I – Na sucessão testamentária o escopo legislativo é, na medida do possível, honrar a vontade do autor da herança, compreendendo-se assim a opção legislativa de os bens legados não estarem sujeitos a licitação (mas apenas a avaliação), por referência, entre outros, ao disposto nos artigos 2030.º do Código Civil, C.C., e 1113.º, n.º 4 parte final, do Código de Processo Civil, C.P.C.
II – Perante tal desiderato do legislador, aos tribunais apenas compete decidir as questões legais que emerjam do processo de partilha, ficando as éticas que se suscitem reservadas para a autoconfrontação por cada herdeiro.
III – Depois de iniciadas as licitações não é admissível requerer a redução do legado por inoficiosidade, tendo em conta o teor, literal até, do disposto no art.º 1118.º, n.º 1, do C.P.C., “[q]ualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade”.
SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, C.P.C.):
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Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.ª Adjunta: Carla Fraga Torres e
2.º Adjunto: Miguel Baldaia de Morais.
ACÓRDÃO
I – RELATÓRIO
Nos presentes autos, com processo especial, de ação declarativa de inventário para partilha da meação dos bens deixados por óbito de AA, falecida aos ../../2021, no estado de casada no regime geral de comunhão de bens com BB, são herdeiros o viúvo, e cabeça de casal, e os três filhos: os dois recorrentes, CC e DD, bem como o recorrido, EE, todos mais bem identificados nos autos.
1) A presente ação deu entrada em juízo no dia 31/05/2021, tendo sido intentada pelo filho da falecida EE.
2) O viúvo e cabeça de casal prestou as suas declarações e compromisso de honra aos 15/11/2021, data em que também apresentou nos autos a relação de bens; para o que aqui releva, foram relacionadas, entre outras, as seguintes verbas([2]):
2.1) “VERBA QUINZE
Raiz do prédio urbano destinado a habitação, sito em Rua ...,
..., ... ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...61 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o número ...80 (seiscentos e oitenta) com o valor patrimonial ............................€36.370,75”.
2.2) “VERBA DEZASSEIS
Raiz do prédio urbano para habitação, sita em Rua ...,
..., ... ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...98 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o número ...81 (seiscentos e oitenta e um) com o valor patrimonial..........€ 95.014,15”.
3) A falecida era casada com o cabeça de casal no regime de comunhão de adquiridos e, entre o mais, importa manter presente o seguinte:
3.1) Aos 14/09/2009 a falecida e o ora cabeça de casal outorgaram escritura pública de doação, por conta da legítima, de um bem imóvel a cada um dos três filhos, sendo o à filha CC e o ao filho EE pelos valores patrimoniais dos respetivos imóveis e o ao filho DD pelo valor de 106000 Euros.
3.2) Posteriormente, aos 20/08/2012, a falecida e o ora cabeça de casal doaram à filha outro imóvel, por conta da legítima, pelo valor de 2000 Euros.
3.3) No dia 12/12/2017 a falecida tinha outorgado testamento, do qual e em suma, resulta que:
3.3.1) Deixou, em legado, um bem imóvel a cada um dos três filhos (naquele devidamente identificados), por conta das respetivas legítimas.
3.3.2) Instituiu o marido herdeiro da sua quota disponível.
3.3.3) Deixou, também por conta da legítima, ao marido o usufruto de todos os direitos e bens, incluindo os legados, de que fosse titular à data do falecimento.
4) Correndo os autos aos seus termos, por despacho proferido aos 12/01/2024, constante da ata de conferência de interessados desse dia([3]), as verbas referidas em 2) foram avaliadas, pois que os ora recorrentes entendiam que estavam subavaliadas([4]); de acordo com o relatório do colégio de peritos junto aos autos aos 26/04/2024, em:
4.1) A em 2.1): “Em face do exposto, atribuo ao prédio o valor arredondado de:
- 63.100€, reportado á data da avaliação;
- 51.500€, reportado à data do óbito”.
