RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

I - Tendo a vítima do acidente de viação à data do mesmo 24 anos de idade, sendo o défice permanente parcial da integridade física de 16 pontos, com repercussões permanentes na atividade profissional, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicando esforços suplementares, bem como limitações significativas nas atividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, é adequada a indemnização de € 50.000,00 a título de dano biológico e de € 75.000 a título de danos não patrimoniais.
II - Atentas as taxas de juro que vêm sendo praticadas e a inflação, a entrega única da indemnização não poderá ser considerada como constituindo factor para um abaixamento significativo daquela.

Texto Integral

Processo: 15208/21.7T8PRT.P1

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Sumário
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Relatora: Teresa Sena da Fonseca
1.ª adjunta: Teresa Pinto da Silva
2.ª adjunta: Carla Fraga Torres

Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
AA intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “A..., S.A.”, atualmente “B..., S.A.”.
Invocou que em consequência de acidente de viação, provocado por culpa exclusiva de condutor de veículo cuja responsabilidade civil decorrente da sua circulação fora transferida para a R., sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.
Peticionou a condenação da R. a pagar-lhe:
- €103.350,00 a título de despesas futuras com fisioterapia;
- €137.809,27 a título de despesas futuras com revisão da prótese;
- €6.360,00 a título de despesas futuras com material ortopédico;
- €6.678,00 a título de despesas futuras com medicação crónica;
- €3.250,00 a título de despesas futuras com consultas de psicologia;
- €900,00 a título de despesas futuras com consultas de psiquiatria;
- €612,96 a título de despesas futuras com medicação psiquiátrica; - €80.000,00 a título de défice funcional permanente de integridade física e psíquica;
- €75.000,00 a título de indemnização por esforços acrescidos para o exercício da profissão habitual;
- €1.000,00 a título de internamento;
- €2.000,00 a título de quantum doloris;
- €5.000,00 a título de danos estéticos;
- €65.000,00 a título de danos morais presentes e futuros;
- €2.129,18 a título de despesas efetuadas após a data da alta até março de 2021,
tudo no total de €489.088,41, acrescidos de juros à taxa legal dos juros civis, desde a data da citação até pagamento.
A R. contestou, aceitando a factualidade respeitante ao sinistro, assumindo a obrigação de indemnizar e impugnando a extensão e o quantitativo dos danos.
Foram julgados verificados os pressupostos processuais, identificado o objeto do litígio e fixados temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que condenou a R. a pagar à A.
1) € 1.963,21, €65.000,00 e €6.360,00, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros, desde a data da citação até pagamento, à taxa legal dos juros civis.
2) €75.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros, desde a data da prolação da sentença, até pagamento, à taxa legal dos juros civis.
3) as quantias, a liquidar posteriormente, que se revelem necessárias a título de despesas futuras com fisioterapia e a título de despesas futuras com revisões da prótese.
A R. foi absolvida do demais peticionado.
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Inconformada, a R. interpôs o presente recurso, finalizando com as conclusões que em seguida se transcrevem.
