I - A insuficiente motivação da decisão sobre a matéria de facto por dela não constar a indicação dos meios de prova tomados em consideração pelo tribunal relativamente à quase totalidade dos factos provados e não provados não determina a nulidade da sentença, mas o cumprimento do previsto no artigo 662.º, número 1 d) do Código de Processo Civil quando tal se revele essencial à reapreciação da matéria de facto.
II - A falta de pronúncia sobre pedido de condenação da contraparte como litigante de má-fé conduz à nulidade parcial da sentença, por omissão de pronúncia, que deve ser suprida pelo Tribunal a quo.
Recorrente: AA
Recorridos: BB e CC
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Miguel Baldaia Morais
Segunda adjunta: Maria de Fátima Almeida Andrade
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Em 04-04-2022 BB e CC propuseram ação declarativa a seguir a forma de processo comum contra AA pedindo a sua condenação na restituição de imóvel de que se dizem proprietários e que a ré ocupa, no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso nessa entrega e de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sendo a primeira a liquidar posteriormente e a segunda no valor de 3.000 €.
Alegaram terem emprestado tal imóvel à ré com obrigação da mesma lho devolver quando deles precisassem e tendo a mesma assumido a obrigação de pagar as prestações do mútuo bancário que os autores contraíram para aquisição desse imóvel enquanto o ocupasse, bem como as quotas devidas ao condomínio em que tal imóvel se integra. Alegam ter pedido a restituição do imóvel à ré no início do ano de 2020 para passar a ser habitado pela filha dos autores, que passaria a frequentar o ensino universitário no ano letivo de 2020/2021, na cidade do Porto. Alegaram que continuam a suportar encargos com o imóvel, como o IMI, a prestação mensal devida ao condomínio e, desde 2020, um seguro com cobertura multirriscos. Alegaram, ainda, que a ré terá feito obras no imóvel que alteraram a sua estrutura sem o seu consentimento, tendo desvalorizado o mesmo.
2. A ré contestou em 25-05-2022 afirmando ter celebrado, por escrito particular de 6 de maio de 2016, que junta, um contrato promessa de compra e venda com os autores pelo qual os mesmos prometeram vender-lhe o imóvel que ocupa desde novembro de 2016. Tendo os autores entrado em incumprimento da sua obrigação de pagamento do mútuo bancário que haviam contraído para aquisição do imóvel em 2006, a ré obrigou-se a pagar-lhes 6.085 € relativos a prestações vencidas e não pagas desse mútuo, bem como a pagar as prestações vincendas. Alega ter pago aos autores o valor total de 33.365,48 € no cumprimento dessa obrigação e, ainda, que suportou o IMI devido pelo imóvel em 2017, e as quantias devidas ao condomínio em junho de 2016 bem como as subsequentes até março de 2020. Deduziu reconvenção pedindo a execução específica do contrato promessa ou, assim não se entendendo, a condenação dos autores no pagamento do valor de 33.365,48 € que receberam. Pediu a condenação dos autores como litigantes de má-fé.
3. Em 08-07-2022 foi apresentada réplica na qual os reconvindos impugnaram a celebração do contrato promessa junto à contestação, invocando a falsidade das assinaturas que lhes são atribuídas e alegando que a ré lhes emprestou 6.904,44 € em 2016, com vista a que os mesmos conseguissem liquidar as prestações em dívida do mútuo bancário que tinham contraído para aquisição do imóvel, IMI de 2017 e quotas de condomínio em mora, valor que cuja restituição a mesma nunca lhes tinha pedido até à dedução do pedido reconvencional, mas que admitem dever-lhe. Concluem pela improcedência do pedido de execução específica, alegando a falsidade do contrato promessa, a sua nulidade por falta de cumprimento de formalidades legais e a falta de depósito do preço da compra e venda. Quanto ao pedido subsidiário de restituição das quantias que a ré pagou em cumprimento do contrato de comodato (21.280,48 €) dizem que não lhe são devidos porque no período em que se venceram tais prestações do mútuo bancário que a ré assumiu, esta habitou o imóvel com o seu agregado familiar.
Pedem a condenação da reconvinte como litigante de má-fé por ter falseado documentos e factos.
4. Por despacho de 28-09-2022 foi fixado à ação o valor de 114.149,87 € e foi a mesma remetida ao juízo central cível do Porto, onde, em 30-11-2022 foi proferido despacho saneador com admissão da reconvenção, identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
5. Em 19-01-2023 os autores vieram juntar articulado superveniente em que alegaram que em outubro e novembro de 2022 foram eles quem pagou a prestação mensal devida pelo mútuo bancário que a ré se obrigada a suportar pelo que pediram a condenação da ré no pagamento das respetivas quantias e nas que ainda se viessem a vencer no futuro e aquela não suportasse. Mais afirmaram ter sido de 2.966 € + IVA o custo de reparação do imóvel decorrente de infiltrações na fração situada sob o mesmo e provocada por dano no seu WC. Pediram o aditamento desses novos factos aos temas da prova.
6. Admitido liminarmente tal articulado, a ré impugnou-o, alegando que continua a proceder ao pagamento das prestações bancárias a que se obrigou e alegando não ser responsável pelos danos no WC cuja reparação diz caber aos autores, por serem eles os proprietários do imóvel. Em 12-04-2023 foram aditados novos temas da prova em face do alegado no articulado superveniente.
7. Em 05-05-2023 foram conhecidas as reclamações apresentadas pelas partes à seleção dos temas da prova e foram admitidos os requerimentos de prova, entre eles prova pericial ao imóvel para apuramento dos seus alegados danos.
8. Apresentado relatório pericial foi designada data para a audiência de julgamento.
9. Em 21-12-2023 os autores apresentaram novo articulado superveniente alegando que a ré não procedeu ao pagamento das prestações de abril e outubro de 2023 do mútuo bancário a que se obrigara, que já suportaram o pagamento de 977, 85 € para remodelação do WC de serviço do imóvel e que pagaram novo prémio do seguro multirriscos do referido imóvel no valor de 158, 16 € e as prestações de IMI entretanto vencidas. Mais uma vez requereram o aditamento desses factos aos temas da prova.
