Relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do Código do Trabalho, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).
MBM/PLC/DM
I.
2. Ao contrário do decidido na 1ª Instância, onde a ação foi julgada procedente, o Tribunal da Relação de Coimbra, concedendo provimento ao recurso de apelação interposto pela R., absolveu-a dos pedidos formulados pelos autores, considerando que às relações jurídicas em causa não é aplicável a (nova) presunção de laboralidade consagrada no art. 12.º-A, do Código do Trabalho (CT), pelo facto de se terem iniciado antes da entrada em vigor desta disposição legal.
3. Os autores interpuseram recurso de revista, tendo a recorrida contra-alegado.
4. Em face das conclusões das alegações da recorrente, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a questão a decidir2 é a elencada em supra nº 2, importando ainda aferir, em caso de procedência do recurso, das correspondentes implicações processuais.
Decidindo.
Esta disposição legal foi aditada ao Código do Trabalho por imposição da Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2024, cuja transposição antecipou, a qual, exprimindo o empenhamento das instituições da União Europeia no combate ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas (em linha com a Recomendação nº 198 (2006) da OIT), e visando, precisamente, a melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais3, assenta, entre outros, nos seguintes considerandos/pressupostos que importa destacar:
– O artigo 31.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê que todos os trabalhadores têm direito a condições de trabalho justas e equitativas que respeitem a sua saúde, segurança e dignidade.
– Os trabalhadores têm direito a um tratamento justo e equitativo em matéria de condições de trabalho.
– A digitalização está a mudar o mundo do trabalho, a melhorar a produtividade e a flexibilidade, mas comporta também alguns riscos para o emprego e as condições de trabalho.
– As tecnologias baseadas em algoritmos, incluindo os sistemas automatizados de monitorização e os sistemas automatizados de tomada de decisões, permitiram o aparecimento e o crescimento de plataformas de trabalho digitais. Se forem devidamente regulamentadas e aplicadas, as novas formas de interação digital e as novas tecnologias no mundo do trabalho podem criar oportunidades de acesso a empregos dignos e de qualidade para pessoas que tradicionalmente não teriam tal acesso. No entanto, se não forem regulamentadas, podem também resultar numa vigilância baseada em meios tecnológicos, aumentar os desequilíbrios de poder e a opacidade na tomada de decisões, bem como pôr em risco condições de trabalho dignas, a saúde e a segurança no trabalho, a igualdade de tratamento e o direito à privacidade.
– O trabalho em plataformas digitais pode resultar numa imprevisibilidade dos horários de trabalho e pode dificultar a distinção entre “relação de trabalho” e “atividade independente”, bem como a separação de responsabilidades dos empregadores e trabalhadores. A classificação incorreta do estatuto
profissional tem consequências para as pessoas afetadas, na medida em que pode restringir o acesso aos direitos laborais e sociais existentes. Além disso, gera condições injustas de concorrência para as empresas que classificam corretamente os seus trabalhadores e tem implicações nos sistemas de relações laborais dos Estados-Membros, na sua base tributável e na cobertura e sustentabilidade dos seus sistemas de proteção social.
– A fim de combater o falso trabalho independente no trabalho em plataformas digitais e facilitar a determinação do estatuto profissional correto das pessoas que trabalham em plataformas digitais, os Estados-Membros deverão dispor de procedimentos adequados para prevenir e eliminar a classificação incorreta do estatuto profissional das pessoas que trabalham em plataformas digitais.
6. No caso em apreço, o Tribunal da Relação, ao contrário do invocado pelos autores, deu como provado que os mesmos iniciaram a sua atividade para a ré em datas anteriores à da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, o que ocorreu em 01.05.2023, como preceitua o art. 37º da sobredita Lei n.º 13/2023 e é pacificamente aceite nos autos.
Concretamente, decidiu-se que os AA. EE, CC e FF prestam a atividade de estafeta para a R. desde janeiro de 2023, desde 2022, desde abril/maio de 2023 e desde 02.03.2023, respetivamente.