I. Da indemnização arbitrada à A. pelo DFPIF-P (vertente dano patrimonial).
I. Relativamente a esta parcela da indemnização no montante de 65.000,00€, a R./recorrente não pode acompanhar o raciocínio da douta sentença e desde logo porque não logra perceber de que forma terá(ão) sido «usado(s)» o(s) mencionado(s) juízo(s) de equidade;
II. Com efeito, é muito lacónico (demasiado até) e «conclusivo» aquele parágrafo que consta, salvo erro, da pág. 30 da douta sentença, na medida em que, e sabido que a nossa jurisprudência tem vindo a usar de forma consistente e muito habitual, para dizer o menos, as fórmulas de cálculo como ponto de partida para uma decisão temperada depois pelo(s) tal(ais) juízo(s) de equidade, não consente que se perceba como afinal se «chegou lá», àquele montante de 65.000,00€, com que salário anual (ainda que ficcionado), se houve ou não «desconto» pela antecipação de pagamento/recebimento, etc.,
III. Portanto, pura e simplesmente não se nos afigura possível, só com isto, avaliar se é justa ou não a quantia fixada a este título pela douta sentença, pelo que teremos de tentar sindicar com recurso a essas fórmulas de cálculo;
IV. E para tal, utilizar-se-á aquela porventura mais simples do Sr. Conselheiro Sousa Dinis («Dano corporal em acidentes de viação, CJ, Ano IX, Tomo I, pág. 5), bem como uma remuneração ficcionada mensal de 820,00€, 12 meses por ano atendendo à «natureza» da formação académica da A. e ao modo «mais normal» como é habitualmente exercida a profissão a que essa formação académica permite aceder, o DFPIF-P de 16 pontos e um lapso temporal até ao limite da idade ativa (70 anos);
V. De referir, nesta altura, para efeitos de clarificação e como melhor decorre das págs. 4 a 7 do corpo das presentes alegações de apelação, que o montante de remuneração mensal avançado na conclusão anterior explica-se essencialmente pela média efetuada aos valores respeitantes ao ano de 2020 correspondente à da consolidação médico-legal (ambos revelados, de resto, em www.pordata.pt) da RMMG (€ 635,00) e aquela do salário médio, embora neste último caso, porque salário não líquido ou bruto, segundo aquela Pordata, após efetuada a necessária ponderação decorrente da necessidade de ter de ser considerado um rendimento líquido, como se sabe (vide o ac. do STJ de 21.01.2021, proc. nº 6705/14.1T8LRS.L1.S1, igualmente citado no corpo das alegações);
VI. Assim, e mesmo que não se considere (ainda que apenas para efeitos deste raciocínio) qualquer «desconto» justificado pelo pagamento/recebimento de uma só vez e desde já, temos que o montante a que aquela fórmula permite chegar seria de 64.550,40€ [= 820,00€ x 12 meses = 9.840,00€ x 41 anos (= 70 – 29) x 16 pontos (5%)];
VII. Contudo, e tal como referido, é mister que seja efetuada uma dedução devida pela antecipação (e longa, de resto) do pagamento/recebimento desta parte da indemnização que se entende não deva ser menos de ¼ (ou 25%);
VIII. Isso significa que, considerando esse «desconto» que se justifica também por razões de evitar um possível enriquecimento sem causa da A., o valor a que seria possível chegar situar-se-ia antes no montante de 48.412,80€ [= 64.550,40€ x ¼ (ou 25%) = 16.137,60€; 64.550,40€ - 16.137,60€ = 48.412,80€];
IX. Ora, vistos todos os factos e fatores e ponderado (ainda que de forma meramente indicativa) esse cálculo, chega-se a um valor que se admite, temperado com o recurso à equidade, possa chegar a um máximo de € 50.000,00 (até porque convém não esquecer que a douta sentença também condenou a R., autonomamente, numa quantia muito significativa e, salvo o devido respeito, exagerada – 75.000,00€ - respeitante a danos não patrimoniais;
X. Várias são, aliás, as decisões jurisprudenciais (de que são exemplo o ac. do STJ de 29/10/2019 com o n° de processo 7614/15.2T8GMR.G1.S1, o ac. do STJ de 21/01/2016, proferido no processo 1021/11.3TBABT.E1.S1 e o ac. do TRL de 11/11/2014, proferido no processo 987/11.9TBPDL.L, bem como os acs. do STJ de 20/11/2014, proc. nº 5572/05.0TVLSB.L1.S1, do TRP de 05/05/2014, proc. nº 779/11.4TBPNF.P1 e do TRC de 21/01/2020, com o nº de proc. 5370/17.9T8VIS. C1) de que se extrai, com muita facilidade, e para além de vários outros fatores, terem sido arbitradas indemnizações inferiores àquelas aqui arbitradas à A. a este título para DFPIF-P superiores àquele da A. e/ou, pelo menos, que com ele poderão comparados numa análise também de «proporcionalidade», por assim dizer.