10. Em 11-01-2024 a ré impugnou tal articulado defendendo também a sua inadmissibilidade.
11. Por despacho de 06-02-2024 o mesmo foi admitido e foram aditados novos temas da prova em função do ali alegado.
12. Em 12-03-2024 foi junto novo articulado superveniente com alegação de novas prestações de condomínio pagas pelos autores.
13. Em 13-03-2024 iniciou-se a audiência de julgamento que teve continuação em 27 de maio.
14. Em 03-04-2024 a ré veio requerer a junção de novos documentos e em 11-04-2024 requereu a realização de prova pericial às assinaturas apostas no documento apelidado de contrato promessa que juntara com a contestação/reconvenção. Ambos os requerimentos foram indeferidos por despacho de 13-05-2024 tendo, a 20-05-2024, a ré requerido a reapreciação da admissibilidade, por superveniência, dos documentos que juntara.
15. Em 27-05-2024 os autores juntaram aos autos dois requerimentos pelos quais atualizaram e somaram todas as prestações do mútuo, de IMI, de prémio de seguro e de despesas de condomínio até então pagas. Por despacho de 25-06-2024 foi facultado prazo para que a ré se pronunciasse sobre tal requerimento, o que a mesma fez a 02-07-2024.
16. Em 15-07-2024 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente condenando a ré a restituir o imóvel aos autores e pagar-lhes valor a liquidar ulteriormente pelos danos patrimoniais sofridos e em sanção pecuniária compulsória de 50 € por cada dia de atraso na entrega do imóvel. Foi também julgada parcialmente procedente a reconvenção, tendo os autores sido condenados a pagar à ré a quantia de 6.904,44 €.
É desta sentença que recorre a ré/reconvinte, pretendendo a sua anulação por omissão de motivação de facto, a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de que celebrou com os autores contrato promessa de compra e venda do imóvel que ocupa.
Para tanto, alegou o que sumariou da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
“1 - Vem o presente recurso interposto da Sentença prolatada nos autos supra, que julgou “parcialmente procedente a presente acção intentada pelos AA., BB e CC e condena-se a R. DD (a exemplo do pouco cuidado dos escritos manifestados ao longo do texto, a Sentença troca o nome da Ré, pois, o nome correcto é AA), nos segmentos das als. a), b) e c) do dispositivo;
2 - A Sentença recorrida enferma de falta de análise crítica da prova, pois, não cumpre cabalmente o disposto no n.º 4 do art.º 607.º do C.P.C., conforme expendido em III.5;
3 - No aresto posto em crise, na indicação dos factos provados e não provados, foi utilizada a "técnica de decalque" a partir dos articulados das partes, sendo que, tal técnica não se mostra conforme ao regime da decisão da matéria de facto, nos termos do normativo processual acabado de citar;
4 - A omissão da indicação dos factos que o Tribunal considerou provados e não provados e da respectiva fundamentação, gera a nulidade da Sentença prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. b) do C.P.C.;
5 - A Sentença padece do vício de erro notório na apreciação da prova, na medida em que, foram dados como não provados factos que se mostram devidamente demonstrados - testemunhal e documentalmente
- e não foram dados como provados factos sobre os quais foi produzida prova bastante;
6 - Consequentemente, por existir claro erro de julgamento, impõe-se que a decisão da matéria de facto seja alterada, dando-se como não provados, os últimos dizeres dos pontos 5 (até que os AA. precisassem do imóvel), 6, 8 (expressão “novo”), 9 (no que contende à referência “a Ré não respondeu à referida missiva”), 7 (que é uma decorrência de que a Ré nada acordou com os Autores acerca da restituição do imóvel, convicta que tinha celebrado com eles um contrato promessa de compra e venda do apartamento) e 17, nos moldes preconizados no corpo da motivação;
7 - Mais se impõe, que a decisão sobre a matéria de facto seja alterada, dando-se como provada as matérias constantes nas als. e) e d) dos factos não provados, nos moldes igualmente preconizados no corpo da motivação;
8 - A ponderação global de todos os elementos constantes dos autos e a prova produzida em audiência, salvo o devido respeito por melhor entendimento, não consentem a decisão tomada pelo Tribunal, nos segmentos recorridos, cuja reapreciação da prova gravada se reclama, de forma a melhor se aquilatar o sentido e alcance das matérias impugnadas;
9 - No contexto do expendido em IV, designadamente, nos pontos 2, 5 e 6, cremos perfeitamente demonstrado que a hermenêutica jurídica operada na Sentença de que se recorre não deverá proceder, porquanto, não se vislumbra a existência de um contrato de comodato (modal), desde logo, pela simples e singela razão, que a Recorrente/comodatária não foi destinatária de qualquer benefício, sendo que, as ilações retiradas pelo Tribunal recorrido neste segmento decisório, contrariam ostensivamente as regras da experiência comum;
10 - E como se inculca dos considerandos expendidos em IV, pugnamos para que o negócio jurídico estabelecido entre as partes seja considerado um contrato-promessa de compra e venda, apesar de (imperfeitamente) configurado no documento 1 da contestação, conforme mencionado em 2.;
11 - Não tendo procedido em conformidade, o Tribunal incorre em erro de julgamento e vício de violação de lei substantiva – art.º 830.º do Código Civil.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, deve ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se a decisão recorrida nos segmentos impugnados, com as legais consequências.”
Indicaram também meios de prova a atender com vista à confirmação da matéria de facto impugnada pela recorrente.
Deduziram, ainda, recurso subordinado pretendendo a fixação da indemnização pelos danos patrimoniais cuja liquidação a sentença recorrida relegou para momento posterior bem como de indemnização por danos não patrimoniais. Invocam a nulidade da sentença por falta de fundamentação quanto à decisão de que os mesmos não se revelaram com suficiente gravidade para merecerem a tutela do direito e por falta de decisão sobre o pedido de condenação da ré como litigante ed má-fé.
