CRIME FISCAL
PENA DE PRISÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO DE PAGAMENTO
PRESTAÇÕES TRIBUTÁRIAS
IMPOSSIBILIDADE
PENA DE MULTA
Sumário

I – O Tribunal a quo, ao concluir pela possibilidade de suspensão de execução da pena de prisão previamente determinada ao arguido recorrente, mediante a imposição de uma condição de conteúdo económico parcial, contraria a obrigatoriedade legal de sujeição da suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento da totalidade da prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos, sem qualquer redução, nos termos do artigo 14°, n° 1, do R.G.I.T., tal como impõe o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012.
II – Deveria o Tribunal recorrido, face ao cenário fáctico global atinente às condições económicas e financeiras do arguido recorrente, ter concluído pela não razoabilidade da condição de pagamento imposta, cuja impossibilidade do cumprimento se revela praticamente como uma inevitabilidade.
III – Deveria, então, o Tribunal a quo, na eventualidade de considerar inapropriada in concreto a efectividade da pena de prisão, recuar na sua opção pela prisão, optando, antes, por pena de multa.

(Sumário da Responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo nº 2676/22.9T9MAI.P1[Recurso Penal]

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Criminal da Maia - Juiz 1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


I - RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 2676/22.9T9MAI que corre termos pelo Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, em que é arguido, entre outros, AA, melhor identificado nos autos, foi proferida sentença, na qual se decidiu [transcrição da parte que ora releva]:

“(…)

III. DISPOSITIVO

Pelo exposto, decido:
a) (…)

b) Condenar o arguido AA pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 6.º, nº 1, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, que se suspende na sua execução por 3 (três) anos e 6 (seis) meses;

c) Condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, no período de 3 (três) anos contados do trânsito em julgado, a comprovar nos autos, pelo arguido AA do montante de € 30.000,00 (trinta mil euros) à Segurança Social, referente a parte das cotizações em falta;

d) (…)

e) (…)

f) Condenar os arguidos AA e “A..., S.A.” no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P. do montante das cotizações em dívida, no total de €116.990,20 (cento e dezasseis mil, novecentos e noventa euros e vinte cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa de juro fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, EPE, até efetivo e integral pagamento, e que ascendiam, em 27-09-2023, ao montante de €22.198,38;

g) (…)

h) Declarar perdida a favor do Estado a quantia de €116.990,20 (cento e dezasseis mil, novecentos e noventa euros e vinte cêntimos), que condeno os arguidos AA e “A..., S.A.” a pagarem, solidariamente, ao Estado nos termos do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, alínea b) e 4 do Código Penal;

i) Condenar os arguidos AA e “A..., S.A.” no pagamento das custas processuais na parte criminal, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC para cada um;

j) Condenar a assistente Instituto da Segurança Social, I.P. e o arguidos AA e “A..., S.A.” no pagamento, na proporção de metade para cada a demandante e metade, solidariamente, para os demandados, das custas processuais na parte cível, sem prejuízo do imediato cumprimento do disposto no artigo 15.º, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais.

(…)”

»
I.2 Recurso da decisão final

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
IV - CONCLUSÕES:
1º) Salvo melhor opinião e o devido respeito, afigura-se ao Recorrente carecer fundamento de facto e de direito que justifique a condenação do arguido AA, pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 6.º, nº 1, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, que se suspende na sua execução por 3 (três) anos e 6 (seis) meses, bem como condicionar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, no período de 3 (três) anos contados do trânsito em julgado, a comprovar nos autos, pelo arguido do montante de € 30.000,00 (trinta mil euros) à Segurança Social, referente a parte das cotizações em falta e ainda no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P. do montante das cotizações em dívida, no total de €116.990,20 (cento e dezasseis mil, novecentos e noventa euros e vinte cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa de juro fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, EPE, ate efetivo e integral pagamento, e que ascendiam, em 27-09-2023, ao montante de € 22.198,38, sendo por ultimo na condenação no pagamento das custas processuais na parte criminal, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC e no pagamento, na proporção de metade das custas processuais na parte cível, sem prejuízo do imediato cumprimento do disposto no artigo 15.º, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais.
2º) Por sua vez e ademais, cremos e à cautela de patrocínio que a medida da pena que foi nos presentes autos aplicada é manifestamente excessiva, uma vez que não se compreende a aplicação de pena de prisão em detrimento de uma pena de multa, legalmente prevista atento que o crime tem uma moldura penal de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, atento que o arguido apenas tem uma condenação anterior em multa por crime diverso, não sendo sequer reincidente.
3º) Para além disso não se compreende com o dever imposto ao arguido para beneficiar da suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado, que é o de pagar ao Instituto da Segurança Social a quantia de Euros 30.000,00 relativamente a parte das cotizações a que se referem estes autos, bem como no pagamento da totalidade das cotizações em divida no montante de Euros 116.990,20, acrescidos de juros de mora até efectivo e integral pagamento.
4º) Entende o Recorrente que neste ponto concreto, poderá, por via indireta, ter a douta sentença recorrida operado uma transferência da responsabilidade penal, o que viola o disposto no n.º 3 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa que consagra a proibição da transmissão da responsabilidade penal.
5º) Com efeito, a responsabilidade legal, pelo pagamento das cotizações devidas e das contribuições retidas é da arguida A..., S.A., pessoa coletiva. Mas a determinação desse pagamento em relação ao arguido como condição de suspensão da execução da pena de prisão, faz com que esse pagamento passe a participar na realização das funções do direito penal. Ou seja, a responsabilidade civil como que se transforma em responsabilidade penal. E, não deixando de ser a mesma responsabilidade, opera-se, desta feita, uma transmissão, ainda que de modo indireto, da responsabilidade da arguida sociedade A... S.A., para o arguido pessoa singular.
6º) Assim, como não pode uma lei inferior, como o Regime Geral das Infrações Tributárias, plasmar no seu conteúdo, nomeadamente no n.º 1 do artigo 14.º, uma forma de transmissão da responsabilidade penal, mesmo que indireta, do agente, pessoa coletiva e responsável pelo pagamento da dívida, para o sócio-gerente, pessoa singular, sob pena de inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º acima mencionado, então nunca poderia ter sido determinada a condição da suspensão da execução da pena de prisão, como o foi.
7º) No entanto, para a eventualidade de não vir a ter acolhimento neste Venerando Tribunal, esta alegada inconstitucionalidade, sempre se acrescentará, por cautela de patrocínio, uma outra circunstância que, no entender do Recorrente, não foi levada em consideração pelo Mmo. Juiz “a quo”, quando o deveria ter sido, por violadora da lei, e que se prende com a violaçao do juizo de prognose da possibilidade de cumprimento por parte do arguido.
8º) Importa atentar no art.º 14º do RGIT (Lei n.º 15/2001, de 5/6), que dispõe, no seu n.º 1, que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.
9º) A propósito da interpretação e aplicação da referida norma contida no RGIT, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2012 (publicado no DR nº 206, 1ª série, de 24/10/2012) veio fixar jurisprudência no sentido seguinte: “(…) No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art.º 105.°, n.° 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do art.º 50.°, n.° 1, do CP, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o art.º 14.°, n.° 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia. (…)”
10º) Salientando o STJ a obrigatoriedade da imposição da condição – e sublinhando que, no domínio tributário, existe apenas uma espécie pré-definida de dever, de sentido e expressão única, com uma dimensão económica exata, intocável, incontornável, sem possibilidade de configuração parcial, de qualquer redução, corte ou desconto, configurando-se como pena fixa –, observa que o julgador, concluindo pela impossibilidade do cumprimento, deve reponderar a hipótese de optar por pena de multa, “(…) pois o processo de confeção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes (…)”. Isto porque “(…) o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exatamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exatamente por isso a merecer maiores cuidados. A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente (…)”.
11º) Assim, e como vem sendo salientado pela generalidade da jurisprudência dos tribunais superiores, o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012 não permite ultrapassar a obrigatoriedade da sujeição da suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento da prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos, nos termos do artigo 14°, n° 1, do R.G.I.T. Importa, ainda, sublinhar que a necessidade do juízo de prognose a que se reporta o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012 só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos do artigo 14°, n° 1, do RGIT) ou outra pena não privativa da liberdade. Esta jurisprudência, diretamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105°, n° 1, do R.G.I.T. – crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução) ou pena de multa -, é também aplicável a outros crimes tributários puníveis com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa.
12º) Assim, estando em causa um crime fiscal punível com pena de prisão ou pena de multa, a opção pela pena de prisão e subsequente determinação da suspensão da respetiva execução, tomada pelo tribunal de primeira instância, não podia prescindir da prévia formulação do juízo de prognose quanto à efetiva capacidade (presente e futura) do arguido para satisfazer a condição – que é, como vimos, de natureza obrigatória e, por isso, também não podia deixar de ser determinada, caso o resultado daquele juízo de ponderação fosse positivo.
13º) Sucede que, no presente caso, o tribunal de primeira instância omitiu em absoluto a formulação do necessário juízo de prognose, mostrando-se omissa a decisão recorrida quanto à ponderação da capacidade económica do recorrente para suportar o pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos.
14º) Com efeito, lido o segmento da decisão recorrida referente à suspensão da execução da pena de prisão (previamente determinada), verificamos que em nenhum momento a questão da formulação do juízo de prognose é tratada apenas se referindo que o Recorrente “(…) está socialmente inserido, é ainda jovem e apresenta apenas um antecedente criminal e tendo em conta que já tem experiencia como administrador de sociedades anónimas poderá (…) no entendimento do Mmo. Juiz a quo, (…) encontrar emprego facilmente e reunir os meios de pagar (…)”, o que até contraria o que consta na mesma sentença uns paragrafos antes em que se refere que “(…) relativamente ao condicionamento da suspensão da pena ao pagamento das cotizações em dívida à Segurança Social, a atual situação de desemprego do arguido AA, não nos permite perspetiva que venha a ter possibilidades de liquidar, no prazo da suspensão, a quantia global de €116.990,20, acrescida dos juros de mora (…)” mostrando que salvo o devido respeito, não foi feito qualquer juizo de prognose.
15º) Assim salvo melhor opinião o tribunal de primeira instância apoiou-se na norma contida no art.º 50.º do Código Penal, ignorando, contudo, a norma especial prevista no art.º 14.º do RGIT. A omissão da necessária formulação do juízo de prognose a que alude o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 8/2012, determina a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, o que ora expressamente se invoca.
16º) Impõe-se, assim, que o tribunal de primeira instância equacione a possibilidade de imposição da condição pecuniária ao arguido, formulando o mencionado juízo de prognose, tendo em conta a sua concreta situação económica, e decida em conformidade: caso o resultado dessa ponderação seja positivo (eventualmente, mediante a extensão do prazo de suspensão até ao limite de cinco anos, para facilitar o cumprimento da obrigação pecuniária), mantendo a suspensão da execução da pena de prisão, obrigatoriamente condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos; caso seja negativo, regressando ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar: prisão ou multa; eventualmente, optando por outra pena de substituição, caso considere inadequada a pena de multa, ou determinando o cumprimento da pena de prisão, revelando-se inadequadas todas as penas de substituição).
17º) Salvo o devido respeito se se tivesse sido realizado tal juizo de prognose poder-se-ia concluir que o arguido não tem qualquer possibilidade de, no prazo estabelecido legalmente, cumprir o dever que lhe é imposto por não ter, nem ter expectativas de vir a ter, meios financeiros que o permitam. E a imposição de um tal dever representa para o condenado uma obrigação cujo cumprimento não seria razoavelmente de exigir, o que contrariaria o disposto no n.º 2 do artigo 51.º do Código Penal.
18º) Daí que, a nosso ver, se deva interpretar conjugadamente o mencionado artigo 14.º, n.º 1, do RGIT e o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, do que resulta que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto o dever de pagamento, quando do juízo de prognose realizado resulte existirem condições para que essa obrigação possa ser cumprida. - veja-se nesse sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo 1467/11.7IDLSB.L1-3.
20º) Assim, da conjugação abrangente do disposto na alínea a), do n.º 1, e no n.º 2, ambos do artigo 51.º, do Código Penal, com o n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, podemos concluir que o Tribunal pode, fundamentadamente, suspender a execução da pena de prisão aplicada, mediante o pagamento de quantia inferior à apurada nos autos, por a mesma se mostrar dentro dos juízos da razoabilidade e ser suficiente para as finalidades da punição.
21º) É na fixação concreta da medida de uma pena estabelecida no âmbito de uma moldura abstracta que se evidencia a tarefa mais importante do juiz, obedecendo no entanto a um rigoroso cumprimento da Lei, seja das normas estabelecidas no Código Penal (artigos 40º, 70º e 71º) seja dos princípios constitucionais que se evidenciam como orientadores primários da interpretação jurídico-penal.
22º) Como se sabe, é na culpa do agente e nas razões preventivas gerais e especiais que se encontram as guias fundamentais para fixar a pena devida em determinado caso, sendo que o Código Penal estabelece um limite inequívoco e inultrapassável onde tem que assentar a medida da pena: a culpa do agente, nomeadamente a sua medida.
23º) É certo que nas finalidades da pena surge, equivocamente, a necessidade de proteger bens jurídicos como elemento fundamental, o que impõe que na fixação da pena concreta se leve em consideração a dimensão da prevenção, geral e especial, como aliás decorre do artigo 71º n.º 1.
24º) Para além disso o arguido é pessoa que não tem conexão comportamental e sistemática com este tipo de crimes ou com quaisquer outros, familiarmente e socialmente integrada, bem reputada. Resulta, para nós, então, que a factualidade que subjaz à aplicação das medidas das penas, que estão concretamente aplicadas, não se mostram adequadas por ultrapassar o necessário para a estrita reintegração das normas afetadas pelo comportamento do arguido e cremos que são ultrapassados não apenas os limites da prevenção, geral e especial, como também o grau de culpa do arguido e da medida da pena, o que nos leva a peticionar a reapreciação da medida da pena.
25º) Considera o Recorrente que a sentença recorrida violou o princípio da proporcionalidade e da necessidade da sanção criminal e princípio da culpa consagrados nos artigos 40.°, 41.°, 70.° e 71.° do Código Penal, pois que, na verdade, a pena aplicada ao arguido, afigura-se demasiado elevada e injusta, ultrapassando o juízo de censura que o ora Recorrente merece.
26º) Cumpre igualmente referir que os atos alegadamente praticados foram actos isolados, de um jovem que nasceu em ../../1997, tendo portanto á data da pratica dos factos 23 anos e actualmente 26 anos, sendo por isso mesmo um jovem.
27º) Sucede que salvo melhor opinião, lhe deveria ser aplicada a Lei nº 38-A/2023 de 02 de Agosto, que veio aplicar o perdão de penas e amnistia de infracções no ambito da visita de Sua Santidade o Papa Francisco a Portugal.
28º) Assim, nos termos dos nºs 2 e 3 da referida Lei nº 38A/2023 de 02 de Agosto, deverão ser perdoadas as penas ao arguido, ou não sendo possivel, deveria sempre ser levado em consideração a referida legislação, sendo que A oficiosidade da aplicação e do conhecimento de todas as questões que lhe pertinem resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de uma irrecusável (pelo julgador) opção fundamental de política criminal, e da própria letra da lei ao usar a expressão “deve” com significado literal de injunção. Para tanto, o juiz não pode deixar de averiguar se existem pressupostos de facto para a atenuação sempre que o indivíduo julgado tenha idade que se integre nos limites da lei (cf., v.g., os Acs. do STJ, in CJSTJ, ano V, tomo 3, pág. 192 e ano VII, tomo 3, pág. 234, referindo vária jurisprudência), o que salvo o devido respeito in casú não ocorreu.
29º) Termos em que deve o arguido ser absolvido de um crime de crime abuso de confiança fiscal, ou quando assim não se entenda deverá ser reexaminda a medida da pena, atenta a nulidade invocada nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), bem como deverá ser levado em consideração Lei nº 38-A/2023 de 02 de Agosto, que veio aplicar o perdão de penas e amnistia de infracções no ambito da visita de Sua Santidade o Papa Francisco a Portugal, absolvendo do crime e dos pagamentos pagamentos das cotizações e das custas processuais.
30º) A Douta Sentença violou, entre outros, o disposto nos artigos 30º, 40º, 70º e 71º do Código Penal, da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal e do nºs 2 e 3 da referida Lei nº 38A/2023 de 02 de Agosto.

