CONFLITO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA
AUDIÇÃO
MAIOR ACOMPANHADO
DEPRECADA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
Sumário

I. A audição pessoal do beneficiário em processo de acompanhamento de maior (arts. 897.º, n.º 2, e 898.º, ambos do CPC) é obrigatória, visando averiguar a sua situação e aferir de quais as medidas de acompanhamento adequadas.
II. Nesse sentido, o n.º 2 do artigo 897.º do CPC estabelece que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontra.
III. Assim, a audição decorrerá perante o juiz do processo, nomeadamente quando o beneficiário reside na área da respetiva circunscrição judicial.
IV. Quando o beneficiário não se pode deslocar ao tribunal e está num sítio fora da área do juízo local onde corre termos o processo (por exemplo, por ter sido internado em hospital ou ingressado em lar residencial, na pendência da ação), sem previsão de data para o regresso ao local onde habitualmente residia, o juiz deve equacionar, nomeadamente, que a audição se concretize por intermédio de carta precatória, dirigida ao juiz do juízo local da área onde está o beneficiário (cf. os n.ºs. 1 e 2 do artigo 173.º do C.P.C.).
V. Neste circunstancialismo, justifica-se que a audição pessoal do beneficiário ocorra mediante carta precatória.
VI. Encontrando-se o beneficiário com atual residência em área de circunscrição do Juízo Local Cível do Funchal e dispondo este de competência material para o ato, não pode recusar-se o cumprimento da carta precatória, com fundamento na incompetência para o ato, nomeadamente ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 179.º do CPC.

Texto Integral

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I. O Juízo Local Cível de Santa Cruz suscita – por despacho de 12-12-2024 - a resolução do conflito negativo de competência entre este Juízo e o Juízo Local Cível do Funchal, por ambos declinarem competência para a audição de beneficiário em processo de acompanhamento de maior.
Por promoção de 17-12-2024, o Ministério Público pronunciou-se, nos termos do disposto no artigo 112.º, n.º 2, do CPC, entendendo, nomeadamente, que “encontrando-se o beneficiário institucionalizado na área de circunscrição do Juízo Local Cível do Funchal e dispondo este de competência material para o ato, não pode recusar o cumprimento da carta precatória com fundamento no facto de essa audição dever ser assegurada pelo juiz deprecante que irá proferir a decisão e onde corre termos o processo”, concluindo que, “o Juízo Local Cível do Funchal é competente e deve cumprir a deprecada expedida para audição do requerido”.
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II. Mostra-se apurado, com pertinência para a resolução da questão, o seguinte:
1) Por petição inicial entrada em juízo (Juízo Local Cível de Santa Cruz) em 24-06-2024, o Ministério Público instaurou ação especial para acompanhamento de maior, em benefício de “A”, nascido em (…)-1953 e residente (…) Machico, encontrando-se atualmente internado na Casa de Saúde (…).
2) Em 03-07-2024 foi prolatado despacho de citação do requerido.
3) Foi tentada, sem êxito, a citação do requerido, constando da respetiva certidão, nomeadamente, escrito o seguinte:
“Certifico que não levei a efeito a citação de Beneficiário: “A”, (…) domicílio: Casa de Saúde (…), Funchal, por me ter deslocado à morada indicada e ter constatado que, o requerido não se encontra capacitado psiquicamente para receber a nota de citação, dado que, o mesmo não consegue comunicar de forma coerente e desenvolvida, demonstrando não entender o teor das questões formuladas.
Não é capaz de se localizar no espaço e no tempo, tendo perdido totalmente a mínima noção de orientação.
MAIS CERTIFICO que o requerido manifesta estar dependente de terceiros para suprir as necessidades básicas diárias a nível de higiene pessoal, assim como, a nível de alimentação e vestuário, revelando ainda necessitar de terceiros, para reger o seu património.
CERTIFICO AINDA que o requerido não se encontra em condições para se deslocar ao Tribunal quando notificado (…)”.
4) Na sequência, foi efetuada a citação do requerido, na pessoa de defensor oficioso.
5) Por despacho de 10-09-2024 foi deprecada a audição direta e pessoal do requerido ao Juízo Local Cível do Funchal.