Apresentaram conclusões em que, no essencial reiteraram (sem qualquer esforço visível de síntese), o corpo das contra-alegações e em que, quanto ao recurso subordinado, afirmaram:
“84. Sem prejuízo do antes aduzido, os Autores, ora Recorrentes, vêm interpor recurso subordinado da sentença proferida, aqui recorrida, em relação à relegação para execução de sentença do pedido de condenação da Ré, ora Recorrida, no pagamento do montante de indemnização pelos danos patrimoniais causados aos AA., em sede de responsabilidade civil contratual, ou, não procedendo, mas sem prescindir, em sede de responsabilidade civil extracontratual, em valor a liquidar a final, acrescido de juros de mora desde 3/11/2020 até integral e efetivo pagamento,
85. bem como, em relação à improcedência do pedido formulado pelos AA. De pagamento pela Ré do montante da indemnização por danos não patrimoniais, causados pela Ré aos AA., em sede de responsabilidade civil contratual, ou, não procedendo, mas sem prescindir, em sede de responsabilidade civil extracontratual, em valor a liquidar pelo Tribunal, mas que nunca deverá ser inferior a €3.000, acrescido de juros de mora desde 3/11/2020 até ao seu integral e efetivo pagamento,
86. assim como em relação à não apreciação do pedido de condenação em litigante de má fé da Ré peticionado em sede de Réplica, pelos AA., aqui Recorrentes, discordando-se assim da decisão recorrida, cuja revogação, nesta parte, por isso, se defende.
87. Assim, o presente recurso subordinado tem como objeto a matéria de facto e de direito respeitante à improcedência e não apreciação dos pedidos formulados supra aludidos apresentados pelos Recorrentes, bem como, à relegação para execução de sentença do pagamento de indemnização a título de danos patrimoniais.
88. Pois bem, com todo o respeito, que é muito e bem devido, o Tribunal recorrido decidiu mal, nesta parte da sentença recorrida, mediante a prolação da decisão ora posta em crise, pelo que dela se recorre.
89. No que concerne à relegação para execução de sentença do pedido dos ora Recorrentes na condenação da ora Recorrida no pagamento do montante de indemnização pelos danos patrimoniais causados pela Ré aos AA., sempre se dirá que incorreu o Tribunal recorrido em omissão de pronúncia, porquanto, a sentença de que ora se recorre apenas se pronunciou nesta parte, quanto às prestações bancárias e prestações de condomínio às quais a Ré, ora Recorrida se obrigou, sem, inclusive, as liquidar, não obstante existirem elementos suficientes nos autos para o efeito.
90. No entanto, pelos AA., aqui Recorrentes foram alegadas e comprovadas diversas quantias, para efeitos de cômputo dos danos patrimoniais sofridos, a saber:
-o montante devido pela celebração do contrato de seguro do imóvel, celebrado desde 2020, no valor global de € 239,42, à data de entrada da Petição Inicial em juízo, acrescido do valor que estes viessem a suportar até ao trânsito em julgado da decisão;
-o montante suportado pelos Recorrentes a título de despesas de condomínio desde abril de 2020 até ao trânsito em julgado da decisão;
-bem ainda, como os honorários devidos à mandatária contratada pelos Recorrentes para a resolução da questão.
91. Mais ainda, em sede de articulado superveniente que deu entrada em juízo em 19/01/2023, os AA., aqui Recorrentes, nos artigos 4.º e 12.º da referida peça processual, referem ainda outras quantias que também deveriam ser liquidadas pela Ré, ora Recorrida, a saber:
€ 117,11 a título de remanescente das prestações bancárias nos meses de outubro e novembro de 2022;
€ 2.966,00 contendente com a reparação de danos existentes no imóvel dos AA..
92. Por, novamente a Ré, ora Recorrida, ter-se furtado ao cumprimento das obrigações que lhe estavam adstritas por força do contrato de comodato modal celebrado com os AA., aqui Recorrentes, viram-se estes obrigados a comunicar aos autos por meio de novo articulado superveniente apresentado em 21/12/2023, mais quantias por estes liquidadas em virtude do incumprimento da Recorrida, alegadas nos artigos 5.º, 7.º, 8.º 9.º e 11.º dessa peça processual.
93. Nessa consonância, o Tribunal a quo fez tábua rasa na Douta Sentença desta circunstância, não condenando a Recorrida no pagamento de tais quantias.
94. Ora, vejamos que a Douta Sentença considera provado no ponto 17 da matéria provada que “a falta de restituição do imóvel tem provocado aos Autores transtornos e incómodos, custos acrescidos, e, principalmente, revolta e indignação”.
95. A ser assim, e em conformidade com os factos provados n.ºs 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 22, 23 e 24, sempre deveria o Tribunal ter condenado a Recorrente no pagamento de tais quantias, uma vez que nos autos existiam elementos suficientes de prova para que tal quantia pudesse ser liquidada, imediatamente, na sentença recorrida e não relegada para momento posterior, em “execução de sentença”, ao que acresce a circunstância de a condenação da Ré no pagamento da indemnização por danos patrimoniais dever abranger todas essas verbas e não apenas, conforme resulta na sentença recorrida, as prestações bancárias e prestações de condomínio.
96. A ser assim, e uma vez que as quantias alegadas pelos AA., aqui Recorrentes são líquidas e exigíveis, a sentença recorrida, com o devido respeito, nunca se poderia bastar com uma condenação genérica, pois que, esta só poderia ocorrer quando o Tribunal, no momento em que profere a decisão, carecesse de elementos para fixar o objeto ou a quantidade da condenação, o que não sucedia no caso concreto.
97. Consideram os AA., ora Recorrentes, que o Tribunal a quo deveria, desde logo, ter condenado a Ré no pagamento das quantias peticionadas em conformidade com os articulados.
98. Não o tendo feito, consideramos que, a este respeito violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 608.º n.º 2 e 609.º n.º 2 do CPC, uma vez que, existindo elementos suficientes para a condenação não se deveria bastar a proferir condenação genérica num montante a liquidar a posteriori.
99. Já no que diz respeito ao pedido dos Recorrentes no pagamento pela Recorrida do montante de indemnização por danos não patrimoniais, sempre se dirá que mais uma vez mal andou o Tribunal a quo ao indeferir tal pedido, padecendo nesta parte a sentença recorrida de nulidade, por, desde logo, não revelar qual o iter cognoscitivo.
