contratual dos direitos do credor no caso de incumprimento da obrigação.

Após no art.º 809.º se estipular a nulidade da renúncia antecipada, pelo credor, a qualquer dos direitos que lhe são facultados nas anteriores divisões do Código, salvo o disposto no n.º 2 do art.º 800.º, o art.º 810.º consigna, sob a epígrafe “Cláusula penal”, no n.º 1, que “[a]s partes podem, porém, fixar por acordo o montante da indemnização exigível: é o que se chama cláusula penal”.

Com as alterações sucessivamente introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 200-C/80, de 24.6 e pelo Dec.-Lei n.º 262/83, de 16.6, o art.º 811.º, sob a epígrafe “Funcionamento da cláusula penal”, estipula o seguinte:

1. O credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento coercivo da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação; é nula qualquer estipulação em contrário.

2. O estabelecimento da cláusula penal obsta a que o credor exija indemnização pelo dano excedente, salvo se outra for a convenção das partes.

3. O credor não pode em caso algum exigir uma indemnização que exceda o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal”.

Nestes artigos o legislador teve em vista a cláusula penal indemnizatória, isto é, um meio utilizado pelas partes para, antecipadamente, fixarem o montante da indemnização devida pela parte devedora no caso de incumprimento da obrigação, seja incumprimento total e definitivo, cumprimento tardio (mora) ou deficiente (cfr. artigos 798.º, 799.º n. 1, 804.º n.º 1 do CC). Por esse meio as partes são poupadas aos inconvenientes decorrentes da necessidade de fazerem o levantamento e a demonstração dos danos provocados pelo incumprimento e de dirimirem a controvérsia daí adveniente (cfr., v.g., Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, revista e actualizada, 1997, Coimbra Editora, pp. 436 a 440). Como é evidente e resulta expressamente da lei (art.º 811.º n.º 1), a exigência da prestação da cláusula penal (indemnizatória) não é cumulável com a execução específica da obrigação a que ela se reporta (obrigação principal), a menos que se trate de cláusula moratória.

Além da cláusula penal indemnizatória, expressamente regulada nos artigos 810.º e 811.º do CC, a doutrina e a jurisprudência reconduzem ao conceito de cláusula penal a designada cláusula penal em sentido estrito e a cláusula penal estritamente compulsória – estas simplesmente assentes no livre exercício da autonomia da vontade das partes (art.º 405.º do CC).

A cláusula penal em sentido estrito estrutura-se numa obrigação de faculdade alternativa do credor. No caso de incumprimento da obrigação principal o credor pode exigir a sua execução e, se não lograr obtê-la, reclamar a indemnização pelos danos emergentes desse incumprimento. Em alternativa à execução forçada da obrigação ou à indemnização consequente ao incumprimento, o credor poderá exigir a prestação objeto da cláusula penal (a “pena”), a qual se considera que substitui a prestação objeto da obrigação principal, satisfazendo-se dessa forma o interesse do credor. O valor da cláusula desprende-se do montante dos eventuais prejuízos decorrentes do incumprimento da obrigação principal. Assim, esta cláusula visa compelir o devedor ao cumprimento e, ao mesmo tempo, no caso de incumprimento, satisfaz o interesse do credor, não havendo, por isso, lugar a indemnização. Manifestamente, não lhe é aplicável o previsto no n.º 3 do art.º 811.º do CC. O efeito compulsório da cláusula será atingido por via do elevado montante que poderá atingir, face ao valor da obrigação principal e dos eventuais prejuízos emergentes do incumprimento da obrigação (cfr. António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 3.ª reimpressão da obra publicada em 1990, pp. 104, 609 a 640; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume II, 2017, 11.ª edição, Almedina, p. 286; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, 3.ª edição totalmente revista e aumentada, 2017, Almedina, pp. 477, 482, 483, 492; na jurisprudência, v.g., STJ, 27.01.2015, processo 3938/12.9TBPRD.P1.S1; STJ, 12.9.2019, processo 9018/16.0T8LSB.L1.S2, todos consultáveis, assim como os adiante citados, em www.dgsi.pt).

Finalmente, a cláusula penal exclusivamente compulsória prevê uma pena que apenas tem por escopo compelir a parte ao cumprimento da obrigação. A pena será um plus, algo que acresce à execução coativa ou à indemnização pelo não cumprimento. Assim, não está sujeita à proibição de cúmulo prevista no art.º 811.º n.º 1 nem lhe é aplicável o n.º 3 do mesmo artigo (cfr. António Pinto Monteiro, ob. cit., pp. 489, 657; Inocêncio Galvão Telles, ob. cit., p. 447; Almeida Costa, ob. cit., pp. 794, 795; Menezes Leitão, ob. cit., pp. 285, 286; Menezes Cordeiro, ob. cit., pp. 477, 481, 485, 492; na jurisprudência, v.g., STJ, 27.9.2011, processo 81/1998, L1.S1; citado acórdão do STJ, de 27.01.2015; STJ, 03.10.2019, processo 2020/16.4T8GMR.G1.S2).