Depois,
II. Da indemnização arbitrada à A. a título de danos não patrimoniais.
XI. Também no que concerne aos danos não patrimoniais, parece à R., vista designadamente e por comparação com decisões jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, de que constituem exemplo os acs. do S.T.J. de 14/06/2011 (proc. nº 1695/06.7TBLSD.P1.S1), de 23/02/2012 (proc. n. 31/05.4TAALQ.L2.S1) e de 07/09/2020 (proc. nº 5466/15.1T8GMR.G1.S1), do TRL de 02/05/2013 (proc. nº 73/08.8TBVPT.L1-2), de 11/11/2014 (proc. nº 2987/11.9TBPDL.L-71), do TRG de 13/12/2014 (proc. nº 114/10.9TBPTL.G2), mas também do TRP de 23/11/2023 (proc. nº 1548/21.9T8PVZ, este com a particularidade ter sido confirmado, designadamente quanto a esta questão danos não patrimonial, pelo ac. do STJ de 30/04/2024, no âmbito do proc. nº 1548/21.9T8PVZ.P1.S1) e de 07/10/2024 (proc. nº 14983/19.4T8PRT.P1), que o montante arbitrado, e salvo sempre o respeito devido, peca por nitidamente excessivo;
XII. Assim, é a R. de opinião que os danos não patrimoniais da A. devem ser fixados em não mais de 40.000,00€;
XIII. A sentença recorrida violou, salvo o devido respeito, o disposto nos artigos 494º, 496º, nº 4, 562º, 564º e 566º do Código Civil, devendo ser revogada e alterada nos moldes defendidos nestas linhas.
Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio,
XIV. Na hipótese de se entender (o que se admite para efeitos deste raciocínio) que deverá ocorrer uma redução da(s) «parcela(s)» respeitantes ao dano biológico e/ou ao dano não patrimonial fixados pela douta sentença, mas para valor(es) superior(es) ao(s) aqui avançado(s) pela R./recorrente, pede-se, por mera cautela, que este Tribunal ad quem fixe, dentro desses acima mencionados parâmetros, o(s) montante(s) que entenda que mais se justifica(m) no caso concreto.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e respetivas conclusões Vossas Excelências farão inteira Justiça!
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A A. contra-alegou, terminando da seguinte forma.
I - Vem a Ré, ora Apelante, intentar recurso da douta sentença proferida nos presentes autos no que diz respeito à fixação da indemnização de 65.000,00 euros pelo dano biológico decorrente do défice funcional permanente de que a Autora ficou a padecer em consequência do acidente dos autos.
II - Entende a Ré/Apelante que o tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do Direito, tendo ocorrido a violação de juízos de equidade na fixação do valor da indemnização, uma vez que considera manifestamente excessiva a indemnização fixada devendo a quantia em que foi condenada ser objeto de redução, e a sentença recorrida ser revogada.
III - Ora, o tribunal a quo, após análise crítica e livre dos factos e respetivas provas levadas a julgamento, concretamente a documentação junta aos autos e a livre apreciação da prova testemunhal, concatenadas com as regras de experiência comum e de lógica, e justificando que apesar “da jurisprudência para o efeito se tenha socorrido de vários métodos e critérios: com o recurso às tabelas de cálculo das pensões por incapacidade laboral e sua remição, o recurso a fórmulas matemáticas, o recurso a critérios para cálculo do usufruto para fins fiscais, o que acontecia é que todas as fórmulas puramente matemáticas, fixas, acabavam por não conseguir contemplar e avaliar cada situação em toda a sua especificidade e complexidade entendeu, justificando tal “como alguma jurisprudência já apareça a defender a fixação desta indemnização com base apenas na equidade”, em fixar a indemnização com base em juízos de equidade.