100. Na verdade, contrariamente a isto, a sentença recorrida vem dar como provado o facto 17, de onde consta precisamente a circunstância de os AA., ora Recorrentes, se sentirem indignados e revoltados com toda a situação causada pela Ré.
101. Ora, tendo em consideração o supra exposto, facilmente se depreenderá que os ora Recorrentes se sentem lesados ao constatar que a Ré, aqui Recorrida, pessoa familiar em quem depositavam plena confiança, não cumpriu, e recusa-se a cumprir as suas obrigações contratuais,
designadamente a restituição do imóvel, factualidade que, claro está, tem provocado aos aqui Recorrentes enormes transtornos, incómodos e custos acrescidos, e, principalmente, uma imensa revolta e indignação pelo facto de a Recorrida os ter enganado e estar a tentar desvirtuar nos presentes autos o real negócio jurídico celebrado entre as partes.
102. Com efeito, a filha dos Recorrentes tem-se visto impedida de habitar no imóvel, do qual os seus pais, Recorrentes, são proprietários, os quais vêm a suportar diversos custos, não fosse a ocorrência de toda esta situação.
103. Assim sendo, entendem desde já os Recorrentes que tais danos são de gravidade bastante para que possam merecer a tutela do Direito, devendo a Recorrida ser condenada no pagamento de indemnização a este título.
104. A sentença recorrida padece assim de um vício lógico na sua construção, visto que os fundamentos invocados na decisão conduziriam logicamente, não no resultado expresso na sentença, mas a resultado oposto, resultado esse que seria necessariamente a condenação da Recorrida no peticionado pelos Recorrentes, pugnando-se, desde já, pela sua revogação no que a isto diz respeito, com a consequente substituição da mesma por outra que admita a condenação da Ré, aqui Recorrida, em indemnização por danos não patrimoniais.
105. No que tange à peticionada má-fé da Ré, ora Recorrida, cumpre referir que a Douta sentença recorrida apenas se pronuncia quanto ao pedido efetuado pela Ré, ora Recorrida, na condenação dos ora Recorrentes como litigantes de má fé.
106. Não obstante, em sede de Réplica, também os AA., aqui Recorrentes, peticionaram a condenação da Recorrida em litigância de má-fé.
107. A sentença recorrida não apreciou este pedido, padecendo, novamente, a sentença recorrida de omissão de pronúncia, no que tange, agora, a este aspeto.
108. Conforme demonstrado em sede de Contra-Alegações para onde se remete por questões de economia processual, a Ré, ora Recorrida, para além de apresentar uma versão dos factos distorcida e completamente falaciosa e juntar documentos falsos, também, não conseguiu defender convenientemente a mesma, uma vez que, entra sucessivamente em contradições flagrantes aquando da prestação do seu depoimento de parte em sede de audiência de discussão e julgamento.
109. Pretendeu a Recorrida servir-se dos meios processuais para se locupletar à custa dos seus credores, ora Recorrentes, designadamente ao arquitetar e elaborar, por si ou por interposta pessoa, documentos falsos, com assinaturas falsas, que não se coibiu de juntar com a contestação, e ainda ao apresentar a contestação com pedido reconvencional, sem qualquer fundamento.
110. Assim sendo, perante a prova testemunhal produzida e perante a versão dos factos que o Tribunal recorrido considerou provados, bem como, designadamente, da análise dos documentos n.ºs 1 e 3, juntos pela Recorrida, com a sua Contestação/Reconvenção, não poderia o Tribunal deixar de condenar a Ré, ora Recorrida em MANIFESTA LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ!
111. Face ao retro exposto, e visto não ter o Tribunal a quo se pronunciado quanto a esta questão devendo tê-lo feito, uma vez que os ora Recorrentes a colocaram à sua apreciação, padece a sentença ora recorrida de nulidade por omissão de pronúncia, tal como consagrado no art. 615.º n.º 1 alínea d) do CPC..
112. ASSIM SENDO, consideramos que, no que tange aos aspetos suprarreferidos, violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 608.º n.º 2, 609.º n.º 2, 611º, 612º, 615.º n.º 1 alínea c) e 615.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil,
113. pelo que se conclui pela falta de razão da sentença, aqui recorrida, apenas nos aspetos mencionados no recurso subordinado interposto, devendo a mesma, nesta parte, ser revogada e substituída por outra decisão que liquide o montante de indemnização devida aos Recorrentes a título de danos patrimoniais, bem como, defira o pedido de condenação da Recorrida no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais e ainda proceda à condenação da Ré, aqui Recorrida, em litigante de má fé, nos exatos e precisos termos requeridos nos presentes autos, o que, mui respeitosamente, se requer a V. Exas.. Termos em que deve a sentença recorrida objeto de recurso pela Ré, ora Recorrente, ser confirmada, no que concerne ao objeto do recurso de apelação interposto, negando-se, assim, provimento ao recurso de apelação interposto pela Ré, aqui Recorrente, mantendo-se a sentença recorrida a esse respeito.
Mais deverá ser julgado procedente o presente recurso subordinado interposto pelos Autores, ora Recorrentes, concedendo, integralmente, provimento ao mesmo e, em consequência, ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, na parte de que ora se recorre, e em sua substituição deverá ser proferido douto Acórdão que decida procedente o recurso subordinado interposto, em conformidade com o supra explanado e nos termos supra expostos, fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça”.
Em face das conclusões dos Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1- A nulidade da sentença:
a) Por falta de motivação da matéria de facto provada e não provada;
b) Por falta de fundamentação da decisão de improcedência do pedido de condenação da ré no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais; e,
c) Por omissão de pronúncia quanto ao pedido de condenação da ré como litigante de má-fé.
2 – A admissibilidade da impugnação da matéria de facto; caso se conclua pela mesma,
3 – A reapreciação da prova indicada relativamente aos factos dados por provados sob as alíneas 5 a 9 e 17 e não provados nas alíneas d) e e)
4- No caso de procedência da impugnação da matéria de facto, a eventual qualificação do acordo entre as partes como contrato promessa de compra e venda e consequências da mesma na decisão;
5- A obrigação de liquidação da indemnização por danos patrimoniais em que a ré foi condenada;
6- A existência de fundamento para a condenação da ré no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais; e;
7- A condenação da ré como litigante de má-fé.