4.2) A em 2.2): “Em face do exposto, atribuo ao prédio o valor arredondado de:- 132.300€, reportado á data da avaliação;
- 107.900€, reportado à data do óbito”.
4.3) Por despacho que transitou em julgado, proferido aos 14/06/2024, foi indeferida, entre o mais([5]), a reclamação então apresentada pelo ora recorrido relativamente ao resultado da avaliação.
5) No dia 18/10/2024, e conforme consta da ata, foram efetuados os seguintes requerimentos e proferidos os seguintes despachos (além de um primeiro, atinente à verba n.º 6):
5.1) “Relativamente às verbas 15 e 16- Pelo interessado EE foi dito que se opõe à licitação das mesmas.
Dada a palavra ao Il. Mandatário dos interessados DD e CC pelo mesmo foi dito que entende que é permitida a licitação sobre o bem legado, uma vez que tal disposição é testamentária e é a primeira a ser reduzida.
Pela Mm.ª Juiz de Direito foi proferido o seguinte
DESPACHO
Determina o art.º 1113.º, n.º 4 do CPC, estão excluídas da licitação os bens que, por força da lei ou do negócio devam ser preferencialmente atribuídos a certos interessados. Ora, preenchem esta excepção entre outro os legados, dado que pelos legados estão definidos os bens que os legatários ou herdeiros têm direito a receber conforme escrevem Miguel Teixeira de Sousa e outros, in novo regime de processo de inventário...anotação ao art.º 1113.º, pág. 113.
Deste modo, considera-se que a nua([6]) propriedade das verbas 15 e 16 fica excluída da licitação, tal como requerido pelo legatário.
Assim, ficam excluídas da licitação e adjudicadas as verbas 15 e 16 ao interessado EE, pelo valor da raiz.
Notifique”.
5.2) “Neste momento pelo Il. Mandatário dos interessados DD e CC, foi pedida a palavra, a qual lhe foi deferida pela Mm.ª Juiz, e no uso da mesma referiu que opõem-se à adjudicação, porquanto o legado foi feito por conta da legítima e salvo melhor opinião, seguindo aliás a regra anteriormente definida, dos valores da avaliação resulta que estes bens excedem a legítima do legatário, razão porque devem ser submetidos a licitação.
Dada a palavra ao Il. Mandatário do Requerente pelo mesmo foi dito que, precisamente porque os legados foram feitos por conta da legítima, não podem, ou não podem ofender esse mesmo direito.
Pelo que concorda com a adjudicação já decida pelo Tribunal.
Pela Mm.ª Juiz de Direito foi proferido o seguinte
DESPACHO
Considerando o requerimento dos interessados DD e CC como sendo um incidente de redução do legado por inoficiosidade impõe-se considerar o disposto no art.º 1118.º do CPC.
Considerando que de acordo com o n.º 1 desse mesmo artigo, tal incidente deve ser deduzido até à abertura das licitações, a sua dedução neste momento, em nosso entender extemporânea (neste sentido os citados autores na obra citável, pag. 123).
Assim sendo, por extemporaneidade não se conhece a invocada inoficiosidade do legado realizado ao interessado EE.
Notifique”([7]).
6) Aos 05/11/2024 os interessados DD e CC interpuseram recurso destes despachos.