IV - Acresce ainda que, e como bem referiu a M. Juíza do tribunal a quo, a Portaria 377/2008, de 26/05, tem apenas por fim o estabelecimento de regras e princípios tendentes a agilizar a apresentação de propostas indemnizatórias adequadas numa fase pré-judicial, não se impondo, assim, a mesma aos tribunais.
V - Mais ainda, os valores aí insertos funcionam como um indicador/ponto de partida.
VI - Pelo que bem decidiu o tribunal a quo que “em casos como o dos autos (em que não há uma efetiva perda de capacidade de ganho) ter-se-á que ter mais em causa a equidade que fatores de índole matemática.”
VII - Acresce ainda que, apesar de o tribunal a quo se socorrer de juízos de equidade, foi ainda mais além, fundamentando a sua decisão numa base salarial “que desempenharia atividade profissional em que auferiria rendimento com certeza superior ao salário mínimo nacional, parece adequado atribuir a este título o valor indemnizatório de €65.000,00 (sessenta e cinco mil euros).”
VIII - Não deixa de ser curioso que a Ré/Apelante, depois de todo o raciocínio pelas fórmulas matemáticas, salário mínimo, trabalhador dependente/independente, retenções na fonte, rendimento mensal de 12 meses ou 14 meses, meramente especulativo, chega precisamente a valor idêntico ao arbitrado a este título pela douta sentença.
IX - Acresce ainda que, tal cálculo foi feito pelo salário mínimo nacional de 820 euros, o que a Autora/Apelada jamais pode aceitar, pois é expectável que face à sua profissão a sua remuneração será sempre superior, e como é do conhecimento geral, tal profissão normalmente é exercida em grande gabinetes de arquitetura, onde normalmente são arquitetos associados, recebendo o seu rendimento mensalmente como de trabalhadores dependentes se tratassem, recebendo 14 meses, para além de prémios atribuídos.
X - Pelo que o mencionado “desconto” defendido pela Ré/Apelante, não tem qualquer cabimento, pois jamais se poderá reduzir algo que já se encontra reduzido ao máximo.
XI - Entende a Autora/Apelada que o montante indemnizatório fixado pelo M. Juíza do tribunal a quo pelo mencionado dano biológico é justo, adequada e proporcional, atenta a realidade a indemnizar.
XII - Entende a Ré/Apelante que a quantia arbitrada, a título de danos não patrimoniais é injusta, excessiva e exagerada, uma vez que, no seu entendimento, é demasiadamente alta para uma situação como a dos autos.
XIII - O tribunal a quo fez uma análise crítica, exaustiva e bastante pormenorizada do longo percurso, muito vezes sinuoso, que a Autora/Apelada fez ao longo de 6 anos. A douta sentença refere “tendo em conta o já exposto sobre as circunstâncias do caso (o longo percurso de tratamentos médicos, os sonhos e atividades perdidos, o dano estético, o sofrimento físico que se prolongará pela vida da autora) e os critérios de tal norma, parece que se revela adequado e que será de atribuir, a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de €75.000,00.”
XIV - Não querendo aqui a Autora/Apelada repetir tudo o que se encontra explanado na douta sentença ao longo de 7 páginas, face à prova dada como provada, o tribunal a quo, feita a ponderação e a gravidade das lesões sofridas, a sua duração no tempo e carácter definitivo, os tratamentos médicos e medicamentosos a que a Autora foi sujeita, as dores sentidas e que sentirá para o resto da sua vida, os sonhos e atividades (dança, ginásio, etc.) perdidos, e a idade da Autora aquando do acidente, entendeu, e bem, estipular a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de €75.000,00.
XV - Pelo que, entende a Autora/Apelada, a quantia arbitrada pelo tribunal a quo, a título de danos não patrimoniais, é justa, adequada e proporcional.