IV – Fundamentação:
Foram os seguintes os factos[1] selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa (destacar-se-ão desde já aqueles que a recorrente pretende que sejam alterados):
1) Os Autores são donos e legítimos proprietários da fracção autónoma designada pela letra “O”, correspondente a uma habitação, sita no 6.º andar direito do prédio constituído em regime de propriedade horizontal com entrada pelo n.º ... e um lugar de garagem, na cave e com entrada pelo n.º ..., ambos da Avenida ..., no Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...-O e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...... (Cfr. Docs. n.ºs 1 e 2).
2) Os Autores adquiriram o imóvel supra referenciado, em 15 de setembro de 2006 (Cfr. Docs. n.ºs 1 e 3).
3) Tendo, para o efeito, na mesma data, os Autores celebrado um contrato de mútuo com o A..., S.A. – Establecimiento Financiero de Crédito (Sociedad Unipersonal) – Sucursal em Portugal, para a aquisição da referida fração autónoma, procedendo à constituição de duas hipotecas voluntárias sobre o imóvel, como garantia do empréstimo concedido (Cfr. Doc. n.º 3).
4) Sucede que, após o divórcio dos Autores, ocorrido em 9/06/2016 (Cfr. Doc. nº 4), a Ré, prima dos Autores, ficou a residir no referido imóvel.
5) Sendo que, pelo gozo do imóvel dos Autores, comprometeu-se, a Ré, a, em singelo, pagar as prestações mensais devidas à Entidade Bancária pelo Crédito Habitação referente ao imóvel, bem como as respectivas despesas do condomínio, até que os AA. precisassem do imóvel.
6) Em virtude da matrícula da filha dos Autores, EE (doc. nº 5), na Universidade ... – Norte, no ano letivo 2020/2021, e considerando já a perspetiva de mudança de instalações da referida Universidade para a Rua ..., no Porto, nocorrente ano letivo, isto é, de 2021/2022 (doc. nº 6), os Autores solicitaram à Ré, no início do ano de 2020, a restituição do imóvel, para que o mesmo passasse a ser habitado pela filha de ambos, distando, atualmente, o imóvel cerca de 1 Km da faculdade frequentada pela filha dos Autores.
7) Porém, a Ré recusou-se a desocupar e entregar o imóvel aos Autores, não permitindo, sequer, o acesso ao imóvel por parte dos mesmos.
8) Em face disso, os Autores enviaram, ainda, carta registada com aviso de recepção à Ré, em 02 de novembro de 2020 (Cfr. Doc. nº7), comunicando-lhe, de novo, que seria sua pretensão a restituição da posse do imóvel, mais solicitando a restituição do mesmo, livre de pessoas e bens, no prazo de 30 dias, devendo, para o efeito ser agendada data para a entrega da chave e análise do imóvel.
9) Sucede que, não obstante a referida missiva ter sido recepcionada pela Ré em 03/11/2020(Cfr. Doc. n.º 8), a Ré não respondeu à referida missiva, nem procedeu à restituição do imóvel no prazo concedido para o efeito, continuando a habitar no imóvel.
10) Estando os Autores a ter alguns dos encargos provenientes do facto de serem eles os proprietários do imóvel, encontrando-se o contrato de fornecimento de água ao imóvel em apreço, celebrado com a B...., em nome do Autor (Doc. nº 9), bem como o IMI continua a ser suportado pelos Autores, não obstante a dificuldade económica apresentada pelos mesmos, tendo sido o pagamento do IMI efetuado, pelo A., em prestações, no âmbito de processo de execução fiscal, entretanto, instaurado (Doc. nº 10).
11) Acresce que, desde abril de 2020, a Ré eximiu-se, inclusivamente, ao pagamento de toda e qualquer prestação devida à Administração do Condomínio do imóvel em apreço, designadamente, da respectiva prestação mensal, no valor de €55,00.
12) Pelo que, e de modo a evitar a instauração de acção executiva para cobrança das prestações vencidas (Doc. nº 11), as prestações devidas ao condomínio têm sido custeadas pela Autora, desde setembro de 2020 até à data, com efeitos retroactivos a abril de 2020 (Cfr. Docs. nºs12e 13).
13) Em face disso, e por receio do estado em que o imóvel se poderia encontrar, a Autora celebrou com a C..., S.A., desde 2020, um contrato de seguromultirriscos do imóvel, cujo prémio de seguro, no valor de €119,71, é pago, anual e integralmente, pela Autora (Cfr. Doc. n.º 14).
14) Mantendo-se a Ré a pagar as prestações do crédito habitação, desde o início do contrato de comodato, mas tendo deixado de pagar as prestações de condomínio desde março de 2020.
15) O montante pago pela A. pela celebração do contrato de seguro do imóvel, celebrado desde 2020, pelos AA., é no valor global de €239,42.
16) O montante suportado pelos AA., a título de despesas de condomínio, desde abril de 2020 até 21.12.2023, é de €2.488,00, tendo posteriormente pago mais €294,00 relativo aos meses de Novembro e Dezembro de 2023 a Março de 2024 (Cfr. Docs. nºs 11 a 13 e 2 do R. E. 47480233 de 21.12.2023 e doc. 1 da R. E. 48258954 de 12.03.2024).
17) A falta de restituição do imóvel tem provocado aos Autores transtornos e incómodos, custos acrescidos, e, principalmente, revolta e indignação.