6) Em 19-09-2024 pelo Juízo Local Cível do Funchal – Juiz “X” foi proferido o seguinte despacho:
“Veio o Juízo Local de Santa Cruz solicitar “Depreque a audição direta e pessoal do requerido ao Juízo Local Cível do Funchal.” Nos termos do art.º 172º do C. Processo Civil, 1 - A prática de atos processuais que exijam intervenção dos serviços judiciários pode ser solicitada a outros tribunais ou autoridades por carta precatória ou rogatória, empregando-se a carta precatória quando a realização do ato seja solicitada a um tribunal ou a um cônsul português e a carta rogatória quando o seja a autoridade estrangeira.
Nos termos do art.º 179º do C. processo Civil, 1 - O tribunal deprecado só pode deixar de cumprir a carta quando se verifique algum dos casos seguintes: a) Se não tiver competência para o ato requisitado, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 173.º; b) Se a requisição for para ato que a lei proíba absolutamente. 2 - Quando tenha dúvidas sobre a autenticidade da carta, o tribunal pede ao juiz deprecante as informações de que careça, suspendendo o cumprimento até as obter.
Ora, a audição pessoal do Requerido em processo de maior acompanhado é um acto obrigatório e típico desta forma de processo, sendo ao Juiz que proceder à audição que caberá, à partida, decidir a final.
Assim, a audição do Requerido deve ter lugar no Tribunal em que a causa corre os seus termos, a realizar pelo Juiz que proferirá decisão.
Pelo que, não cabe a este Juízo Local Cível do Funchal a competência para o acto deprecado, cujo cumprimento se recusa.
Devolva-se”.
7) Em 04-11-2024, o Juízo Local Cível de Santa Cruz proferiu o seguinte despacho:
“(…) O despacho transitou em julgado e foi devolvida a carta precatória.
Dispõe o art.º 179.º do Código de Processo Civil que o tribunal deprecado só pode deixar de cumprir a carta quando se verifique algum dos casos seguintes:
“a) Se não tiver competência para o ato requisitado (…);
b) Se a requisição for para a ato que a lei proíba absolutamente”.
A Mm.ª Colega invocou a incompetência para o ato, por, no seu entender, ele dever ser feito pelo juiz que proferir a decisão.
Não é esse o entendimento deste tribunal.
O art.º 898.º, n.º 1, do CPC, determina que “a audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
A letra da lei parece não deixar dúvidas que a audição do beneficiário é obrigatoriamente feita por contacto do juiz com o beneficiário.
E não necessariamente o juiz do processo, mas o juiz que for competente para o ato.
Foi nesse sentido que decidiu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em decisão sumária proferida no processo n.º 39/21.2T8VPC.S1, do Exm.º Conselheiro OLINDO GERALDES, datada de 19-05-2021 e disponível no site da DGSI, em cujo sumário pode ler-se:
“I - O tribunal deprecado de competência genérica é competente, para a audição pessoal do beneficiário em processo de acompanhamento de maior, residente em instituição situada na respetiva circunscrição.
II - Por isso, não pode recusar o cumprimento da carta precatória ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 179.º do Código de Processo Civil”.
Nessa decisão faz-se referência aos conflitos negativos de competência decididos em 9 de março de 2020 (2731/19.2T8GMR.S1) e em 9 de dezembro de 2020 (401/20.8T8CLD.S1), em igual sentido.
No aprofundado estudo da Mm.ª Colega Maria Inês Costa, publicado na revista Julgar online, de julho de 2020, onde recenseia jurisprudência e doutrina favorável à sua posição, a mesma defende que nas situações de mudança de domicílio do beneficiário a solução intermédia a adotar é a de deprecar a diligência.
Por tudo o exposto julgo este Juízo Local Cível de Santa Cruz incompetente para a audição do beneficiário fora da sua área de jurisdição, onde não se abrange o concelho do Funchal.
Notifique.
(…) Transitado, conclua”.
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III. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
A questão que se coloca é a de saber se é legítima a recusa de cumprimento da deprecada, com influência na determinação do juiz que deverá proceder à audição do beneficiário em processo de acompanhamento de maior, se o Juiz onde pende o processo ou o Juiz da circunscrição onde o beneficiário se encontra.
Em bom rigor não estamos perante um conflito de competência.