Termos em que, pelo que vem de expor-se e pelo muito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao recurso e em consequência julgar-se procedente o recurso, revogando-se a Sentença recorrida e/ou substituindo-o por outra, em que o arguido seja absolvido do crime de abuso de confiança fiscal, ou quando assim não se entenda, devendo ser reexaminda a medida da pena, atenta a nulidade invocada nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), bem como deverá ser levado em consideração Lei nº 38-A/2023 de 02 de Agosto, que veio aplicar o perdão de penas e amnistia de infracções no âmbito da visita de Sua Santidade o Papa Francisco a Portugal, absolvendo do crime e dos pagamentos pagamentos das cotizações e das custas processuais.
Assim se fazendo, uma vez mais, J U S T I Ç A!
(…)”

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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 20/01/2025, com os efeitos de subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

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I.3 Resposta ao recurso

Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, o que fez nos termos seguintes [transcrição]:

“(…)

CONCLUSÕES:

1- AA, arguido nestes autos, foi condenado pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 6.º, nº 1, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 (três) anos e 6 (seis) meses, condicionada tal suspensão ao pagamento, no período de 3 (três) anos contados do trânsito em julgado, a comprovar nos autos, pelo arguido AA o pagamento do montante de € 30.000,00 (trinta mil euros) à Segurança Social, referente a parte das cotizações em falta.

2- Mais foi condenado este arguido com a empresa “A..., S.A.”, a titulo de pagamento de indemnização civil, no pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P. do montante das cotizações em dívida, no total de €116.990,20 (cento e dezasseis mil, novecentos e noventa euros e vinte cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa de juro fixada anualmente pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, EPE, até efetivo e integral pagamento, e que ascendiam, em 27-09-2023, ao montante de € 22.198,38.

3- O arguido AA não se conformando com a sentença proferida nos presentes autos, veio interpor recurso alegando, em resumo, que a medida da pena é excessiva, uma vez que o arguido deveria ter sido condenado numa pena de multa, dado que arguido tem apenas uma condenação anterior e por crime diverso; que não compreensível que a suspensão da execução da pena de prisão esteja sujeita ao pagamento das cotizações em falta a saber no montante de € 30.000,00 e € 116.990,20, mais juros; que houve uma transferência da responsabilidade penal, por via indireta, o que é inconstitucional, pois a responsabilidade seria só da empresa “A..., SA”; que a sentença é omissa quanto à ponderação sobre a capacidade económica do recorrente para pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, existindo assim uma violação do juízo de prognose da efetiva possibilidade de cumprimento por parte do arguido desse pagamento, pelo que a sentença é nula nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c), do CPP; que a sentença violou o principio da proporcionalidade e da necessidade da sanção criminal e o principio da culpa consagrados nos arts. 40º, 41º, 70º e 71º, todos do C.P.; que deveria ter sido aplicado ao arguido recorrente a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, devendo ser perdoada a pena em que foi condenado, e termina pedindo a sua absolvição.

4- Em nossa opinião, não assiste qualquer razão ao recorrente, entendendo tal recurso apenas por ser um direito de qualquer condenado.

5- Pouco há a acrescentar para além do que consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto e de direito da sentença proferida, quanto à parte criminal, uma vez que o Sr. Juiz fundamentou a sua convicção de uma forma clara, concreta e precisa, baseada em toda a prova documental junta aos autos, e ainda nos depoimentos das testemunhas inquiridas e nas declarações de alguns dos arguidos, sendo que quanto à condição económica e pessoal do arguido recorrente foram tidas em conta as suas próprias declarações, tudo analisado à luz das regras da experiência, já que há que ter em conta quer o principio da livre apreciação da prova de que o julgador dispõe, quer o principio da imediação que só a audiência de julgamento proporciona.

6- Pela leitura atenta da sentença proferida e que aqui foi posta em crise, pode aferir-se da concreta participação que o arguido enquanto representante legal da empresa “A..., SA” teve na prática dos factos.

7- Tal participação na prática do crime está bem concretizada e fundamentada na referida sentença, atenta a matéria de facto dado como provada e a matéria de direito.

8- Entende-se que não ser admissível que atento os valores em causa que não foram entregues à Segurança Social no valor global de € 116.990,20 e atentos os antecedentes criminais do arguido, ainda o arguido fosse condenado em pena de multa.

9- É que nos presentes autos foi dado como provado que o arguido descontou nos salários pagos aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, as cotizações legalmente devidas à Segurança Social no valor global de € 116.990,20, e apesar de ter entregado as respetivas declarações de remuneração, o arguido AA não entregou essas quantias na Segurança Social no prazo legal, isto é, até ao 15.º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, conforme estava obrigado, nem no período dos 90 dias ulteriores.

10- Por outro lado, quanto aos seus antecedentes criminais, constata-se que o arguido o arguido foi condenado, também neste juízo local criminal da Maia – Juiz 1, no âmbito do processo comum singular n.º 70/21.8IDPRT pela prática na forma consumada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, (seis euros), num total de € 900,00 (novecentos euros) pelos factos referentes ao período 11-2019 e na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1 e 4 do RGIT, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, (seis euros), num total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) pelos factos referentes aos períodos 05-2020, 06-2020, 07-2020 e 08-2020 o que redundou na pena única de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, (seis euros), num total de € 2.100,00 (dois mil e cem euros), sendo que a vantagem patrimonial indevida de que o arguido e a sociedade arguida se apropriaram foi no naqueles autos de € 70.621,30.