18) A Ré, nos meses de outubro e novembro de 2022, não procedeu ao pagamento integral das prestações mensais devidas pela A. à Entidade Bancária pelo Crédito Habitação referente ao imóvel, em apreço nos presentes autos, tendo sido os Autores que suportaram, desde então, o encargo remanescente correspondente, o qual foi debitado na conta bancária da A., o que representa, até à data, o valor global de €117,11, designadamente:
- €35,67, em outubro de 2022;
- €81,44, em novembro de 2022 (Cfr. Doc. n.º 1, R. E. 44452344 de 19.01.2023),
19) A R. também não procedeu ao pagamento da prestação mensal devida pelos Autores à Entidade Bancária pelo Crédito Habitação, no mês de abril de 2023 e referente ao imóvel em apreço nos presentes autos, assim como não procedeu ao pagamento integral da prestação devida no mês tendo sido os Autores a suportar o encargo, no valor global de € 419,35 (quatrocentos e dezanove euros e trinta e cinco cêntimos) (Cfr. Doc. n.º 1 do R. E. 47480233 de 21.12.2023).
20) Houve infiltrações no andar imediatamente inferior, isto é, do imóvel do 5.º andar direito, da existência de infiltração no imóvel, designadamente no teto do WC.
21) Após os Autores tomarem conhecimento da existência da referida infiltração, procederam à participação do sinistro à D..., S.A. (Cfr. Doc. n.º 3, R. E. 44452344 de 19.01.2023),
22) De acordo com a informação prestada, em 10/10/2022, constatou-se que aquela Seguradora não assumiu a responsabilidade pelo evento, na sua totalidade, alegando que nenhuma das coberturas subscritas na Apólice contemplava os danos reclamados, assumindo apenas parcialmente a responsabilidade, no que concerne à Cobertura de Responsabilidade Civil, procedendo, assim, a referida Seguradora ao pagamento da indemnização devida à A. (Cfr. Docs. n.ºs 4 e 5 R. E. . 44452344 de 19.01.2023).
Para a reparação dos danos existentes no imóvel dos Autores e acima referidos, na sequência da infiltração verificada, foi necessário proceder a trabalhos de remodelação do wc de serviço no imóvel em apreço nos autos, no montante global de € 977,85 (Cfr. Doc. n.º 3 R. E. 47480233 de 21.12.2023),
23) Assim como suportou, de novo, a Autora o prémio de seguro devido pelo contrato de seguro multirrisco do imóvel, no valor de € 158,16, pelo período de 01/10/2023 a 30/09/2024 (Cfr. Doc. n.º 4 da R. E. 47480233 de 21.12.2023),
24) De igual modo, cumpre ainda mencionar que os Autores procederam ao pagamento do IMI, no corrente ano, no valor de € 92,47, assim como liquidaram a prestação devida no âmbito de processo de execução fiscal, no montante global de € 148,31, para pagamento do IMI (Cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 R. E. 47480233 de 21.12.2023).
25) A Ré é prima dos Autores.
26) À data do divórcio dos AA. estes encontravam-se numa situação de incumprimento para com a entidade bancária no pagamento do empréstimo bancário.
27) Para liquidação das prestações mensais atrasadas, na mesma data, procedeu ao pagamento da quantia acordada no montante de € 6.085,00 (seis mil e oitenta e eis mil e oitenta e cinco euros) –– Doc. 2 da contestação, reconhecendo os AA., serem devedores à A. da quantia de €6.904,44 a título de mútuo gratuito.
28) A Ré, para além do mencionado pagamento, liquidou a título de prestações entre Junho de 2016 a Outubro de 2023 a quantia de €26.353,96 e de Novembro a Março de 2024 a quantia de €2.028,20, e de Abril a Maio de 2024 a quantia de €811,28, perfazendo o total de €29.193,46, vide docs R. E. 36763035 de 26.09.2023, docs. 1 a 9 do R. E. 46748661 de 12.10.2023 e R. E. 48219579 de 23.05.2024.
22) Acresce que a Ré liquidou o IMI do imóvel em 2017, no valor de 182,19€ -- Doc. 4 -- tendo os Autores recusado que continuasse a fazê-lo nos anos posteriores, não lhe facultando as guias para pagamento.
23) Em Junho de 2016, a Ré liquidou as mensalidades em atraso do condomínio do prédio de que o imóvel dos Autores faz parte integrante, no valor de 637,25 € (seiscentos e trinta e sete euros e vinte e cinco cêntimos) –– Doc. 5.
24) Bem como as mensalidades de Junho de 2016 a Março de 2020, no valor total de 2.484,00 € (46 x 54,00).
FACTOS NÃO PROVADOS
a) O empréstimo referido em 4) tenha ocorrido pelas dificuldades que a Ré tinha em adquirir um imóvel para habitar ou, em alternativa, celebrar um contrato de arrendamento habitacional, uma vez que não auferia quaisquer rendimentos declarados que lhe permitissem o acesso a um crédito habitação ou contrato de arrendamento.
b) Aliás, os Autores apenas acederam à solicitação da Ré de empréstimo do imóvel, considerando a previsibilidade daquela utilização ser curta e temporária e porque se tratava de pessoa da família, obrigando-se a Ré a desocupar, imediatamente, o mesmo, assim que os AA. lhe comunicassem a sua necessidade.
c) A Ré efetuou obras que comportaram a alteração significativa na estrutura do imóvel, designadamente, mediante a remoção da lareira, com chaminé, existente na sala do imóvel, sem obter a necessária e prévia autorização por parte dos Autores, proprietários do imóvel, para o efeito, o que além de, manifestamente, desvalorizar comercialmente o imóvel, sempre, de qualquer modo, não seria autorizado pelos Autores porque contrário à sua vontade.
d) Por documento particular, denominado “Contrato de promessa de compra e venda””, datado de 06/05/2016, neles figurando como promitentes vendedores os aqui Autores, e, como promitente compradora, a ora Ré, os contraentes declararam, entre outros.
“6 Os primeiros contraentes comprometem-se no prazo de 30 dias a partir da assinatura do presente contrato passar à segunda o contrato para poder proceder a escritura do prédio para seu nome ou de quem a segunda quiser, saudado que esteja o d´bito no Banco.
7 O preço do presente contrato e a soma de €6.085,00 Prestações vencidas) e o conjunto das restantes prestações, a suportar pela segunda.
8 A segunda entre de imediato na posse do prédio (Fracção autónoma referida), passando a receber as vantagens do referido prédio, sejam rendas ou o que for, administrando-o, podendo celebrar qualquer contrato em seu nome com terceiros, tendo em objecto o referido prédio.