7. Sobre a aplicação das leis no tempo há a considerar, desde logo, os princípios gerais constantes do art. 12º do Código Civil, que tem o seguinte teor: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que, lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor” 4.
Especificamente sobre a matéria ora em discussão no recurso, atinente à aplicação no tempo do art. 12.º-A, do CT, rege o art. 35º da referida Lei n.º 13/2023: “Ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento”.
No essencial, esta disposição legal encontra-se alinhada com o disposto no art. 7º da Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro, relativo à aplicação no tempo do Código do Trabalho de 2009 [“Sem prejuízo do disposto no presente artigo e nos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela presente lei os contratos de trabalho (…) celebrados ou adotados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento”], afigurando-se-nos que aos segmento finais destas duas norma, pese embora a diferente técnica legislativa (onde agora se diz “… anteriores àquele momento”, dizia-se antes “… totalmente passados anteriormente àquele momento”), deverá ser atribuído o mesmo sentido.
8. Incontornavelmente, sobre esta matéria, refere Joana Nunes Vicente5:
“[A] norma relativa à presunção de laboralidade não é uma norma que diretamente disponha sobre requisitos de validade nem sobre o conteúdo ou sobre os efeitos de uma situação jurídica contratual. A presunção de laboralidade vai incidir sobre factos que condicionam a qualificação jurídica de uma dada relação jurídica, à qual irá depois corresponder, de facto, uma determinada disciplina jurídica. Do funcionamento da presunção infere-se precisamente um facto presumido complexo ou um conjunto de factos presumidos – os elementos constitutivos da noção de contrato de trabalho: a atividade, a retribuição e a subordinação jurídica – que permitem a qualificação da relação em causa como uma relação de trabalho subordinado”.
Na verdade, in casu não estão em discussão as condições de validade das relações jurídicas estabelecidas entre as partes, nem, sequer, os efeitos jurídicos de factos/situações (totalmente) anteriores à entrada em vigor da lei nova.
Do que se trata é – relativamente a cada um dos autores – de determinar as regras em função das quais se afere a qualificação jurídica de dada situação (jurídica), traduzida na prestação duradoura de uma atividade produtiva, situação que, no tocante a todos eles, perdurou para além do momento da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023.
Nesta perspetiva, sobre a aplicação no tempo das normas relativas às presunções legais, Baptista Machado sustenta que, em geral, “elas se aplicam diretamente aos atos ou aos factos aos quais vai ligada a presunção e que, portanto, a lei aplicável é a lei vigente ao tempo em que se verificarem esses factos ou atos (…) com ressalva apenas daquelas hipóteses em que uma presunção legal (…) se refira aos pressupostos de uma SJ [situação jurídica] inteiramente nova (…)”6.
Deste modo, encontrando-se em causa relações jurídicas duradouras (como acontece nas situações reportadas nos autos), nada obsta, e tudo aconselha, a que aos diferentes factos praticados em execução do conjunto de cada programa contratual sejam aplicáveis as normas concernentes a presunções de laboralidade que estejam em vigor à data da respetiva produção.
Com efeito, se com a presunção de laboralidade apenas se visa facilitar a qualificação jurídica das situações de fronteira entre o trabalho autónomo e o trabalho subordinado, e sabido que com ela não se produz qualquer alteração dos princípios relativos à distribuição da prova, mas (com base em imperativos de verdade/justiça material e de combate à dissimulação do contrato de trabalho e à precariedade) o mero aligeiramento do ónus que sobre o trabalhador impende neste âmbito7, não se vislumbram quaisquer razões de segurança/estabilidade jurídica – e muito menos de salvaguarda de eventuais direitos adquiridos ou de proteção da confiança – que determinantemente imponham diversa solução.
Nas palavras de Monteiro Fernandes, “afigura-se difícil aceitar que um instrumento destinado a potenciar as probabilidades de [a] verdade material ser captada e juridicamente enquadrada possa constituir fator de desequilíbrio no desenvolvimento de qualquer litígio em que essa qualificação esteja em causa”8.