11- Existe similitude entre ambos os tipos leais de crime pois quer no crime de abuso de confiança à segurança social quer no crime de abuso de confiança fiscal, o dever é o mesmo, o de entregar valores recebidos ou retidos (tributos) ao Estado (Segurança social ou AT consoante o caso), daí que até estejam regulamentados pelo mesmo diploma – RGIT, sendo que o art. 105º até é aplicável a ambos os crimes.

12- Por outro lado, ao contrário do que alega, verifica-se que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado está apenas dependente do pagamento da quantia de € 30.000,00 no prazo de 3 anos a contar da data do trânsito em julgado, de um total de € 116.990,20 mais juros que o arguido também foi condenado a pagar, mas não como condição de suspensão da execução da pena, mas sim a titulo de indemnização civil, solidariamente com a empresa arguida.

13- Encontra-se também justificada a responsabilidade criminal do arguido ao abrigo do disposto no artigo 6.º do Regime Geral das Infrações Tributárias, não existindo qualquer inconstitucionalidade.

14- Com efeito, é o próprio legislador alarga a punibilidade dos tipos legais a quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa coletiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, não sendo exigível a detenção de título suficiente, nem a validade de tal título, mas apenas a atuação voluntária como ou enquanto titular do órgão.

15- In casu, o recorrente, sabia que tinha obrigação de agir para que as importâncias devidas à segurança social fossem entregues e não o fez, daí a sua responsabilidade penal.

16- Também não podemos concordar com a alegação de que a sentença é omissa quanto à ponderação sobre a capacidade económica do recorrente para pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos e por esse facto alega que a sentença é nula nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c), do CPP.

17- Resultou provado que o arguido estudou até ao 12.º ano de escolaridade, vive com a mãe em casa desta, e se encontra desempregado, recebendo subsídio de desemprego cerca de € 500,00, mas não é menos verdade, tal como consta da sentença e até do alegado pelo arguido no seu recurso que o arguido é pessoa familiarmente e socialmente integrada, nasceu em ../../1997, tendo atualmente 26 anos, sendo por isso um jovem, e como bem pode ler-se na sentença que: (…) sendo ainda jovem e tendo em conta que já tem experiência laboral como administrador de sociedades anónimas, pode perspetivar-se, recorrendo às regras da experiência comum, que venha a encontrar emprego facilmente e a reunir meios de pagar, pelo menos, parte do prejuízo que causou ao Estado Segurança Social e do qual, aliás, está a beneficiar auferindo subsídio de desemprego. Donde, o tribunal condiciona a suspensão da execução da pena de prisão à obrigação de o arguido, no prazo de 3 anos, comprovar nos autos a entrega à Segurança Social o montante de € 30.000,00 de cotizações em dívida, condição que, sendo cumprida, não bule, naturalmente, com a sua condenação, em sede civil e de perda de vantagens, do pagamento da totalidade da dívida e seus acrescentos legais. O arguido AA aparenta integração social, apesar de neste momento estar desempregado”.

18- Não vislumbramos, pois, que possa argumentar-se que exista violação do juízo de prognose da efetiva possibilidade de cumprimento por parte do arguido desse pagamento, até pelo montante a pagar, apenas € 30.000,00, e o período concedido ao arguido para efetuar tal pagamento - em três anos, pelo que a sentença não é nula nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c), do CPP.

19- Está também devidamente fundamentado o elenco das várias circunstâncias que relevaram, in casu, para efeitos da escolha e da medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido (veja-se a este propósito a motivação da matéria de facto, a motivação da matéria de direito e a motivação da escolha e da medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido, que aqui se dão por reproduzidas por uma questão de economia processual).

20- Compulsada a sentença verifica-se que quanto à determinação da medida da pena, ela foi efetuada dentro dos limites definidos pela lei e em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

21- Quanto à medida da pena que foi aplicada no caso concreto deste crime, e de acordo com o disposto no art. 71º do Código Penal, pode extrair-se da sentença proferida que foi ponderada em desfavor do arguido, o dolo com que atuou, a elevada ilicitude do facto, traduzida período de tempo em que perdurou a prática do crime, as elevadas consequências do crime, atendendo à quantia que não foi entregue à Segurança Social (€116.990,20), e em favor do arguido foi ponderado o facto do arguido se encontrar inserido familiar e socialmente, pelo que a medida da pena foi valorada nos termos do disposto no art. 71º do Código Penal, pelo que não foi violado o disposto nos arts. 70º e 71º, ambos do Código Penal.

22- Por outro lado, por não se vislumbrar ser aplicável a este arguido qualquer circunstância atenuante, mormente qualquer das elencadas no art. 72º do C. Penal, consideramos que a pena de 2 anos e 4 meses de prisão, ainda que suspensa na sua execução por 3 anos e 6 meses, com uma obrigação monetária, atendendo ao limite máximo de 5 anos aplicável, é uma pena justa e adequada ao caso concreto.

23- A sentença não violou o princípio da proporcionalidade e da necessidade da sanção criminal, nem o princípio da culpa consagrados nos arts. 40º, 41º, 70º e 71º, todos do C. Penal.

24- In casu, o arguido/recorrente não beneficia do perdão determinado na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto.

25- Na verdade, a pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos em que foi concedida nos autos, está arredada do perdão de penas previsto no artigo 3.º n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, por se encontrar no âmbito de aplicação da alínea d) do nº 2 do referido preceito, ou seja, o disposto no artigo 3.º n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023 só é aplicável a penas de prisão efetivas, o que não é o caso, uma vez que a pena de prisão aplicada ao arguido foi suspensa na sua execução sujeita ao pagamento no prazo de 3 anos da quantia de € 30.000,00.

26- Segue-se o entendimento de Pedro José Esteves de Brito, in Julgar online, agosto de 2023 (consultado em 14-01-2024, disponível em https://julgar.pt/notas-praticas-referentes-a-lei-n-o-38-a20023-de-2-deagosto-que-estabelece-um-perdao-de-penas-e-uma-amnistia-deinfracoes-por-ocasiao-da-realizacao-em-portugal-da-jornada-mundialda-juventude/): “Não tendo sido estabelecido o perdão da pena de substituição da suspensão entre 1 e 5 anos da execução da pena de prisão até 5 anos (cfr art. 50º do CP) que tenha ficado subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (cfr art. 51º do CP) e/ou regras de conduta (cfr art. 52º do CP) e/ou acompanhada de regime de prova (cfr. Art. 53º do CP), neste caso, o perdão só poderá ser aplicado uma vez revogada a referida suspensão da execução da pena de prisão, na pena de prisão fixada na decisão condenatória (cfr art. 56º do CP) e com o limite de 1 ano de prisão estabelecido no nº 1 do preceito em apreço, para onde expressamente remete o nº 3 do art. 3º da lei em análise.”.

27- O decidido é justo e equitativo e que a sentença recorrida não violou qualquer preceito legal ou constitucional, muito menos os alegados pelo arguido, antes tendo efetuado uma correta aplicação do direito aos factos.

Nestes termos e face todo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a douta sentença recorrida, assim se fazendo inteira

(…).”

»
I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

»
I.5. Resposta

Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao sobredito parecer, pelo arguido, que, em síntese, renovou as considerações já tecidas na sua peça recursiva.

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I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do CPP.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.

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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do CPP, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], e da doutrina[2], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do CPP[3], relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).

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II.2- Apreciação do recurso

Veio o arguido recorrer unicamente da matéria de direito [de notar que não obstante o recorrente catalogar o seu recurso de "fundamentação de facto e de direito", nada alega, argumenta ou invoca, quanto à primeira, centrando toda a sua motivação e respectivas conclusões unicamente em questões de direito].

Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões decidendas a apreciar são as seguintes:

- da nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por não ter operado à prévia formulação do juízo de prognose quanto à efectiva capacidade do arguido para satisfazer a condição de suspensão imposta pelo art. 14º do RGIT, como o obriga o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012;

- se o arguido recorrente deveria ter sido condenado em pena de multa e não em pena de prisão, porque tem apenas uma condenação anterior e por crime diverso, sendo a pena concretamente aplicada excessiva e desproporcional, ultrapassando a culpa, em violação dos arts. 40º, 41º, 70º e 71º, todos do C.P.;

- se a referida condição pecuniária, imposta para a suspensão da execução da pena de prisão, é inconstitucional, por violação do disposto no nº 3, do art. 30º da Constituição da República Portuguesa, pois implica uma transferência da responsabilidade penal, já que a responsabilidade seria só da empresa “A..., SA”;

- se deveria ter sido aplicada ao arguido recorrente a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, devendo ser perdoada a pena em que foi condenado.

»

Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objecto de recurso]:

“ (…)

I. RELATÓRIO

Em processo comum e com intervenção de tribunal singular, foram pronunciados:

“A..., S.A.”, sociedade anónima com o NIPC ...60 com sede na Avenida ..., edifício ..., ..., ..., aqui representada pelo seu administrador único, AA;

AA, nascido a ../../1997, filho de BB e de CC, solteiro, residente na Rua ..., ..., porta ...;

BB, nascido a ../../1964, filho de DD e de EE, casado, residente na Rua ..., ..., Guimarães; e

FF, nascido a ../../1976, filho de GG e de HH, casado, residente na Rua ..., ..., ...;

Pela prática, na forma continuada e consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. previsto e punível nos termos do artigo 6.º, nº 1, 7.º, nº1 e 3, 105.º, n.ºs 1 a 5 e 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal.

O Instituto da Segurança Social, I.P. veio deduzir pedido de indemnização civil, peticionando o pagamento do montante de €116.990,20 (correspondente a cotizações dos meses de abril, julho, outubro a dezembro de 2018, março de 2019, maio de 2019 a maio de 2021), acrescido de juros de mora vencidos, no valor de €22.198,38, e vincendos até efetivo e integral pagamento.

Os autos foram recebidos para julgamento e agendada audiência de julgamento.

Foram apresentadas contestações pelos arguidos AA, BB e FF, nas quais, em síntese, o primeiro alegou não ter praticado os factos que lhe são imputados de forma livre, voluntária e consciente, o segundo ter apenas funções de controlador de produção e vendedor e o terceiro ser apenas encarregado.

Realizou-se audiência de julgamento com observância do formalismo legal.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

Factos provados

1. A sociedade comercial denominada “A..., S.A.” (doravante sociedade arguida) tem por objeto comercial o fabrico e comercialização de calçado, angariação e comissionamento de vendas de calçado e afins, com sede na Avenida ..., edifício ..., ..., na ..., e foi declarada insolvente por sentença de 09 -09-2022, no âmbito do processo n.º ... do Juízo de Comércio de Santo Tirso, Juiz 7.

2. A sociedade arguida está inscrita e coletada como contribuinte da Segurança Social sob o n.º ...01, e, entre abril de 2018 e maio de 2021, teve ao seu serviço trabalhadores por conta de outrem obrigatoriamente inscritos nesta entidade.