9 A escritura deverá ser feita logo que seja saudado o débito ao Banco.”
e) Ainda no decurso do mês de Junho de 2016 e ainda em cumprimento do acordado, a Ré entregou à Autora a quantia de €6.000,00 € (seis mil euros) Doc. 3.
Ambos os recorrentes, com base em diferentes fundamentos, apontam à sentença o vício de nulidade.
a) A recorrente entende que a mesma é nula por falta de análise crítica da prova.
A motivação da decisão da matéria de facto foi estruturada da seguinte forma: O tribunal começou por fazer uma referência genérica “a toda a prova documental junta aos autos, designadamente a referida em cada um dos factos dados[2]”. Segue-se um muito breve resumo, elaborado por tópicos, do teor das declarações de cada um dos depoentes (testemunhas e partes) sem qualquer apreciação sobre a sua credibilidade, sem descrição da forma como decorreram e sem qualquer confronto entre o teor dos vários depoimentos ou entre estes e outros meios de prova, como a documental.
Após, sob o título “análise crítica da prova” foi exarado apenas o seguinte:
“Algumas considerações cabem ser feitas sobre a prova produzida e consequente factualidade provada e não provada.
Sobre a questão da entrega e a que título do prédio pelos AA. à R., factos provados de 4) e 5) e não provados em d) e e), cabe dizer o seguinte. Foram trazidas aos autos duas versões completamente distintas por AA. e R.., não tendo merecido acolhimento a versão da R., da celebração do contrato-promessa, desde logo, pelo facto do pretenso contrato-promessa conter dados completamente desconformes com a realidade, porquanto à data do mesmo a A. era casada e o nome era BB, havendo ainda desconformidade com o documento 3 da contestação, vide B.I., tal como se verifica erro na identificação do imóvel, vide a identificação de 1) dos factos provados e a referida no pretenso contrato promessa.
Acresce que consta do contrato o nome do A. CC, bem como a assinatura do mesmo sem que este alguma vez tivesse conhecimento da existência do contrato e alguma vez o tenha assinado, vide as declarações de parte deste, as quais não mereceram qualquer dúvida ao tribunal.
Mas não fica por aqui as contradições, consta do mesmo como testemunhas da celebração do contrato pessoas que foram claras em referir que a assinatura não é delas, nem o cartão de residência é o lá referido, vide o depoimento credível da testemunha FF, bem como da EE.
Pese a R. e as testemunhas GG e HH ter trazido a versão da celebração de tal contrato promessa, certo é que aos AA. refutam completamente a celebração do mesmo, versão esta que tem apoio em todas as contradições acima referidas, pelo que, no mínimo, se colocava uma dúvida séria ao Tribunal sobre a real existência do aludido e pretenso contrato-promessa.
A dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra quem tem o ónus da prova, neste caso a R., artº 414º do CPC e 342º do CC.
Relativamente à restante factualidade ela encontra-se assente na prova documental referida nos factos, bem como depoimentos testemunhais que sobre a mesma incidiram.”
Dúvidas não há de que a análise crítica da prova a que alude o artigo 607.º, número 4 do Código de Processo Civil, apenas foi feita quanto aos meios de prova referidos no trecho supra transcrito e que fundaram o teor de dois factos provados (alíneas 4 e 5) e de dois outros julgados não provados (d) e e)).
Prescreve o artigo 607.º, número 4 do Código de Processo Civil o seguinte: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
A sentença é nula sempre que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b) e ainda (no que aqui pode relevar) quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, como previsto na alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
No caso em apreço cumpre salientar que o Tribunal a quo deu como assentes (“por acordo ou documento”), em sede de saneador, os factos julgados provados nas alíneas 1 a 4. [3]
Quanto aos demais factos (além dos 1 a 6 e d) e e)) é manifesto que da motivação da sentença não resulta a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção não tendo analisado criticamente outros meios de prova. A referência muito breve, por tópicos, ao teor de cada um dos depoimentos não revela em que medida cada um deles foi ou não merecedor de credibilidade. O mesmo quanto aos documentos, genericamente referidos e que não se sabe porque mereceram ou não credibilidade ou o que foi retirado do seu teor. Não foi, sequer, abordada a questão da alegada falsidade das assinaturas apostas no alegado contrato promessa junto pela ré com a contestação.
Não obstante, a sentença tem elencados os factos provados e não provados, refere os vários meios de prova apreciados (remetendo várias alíneas dos factos provados e não provados para os documentos relativos ao seu teor) e sumaria os depoimentos prestados em audiência de julgamento. Não se está, assim, perante uma total omissão de motivação da matéria de facto.
Quanto à nulidade da sentença por insuficiência da motivação da matéria de facto (que aqui se verifica quanto à obrigação de análise crítica da prova) acompanhamos o entendimento defendido em acórdão desta secção de 04-05-2022[4] em cujo sumário se pode ler:
“A falta de fundamentação da decisão de facto ou ainda, a omissão de análise crítica da prova, porque não foram ponderados determinados elementos de prova, não constitui fundamento para nulidade da sentença. O dever de fundamentação da matéria de facto, previsto no art. 607º/2 CPC, não se confunde com o dever de fundamentação da decisão final, onde se trata da aplicação do direito aos factos e apenas este vício pode gerar a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º/1 b) CPC".
Como se pode ainda ler na fundamentação desse aresto, “A irregularidade está diretamente relacionada com o dever imposto ao juiz de motivar as suas decisões, conforme resulta do disposto no art. 607º CPC. Contudo, a omissão de exame crítico das provas não preenche a apontada nulidade, pois para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão”. (…). O dever de fundamentação da matéria de facto, previsto no art. 607º/2 CPC, não se confunde com o dever de fundamentação da decisão final, onde se trata da aplicação do direito aos factos e apenas este vício pode gerar a nulidade da sentença. A falta de fundamentação da decisão de facto quando muito poderá gerar o reenvio do processo ao tribunal de 1ª instância para completar a fundamentação, nas circunstâncias do art. 662º/5 CPC, ou, em última instância, a anulação do julgamento, com repetição, ao abrigo do art. 662º/4 CPC.”.