Formularam as seguintes conclusões:
A) O recurso tem por objecto dois despachos que foram proferidos na Conferência de Interessados realizada em 18/10/2024, o primeiro que excluiu da licitação as Verbas n.ºs 15 e 16 constantes da Relação de Bens e, determinou a sua adjudicação, ao Interessado Legatário, ora Recorrido EE, e o segundo que decidiu não conhecer da invocada inoficiosidade, por considerar a sua arguição extemporânea;
B) A questão em apreço tem a ver com o momento em que os Interessados são confrontados com ter de fazer contas “em cima do joelho” para apurar quando algum ou alguns Interessados têm os seus quinhões preenchidos com bens que excedem a sua legítima, seja por força de doação, legado ou até da própria licitação;
C) Dos despachos recorridos resulta uma total dissonância a supremacia do regime formalista, cujos princípios se opõem aos princípios da igualdade das partes ou Interessados e do princípio da igualdade dos Interessados no preenchimento dos seus quinhões;
D) Princípio este considerado como “sagrado” pela jurisprudência e doutrina e confirmado pela unanimidade e constância dos Tribunais Superiores;
E) Pelo que importa que o Tribunal ad quem aprecie a incongruência da sistematização ilógica dos actos previstos nas normas dos arts.º 1113.º a 1119.º do Novo Cód. de Processo Civil, porquanto, a sequência da prática dos actos necessários e indispensáveis à partilha, opera-se pela ordem consignada nos arts.º 1364.º e ss. do antigo Cód. de Processo Civil, começando pelo pedido de adjudicação, seguido das questões de inoficiosidade de bens doados e legados que, para efeitos daquele e desta, se coloca antes ou após a avaliação dos bens, mas que no regime actual se coloca em relação a cada verba licitada durante as licitações porque é licitada por algum donatário ou legatário, que por força da licitação vê a sua legítima excedida, seja porque o licitante, com o que licitou já excedeu a sua legítima;
F) A coerência da sistematização do anterior Cód. de Processo Civil, nas precedências em relação às licitações eram fundamentais para se apurar os bens objecto destas e a medida em que podia haver ou não licitação nas doações e legados inoficiosos;
G) O procedimento específico previsto nos arts.º 1118.º e 1119.º do Cód. de Processo Civil só deveria ter lugar depois da Conferência de Interessados, atento o pretendido rigor formal da localização normativa sobre os diversos actos a serem realizados na Conferência, do que decorre que o princípio da preclusão se opõe a que a partilha cumpra o seu último desígnio, ou seja a composição igualitária dos quinhões dos Interessados, sejam eles donatários, legatários, licitantes ou não licitantes;
H) Daqui resulta que o estabelecido nos arts.º 1118.º e 1119.º do Cód. de Processo Civil têm de ser interpretados no sentido de ocorrer após a Conferência de Interessados ou, em última hipótese no final das licitações;
I) Só no fim das licitações será possível aos Interessados efectuarem as contas para apuramento dos quinhões e dos excessos e, em consequência, a arguição das eventuais inoficiosidades;
J) Dúvidas não há de que foi permitida a licitação sobre bens doados e legados pelos Interessados pelo que, por força das licitações ocorridas sobre as Verbas n.ºs 3, 5 e 6, a quota disponível foi absorvida e consumida na conferência de ½ do seu valor e por isso a meia conferência da Verba n.º 6 doada ao Recorrido, terá de ser imputada na legítima do mesmo, preenchendo-a e fazendo com que os legados já excedem a legítima;
K) Foi o que sucedeu no início da Conferência de Interessados, pelo que o entendimento do Tribunal a quo foi o de permitir a licitação aos Interessados não beneficiários da doação nos bens que tinham sido doados aos Interessados beneficiários da mesma (3, 5 e 6) e nos bens legados (7 a 14);
L) Os legados das Verbas n.ºs 15 e 16 feitos por conta da legítima, se pelos valores da avaliação não excediam a legítima do legatário, certo é que, após o aumento de valor da Verba n.º 6 passou manifestamente a excedê-la, razão porque deviam e tinham de ser submetidas a licitação;
M) Só com a licitação de todas, ou da maior parte das Verbas que compõem a herança é que se consegue perceber se uma doação ou legado excedeu ou não a legítima do herdeiro legitimário, contas que vão sendo sucessivamente alteradas, em conformidade com os valores das licitações que vão efectuando;
N) Pelo que não se pode acolher o fundamento da extemporaneidade do direito concedido pelo art.º 1118.º do Cód. de Processo Civil que prevê a invocação ou arguição por qualquer Interessado da redução de legados ou doações inoficiosas, no momento em que tal corra e se verifique;
O) Os despachos recorridos padecem de absoluta nulidade, porque as soluções de direito neles vertidas violam a interpretação das normas de direito previstas nos arts.º 1113.º, 1115.º, 1118.º e 1119.º, todos do Cód. de Processo Civil, na medida em que está em causa o exercício de um direito fundamental e portanto com influência directa no preenchimento dos quinhões dos Interessados.