3. O arguido AA foi nomeado administrador da sociedade arguida em 17-09-2017.

4. Desde aquela data, o arguido AA exerceu a administração efetiva da sociedade, cabendo-lhe os poderes de gestão desta, no uso dos quais dirigiu os respetivos negócios, contratou trabalhadores, deu ordens e instruções aos trabalhadores, decidiu e procedeu ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiu as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias.

5. Nessa qualidade, o arguido AA era responsável pela dedução percentual de 34,75% sobre os valores das remunerações pagas aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, assim como pelo preenchimento e entrega das respetivas declarações de remuneração mensal nos serviços da Segurança Social.

6. No exercício da descrita atividade, a sociedade arguida, através do seu administrador AA, descontou nos salários pagos aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, as seguintes cotizações legalmente devidas à Segurança Social:

Mês/Ano Taxa Cotizações retidas e não pagas

abril 2018 34,75% € 3.468,44

julho 2018 34,75% € 3.220,93

outubro 2018 34,75% € 6.671,30

novembro 2018 34,75% € 3.679,57

dezembro 2018 34,75% € 6.787,27

março 2019 34,75% € 3.564,82

maio 2019 34,75% € 3.858,18

junho 2019 34,75% € 3.901,68

julho 2019 34,75% € 3.869,02

agosto 2019 34,75% € 3.784,45

setembro 2019 34,75% € 3.778,80

outubro 2019 34,75% € 7.379,15

novembro 2019 34,75% € 3.609,67

dezembro 2019 34,75% € 7.071,95

janeiro 2020 34,75% € 4.095,52

fevereiro 2020 34,75% € 4.010,24

março 2020 34,75% € 3.812,27

março 2020 34,75% €162,98

abril 2020 34,75% €3.781,99

abril 2020 22,90 % € 232,83

maio 2020 34,75% € 4.023,21

junho 2020 34,75% € 3.938,52

junho 2020 22,90 % € 126,80

julho 2020 34,75% € 4.087,25

agosto 2020 34,75% € 6.858,20

setembro 2020 34,75% € 3.396,23

outubro 2020 34,75% € 3.171,63

novembro 2020 34,75% € 3.447,69

dezembro 2020 34,75% € 6.624,31

janeiro 2021 34,75% € 110,00

fevereiro 2021 34,75% € 110,00

março 2021 34,75% € 110,00

abril 2021 34,75% € 73,15

maio 2021 34,75% € 73,15

Total: €116.990,20

7. Porém, apesar de ter procedido aos referidos descontos no valor global de € 116.990,20 e ter entregado as respetivas declarações de remuneração, o arguido AA não entregou essas quantias na Segurança Social no prazo legal, isto é, até ao 15.º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, conforme estava obrigado, nem no período dos 90 dias ulteriores.

8. Assim como não procedeu à entrega de tais quantias até à presente data, tendo-as feito da sociedade e utilizado em proveito desta, afetando-as ao giro económico da sua atividade.

9. Ao atuar da forma descrita, agiu sempre o arguido AA em nome e no interesse da sociedade arguida e no seu próprio interesse.

10. O arguido AA atuou num circunstancialismo de oportunidades com que se foi confrontando no exercício da sua atividade de administração, designadamente o de não ter sido sujeito, ao longo do período temporal acima mencionado, a fiscalização por parte da Segurança Social, e do qual se foi sucessivamente e de forma idêntica, valendo e aproveitando.

11. Enquanto administrador de direito e de facto da sociedade, tinha o arguido AA plena consciência de que estava obrigado a entregar ao competente serviço da Segurança Social as quantias retidas que descontava nos salários dos trabalhadores e na sua própria remuneração nos prazos legais, e atuou de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de as utilizar como se fossem desta, não obstante saber que as mesmas não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e lesando os interesses da beneficiária de tais quantias.

12. Sabia o arguido AA que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

13. Os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, nº4, al. b) do RGIT, na redação da Lei nº53-A/2006, de 29 de Dezembro, para comprovarem nos autos o pagamento das quantias descritas na acusação e respetivos juros de mora no prazo de 30 dias a contar da notificação, o que não fizeram.

Mais se provou que:

14. O arguido BB exercia funções de controlador de produção, mas também era vendedor, fazia encomendas de matéria prima e auxiliava e aconselhava AA em questões relacionadas com a administração da sociedade arguida.

15. O arguido FF exercia funções de encarregado da produção e, quando era necessário, recebia clientes e fornecedores.

Por fim, provou-se que:

16. Em 15-04-2024, por sentença transitada em julgado em 28-10-2024, o arguido AA foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, cometidos em 2019 e 2020, na pena de única de 350 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (proc. n.º 70/21.8IDPRT, JL Criminal da Maia, J1).

17. Estudou até ao 12.º ano de escolaridade.

18. Vive com a mãe em casa desta.

19. Encontra-se desempregado, recebendo subsídio de desemprego cerca de € 500,00.

20. Em 15-04-2024, por sentença transitada em julgado em 28-10-2024, a sociedade arguida foi condenada pela prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal, praticados em 2019 e 2020, na pena de única de 350 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (proc. n.º 70/21.8IDPRT, JL Criminal da Maia, J1).


*

Factos não provados

a) Desde 17-09-2017 que BB e FF também exerceram a administração efetiva da sociedade arguida, cabendo-lhes os poderes de gestão desta, no uso dos quais dirigiram os respetivos negócios, contrataram trabalhadores, deram ordens e instruções aos trabalhadores, decidiram e procederam ao pagamento de salários, impostos e contribuições/quotizações e dirigiram as relações comerciais no que concerne a pagamentos a clientes, fornecedores e instituições bancárias.

b) Os arguidos BB e FF eram responsáveis pela dedução percentual de 34,75% sobre os valores das remunerações pagas aos seus trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, assim como pelo preenchimento e entrega das respetivas declarações de remuneração mensal nos serviços da Segurança Social.

c) Os arguidos BB e FF, atuando em nome da sociedade arguida, procederam ao desconto das cotizações legalmente devidas à Segurança Social descritas em 6.

d) Porém, apesar de terem procedido aos descontos descritos em 6 e de terem entregado as respetivas declarações de remuneração, os arguidos BB e FF não entregaram essas quantias na Segurança Social no prazo legal, isto é, até ao 15.º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam, conforme estavam obrigados, nem no período dos 90 dias ulteriores.

e) Assim como não procederam os arguidos BB e FF à entrega de tais quantias até à presente data, tendo-as feito da sociedade e utilizado em proveito desta, afetando-as ao giro económico da sua atividade.

f) Ao atuar da forma descrita, agiram sempre os arguidos BB e FF em nome e no interesse da sociedade e no seu próprio interesse.

g) Os arguidos BB e FF atuaram num circunstancialismo de oportunidades com que se foram confrontando no exercício das suas atividades de administração, designadamente o de não ter sido sujeitos, ao longo do período temporal acima mencionado, a fiscalização por parte da Segurança Social, e dos quais se foram sucessivamente e de forma idêntica, valendo e aproveitando.

h) Enquanto administradores de direito e de facto da sociedade arguida, os arguidos BB e FF tinham plena consciência de que estavam obrigados a entregar ao competente serviço da Segurança Social as quantias retidas que descontaram nos salários dos trabalhadores e nas suas próprias remunerações de gerentes nos prazos legais, e atuaram de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de as utilizar como se fossem desta, não obstante saberem que as mesmas não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade e lesando os interesses da beneficiária de tais quantias.

i) Sabiam os arguidos BB e FF que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinham capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.


*

Consigna-se que não se levou ao elenco dos factos provados/não provados matéria conclusiva, sem interesse para o objeto do processo ou de direito.

*

Motivação

(…)


*

Enquadramento jurídico-penal

O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social é tipificado pelo artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), que estabelece que as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros de órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º do mesmo diploma.

O n.º 4 do artigo 105.º estipula que a não entrega das deduções à Segurança Social apenas será punível se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e se a prestação em dívida não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.

De acordo com a remissão para o n.º5 do artigo 105.º, as penas aplicáveis ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social são agravadas sempre que o valor da não entrega superar € 50.000,00, sendo nesse caso o crime punível apenas com pena de prisão de um a cinco anos às pessoas singulares e de multa de 240 dias a 1200 dias para as pessoas coletivas.

Já o n.º7 do artigo 105.º dispõe que os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

O bem jurídico protegido com o crime de abuso contra a Segurança Social é a garantia do recebimento pelo Estado-Segurança Social das contribuições que lhe são devidas.

Os elementos do tipo objetivo são: (1) obrigação legal do agente a entregar à Segurança Social a contribuição que deduziu, (2) a não entrega de tal prestação ou prestações, total ou parcialmente, (3) passados que estejam 90 dias sobre o termo legal de entrega da prestação e (4) o não pagamento voluntário no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.

Importa, neste segmento, sublinhar a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão n.º8/2010, de 23 de setembro e que determina que:

“A exigência do montante mínimo de (euro) 7500, de que o n.º 1 do artigo 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e alterado, além do mais, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro) faz depender o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não tem lugar em relação ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107.º, n.º 1, do mesmo diploma.”

Por outro lado, as normas citadas não exigem, para preenchimento do tipo, que o agente se aproprie, à semelhança do abuso de confiança comum, dos valores correspondentes às deduções dos vencimentos declarados, bastando a não entrega dos valores para que haja inversão do título de posse, ou seja, a designada apropriação contabilística (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03/10/2001, relatado pelo Desembargador Teixeira Mendes, Proc. n.º 0140535, disponível em www.dgsi.pt.).

Quanto ao tipo subjetivo, trata-se de um crime exclusivamente doloso, sendo necessário que o agente saiba que está obrigado a entregar as contribuições e que, mesmo assim, não cumpra esse dever.

Depois, do artigo 6.º, n.º1 do RGIT resulta que, “quem agir voluntariamente, como titular de um órgão, membro representante de uma pessoa coletiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo lega exija: a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado; b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante atue no interesse do representado.”

Mais estipulando o artigo 7.º, n.º1 do mesmo diploma que as pessoas coletivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infrações previstas no RGIT quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse coletivo.

Os pressupostos do crime continuado, previsto no artigo 30.º n.º 2 do Código Penal são: - a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico; - a execução por forma essencialmente homogénea; - no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

No caso, tendo ficado provado que o arguido AA, em representação da sociedade arguida, descontou, mas não entregou à Segurança Social, cotizações referentes aos períodos elencados no quadro representado no facto provado 6, num valor total de €116.990,20, comportamento que se manteve nos 90 dias após o prazo legal de entrega e nos 30 dias subsequentes à notificação para pagamento voluntário, tendo atuado de modo livre, consciente e voluntário, conclui-se que se encontram preenchidos, quanto a si, enquanto administrador da sociedade arguida, e quanto à sociedade arguida, tanto o elemento objetivo como subjetivo do tipo de ilícito em causa.

Resta saber se o arguido AA, e com ele a sociedade arguida, praticaram (a) um crime continuado,(b) um único crime por ter havido uma única resolução criminosa que abrangeu todo o comportamento delitual ou (c) tantos crimes quantos os períodos referidos em 6.