A determinação da espécie de cláusula penal acordada constitui um problema de interpretação negocial (Pinto Monteiro, ob. cit., p. 641).

Não se provando qual era a vontade real das partes (n.º 2 do art.º 236.º do CC), haverá que apurar o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, poderia deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não pudesse razoavelmente contar com ele (n.º 1 do art.º 236.º).

A lei consagrou, pois, a teoria da impressão ou do horizonte do destinatário, de cariz objetivista, em que a autonomia da vontade se articula com a tutela da confiança (cfr., v.g., António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, 5.ª edição atualizada, 2021, Almedina, pp. 717 e 718, 746).

Estando em causa um contrato cujo teor tenha sido individualmente negociado (isto é, não se esteja perante um contrato de adesão ou com cláusulas contratuais gerais) e não se destrinçando a origem autoral de cada uma das respetivas cláusulas, ambas as partes são declarante e declaratário ou destinatário da(s) cláusula(s) interpretanda(s) (cfr. António Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 719).

A fixação do sentido da cláusula negocial far-se-á tendo em consideração uma multiplicidade de elementos que possam ser considerados relevantes, cujo peso relativo dependerá de cada caso concreto.

Além do texto da cláusula, levar-se-á em conta o respetivo contexto, o teor do processo negocial, os fins prosseguidos pelas partes, o tipo de negócio, a forma como o negócio foi executado (cfr., v.g., Evaristo Mendes e Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, p. 538).

Especificamente quanto à determinação do tipo de cláusula penal acordada, haverá que levar em consideração, além do teor das expressões utilizadas pelas partes, o conteúdo da cláusula, designadamente se as partes precisaram ser a soma devida mesmo na ausência de qualquer dano, o tipo de obrigação que a pena sanciona, a relação entre o valor da pena e o dos danos previsíveis (cfr. António Pinto Monteiro, ob. cit., p. 640).

No caso dos autos, tanto a sentença como os RR. deram particular ênfase à expressão, contida na cláusula sub judice, de que “considera-se perdido o benefício do prazo concedido para aquisição do café”.

Para a sentença, a dispensa de cumprimento por parte da A. (entrega do café) “não traduz a consequência legalmente prevista para a perda do benefício do prazo”.

Está aqui em causa a referência ao disposto nos artigos 780.º e 781.º do Código Civil.

Aí se prevê que, estando estabelecido o prazo em benefício do devedor, “pode o credor, não obstante, exigir o cumprimento imediato da obrigação, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada” (n.º 1 do art.º 780.º). Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, “a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas” (art.º 781.º).

Estas normas têm uma função garantística, no sentido de garantirem o cumprimento da obrigação, isto é, a realização da prestação devida ao credor. Tais normas pressupõem a manutenção do contrato, o cumprimento do programa contratual, antecipando-se o vencimento das obrigações, que são realizadas antecipadamente, em caso de superveniência de circunstâncias que a lei presume fazerem perigar a satisfação futura da obrigação.

Assim, são normas inadequadas à situação que ora nos ocupa, de resolução do contrato, isto é, de extinção da fonte da obrigação, cessando a obrigação de cumprimento do contrato, nascendo, em seu lugar, obrigações de substituição ou ressarcimento do credor, que ficará, por sua vez, livre da sua contraprestação.

A imprecisão da formulação utilizada pelas partes na redação da cláusula 7.ª n.º 1 do contrato não pode fazer eclipsar o conteúdo total da cláusula nem o sentido que dela resulta na função que desempenha na economia do contrato. Trata-se de uma cláusula penal, a aplicar em caso de resolução do contrato decorrente do seu incumprimento pela R. associação. Qualquer declaratário, na posição dos RR., compreenderia que da resolução do contrato emergiria a obrigação, para si, de pagamento do valor calculado nos termos da cláusula 7.ª n.º 1 do contrato, ficando a A., obviamente, dispensada da entrega do café, extinto que ficou o contrato.

Considera-se, pois, que a razão está com o acórdão recorrido, improcedendo a revista.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se o acórdão recorrido.

As custas da revista, na vertente das custas de parte, são a cargo dos recorrentes, que nela decaíram, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o R. AA (artigos 527.º n.º s 1 e 2, 533.º, do CPC).

Lx, 13.5.2025

Jorge Leal (Relator)

Henrique Antunes

Maria João Vaz Tomé