XVI - Entende a Autora/Apelada que a quantia arbitrada pelo tribunal a quo, a título de dano biológico e danos não patrimoniais, é justa, adequada e proporcional.
XVII - A sentença proferida pelo tribunal a quo não viola normas ou princípios do sistema jurídico, nomeadamente os artigos 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil, como a Ré/Apelante quer fazer valer.
XVIII - Quanto ao alegado pela Ré/Apelante no que diz respeito a uma redução dos montantes atribuídos pela M. Juíza do tribunal a quo, quer referente ao dano biológico quer ao dano não patrimonial à Autora, o mesmo também não tem qualquer cabimento pelo já supra exposto.
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II - Questões a dirimir:
a - da medida da indemnização por dano biológico;
b - da medida da indemnização por danos não patrimoniais.
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III - Fundamentação de facto
1. No dia 7 de outubro de 2015, pelas 18h e 05m, na Av. ..., ..., na cidade do Porto, BB conduzia a viatura ligeira de passageiros de matrícula ..-NU-.., propriedade de CC.
2. A viatura de matrícula ..-NU-.. circulava pela referida Avenida ... no sentido poente-nascente, na faixa da direita.
3. O peão AA, ora autora, atravessava a passadeira no local supra identificado, junto à paragem ..., denominada ..., da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha da viatura ..-NU-...
4. Após a autora ter iniciado a travessia da passadeira, e passado em frente a uma viatura que circulava na faixa da esquerda, no sentido poente-nascente, e que havia parado para lhe ceder passagem, é embatida pela viatura ..-NU-.., que circulava na faixa da direita e não imobilizou atempadamente a viatura que dirigia, a fim de ceder passagem à autora.
5. A autora efetuou a travessia de forma cuidada.
6. A referida condutora, por desatenção à condução, não avistou a autora e não logrou imobilizar a sua viatura de forma a evitar o acidente.
7. A viatura matrícula ..-NU-.. tinha a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação transferida para a ré, através de contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ....
8. A ré já assumiu perante a autora a sua responsabilidade pelo acidente.
9. Devido ao embate da viatura matrícula ..-NU-.., a autora foi projetada para ao chão, o que lhe causou ferimentos, nomeadamente fratura exposta bimaleolar direita com fratura do maléolo externo e lesão cápsoulo-ligamentar interna do tornozelo, fratura da tíbia e perónio direito, com necessidade de assistência médica hospitalar urgente e transporte e internamento no Hospital ..., no Porto.
10. A autora, na sequência, foi submetida a uma primeira intervenção cirúrgica no dia 8 de outubro de 2015, na qual foi realizada limpeza, desbridamento, sutura da cápsula articular e ligamento deltóide, fixação do maléolo peroneal com fios de Kirschner e fixação transcalcanea com cravo de Steinmann, sendo ainda colocada tala de gesso.
11. No dia 11 de outubro de 2015, foi transferida para o Hospital 1... em Leiria, tendo tido alta do internamento em 21 de outubro de 2015 com medicação, tala gessada noturna para conforto, recomendação de elevação do membro operado, mobilização dos respetivos dedos e vigilância de eventuais sinais inflamatórios.
12. Em 27 de outubro de 2015, a autora foi submetida a uma segunda intervenção no Hospital 1..., com vista a redução aberta da intervenção anteriormente realizada, tendo sido feita a estabilização por osteossíntese com placa e parafusos para fixação interna do maléolo peronial, tendo este sido reconstruído através do enxerto ósseo retirado da crista tibial.
13. Tendo tido alta clínica em 29 de outubro de 2015.
14. A partir de 2 de novembro de 2015 a autora passou a ser seguida em ambulatório na consulta externa de Ortopedia no Hospital 1....