Apreciando, dos factos provados, dúvidas não restam que o arguido AA, sendo quem geria de facto a sociedade arguida e que nessa qualidade estava obrigado a realizar aqueles descontos, realizou múltiplas vezes o mesmo tipo de crime (de abuso de confiança contra a Segurança Social), de forma essencialmente homogénea (através da não entrega mensal à Segurança Social das quantias correspondentes às cotizações) e no quadro da solicitação do mesmo fator exterior diminuidor da culpa (configurado num facilitismo gerado pela não atuação do Estado perante os primeiros ilícitos observados).

Neste pressuposto, o arguido AA, e por via dele a sociedade arguida, cometeram um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social.

Relativamente à qualificação do ilícito nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º5 do RGIT, somos do entendimento que, não tendo em nenhuma das declarações o valor das cotizações retidas e não entregues superado o montante de € 50.000,00, ao abrigo do n.º7 daquela norma, por remissão do artigo 107.º, n.º2, o abuso de confiança contra a segurança social, deverá ser enquadrado na forma simples e não na forma qualificada.

Neste sentido, atente-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-02-2010, relatado pelo Cons. Raúl Borges (proc. n.º 106/01.9IDPRT, disponível em www.dgsi.pt), que cita doutrina no mesmo sentido, em que a questão era abordada em idênticos termos e que aqui acompanhamos:

“Estabelece o n.º 7 do artigo 105.º: “Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária”.

Trata-se de norma absolutamente idêntica ao n.º 3 do artigo 103.º, respeitante ao crime de fraude

fiscal, sendo uma sua reprodução integral, ipsis verbis.

Susana Aires de Sousa, in Os Crimes fiscais, pág. 143/4, a propósito do n.º 5 do artigo 105.º, refere que podendo o valor das prestações não entregues à administração tributária funcionar como uma circunstância modificativa agravante do crime de abuso de confiança fiscal, a punição deste crime na forma continuada deve atender não ao valor total de todas as prestações que integram a continuação criminosa, mas ao valor de cada uma daquelas prestações.

Tem sido entendido que a consideração de crime continuado ou de um único crime não afasta o

dispositivo do n.º 7, como de resto fez o Colectivo para afastar o crime qualificado.

A regra da relevância do valor de cada declaração consta de forma directa nos artigos 103.º, n.º 3 e 105.º, n.º 7, este reproduzindo aquele ipsis verbis, e por remissão o n.º 7 do artigo 105.º é aplicável aos crimes de fraude e abuso de confiança contra a segurança social - artigos 106.º, n.º 2 e 107.º, n.º 2.”

No que concerne aos arguidos BB e FF, por não se mostrarem preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do ilícito em apreço, deverão ser absolvidos.


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Escolha e medida da pena

Ao abrigo do disposto nos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa de liberdade e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.

As finalidades de punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º1 do Código Penal).

A finalidade de proteção de bens jurídicos equivale à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, correspondendo às necessidades de prevenção geral positivas. Já a reintegração do agente na sociedade resume o outro polo que justifica a necessidade de aplicação da pena, doutrinalmente designado de prevenção especial positiva.

Acresce que não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa (artigo 40.º, nº 2, do Código Penal).

E estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º2, do Código Penal que na determinação da medida concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

Por fim dispõe o artigo 13.º do Regime Geral das Infrações Tributárias que: “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”

No caso, verifica-se que as exigências de prevenção geral são assaz elevadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícito, com prejuízo para o Estado-Segurança Social, que cada vez se encontra mais depauperado pela inversão da pirâmide etária (que resulta da diminuição da população ativa e no progressivo aumento dos pensionistas), mas também pela prática recorrente deste tipo de ilícitos.

É importante, por esse motivo, transmitir à sociedade que as contribuições da Segurança Social não estão ao dispor das entidades empregadoras e dos seus representantes para a realização de jogos de contabilidade, ou para acorrer a necessidades de tesouraria; e importa alertar, também, que as contribuições da Segurança Social são elas próprias uma parte importantíssima da garantia de que o Estado de Direito Social terá um futuro apoiado na coesão e equilíbrio entre as várias camadas da sociedade.

Por outro lado, contra os arguidos, deve considerar-se:

- O grau muito elevado da ilicitude do facto, consubstanciado no período de cerca de 3 anos em que persistiu a conduta criminosa e o valor global das deduções não entregues, que é alto;

- O dolo direto na prática do ilícito.

No que concerne a antecedentes criminais / conduta anterior e posterior à prática do ilícito / inserção social:

- O arguido AA e a sociedade arguida já contam com um antecedente criminal pela prática de ilícito semelhante contra o Estado Fazenda Pública, ainda que os factos sejam contemporâneos dos destes autos, o que poderá motivar a eventual realização futura de cúmulo jurídico de penas;

- O arguido AA aparenta integração social, apesar de neste momento estar desempregado.

Pelo exposto, tudo considerado, opta-se pela aplicação de uma pena de prisão ao arguido AA, que neste caso concreto se impõe por motivos de prevenção geral – já que não seria compreendido pela comunidade a aplicação de uma pena de multa num caso em que a gravidade da ilicitude já se mostra elevada, quer pelo valor não entregue, quer pelo tempo em que perdurou a conduta criminosa – fixando-se a mesma em 2 anos e 4 meses de prisão.

Quanto à sociedade arguida, fixa-se uma pena de 300 dias de multa, cujo montante diário, convocando o disposto no artigo 15.º, n.º1 do RGIT, vista a situação de insolvência, se fixa no mínimo legal, em € 5,00, num total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).


*

Substituição da pena de prisão

Dispõe o artigo 50.º do Código Penal, acerca da “Suspensão da Pena de Prisão”, sob a epígrafe “Pressupostos e Duração”:

“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

(…)

4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.” Já o artigo 51.º, n.º1 do Código Penal estatui que:

“1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.”

Prevendo o artigo 52.º, n.º 1 do Código Penal, que “o tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente:

a) Residir em determinado lugar;

b) Frequentar certos programas ou actividades;

c) Cumprir determinadas obrigações.”

Por fim, dispõe o artigo 14.º, n.º1 do RGIT que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

Todavia, como se deixou expresso no Acórdão da Uniformização de Jurisprudência n.º8/2012, de 24 de outubro (sublinhado nosso) “[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”

Com efeito, e como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25-02-2019 (rel. Des. Cândida Martino, proc. n.º 64/15.2T9VNC, disponível em www.dgsi): “(…) tal dispositivo legal deve ser interpretado conjugadamente com o artigo 51º, n.º 2, do Código Penal e daí que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só deverá ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida. (…) Em vez de se estabelecer uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, a interpretação conjugada do citado art. 14 com o disposto no art. 51º,nº2, do C.Penal, de acordo com o qual “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, permite que o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão só seja imposto quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida. (…) Tal dever de pagamento também não tem de ser na totalidade do devido, podendo ser objecto de graduação/redução.”

No caso dos autos, o arguido AA, encontra-se socialmente inserido, é ainda jovem e apresenta “apenas” um antecedente criminal por factos contemporâneos aos dos presentes autos. Pelo exposto, somos do entendimento que a ameaça da pena de prisão e o juízo de censura serão suficientes para evitar que torne a delinquir e, nesses termos, a suspensão da pena de prisão surge como o melhor remédio punitivo.

No que respeita ao período em que deverá vigorar a suspensão, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º5 do Código Penal, dada a gravidade do ilícito e de modo a controlar o comportamento futuro do arguido, nomeadamente para se apurar se voltou a delinquir, parece-nos necessário, adequado e proporcional suspender a pena de prisão por 3 anos e 6 meses.

Relativamente ao condicionamento da suspensão da pena ao pagamento das cotizações em dívida à Segurança Social, a atual situação de desemprego do arguido AA, não nos permite perspetiva que venha a ter possibilidades de liquidar, no prazo da suspensão, a quantia global de €116.990,20, acrescida dos juros de mora.

Ainda assim, sendo ainda jovem e tendo em conta que já tem experiência laboral como administrador de sociedades anónimas, pode perspetivar-se, recorrendo às regras da experiência comum, que venha a encontrar emprego facilmente e a reunir meios de pagar, pelo menos, parte do prejuízo que causou ao Estado Segurança Social e do qual, aliás, está a beneficiar auferindo subsídio de desemprego.

Donde, o tribunal condiciona a suspensão da execução da pena de prisão à obrigação de o arguido, no prazo de 3 anos, comprovar nos autos a entrega à Segurança Social o montante de € 30.000,00 de cotizações em dívida, condição que, sendo cumprida, não bule, naturalmente, com a sua condenação, em sede civil e de perda de vantagens, do pagamento da totalidade da dívida e seus acrescentos legais.

(…)”

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II.4- Apreciemos, então, as questões a decidir.


II.4.1- Da nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por não ter operado à prévia formulação do juízo de prognose quanto à efectiva capacidade do arguido para satisfazer a condição de suspensão imposta pelo art. 14º do RGIT, como o obriga o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012

Veio o arguido recorrente alegar que a decisão recorrida padece de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, por estar em causa um crime fiscal punível com pena de prisão ou multa, não tendo aquela operado, logo na opção pela pena a aplicar, à prévia formulação do juízo de prognose quanto à efectiva capacidade do arguido para satisfazer a condição de suspensão imposta pelo art. 14º do RGIT, como o obriga o acórdão de fixação de jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, nº 8/2012 (publicado no DR nº 206, 1ª série, de 24/10/2012).

Em resposta, o Ministério Público junto da 1ª instância [no que foi acompanhado pela Exmª Procuradora-Geral Adjunta, no seu parecer, junto deste Tribunal da Relação], entende que nenhum reparo há a fazer à decisão recorrida, considerando não se verificar a apontada nulidade, pois foi cumprido o necessário juízo de prognose da efectiva possibilidade de cumprimento, por parte do arguido, da condição imposta, considerando também o montante a pagar, de apenas € 30.000,00, e o período concedido para tal pagamento - três anos, concluindo, assim, que a sentença não é nula nos termos do disposto no art. 379º, n.º 1, al. c), do CPP..

Cumpre apreciar.

Antes de mais e como bem chama a atenção o Ministério Público junto da 1ª instância, na sua resposta ao recurso do arguido, ao contrário do que decorre da argumentação recursiva deste, a suspensão da execução da pena de prisão, em que o arguido foi condenado pelo Tribunal a quo, ficou unicamente dependente do pagamento da quantia de € 30.000,00, no prazo de 3 anos a contar da data do trânsito em julgado, de um total de € 116.990,20, acrescido dos correspondentes juros, que o arguido também ficou condenado a pagar, mas não como condição de suspensão da execução da pena, antes a título de indemnização civil, solidariamente com a empresa arguida.

Feita a devida correcção do alegado, cumpre prosseguir.