Nestes Termos e nos mais de Direito aplicáveis que mui doutamente serão supridos deve o presente recurso ser dado como procedente por provado e, em consequência devem os despachos recorridos ser declarados nulos e de nenhum efeito, devendo ser revogada a adjudicação das Verbas n.ºs 15 e 16 aos Interessado Recorrido EE, e autorizada e determinada a licitação sobre essas Verbas aos restantes Interessados, aqui Recorrentes em nova Conferência de Interessados a realizar.
Assim decidindo, Farão como sempre V. Exas. Inteira JUSTIÇA!
7) Aos 22/11/2024 o recorrido EE apresentou as suas contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso por os recorrentes não terem razão([8]).
8) No dia 12/12/2024 foi proferido o seguinte despacho, a admitir corretamente o requerimento de interposição de recurso:
“Por se tratar de uma decisão recorrível, ser interposto por quem tem legitimidade e estar em tempo, admito o recurso, o qual é de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito suspensivo – arts. 1123.º, n.º 2, al. b) e 4, 627.º, n.º 1, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, n.ºs 1 e 2, 638.º, n.º 1, 639.º, 641.º, n.º 1, 644.º, n.º 2, al. d), 645.º, n.º 1, al. a) e 647.º, n.ºs 1, todos do Código de Processo Civil.
Notifique.
Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.
Assim, as questões (e não razões ou argumentos) a decidir são:
1) Se as verbas legadas devem ser objeto de licitação (e, não o sendo, deverem ser adjudicadas ao legatário).
2) Se é extemporâneo, depois de iniciadas as licitações em conferência de interessados, arguir a inoficiosidade do legado.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Os factos
Os factos relevantes para a decisão das questões são os enunciados na sinopse processual, que nesta vertente adjetiva têm força probatória plena.
O Direito
Afiguram-se-nos úteis, ainda que com a sucintez possível, referirmos o intuito legislativo aquando da revisão em vigor do regime de inventário, instituído pela Lei n.º 117/2019, de 13/09, bem como relembrarmos alguns conceitos.
Com o novo regime de inventário o legislador pretendeu incutir celeridade a este tipo de processos. Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “a variedade de questões que, em abstrato, podem ser suscitadas no processo de [inventário] justificam que se tenha consagrado expressis verbis, uma oportunidade para o juiz tomar as rédeas do [processo], resolver as questões pendentes e, ao mesmo tempo, impedir o arrastamento da tramitação e os efeitos negativos decorrentes de comportamentos [dilatórios]. Da conjugação dos arts. 1109.º a 1111.º e 1114.º ressalta que é propósito da lei concentrar na conferência de interessados a resolução das principais operações necessárias à [partilha], para o que se mostra necessário expurgar do processo todas as questões prévias e incidentais que o [condicionem]. A generalidade das questões de natureza material e de ordem adjetiva deverão estar resolvidas na ocasião em que se procede à conferência de interessados. Afinal, umas e outras influem decisivamente na [partilha]”([9]).