Como salientado por Abrantes Geraldes Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[5] o recurso ao disposto na alínea d) do número 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, deve ser reservado aos casos em que a deficiente motivação da matéria de facto seja efetivamente relevante e não possa ser remediada através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova[6].
É o que sucede neste caso, em que em relação a várias das alíneas dos factos provados e não provados se desconhece em absoluto a razão da convicção do Tribunal a quo quanto à decisão proferida sobre os mesmos.
Desconhece-se, a título meramente exemplificativo, quais os meios de prova em que se sustenta o teor da alínea 17 dos factos provados, uma das que é alvo de censura e em que a recorrente argui que nenhum meio de prova foi apresentado com vista a confirmar tal facto. Se foi ou não ficamos sem o saber, já que a motivação da sentença não indica nenhum.
A recorrente impugna e pretende a alteração de várias alíneas da matéria de facto sobre as quais o Tribunal a quo não indicou qualquer motivação não tendo indicado os concretos meios de prova em que se baseou para os julgar provados: são elas as alíneas 7, 9 e 17 dos factos provados. Indica quais os meios de prova que quer ver reapreciados. Ora dessa reapreciação decorre a necessidade de ter também em conta os meios de prova que o Tribunal considerou e que levaram a concluir pela prova desses factos. Não tem este Tribunal como levar em consideração tais meios de prova pois não foram os mesmos devidamente indicados pelo Tribunal a quo na motivação da matéria de facto. Assim, sob pena de não se poder levar em conta, na pretendida reapreciação da prova, aquela que o Tribunal a quo valorou para efeitos de considerar provados os factos impugnados, deve tal insuficiência de motivação ser suprida pelo mesmo.
Sem prejuízo do nosso entendimento de que a sentença não padece de nulidade por força da deficiente fundamentação da matéria de facto, deve ser o Tribunal a quo suprir tal manifesta insuficiência, motivando de forma explícita os factos dados por provados e não provados além dos que constam das alíneas 5 e 6 e d) e e), respetivamente (bem como das alíneas 1 a 4 que foram julgada assentes em sede de despacho saneador), e analisando criticamente a prova que a propósito deles valorou.
Só dessa forma estará este Tribunal munido dos meios necessários a reapreciar a prova indicada pelos recorrentes com vista à eventual alteração dos factos provados e não provados.
Do teor das suas próprias alegações, todavia, decorre a falta de fundamento de tal afirmação.
A esse propósito pode ler-se na sentença que “O Tribunal considera que tais danos não são suficientemente relevantes e graves para merecer a tutela do direito nos termos estatuídos no art 496º do CC. Assim sendo, improcede tal pedido”.
Os recorrentes podem discordar dessa fundamentação, como fazem, e até entender que a mesma peca por parca. Tal, contudo, não se confunde com a falta de fundamentação prevista na alínea b) do número 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Como já acima salientado, apenas a total omissão de fundamentação ou uma insuficiência tal da mesma que não permita às partes sindicar as razões que conduziram à decisão sob censura pode levar à nulidade da mesma.
O que os recorrentes pretendem é, apenas, censurar a decisão recorrida para o que manifestam a sua discordância relativamente ao fundamento da decisão, pretendendo provocar a sua alteração. Pelo que improcede a arguida nulidade da sentença.
Como decorre do relatório deste acórdão (vide ponto 3), os autores pediram a condenação da reconvinte como litigante de má-fé em sede de réplica.
Para tanto alegaram que a mesma elaborou documentos falsos para os juntar à contestação, tendo, com base neles, alterado conscientemente a verdade dos factos.
Sobre tal pedido e seus fundamentos a sentença recorrida não se debruça, sendo manifesta a omissão de referência, sequer, a tal pretensão. O relatório da sentença, aliás, não faz qualquer menção à réplica o que, cremos, terá condicionado a subsequente omissão de pronúncia sobre a pretensão nela expressa.
Certo é que não está em causa a decisão sobre o mérito da causa, pelo que não é de ponderar a aplicação da regra de substituição ao tribunal recorrido, decorrente do disposto no artigo 665.º, número 1 do Código de Processo Civil, reservada apenas para os casos em que está em causa a nulidade da decisão que põe termo ao processo.
A circunstância de a omissão de pronúncia se reportar a um pedido de condenação de uma das partes como litigante de má-fé, pretensão que é acessória e não se confunde com os pedidos formulados na ação e na reconvenção, leva-nos a afirmar, como tem sido entendido pela jurisprudência[7], que a mesma não conduz à nulidade in totum da sentença, tratando-se, contudo, de uma nulidade parcial, por omissão, que deve ser suprida em primeira instância.
Todavia, trata-se de pedido que tinha que ser decidido pelo Tribunal a quo no momento da sentença e cujo recurso teria, em consequência, que ser interposto conjuntamente com esta, nos termos do disposto nos artigos 542.º, número 3, 543.º, número 3 e 644.º, número 3 do Código de Processo Civil. A sentença recorrida sequer se pronuncia sobre os factos alegados como fundamento da alegada má-fé da reconvinte, nomeadamente a alegada falsificação das assinaturas apostas no documento epigrafado de contrato promessa junto à contestação. Assim, tal omissão, uma vez mais tem de ser suprida pelo Tribunal a quo.
Julgam-se parcialmente procedentes ambas as apelações e, em consequência:
1- determina-se a remessa dos autos à primeira instância para fundamentação da matéria de facto nos termos acima discriminados (com exceção das alíneas 1 a 6 dos factos provados e d) e e) dos não provados), nos termos do artigo 662º, número 1 d) do Código de Processo Civil;
2- anula-se parcialmente a sentença devendo o Tribunal a quo suprir tal nulidade conhecendo, de facto e dereito, do pedido de condenação da ré/reconvinte como litigante de má-fé nos termos requeridos em sede de réplica.
Custas por ambos os recorrentes/recorridos, em igual medida.
Porto, 28 de abril de 2025
Ana Olívia Loureiro
Miguel Baldaia de Morais
Fátima Andrade
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