A primeira e primordial questão trazida a este Tribunal de recurso prende-se com o juízo de prognose a que se reporta o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012, e, em última análise, com a condição de pagamento imposta pela suspensão da pena de prisão, decorrente do disposto no art. 14º do RGIT, assente que está o cometimento pelo arguido recorrente de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 6.º, nº 1, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal, na medida em que não são questionados pelo arguido os factos fixados pelo Tribunal a quo ou o respectivo enquadramento jurídico, pelo que não cabe a este Tribunal ad quem pronunciar-se sobre tais aspectos, sendo certo que não se vislumbra que exista qualquer desconformidade na sentença que deva ser conhecida oficiosamente, mormente algum dos vícios elencados no artigo 410º do Código de Processo Penal.

Reza assim o referido art. 14º do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, sob a epígrafe “Suspensão da execução da pena de prisão”:

«1 - A suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa

A densificação da estatuição do artigo 14.º do RGIT impõe a conclusão de que, em caso de condenação por crime de abuso de confiança fiscal ou à segurança social que preveja em alternativa pena de prisão ou de multa, por ocorre in casu, escolhida a pena de prisão e optando-se pela suspensão da execução de tal pena, haverá que ponderar a razoabilidade da imposição da condição estabelecida pelo artigo 14.º, n.º 1 do RGIT, considerando o concreto e real circunstancialismo fáctico de vida do devedor, com particular enfoque na sua situação económica, conforme superiormente decidido no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2012 de 12 de Setembro.

Com efeito, reza assim o referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, de 24 de Outubro (fixação de jurisprudência):

« No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.»

Assim, estando em causa um crime fiscal punível com pena de prisão ou multa, a opção pela pena de prisão (e não apenas a subsequente determinação da suspensão da respectiva execução), tomada pelo tribunal de primeira instância, não pode prescindir de uma prévia formulação do juízo de prognose quanto à efectiva capacidade (presente e futura) do arguido para satisfazer a condição – que é de natureza obrigatória e, por isso, também não podia deixar de ser determinada, caso o resultado daquele juízo de ponderação fosse positivo.

Importa sublinhar que a necessidade do juízo de prognose a que se reporta o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012 só se verifica quando o crime tributário em questão é punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos do artigo 14°, n° 1, do RGIT) ou outra pena não privativa da liberdade. Esta jurisprudência, directamente aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105°, n° 1, do R.G.I.T. – crime punível com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução) ou pena de multa -, é também aplicável a outros crimes tributários puníveis com pena de prisão (eventualmente suspensa na sua execução, nos termos indicados) ou pena de multa.

Assim, estando em causa um crime fiscal punível com pena de prisão ou pena de multa, a opção pela pena de prisão e subsequente determinação da suspensão da respectiva execução, tomada pelo tribunal de primeira instância, não pode prescindir da prévia formulação do juízo de prognose quanto à efectiva capacidade (presente e futura) do arguido para satisfazer a condição – que é de natureza obrigatória e, para além disso, de conteúdo económico exacto, sem possibilidade de configuração parcial, de qualquer redução, corte ou desconto, configurando-se como pena fixa.

Cumpre, então, transpor tais ensinamentos ao caso revidendo, o que é por dizer, que cumpre apreciar se, in casu, o Tribunal recorrido procedeu ao necessário juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição legal imposta pelo art. 14º do RGIT, tendo em conta a concreta situação económica, presente e futura, do condenado.

Ora, resulta do elenco factual apurado nos autos, que o arguido estudou até ao 12.º ano de escolaridade, vive com a mãe em casa desta e encontra-se desempregado, recebendo de subsídio de desemprego cerca de € 500,00. Mas também resulta dos autos, tal como consta da sentença recorrida e até do alegado pelo próprio arguido no seu recurso, que o arguido é pessoa familiar e socialmente integrada, tendo nascido em ../../1997, contando actualmente 26 anos, sendo por isso um jovem, e como bem pode ler-se na sentença que: (…) sendo ainda jovem e tendo em conta que já tem experiência laboral como administrador de sociedades anónimas, pode perspetivar-se, recorrendo às regras da experiência comum, que venha a encontrar emprego facilmente e a reunir meios de pagar, pelo menos, parte do prejuízo que causou ao Estado Segurança Social e do qual, aliás, está a beneficiar auferindo subsídio de desemprego. Donde, o tribunal condiciona a suspensão da execução da pena de prisão à obrigação de o arguido, no prazo de 3 anos, comprovar nos autos a entrega à Segurança Social o montante de € 30.000,00 de cotizações em dívida, condição que, sendo cumprida, não bule, naturalmente, com a sua condenação, em sede civil e de perda de vantagens, do pagamento da totalidade da dívida e seus acrescentos legais. O arguido AA aparenta integração social, apesar de neste momento estar desempregado”.

Resulta claro, pois, da leitura da decisão recorrida, maxime do segmento atrás citado, que o Tribunal a quo procedeu ao juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação da condição imposta pelo art. 14º do RGIT, como imposto pelo AUJ nº 8/2012, pois que indagou e considerou, ao contrário do alegado pelo recorrente, as condições económicas (presentes e futuras) do arguido recorrente, como, aliás, também o demonstra a circunstância de ter decidido, depois, fixar o valor da condição de suspensão da pena de prisão num pagamento meramente parcelar (e não por inteiro), do montante global devido ao Estado.

E porque o fez, não se vislumbra a invocada nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 379º, n.º 1, al. c), do CPP.

Diferente é a questão de saber se tal juízo de razoabilidade, imposto pelo citado AUJ nº 8/2012, de 24/10, operado pelo Tribunal a quo, foi correctamente realizado, o que se apreciará no âmbito da análise da próxima questão decidenda.

Improcede, pois, o recurso, neste segmento.

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II.4.2- Da natureza da pena aplicada e do respectivo quantum

Veio o arguido recorrente alegar que deveria ter sido condenado em pena de multa e não em pena de prisão, porque tem apenas uma condenação anterior e por crime diverso, sendo a pena concretamente aplicada excessiva e desproporcional, ultrapassando a culpa, em violação dos arts. 40º, 41º, 70º e 71º, todos do C.P..

Em resposta, o Ministério Público junto da 1ª instância [no que foi acompanhado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, junto deste Tribunal da Relação], entende que nenhum reparo há a fazer à decisão recorrida, considerando não ser admissível que o arguido recorrente fosse condenado em pena de multa, atentos os valores em causa que não foram entregues à Segurança Social, no valor global de € 116.990,20, e atentos os seus antecedentes criminais, realçando a similitude entre os tipos legais de crime pelos quais o arguido recorrente foi condenado, pois quer no crime de abuso de confiança à Segurança Social quer no crime de abuso de confiança fiscal, o dever é o mesmo, o de entregar valores recebidos ou retidos ao Estado (Segurança Social ou AT consoante o caso), daí que até estejam regulamentados pelo mesmo diploma – RGIT, sendo que o art. 105º até é aplicável a ambos os crimes.

Mais entende que a determinação da medida concreta da pena foi efectuada dentro dos limites definidos pela lei e em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Cumpre apreciar.

No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, seguindo o paralelismo da jurisprudência quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no seguinte:

A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.

A censura que o tribunal de recurso pode opinar sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final.

É função do recurso (…), antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.[4]

“Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada”.[5]

Perante tais considerandos, forçoso será concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quando ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.

Ou seja, mostrando-se respeitados os princípios basilares e as normas legais aplicáveis no que respeita à fixação do quantum da pena e respeitando esta o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir, alterando a pena fixada na decisão recorrida, pela simples razão de que, nesse caso, aquela decisão não padece de qualquer vício que cumpra reparar.

Isto posto.

Porque se refere às finalidades das penas e medidas de segurança, importa ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Por sua vez, decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial do agente, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime [para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata], “considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.

Decorre, por fim, do nº 3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2005[6], “na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”.

A culpa traduz-se num juízo de reprovação da conduta do agente, censurando-a em face do ordenamento jurídico-penal.

Com efeito, o facto punível não se esgota na desconformidade da conduta do agente perante o ordenamento jurídico-penal, com a ação ilícita-típica, sendo, ainda, necessário que a conduta do agente seja culposa, isto é, que o facto por si praticado possa ser pessoalmente censurado, traduzindo-se, assim, numa atitude pessoal e juridicamente desaprovada, pela qual o agente terá de responder.

Por seu lado, as exigências de prevenção têm a ver com a proteção dos bens jurídicos [prevenção geral] e a reintegração do agente na sociedade [prevenção especial], as quais nos termos do disposto no artigo 40º, n.º 1 do Código Penal constituem as finalidades da aplicação das penas e das medidas de segurança, conforme já referimos supra.

A medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e ser definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização, não podendo ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

É o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.[7]

Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar.[8]

Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.

Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial, atentando-se no caso concreto, e não exceder a medida da culpa do agente.

Desçamos, ora, ao caso revidendo, à luz dos considerandos acabados de expor.

O arguido recorrente foi condenado nos autos pela prática, na forma consumada e continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do artigo 6.º, nº 1, 105.º, n.º 1 e 107.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias, e 30.º, n.º2 e 79.º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, que se suspendeu na sua execução por 3 (três) anos e 6 (seis) meses, na condição de o arguido pagar, no período de 3 (três) anos contados do trânsito em julgado, a comprovar nos autos, o montante de € 30.000,00 (trinta mil euros) à Segurança Social, referente a parte das cotizações em falta.

Vejamos.

O crime de abuso de confiança contra a Segurança Social em que o arguido recorrente foi condenado é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Perante tal alternatividade penal, a primeira tarefa que se impôs ao Tribunal a quo, foi proceder à prévia opção imposta pelo art. 70º do Código Penal, que, sob a epígrafe “Critério de escolha da pena”, reza assim:

«Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição

Revisitemos a decisão recorrida, atentando ao que ali se disse a propósito da determinação da medida concreta da pena:

“(…)

Escolha e medida da pena

Ao abrigo do disposto nos artigos 105.º, n.º 1 e 107º, n.ºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, o crime de abuso de confiança contra a segurança social é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa de liberdade e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.

As finalidades de punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, n.º1 do Código Penal).

A finalidade de proteção de bens jurídicos equivale à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, correspondendo às necessidades de prevenção geral positivas. Já a reintegração do agente na sociedade resume o outro polo que justifica a necessidade de aplicação da pena, doutrinalmente designado de prevenção especial positiva.

Acresce que não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa (artigo 40.º, nº 2, do Código Penal).

E estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º2, do Código Penal que na determinação da medida concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

Por fim dispõe o artigo 13.º do Regime Geral das Infrações Tributárias que: “Na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.”

No caso, verifica-se que as exigências de prevenção geral são assaz elevadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícito, com prejuízo para o Estado-Segurança Social, que cada vez se encontra mais depauperado pela inversão da pirâmide etária (que resulta da diminuição da população ativa e no progressivo aumento dos pensionistas), mas também pela prática recorrente deste tipo de ilícitos.