Continuando com os mesmos autores, e agora a propósito do regime de recursos previsto no art.º 1123.º do C.P.C. (do que os recorrentes tiraram partido, pois recorreram, o que dizemos por tanto criticarem as soluções legislativas que, no seu entendimento, levam a “contas em cima do joelho”), “no processo de inventário, a recorribilidade autónoma é reportada genericamente às «decisões de saneamento do processo», independentemente do seu conteúdo ou do resultado, previsão que deve ser associada ao art. 1110.º cuja amplitude abarca todas as decisões sobre questões suscetíveis de influir na partilha ou na determinação dos bens a partilhar. [Com] tal regime [recursório], pretendeu-se sedimentar toda a tramitação processual anterior ao despacho de saneamento proferido ao abrigo do art. 1110.º, de modo que a parte que pretenda impugnar alguma decisão até então proferida deverá fazê-lo conjuntamente com o recurso desse despacho, estabelecendo, assim, mais um efeito preclusivo ajustado aos objetivos de celeridade e de eficácia. Já as decisões interlocutórias posteriores, serão impugnadas juntamente com o recurso da sentença homologatória da partilha”([10]).
Posto isto, vejamos então agora alguns conceitos.
Assim, de acordo com o disposto no art.º 2030.º, n.º 1 a n.º 3, do Código Civil, C.C., “1. Os sucessores são herdeiros ou legatários. 2. Diz-se herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados. 3. É havido como herdeiro o que sucede no remanescente dos bens do falecido, não havendo especificação destes”, do que resulta que os recorrentes e o recorrido são, no caso, simultaneamente herdeiros e legatários – de coisas certas e especificadas (os imóveis identificados no testamento)([11]).
O legado “é uma atribuição singular de bens, que se pode concretizar em modalidades diversas. [É], frequentes vezes, um modo de preenchimento parcial ou total de uma quota hereditária”([12]) – que é o caso, como vimos.
Sobre estas duas espécies de sucessores, herdeiros e legatários, citando Rabindranath Capelo de Sousa, “o legislador recorreu a um critério de determinação ou indeterminação dos bens sucessíveis. Quando haja uma instituição de um sucessor pela qual ele vai suceder em bens que não estão previamente determinados, os quais abranjam quer a totalidade do património do falecido quer uma sua quota-parte, e em que os bens que essa pessoa poderá vir a [receber] comportem um leque de bens não determinados previamente, aí temos uma situação de herança ou uma qualificação de herdeiro. Diferentemente, quando uma pessoa é chamada a suceder em bens certos e determinados, com exclusão dos outros bens, aí deparamos com uma estrutura de legado ou uma classificação de legatário”([13]).
A legítima mostra-se definida no art.º 2156.º do C.C., entendendo-se por tal “a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários”, sendo estes, nos termos do art.º 2157.º do mesmo Código “o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima” que, no caso, está prevista no art.º 2159.º, n.º 1, do C.C., “[a] legítima do cônjuge e dos filhos, em caso de concurso, é de dois terços da herança”, sendo, de atender, para o cálculo da legítima, e de acordo com o art.º 2162.º, n.º 1, “ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança”.
Sucedendo por herança o cônjuge em concurso com os descendentes, a partilha é feita por cabeça, ainda que aquele não possa ter uma quota inferior a um quarto – problema que aqui não se coloca, por concorrer com três filhos –, como previsto no art.º 2139.º, n.º 1, do C.C.
Uma vez que a A. da herança era casada com o cabeça de casal em comunhão geral de bens (pertencendo a este 50% do património), então da massa da herança caberão 12,5 % a cada um dos herdeiros.
Por fim, vejamos o conceito de tornas.
Como observa Capelo de Sousa, “[q]uer a partilha seja feita judicialmente quer extra-judicialmente, apurados o montante em dinheiro de cada um das quotas subjectivas dos herdeiros ou do cônjuge meeiro partilhantes e a soma dos valores dos bens da herança de que cada um [beneficia], importa averiguar se cada uma destas somas excede o montante da quota respectiva (caso em que o interessado é devedor de tornas em dinheiro pelo excesso) ou se lhe é inferior (caso em que o interessado é credor de tornas em dinheiro pela diferença)”([14]).