De facto, a recusa de cumprimento de uma deprecada não configura um “conflito de competência”, mas sim, uma situação de “impasse processual”.
Não obstante, a situação em apreço deverá ser resolvida, nos mesmos termos, segundo as regras aplicáveis aos conflitos de competência (cfr. neste sentido, relativamente à recusa de cumprimento de uma deprecada para inquirição de uma testemunha, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-11-2004, Pº 0415675, rel. ÂNGELO MORAIS).
É que, “estando criada uma situação de impasse processual não inteiramente recondutível à situação de típico conflito negativo de competência, impõe-se ao juiz ultrapassá-la, ainda que, se necessário, com recurso às disposições que analogamente prevêem a resolução do conflito negativo de competência, quanto mais não fosse, por obrigação funcional, que sobre o tribunal impende, de «providenciar pelo andamento regular do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando o que for meramente impertinente ou dilatório»” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2003, Pº 03P2730, rel. PEREIRA MADEIRA).
Efetivamente, de acordo com o disposto no artigo 114.º do CPC e para além dos casos contemplados nas respetivas alíneas desses preceito, “o disposto nos artigos 111.º a 113.º é aplicável a quaisquer outros conflitos que devam ser resolvidos pelas Relações (…)”, pelo que, na falta de específico regime legal há que resolver a divergência, por forma a ultrapassar o impasse gerado, com apelo às regras que disciplinam os conflitos de competência.
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IV. Os presentes autos constituem, como se viu, autos de processo especial de maior acompanhado, processo regulado nos artigos 891.º e ss. do CPC, na sequência do regime substantivo estabelecido nos artigos 138.º e ss. do CC, de harmonia com a redação conferida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 140.º do CC, este processo, relativo a um beneficiário, “visa assegurar o seu bem-estar, a sua representação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”.
Assim, nos termos do disposto no artigo 138.º do CC, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no CC.
De acordo com o disposto no artigo 139.º do CC, o acompanhamento é decidido pelo tribunal, depois de ter lugar a audição do beneficiário e ponderadas as provas, sendo que, em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento, provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.
O processo especial de acompanhamento de maiores encontra-se regulado nos artigos 891.º a 904.º do CPC.
Nos termos do artigo 891.º, n.º 1, do CPC, este processo “tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes”.
Após a apresentação da petição (art.º 892º do CPC) e o ato da citação (arts. 219.º e 895.º do CPC) e ultrapassada a fase dos articulados, segue-se a fase de instrução do processo propriamente dita (arts. 897.º a 899.º do CPC) em que o juiz analisa fundamentalmente os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos, sendo que, em qualquer caso, deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário (cfr. Miguel Teixeira de Sousa; “O regime do acompanhamento de maiores: Alguns aspectos processuais”, in Colóquio O Novo Regime do Maior Acompanhado; Coord. António Pinto Monteiro; FDUC, 2020, em linha no endereço: https://www.uc.pt/site/assets/files/1050392/ebook_doi_livro_ma.pdf, p. 57 e ss).
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12-2019 (Pº 7779/18.1T8CBR.C1, rel. ISAÍAS PÁDUA): “A Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os tradicionais institutos da interdição e da inabilitação.
Essa Lei veio introduzir uma mudança de paradigma e uma nova filosofia no estatuto das pessoas portadoras de incapacidade, o qual passou a centrar-se exclusivamente na defesa dos interesses das mesmas, quer ao nível pessoal, quer ao nível patrimonial, reduzindo a intervenção ao mínimo possível, isto é, ao necessário e suficiente de molde a garantir, sempre que possível, a autodeterminação e a capacidade da pessoa maior incapacitada.
Este novo paradigma trouxe enormes modificações na ordem jurídica, quer em termos substantivos, quer em termos processuais (…)”.
Entre os atos fundamentais a praticar no processo conta-se o de audição do beneficiário.
Ou seja: “A audição do beneficiário é obrigatória (…) e não obedece a qualquer forma pré-estabelecida, cabendo ao juiz adotar aquela que melhor se adeque às circunstâncias, sem exclusão sequer de um confronto singular com o mesmo, no que se divisa um intuito de criar um ambiente de confiança e isento de pressões. Se acaso tiver sido produzida prova pericial, a audição do beneficiário, ou parte dela, correrá perante o perito ou peritos designados, que, tal como os representantes do beneficiário, poderão sugerir a formulação de perguntas destinadas a avaliar a situação em que se encontra (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pieres de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, p. 338).