É importante, por esse motivo, transmitir à sociedade que as contribuições da Segurança Social não estão ao dispor das entidades empregadoras e dos seus representantes para a realização de jogos de contabilidade, ou para acorrer a necessidades de tesouraria; e importa alertar, também, que as contribuições da Segurança Social são elas próprias uma parte importantíssima da garantia de que o Estado de Direito Social terá um futuro apoiado na coesão e equilíbrio entre as várias camadas da sociedade.

Por outro lado, contra os arguidos, deve considerar-se:

- O grau muito elevado da ilicitude do facto, consubstanciado no período de cerca de 3 anos em que persistiu a conduta criminosa e o valor global das deduções não entregues, que é alto;

- O dolo direto na prática do ilícito.

No que concerne a antecedentes criminais / conduta anterior e posterior à prática do ilícito / inserção social:

- O arguido AA e a sociedade arguida já contam com um antecedente criminal pela prática de ilícito semelhante contra o Estado Fazenda Pública, ainda que os factos sejam contemporâneos dos destes autos, o que poderá motivar a eventual realização futura de cúmulo jurídico de penas;

- O arguido AA aparenta integração social, apesar de neste momento estar desempregado.

Pelo exposto, tudo considerado, opta-se pela aplicação de uma pena de prisão ao arguido AA, que neste caso concreto se impõe por motivos de prevenção geral – já que não seria compreendido pela comunidade a aplicação de uma pena de multa num caso em que a gravidade da ilicitude já se mostra elevada, quer pelo valor não entregue, quer pelo tempo em que perdurou a conduta criminosa – fixando-se a mesma em 2 anos e 4 meses de prisão.

Quanto à sociedade arguida, fixa-se uma pena de 300 dias de multa, cujo montante diário, convocando o disposto no artigo 15.º, n.º1 do RGIT, vista a situação de insolvência, se fixa no mínimo legal, em € 5,00, num total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).


*

Substituição da pena de prisão

Dispõe o artigo 50.º do Código Penal, acerca da “Suspensão da Pena de Prisão”, sob a epígrafe “Pressupostos e Duração”:

“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

(…)

4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.” Já o artigo 51.º, n.º1 do Código Penal estatui que:

“1 - A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:

a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;

b) Dar ao lesado satisfação moral adequada;

c) Entregar a instituições, públicas ou privadas, de solidariedade social ou ao Estado, uma contribuição monetária ou prestação de valor equivalente.”

Prevendo o artigo 52.º, n.º 1 do Código Penal, que “o tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente:

a) Residir em determinado lugar;

b) Frequentar certos programas ou actividades;

c) Cumprir determinadas obrigações.”

Por fim, dispõe o artigo 14.º, n.º1 do RGIT que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

Todavia, como se deixou expresso no Acórdão da Uniformização de Jurisprudência n.º8/2012, de 24 de outubro (sublinhado nosso) “[n]o processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, pelo que a falta desse juízo implica nulidade da sentença por omissão de pronúncia.”

Com efeito, e como se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25-02-2019 (rel. Des. Cândida Martino, proc. n.º 64/15.2T9VNC, disponível em www.dgsi): “(…) tal dispositivo legal deve ser interpretado conjugadamente com o artigo 51º, n.º 2, do Código Penal e daí que nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só deverá ser imposto o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida. (…) Em vez de se estabelecer uma correspondência automática entre o montante da quantia em dívida e o montante da quantia a pagar como condição de suspensão da execução da pena de prisão, a interpretação conjugada do citado art. 14 com o disposto no art. 51º,nº2, do C.Penal, de acordo com o qual “os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir”, permite que o dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão só seja imposto quando do juízo de prognose realizado resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida. (…) Tal dever de pagamento também não tem de ser na totalidade do devido, podendo ser objecto de graduação/redução.”

No caso dos autos, o arguido AA, encontra-se socialmente inserido, é ainda jovem e apresenta “apenas” um antecedente criminal por factos contemporâneos aos dos presentes autos. Pelo exposto, somos do entendimento que a ameaça da pena de prisão e o juízo de censura serão suficientes para evitar que torne a delinquir e, nesses termos, a suspensão da pena de prisão surge como o melhor remédio punitivo.

No que respeita ao período em que deverá vigorar a suspensão, nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º5 do Código Penal, dada a gravidade do ilícito e de modo a controlar o comportamento futuro do arguido, nomeadamente para se apurar se voltou a delinquir, parece-nos necessário, adequado e proporcional suspender a pena de prisão por 3 anos e 6 meses.

Relativamente ao condicionamento da suspensão da pena ao pagamento das cotizações em dívida à Segurança Social, a atual situação de desemprego do arguido AA, não nos permite perspetiva que venha a ter possibilidades de liquidar, no prazo da suspensão, a quantia global de €116.990,20, acrescida dos juros de mora.

Ainda assim, sendo ainda jovem e tendo em conta que já tem experiência laboral como administrador de sociedades anónimas, pode perspetivar-se, recorrendo às regras da experiência comum, que venha a encontrar emprego facilmente e a reunir meios de pagar, pelo menos, parte do prejuízo que causou ao Estado Segurança Social e do qual, aliás, está a beneficiar auferindo subsídio de desemprego.

Donde, o tribunal condiciona a suspensão da execução da pena de prisão à obrigação de o arguido, no prazo de 3 anos, comprovar nos autos a entrega à Segurança Social o montante de € 30.000,00 de cotizações em dívida, condição que, sendo cumprida, não bule, naturalmente, com a sua condenação, em sede civil e de perda de vantagens, do pagamento da totalidade da dívida e seus acrescentos legais.

(…)”

Ora, face à factualidade apurada nos autos, não temos por acertada a opção feita pelo Tribunal a quo pela aplicação de pena privativa da liberdade, maxime pela boa realização do juízo de razoabilidade imposto pelo supracitado AUJ nº 8/2012, de 24/10, quanto à aplicação da condição de suspensão decorrente do disposto no art. 14º do RGIT.

Com efeito, discorda-se do juízo de prognose operado pelo Tribunal a quo quanto à efectiva capacidade económica, presente e futura, do arguido recorrente de proceder ao pagamento [ainda que parcial] da quantia devida ao Estado.

Não irá este Tribunal de recurso adentrar pelo debate jurisprudencial e doutrinal relativo à imposição de condições parciais de pagamento, porquanto, não tendo havido recurso do Ministério Público, quanto a tal circunstância, tal nos é vedado pelo princípio da “reformatio in pejus”, consagrado no art. 409º, nº 1, do CPP, que impede o tribunal superior de agravar, na espécie ou na medida, as sanções impostas pelo tribunal recorrido.

Irá, pois, focar-se a análise deste Tribunal ad quem unicamente no acerto ou desacerto daquele juízo de prognose realizado pelo Tribunal recorrido.

In casu, tendo resultado apurado que o arguido recorrente estudou até ao 12.º ano de escolaridade, vive com a mãe em casa desta e encontra-se desempregado, recebendo de subsídio de desemprego cerca de € 500,00, parece-nos que a imposição de uma condição de pagamento, mesmo a que foi concretamente aplicada pelo Tribunal recorrido – parcial, de € 30.000 - com elevado grau de certeza, será incumprida por aquele, revelando-se, assim, a final, inútil.

Face aos factos dados como provados quanto à situação económica e financeira do arguido recorrente, não é razoável a imposição do pagamento nem da quantia de € 30.000,00, mesmo no prazo de 3 anos, por dessa forma se colocar em crise o critério de razoabilidade na imposição de tal dever, não sendo previsível na fase de vida do arguido, desempregado e ainda um jovem de 27 anos, com inerente pouca maturidade profissional, e quiçá pessoal, o pagamento de tal quantia.

Ora, o julgador, concluindo pela impossibilidade do cumprimento, deve reponderar a hipótese de optar por pena de multa, “pois o processo de confeção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes[9] (negrito nosso)

Isto porque “o que é de aplicação automática é a condição, não a suspensão, que demanda formulação de lógico juízo prévio; para que se verifique a imposição do condicionamento necessário é que antes se tenha optado exatamente pela suspensão, uma suspensão com contornos especiais, mas exatamente por isso a merecer maiores cuidados. A suspensão está subordinada, ela própria, à verificação de pressupostos, carecendo de avaliação a situação presente”.

No caso revidendo, o Tribunal a quo, ainda que tenha obedecido à necessidade de formulação do prévio juízo de prognose, não o fez, a nosso ver, correctamente.

Desde logo e ainda que não desenvolvendo este ponto por não ter sido objecto de recurso, concluiu pela possibilidade de suspensão de execução da pena de prisão previamente determinada ao arguido recorrente, mediante a imposição de uma condição de conteúdo económico parcial, contrariando, assim, a obrigatoriedade legal de sujeição da suspensão de execução da pena de prisão ao pagamento da totalidade da prestação tributária e acréscimos legais e do montante dos benefícios indevidamente obtidos, sem qualquer redução, nos termos do artigo 14°, n° 1, do R.G.I.T., tal como impõe o acórdão de uniformização de jurisprudência n° 8/2012.

Depois e focando aqui a pertinência da apreciação deste Tribunal de recurso, deveria o Tribunal recorrido, face ao cenário fáctico global atinente às condições económicas e financeiras do arguido recorrente, ter concluído pela não razoabilidade da condição de pagamento imposta, cuja impossibilidade do cumprimento se revela praticamente como uma inevitabilidade.

Deveria, então, o Tribunal a quo, na eventualidade de considerar inapropriada in concreto a efectividade da pena de prisão, recuar na sua opção pela prisão, optando, antes, por pena de multa.

Acompanhamos de perto, no que a este procedimento legal respeita, o acórdão do TRC de 19/5/2021 (relatado pela Desembargadora Ana Carolina Cardoso e disponível para consulta em www.dgsi.pt), segundo o qual os passos a seguir pelo tribunal são obrigatoriamente os seguintes e que resultam de forma clara do AUJ n.º 8/2012:

a) No caso de o crime fiscal ser punível, em abstrato, e em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa, o julgador opta, perante as circunstâncias, por uma das penas;

b) Caso a opção seja a pena de prisão, após a determinação da pena em concreto, pondera a eventual aplicação de uma pena de substituição;

c) Se a opção incidir sobre a suspensão da execução da pena de prisão, tem o julgador de considerar, para a sua aplicação, a imposição obrigatória da condição prevista no art. 14º, n.º 1, do RGIT;

d) Nessa altura, deverá efectuar um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura, sob pena de nulidade (conforme impõe o AUJ);

e) Concluindo pela impossibilidade, presente e futura, de o condenado poder cumprir a condição, cuja aplicação é automática, deverá o julgador regressar ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar, prisão ou multa);

f) Se for de afastar a aplicação da pena de multa, por via do art. 70º do Código Penal, e concluir pela incapacidade do condenado de cumprir a condição de suspensão legalmente imposta pelo art. 14º, n.º 1, do RGIT, nem deva/possa ter lugar outra pena de substituição, terá o condenado de cumprir a pena de prisão.