Mantendo presente o atrás referido, avancemos então agora para a análise das questões decidendas, cuja decisão se mostra assim facilitada.
1) Se as verbas legadas devem ser objeto de licitação (e, não o sendo, deverem ser adjudicadas ao legatário).
Do que vimos de expor, resulta claro que não, daí o teor literal do art.º 1113.º, n.º 4, do C.P.C., “[e]stão excluídos da licitação os bens que, por força de lei ou de negócio, não possam ser dela objeto, os que devam ser preferencialmente atribuídos a certos interessados e ainda os que hajam sido objeto de pedido de adjudicação”([15]), pois tal seria contrário à lei e a todo o instituto do legado – além de ir contra a vontade da A. da sucessão, que a expressou ao fazer um testamento.
Na sucessão testamentária o escopo legislativo é, na medida do possível, honrar a vontade do autor da herança, compreendendo-se assim a opção legislativa de os bens legados não estarem sujeitos a licitação (mas apenas a avaliação), por referência, entre outros, ao disposto nos artigos 2030.º do Código Civil, C.C., e 1113.º, n.º 4 parte final, do Código de Processo Civil, C.P.C.
Perante tal desiderato do legislador, aos tribunais apenas compete decidir as questões legais que emerjam do processo de partilha, ficando as éticas que se suscitem reservadas para a autoconfrontação por cada herdeiro([16]).
Não podendo os bens legados serem licitados, mas apenas avaliados para que se afira a quanto cada herdeiro (e ou legatário) tem direito e se possa depois calcular se há, ou não, tornas a serem pagas, permitir a licitação seria estar a permitir uma operação contrária à lei, na medida em que serviria para de modo artificial empolar o valor do legado.
Assim sendo, cada bem legado deve ser adjudicado ao respetivo legatário([17]) pelo valor da avaliação reportada à data do falecimento da A. da sucessão (o que foi discriminado no relatório colegial de avaliação).
2) Se é extemporâneo, depois de iniciadas as licitações em conferência de interessados, arguir a inoficiosidade do legado.
A resposta é, também, afirmativa.
Os recorrentes insurgem-se contra a opção legislativa; estão no seu Direito, mas os tribunais devem obediência à lei sendo esta interpretada de acordo com os critérios de interpretação constantes do art.º 9.º do C.C. e nada mais.
Fizemos uma sinopse processual mais abrangente do que seria necessário para vermos que não é exato o argumento de terem de fazer “contas em cima do joelho”; as avaliações estão nos autos desde 26/04/2024 e, não obstante ter havido reclamação (no caso, pelo recorrido – que foi indeferida por despacho de 14/06/2024), o que é certo é que à data dos despachos recorridos, de 18/10/2024, os recorrentes já conheciam, há meses, os valores relevantes.
Aliás, a decisão legislativa é bem clara, como resulta até do disposto no art.º 1118.º n.º 1 e n.º 3 (e no caso as avaliações já tinham sido feitas…), “1 – [q]ualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade. 3 - Para apreciação do incidente, pode proceder-se, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, à avaliação dos bens da herança e dos bens doados ou legados, se a mesma já não tiver sido realizada no processo”([18]) ([19]).
A pretensão recursória relativamente a este segundo despacho, proferido em conformidade à literalidade da lei, só se compreende por ter sido indeferido o que antes tinham pretendido, a licitação dos bens legados…, isto quando as licitações, nessa mesma conferência, já se tinham iniciado – tendo até prosseguido relativamente às remanescentes verbas, n.º 17 e seguintes, como consta da ata.
Se vier a ser o caso, as contas serão acertadas, como antes dissemos, pelo mecanismo de pagamento de tornas.
Os despachos recorridos foram proferidos de forma escorreita, improcedendo o recurso.
III – DECISÃO
Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se os despachos recorridos.