Efetivamente, “(…) o n.º 2 do artigo 897.º do CPC determina que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre, de acordo com a regra fixada no artigo 143.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
O artigo 898.º do CPC, com a epígrafe “audição pessoal”, estabelece, no n.º 1, que a audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.
O n.º 2 do artigo 898.º, por sua vez, regula a própria audição, devendo as questões ser colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas. Por fim, nos termos do n.º 3 do artigo 898.º, o juiz pode determinar que parte (e não a totalidade) da audição decorra apenas na presença do beneficiário.
A audição pessoal e direta do beneficiário, na concretização dos princípios constantes do artigo 3.º da Convenção, constitui o respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazer as suas próprias escolhas, e independência da pessoa com deficiência [alínea a)], bem como a sua participação e inclusão plena e efetiva na sociedade [alínea c)].
Neste contexto, audição pessoal e direta do beneficiário não deve apenas ocorrer relativamente à tomada de decisão da medida ou medidas de acompanhamento a decretar pelo tribunal” (assim, Margarida Paz, “O Ministério Público e o novo regime do maior acompanhado”, in O novo regime jurídico do maior acompanhado [e-book, consultado em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/eb_Regime_Maior_Acompanhado.pdf], CEJ, Lisboa, Fevereiro de 2019, p. 131).
Reunidos todos os elementos necessários, o juiz proferirá a decisão, designando o acompanhante (cf. art.º 143.º do CC), definindo as medidas de acompanhamento (cf. art.º 145.º do CC), e, quando possível, “fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes” (cf. art.º 900.º, n.º1, do CPC). A sentença de acompanhamento importa referir, está sujeita a registo obrigatório, não podendo ser invocada contra terceiro de boa-fé enquanto aquele não se mostre efetuado (cf. arts. 1920.º-B e 1920.º-C, ex vi do art.º 153.º, n.º2, do CC).
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V. A audição pessoal do beneficiário em processo de acompanhamento de maior (arts. 897.º, n.º 2, e 898.º, ambos do CPC) é obrigatória, visando averiguar a sua situação e aferir de quais as medidas de acompanhamento adequadas.
Nesse sentido, o n.º 2 do artigo 897.º do CPC estabelece que o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontra.
Assim, a audição decorrerá perante o juiz do processo, nomeadamente quando o beneficiário reside na área da respetiva circunscrição judicial.
Todavia, o beneficiário poderá mudar de circunscrição territorial, podendo justificar-se a realização do ato processual através de carta precatória, em particular quando há impossibilidade ou grande dificuldade do ato ser praticado no juízo onde pende o processo.
Assim, quando o beneficiário não se pode deslocar ao tribunal e está num sítio fora da área do juízo local onde corre termos o processo (por exemplo, por ter sido internado em hospital ou ingressado em lar residencial, na pendência da ação), sem previsão de data para o regresso ao local onde habitualmente residia, o juiz deve equacionar, nomeadamente, que a audição se concretize por intermédio de carta precatória, dirigida ao juiz do juízo local da área onde está o beneficiário (cf. os n.ºs. 1 e 2 do artigo 173.º do C.P.C.) (abrindo essa possibilidade, vd., na doutrina, por exemplo, Cláudia David Alves; “O Acompanhamento das Pessoas com Deficiência – Questões Práticas do Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, in Direitos das Pessoas com Deficiência – 2019, Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2019, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=eU9GO-8VlDE=&portalid=30, p. 25 e ss.; Ana Luísa Santos Pinto; “O regime processual do acompanhamento de maior”, in Julgar n.º 41, 2020, p. 157; Maria Inês Costa; “A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, Julho de 2020, p. 23 e ss.; e Francisca Santos Coutinho e Valter Pinto Ferreira; “Audição do beneficiário: entre a dificuldade real e a obrigatoriedade legal”, in Julgar Online, maio de 2021, p. 16 e ss.).