No mesmo sentido, temos vindo a acompanhar de perto o acórdão deste TRP, datado de 11/04/2024 e relatado pela Desembargadora Liliana de Páris Dias, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

No caso revidendo, tendo o Tribunal a quo concluído pela impossibilidade de cumprimento pelo arguido recorrente da totalidade da condição legalmente imposta, não lhe cabia proceder à sua redução, como fez - pois, como vimos, a lei não contempla tal possibilidade -, mas antes regressar ao primeiro passo da decisão relativa à determinação da sanção (escolha da pena a aplicar: prisão ou multa).

Sendo assim, e concordando-se com o juízo de prognose negativo relativo à capacidade de satisfação, pelo arguido recorrente, da condição pecuniária legalmente imposta, em face do seu concreto e muito elevado montante - no mínimo, desconsiderando os acréscimos a que alude a lei, €116.990,20 -, resta-nos analisar a viabilidade de aplicação de uma pena de multa.

Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão [10].

In casu, o Tribunal de 1ª instância aplicou ao arguido uma pena de prisão (que, posteriormente, suspendeu na respectiva execução), justificando a referida escolha da espécie de pena nos seguintes moldes: « Pelo exposto, tudo considerado, opta-se pela aplicação de uma pena de prisão ao arguido AA, que neste caso concreto se impõe por motivos de prevenção geral – já que não seria compreendido pela comunidade a aplicação de uma pena de multa num caso em que a gravidade da ilicitude já se mostra elevada, quer pelo valor não entregue, quer pelo tempo em que perdurou a conduta criminosa – fixando-se a mesma em 2 anos e 4 meses de prisão.»

Na verdade, tal como vem sendo realçado pela jurisprudência, as exigências de prevenção geral neste domínio são prementes, porquanto é sabido que entre nós a evasão fiscal assume proporções escandalosas, sendo ainda razoável suspeitar da existência de elevadíssimas cifras negras, as quais muitas vezes apenas são confirmadas pelas largas dezenas de milhões de euros recuperados pelo Estado mediante planos de recuperação fiscal, a que apenas aderem, por regra, os contribuintes cuja evasão foi detectada. E esta situação de fuga generalizada à tributação acarreta imensas desigualdades sociais, cria uma imagem de impunidade que põe em causa a coesão social e faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deveria ter presente ao pagar os seus impostos ou contribuições para a segurança social.

Daí que seja normalmente defendido que, neste tipo de criminalidade e salvo situações excepcionais, seja de optar pela aplicação da pena de prisão em detrimento da pena de multa [11]

Entendemos, no entanto, que as especificidades do caso revidendo e a sua repercussão favorável ao nível das exigências prevenção geral e especial, ainda consentem a aplicação ao arguido recorrente de uma pena de multa.

Com efeito, e embora se reconheça que a ilicitude é elevada, quer ao nível do desvalor de acção, quer ao nível do desvalor do resultado, tendo o arguido persistido no comportamento ilícito em apreço durante um período de tempo considerável (3 anos) e causado um prejuízo acentuado à segurança social (€116.990,20), certo é também que, conforme se apurou nos autos – vd. ponto 8 dos factos provados, o arguido utilizou as quantias não entregues em proveito da sociedade, afectando-as ao giro económico da sua actividade, o que parece ilustrar a motivação criminosa do arguido: assegurar a sobrevivência da sociedade; por outro lado, o único antecedente criminal que o arguido apresenta tem a ver com o mesmo tipo de crime praticado pelo arguido e a mesma sociedade arguida, em período temporal contemporâneo com os destes autos (podendo até, dizemos nós, quiçá, ter sido alvo de um processo único); além de que o arguido é ainda um jovem, actualmente com 27 anos de idade, e encontra-se inserido na sociedade.

Ora, estas circunstâncias configuram factores susceptíveis de mitigar, de forma relevante, não só as exigências de prevenção especial, mas também as de prevenção geral, assegurando, apesar de tudo, a manutenção da confiança comunitária na validade da norma violada mediante a aplicação de uma pena de multa.

Como vimos, no caso, o crime é punível com pena de multa até 360 dias, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 105º, nº 1 e 107º, do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho.

E como expusemos supra, a tarefa de determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites legalmente determinados, realiza-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização) que se façam sentir no caso concreto, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do C. Penal.

A pena visa, assim, finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena (cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes).

Através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objectivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40º, nº 1 do C. Penal).

A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, nº 2 do C. Penal).

Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena.

Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os factores elencados no art.º 71º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais factores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção.

Analisada a decisão condenatória, verificamos que todos os aludidos factores foram atendidos, sendo certo que o tribunal ponderou, na sentença recorrida, o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, bem como a intensidade do dolo; referenciou as necessidades de prevenção especial e teve em conta as necessidades de prevenção geral, reflectidas na danosidade social inerente ao ilícito em causa e na necessidade de preservar a paz social – tudo com observância do disposto nos artigos 40º, 70º e 71º, do C. Penal.

É da tensão dialéctica de factores que se repercutem, uns de forma positiva e outros negativamente, ao nível do juízo da culpa, que resulta a construção da medida da culpa, impondo limites inultrapassáveis às necessidades de prevenção.

Neste âmbito, importa assinalar que o dolo é directo – mas, em todo o caso, de intensidade normal para este tipo de crimes – e que a ilicitude do facto, ao nível do desvalor de acção, é significativa, mas a motivação que nos parece ilustrada no comportamento do arguido (manter a empresa em funcionamento, preservando, inerentemente, postos de trabalho, sem, ao que parece, intenção de obtenção de enriquecimento pessoal) atenua o juízo de censura que lhe pode ser dirigido.

Por outro lado, o único antecedente criminal que o arguido recorrente apresenta tem a ver com o mesmo tipo de crime praticado pelo mesmo e pela mesma sociedade arguida, em período temporal contemporâneo com os destes autos (podendo até, dizemos nós, quiçá, ter sido alvo de um processo único); além de que o arguido é ainda um jovem, actualmente com 27 anos de idade, e encontra-se inserido na sociedade.

Tudo ponderado, numa moldura abstracta de 10 a 360 dias, pensamos que a pena de 250 dias de multa revela-se suficiente para a defesa do ordenamento jurídico, reafirmando de forma adequada junto da comunidade a validade da norma jurídica violada, assegurando também a ressocialização do recorrente, quedando-se igualmente preservado o seu potencial de dissuasão da prática de novos crimes e não ultrapassando a medida da sua culpa.

Relativamente ao montante diário da pena de multa, correspondente a uma quantia entre (euro) 1 e (euro) 500, e que o tribunal deve fixar em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais (cf. o art.º 15.º, n.º 1, do RGIT), atendendo à factualidade que, sobre tal matéria, resultou provada, afigura-se-nos adequado o montante diário de € 6,00 (seis euros).

Procede, assim, o recurso, neste segmento, decidindo-se aplicar ao arguido recorrente uma pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), revogando-se, assim, a pena de prisão que lhe foi aplicada pelo Tribunal recorrido e as demais decisões daí recorrentes.

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II.4.3- Da inconstitucionalidade da condição pecuniária imposta para a suspensão da execução da pena de prisão

Com a procedência do recurso na parte relativa à pena aplicada ao arguido, tendo o mesmo sido condenado por este Tribunal de recurso, nos termos sobreditos, em pena de multa, com revogação da pena de prisão que lhe foi aplicada pela 1ª instância, resulta prejudicada a presente questão.

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II.4.4- Da aplicação ao arguido recorrente da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, devendo ser perdoada a pena em que foi condenado

É nosso entendimento que a análise e aplicação das leis de amnistia e perdão (no caso concreto, a Lei nº 38-A/2023, de 02-08) é da competência do Tribunal de 1.ª Instância, face aos termos do seu art. 14º, ainda que tal questão seja colocada, como foi, no recurso agora em apreciação, desde logo porquanto o normativo referido constitui lex specialis em relação ao preceituado pelo art. 474º, n.º 2 do CPP.

Como é referido no Ac. STJ, de 29/01/1992 (em CJ, 92, I, pág. 19), “(…) sempre que no recurso se não imponha a aplicação do perdão por necessidade de libertação imediata dos arguidos ou risco de excesso de prisão, deve ser deferida à 1ª instância a decisão sobre a sua aplicação (…)” - cfr. também no mesmo sentido, o Ac. STJ, de 27/09/2023; relatora: Maria do Carmo Silva Dias; em www.dgsi.pt.

Quer dizer, embora o art. 14º da Lei nº 38-A/2023, de 02-08, não exclua em absoluto a sua aplicação pela Relação (nomeadamente, nos casos excepcionais acima referidos), bem se compreende que se deixe essa aplicação para a 1ª Instância, até porque de outro modo iria ser suprimido um grau de jurisdição no que tange à decisão sobre a matéria.

Pelo exposto, não se conhece, nesta sede, da questão aludida, devendo a mesma ser apreciada pelo Tribunal da 1ª instância.

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III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, com a consequente revogação parcial do acórdão recorrido, condenando-se, em substituição do ali decidido, o arguido recorrente numa pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de 6 € (seis euros), revogando-se, assim, a pena de prisão que lhe foi aplicada pelo Tribunal recorrido e as demais decisões daí recorrentes, confirmando-se, quanto ao demais, a decisão recorrida.

Sem custas, nos termos do que decorre do preceituado no artigo 513º, nº 1 a contrario do Código de Processo Penal.

Notifique nos termos legais.

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Porto, 23 de Abril de 2025

(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelas Exmas. Juízas Desembargadoras Adjuntas – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)

As Juízas Desembargadoras,

Fernanda Sintra Amaral (Relatora)

Maria Deolinda Dionísio (1ªAdjunta), com a seguinte declaração:”Represtino aqui o meu entendimento inicial sobre o âmbito do princípio da especialidade em sede de crimes fiscais e bem assim da jurisprudência fixada no AUJ n.º 8/2012, afastando definitivamente a interpretação que consta do Acórdão desta Relação do Porto, proferido no processo n.º 2623/10.0TAMAI.P2, publicado in dgsi.pt que assinei como adjunta, mas na qual já não me revejo.”

Liliana Páris Dias (2ª Adjunta)

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[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
[3] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
[4] Cfr. Acórdãos do STJ de 09-05-2002, in CJ do STJ, 2002, Tomo 2, pág. 193 e de 27-05-2009, Processo n.º 09P0484, acessível em www.dgsi.pt
[5] Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, pág. 197
[6] In CJ do STJ, ano 2005, tomo 3, pág. 173.
[7] De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues, In “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss.
[8]   Cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 227 e ss.
[9] Vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 8/2012 (publicado no DR nº 206, 1ª série, de 24/10/2012)
[10] Como refere Anabela Miranda Rodrigues [In "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.], o Código Penal consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à substituição da pena de prisão.
Deste modo, o juiz deverá substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a aplicação da pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões de prevenção especial que aconselhassem a substituição cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.
[11] Cf., entre outros, o acórdão da Relação de Guimarães de 16/1/2006 e os acórdãos da Relação do Porto de 6/6/2007 e de 20/6/2012 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).