Custas da apelação pelos recorrentes, nos termos do art.º 527.º do C.P.C.
Porto, 28/04/2025.
Este acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos:
Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.ª Adjunta: Carla Fraga Torres e
2.º Adjunto: Miguel Baldaia de Morais.
________________________________
[1] Talvez um pouco mais abrangente do que seria estritamente necessário, mas que, cremos, facilitará a compreensão do objeto do recurso e da decisão do mesmo.
[2] Não referimos a verba n.º 6, igualmente objeto de despacho na ata de conferência de interessados, realizada aos 18/10/2024, porquanto o objeto do recurso prende-se apenas aos dois despachos então proferidos respeitantes às verbas n.º 15 e n.º 16.
[3] Transcrevemo-lo em nota:
“DESPACHO
Atentos os requerimentos apresentados pelos interessados EE, DD e CC e ao abrigo do disposto no art.º 1114.º do CPC, determina-se a avaliação das verbas 3 a 20 da relação de bens de 26.10.2023.
No que concerne às verbas 3 a 12 e porquanto as mesmas foram doadas, para além do seu valor comercial atual, impõe-se ainda o apuramento do valor da metade de cada uma delas à data do óbito da inventariada, ou seja, 08.02.2021.
Nos termos do nº 3 do art.º 1114.º do CPC indique a secção por pessoa idónea para ser nomeada como Perito do Tribunal, para proceder à avaliação do valor comercial das verbas 3 a 20, o qual desde já se nomeia por uma questão de celeridade processual.
Nomeiam-se desde já os peritos indicados pelos interessados.
Compromisso de cumprimento consciencioso a ser prestado mediante declaração escrita e assinada pelos mesmos, no próprio relatório.
Prazo: 30 dias.
Objeto da perícia: Avaliação das verbas 3 a 20 à data atual e à data do óbito da inventariada (08.02.2021)”.
[4] Transcrevemos a parte relevante da ata: “Pelo ilustre mandatário dos interessados DD e CC foi requerida a avaliação das verbas 6, 15 e 16 da relação de bens, porque entende estão subavaliadas”.
[5] Como, por exemplo, ter sido indeferido o pedido de condenação do cabeça de casal por litigância de má-fé.
[6] Correção nossa, pois da ata consta não “a nua” mas “anula”.
[7] Do original consta itálico.
[8] De notar que não foi cumprido o disposto no art.º 8.º da Portaria n.º 280/2013, de 28/08, pois o ficheiro foi junto num formato não editável…
[9] Cf. António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, p. 621 (interpolação nossa e itálico no original).
[10] Cf. António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pp 652-653 (itálico nosso; interpolação nossa e itálico no original).
[11] Sobre legados de coisas determinadas e especificadas, legados de coisas determinadas não especificadas, legados de universalidades de facto, legados de património autónomo ou de unidades jurídicas, deixa de usufruto da herança ou de quota da herança, legados de coisa genérica e legados alternativos, legado de todos os móveis ou de todos os imóveis, cf. Rabindranath Capelo de SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 71-82.
[12] Cf. Galvão TELLES, Direito das Sucessões. Noções Fundamentais, 5.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pp. 165-171 (interpolação nossa).
[13] Cf. Rabindranath Capelo de SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 62 (interpolação nossa).
[14] Cf. Rabindranath Capelo de SOUSA, Lições de Direito das Sucessões, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 259-260 (interpolação nossa e itálico no original).
[15] Itálico nosso.
[16] Observação que fazemos tendo em conta o processado e as demais disposições testamentárias, como a deixa da quota disponível ao viúvo meeiro e o usufruto (vitalício) a favor deste de todos os bens ou direitos.
[17] Afirmando-o inequivocamente, cf., também, António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, p. 632 (anotação n.º 7).
[18] Interpolação e itálico nosso.
[19] Cf., também, António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pp. 6339-640.