15. Foi encaminhada para os serviços de Medicina Física e Reabilitação onde efetuou sessões de fisioterapia.
16. Precisando de ajuda de terceira pessoa, a qual foi prestada pelo seu pai e, durante algum tempo, pela sua irmã, para fazer as tarefas elementares diárias, como levantar-se da cama, fazer a higiene pessoal, ir à casa de banho, tomar banho, preparar refeições, pois não podia fazer esforços devido às lesões que sofreu.
17. A autora necessitou ainda do auxílio de duas canadianas para se deslocar, não podendo fazer qualquer esforço sobre o membro direito.
18. Face a tal não conseguia andar sozinha
19. Nem podia conduzir para se deslocar às consultas, tratamentos, sessões de fisioterapia, etc., sendo tal apoio prestado pelo seu pai e familiares.
20. Em 16 de dezembro de 2015, a autora começou a ser acompanhada pelos serviços clínicos da ré, no Hospital 2... em Leiria.
21. Em 16 de fevereiro de 2016, a autora iniciou tratamentos de fisioterapia na clínica “C...”, em ....
22. Apesar dos insistentes tratamentos de fisioterapia a autora não apresentava melhoras, continuando a depender do auxílio de terceiros e das duas canadianas para se deslocar e apresentava rigidez dolorosa do tornozelo.
23. Sentia muitas dores e tinha uma mobilidade do tornozelo muito reduzida, pelo que foi submetida a injeção de ácido hialurónico, com o intuito de melhorar a condição de dor e rigidez articular do tornozelo direito.
24. Porém, continuou a dor do tornozelo, sendo cada vez mais insuportável.
25. Em 27 de julho de 2016, a autora foi submetida a nova cirurgia de artroscopia ao tornozelo e desbridamento, com procedimentos e atos médicos não concretamente determinados, com o objetivo de melhorar a condição de dor e rigidez muscular.
26. Com a evolução para artrose pós-traumática, mas a autora não aceitando a fixação do pé, a fim de melhorar a sua qualidade de vida, posteriormente adquiriu uma ortótese.
27. O referido aparelho permitiu à autora caminhar sem canadianas, mas a dor continuava a agravar-se.
28. Como a situação clínica da autora persistia em agravar-se e perante a evolução da dor esta foi submetida a nova cirurgia em 22 de agosto de 2018, na D... - Suíça, a fim de ser intervencionada no tornozelo e perna direitos, tendo sido submetida a uma artroplastia total do tornozelo Vantage Mobile e Libertação - Gastrocnemio-Soleus.
29. E efetuado logo fisioterapia na referida clínica.
30. Tendo tido alta do internamento em 29 de agosto de 2018.
31. E continuado com a fisioterapia na clínica “C...”, nas ....
32. Após a data da alta, a autora começou a caminhar protegida no exterior com um Airboot Walker.
33. Apesar de a dor ter diminuído com a quarta operação, a limitação da mobilidade na dorsi-flexão persistiu.
34. Tendo-se consolidado a disfunção do tornozelo e do pé direito no dia 22 de setembro de 2020.
35. Ficando a autora com as seguintes sequelas definitivas e permanentes:
a. cicatrizes do tornozelo direito, edema ligeiro do tornozelo e atrofia muscular (cerca de 3cm) da perna.
b. prótese total do tornozelo direito,
c. artrose subastragalina direita,
d. marcha por vezes claudicante,
e. pé doloroso à esquerda por sobrecarga.
36. A fim de proteger o tornozelo direito, sobrecarrega o joelho direito, o pé esquerdo e a anca direita e a articulação sacro-ilíaca.
37. O que lhe está a originar frequentes dores nessas regiões e a obriga, por vezes, a usar as canadianas, o que a deixa bastante angustiada e frustrada.
38. A autora nasceu no dia ../../1991.
39. A situação clínica da autora irá degradar-se ao longo dos anos. 40. Pelo que é imprescindível à autora, a fim de ter alguma qualidade de vida no restante tempo de vida, sessões de fisioterapia, em blocos de sessões, duas vezes por ano, de forma a aliviar as dores, para além de permitir a manutenção da amplitude articular existente.