É certo que, nesta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça tem limitado a aplicação da lei nova aos casos em que, após o início da sua vigência, o vínculo obrigacional estabelecido entre as partes se vai reconfigurando ao longo do tempo9.
Mas, no plano da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não se vê que ao autor seja de exigir prova positiva dessa reconfiguração, em especial em casos – como paradigmaticamente acontece nas plataformas digitais – em que, pelas próprias especificidades inerentes à atividade prestada, esta tem naturalmente associados elevados grau de heterogeneidade, atipicidade, aleatoriedade e fluidez [como de forma lapidar evidenciam os “Considerandos” da aludida Diretiva (UE) 2024/2831] que implicam a sua sucessiva reconstrução.
Tudo para concluir que, relativamente a relações jurídicas iniciadas antes da entrada em vigor do art. 12.º-A, do CT, a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital é aplicável aos factos enquadráveis nas diferentes alíneas do seu nº 1 que, no âmbito dessas relações jurídicas, tenham sido praticados posteriormente àquele momento (01.05.2023).
9. Sem necessidade de outras considerações, procede, pois, a revista.
Uma vez que a Relação julgou prejudicada a questão de saber se (não) se encontram verificadas as circunstâncias a que aludem as alíneas a), b) e d) do n.º 2 do artigo 12.º-A do CT, impõe-se que os autos voltem à 2ª Instância para decisão desta matéria, tendo em conta que o art. 679.º, do CPC, exclui do julgamento da revista a “regra da substituição do tribunal recorrido”, consagrada no art. 665.º, do mesmo diploma, relativamente ao julgamento da apelação.
Custas da revista a cargo da ré.
Lisboa, 15.05.2025
Mário Belo Morgado, relator
Paula Leal de Carvalho
Domingos Morais
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2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎
3. A Diretiva dispõe no seu art. 5º, sob a epígrafe “Presunção legal”:
1. A relação contratual entre uma plataforma de trabalho digital e uma pessoa que trabalha em plataformas digitais através dessa plataforma é legalmente presumida como uma relação de trabalho quando se verificarem factos que indiciem a direção e o controlo, nos termos do direito nacional, das convenções coletivas ou das práticas em vigor nos Estados-Membros e tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Se a plataforma de trabalho digital pretender ilidir a presunção legal, cabe à plataforma de trabalho digital provar que a relação contratual em causa não constitui uma relação de trabalho, tal como definida pelo direito, por convenções coletivas ou pelas práticas em vigor nos Estados-Membros, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça.
2. Para efeitos do n.º 1, os Estados-Membros estabelecem uma presunção legal ilidível eficaz de uma relação de trabalho que constitua uma facilitação processual em benefício das pessoas que trabalham em plataformas digitais. Além disso, os Estados-Membros asseguram que a presunção legal não tem por efeito aumentar o ónus dos requisitos para as pessoas que trabalham em plataformas digitais, ou para os seus representantes, nos processos para determinar o seu estatuto profissional correto.
(…)
6. No que diz respeito às relações contratuais que entraram em vigor antes de 2 de dezembro de 2026 e que estejam ainda em vigor nessa data, a presunção legal prevista no presente artigo só é aplicável ao período iniciado a partir dessa data.↩︎
4. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎
5. Código do Trabalho – Revisão de 2009, Coimbra Editora, 2011, pp. 70 – 71.↩︎
6. Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Almedina, Coimbra, 1968, pp. 274-275.↩︎
7. Cfr. Joana Nunes Vicente, loc. cit., p. 62.↩︎
8. Uma jurisprudência consolidada: a presunção de laboralidade - Revista de Estudos Laborais | Ano IX - I da 4.ª Série - N.º 1 (2019) -, p. 247.↩︎
9. V.g. Acs. de 19.06.2024, Proc. nº 368/22.8T8VRL.S1, e de 15.01.2025, Proc. nº 751/21.6T8CSC.L1.S1.↩︎