Neste circunstancialismo, justifica-se que a audição pessoal do beneficiário ocorra mediante carta precatória, “sendo certo que o ato pode ser documentado, para oportuna ponderação pelo juiz deprecante, a quem compete proferir a sentença” (neste sentido, vd. os conflitos de competência decididos pelo Vice-Presidente do STJ – decisões: de 09-03-2020, no processo n.º 2731/19.2T8GMR.S1; de 09-12-2020, no processo n.º 401/20.8T8CLD.S1; de 07-05-2021, no processo n.º 401/20.8T8CLD.S2; e de 19-05-2021, no processo n.º 39/21.2T8VPC.S1, todas relatadas por OLINDO GERALDES).
Neste contexto, questiona-se se é legitima ou admissível a recusa de cumprimento da carta precatória expedida?
Dispõe o artigo 179.º do CPC que:
“1 - O tribunal deprecado só pode deixar de cumprir a carta quando se verifique algum dos casos seguintes:
a) Se não tiver competência para o ato requisitado, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 173.º;
b) Se a requisição for para ato que a lei proíba absolutamente.
2 - Quando tenha dúvidas sobre a autenticidade da carta, o tribunal pede ao juiz deprecante as informações de que careça, suspendendo o cumprimento até as obter”.
Ora, encontrando-se o beneficiário com atual residência em área de circunscrição do Juízo Local Cível do Funchal e dispondo este de competência material para o ato, não pode recusar-se o cumprimento da carta precatória, com fundamento na incompetência para o ato, nomeadamente ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do art.º 179.º do CPC (cfr., neste sentido, a decisão do Vice-Presidente do STJ de 07-05-2021, Pº 401/20.8T8CLD.S2, rel. OLINDO GERALDES; cfr., no mesmo sentido, Francisca Santos Coutinho e Valter Pinto Ferreira; “Audição do beneficiário: entre a dificuldade real e a obrigatoriedade legal”, in Julgar Online, maio de 2021, p. 20).
Neste sentido, não cabe ao juiz do tribunal deprecado decidir da pertinência da diligência deprecada.
Com efeito, “só pode recusar-se o cumprimento de uma carta precatória, se o tribunal deprecado não tiver competência para o acto requisitado, ou se a requisição for para o acto que a lei proíba absolutamente (…), sendo abusiva e ilegal a apreciação que o Juiz deprecado faz, da prescindibilidade da diligência deprecada” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-11-2004, Pº 0415675, rel. ÂNGELO MORAIS).
De facto, “(…) não se tratando de acto em absoluto proibido, o tribunal deprecado não pode sobrepor o seu veredicto ao do tribunal deprecante, e, assim, negar o cumprimento à carta com fundamento num facto ou razão de direito que o tribunal deprecante arredou, sendo certo que a este caberá a responsabilidade perante quem de direito pela legalidade/oportunidade/conveniência da sua opção. Assim, por louváveis e compreensíveis que tivessem sido os motivos invocados pela Juiz do tribunal deprecado, não lhe era lícito, não obstante, recusar a deprecada, sobrepondo o seu ponto de vista ao da Juiz deprecante, quanto à legalidade/oportunidade da diligência pedida (…)” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2003, Pº 03P2730, rel. PEREIRA MADEIRA).
Ora, “uma vez que não existe fundamento legal para recusar o cumprimento de tal carta – nas situações de audição de beneficiário deprecada em razão de mudança de domicílio do mesmo para outra Comarca-, parece-nos que nada resta ao Tribunal deprecado que não o cumprimento da respectiva carta precatória procedendo assim à audição pessoal e directa do beneficiário em estrito cumprimento da lei, mormente, do disposto nos artigos 172.º, 173.º e 179.º do Código de Processo Civil” (assim, Maria Inês Costa; “A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas”, in Julgar Online, Julho de 2020, pp. 23-24).
Nesta conformidade, o “conflito negativo de competência” deverá resolver-se no sentido de que cabe ao Juízo Local Cível do Funchal – Juiz “X”, a competência para a audição pessoal do beneficiário, como deprecado.
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VI. Pelo exposto, decido este conflito, declarando que cabe ao Juízo Local Cível do Funchal – Juiz “X”, a competência para a audição pessoal do beneficiário.
Sem custas.
Notifique-se (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC).
Baixem os autos.

Lisboa, 19-12-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).