41. Atualmente a autora paga a quantia de 37,50 euros por cada sessão de fisioterapia.
42. As próteses têm um período de cerca de 20 anos, pelo que ao longo da sua vida a autora irá necessitar, no mínimo, de mais três cirurgias de revisão da prótese e sessões de fisioterapia a esta associada.
43. Pelo que a autora com a revisão das próteses terá de suportar as despesas não concretamente determinadas.
44. A autora necessita do uso de palmilhas para o resto da sua vida, para compensar as suas limitações.
45. Palmilhas que tem de comprar todos os anos e que, atualmente, custam 120 euros.
46. Em virtude das dores que sente e que irá sentir ao longo da sua vida, a autora terá de consumir analgésicos, em SOS, gastando valor não concretamente apurado.
47. À data do acidente a autora era uma jovem sem qualquer limitação física e psíquica, muito otimista e sonhadora.
48. Tinha entregue a tese final de mestrado em arquitetura em 2015.
49. E tinha sonhos profissionais, ambicionando exercer a sua profissão na vertente de habitação social e de arquitetura de intervenção, nomeadamente em situações de pós catástrofes, reconstrução de cidades que tivessem sido alvo de catástrofes naturais e outros eventos semelhantes.
50. Durante os anos em que foi submetida às cirurgias e tratamentos supra referidos, a autora viu a sua vida profissional parada, apenas arranjando alguns trabalhos temporários.
51. Pois tinha que faltar com muita frequência para ir fazer os tratamentos de fisioterapia e consultas.
52. Face às sequelas com que ficou resultantes do acidente, a autora jamais poderá seguir a arquitetura de intervenção, como pretendia seguir, uma vez que exige uma condição física que a autora agora não tem.
53. Pois não consegue correr, saltar, agachar-se, estar muito tempo em pé, subir e descer escadas com facilidade.
54. As referidas sequelas determinam, pela própria natureza, esforços acrescidos para o exercício da profissão habitual da autora.
55. A autora adorava dançar, tendo frequentado, desde tenra idade, o ensino em dança (técnica de dança clássica, dança criativa e sapateado) na Escola ....
56. Tal atividade só foi interrompida quando foi para a cidade do Porto frequentar o curso de arquitetura na Faculdade ....
57. O acidente interrompeu definitivamente a possibilidade de a autora voltar a dançar.
58. Após tal data nunca mais dançou, o que lhe causou e causa grande angústia e frustração.
59. A autora gostava de fazer caminhadas, corridas, e frequentava o ginásio, onde fazia aulas de pilates e ioga.
60. Face às sequelas e limitações com que ficou em consequência do acidente, a autora deixou de praticar qualquer exercício físico, uma vez que não consegue correr, saltar, agachar-se, andar de bicicleta, estar de pé muito tempo.
61. O que a deixou e deixa bastante angustiada.
62. A autora gostava de usar calçado de saltos altos, uma vez que tem estatura pequena e os mesmos faziam-na sentir-se mais alta.
63. Em consequência do acidente, a autora não consegue usar sapatos com salto alto, nem sapatos rasos, como sabrinas ou chinelos, ou qualquer outro calçado aberto, como sandálias, pois tem de usar sempre palmilhas, limitando-a a usar sapatilhas ou botas, o que lhe causa grande frustração e diminui a sua auto-estima.
64. Preocupa a autora a situação da maternidade, uma vez que tem fortes receios de não conseguir prestar os cuidados que uma criança exige.
65. Por tudo o exposto, a autora teve crises de ansiedade e entrou em depressão.
66. Com a alta definitiva atribuída pela ré e perdendo a esperança de quaisquer melhoras, a situação da autora agravou-se, começando a sentir-se mais angustiada e frustrada e com raiva do que lhe aconteceu.
67. O que levou a autora a procurar ajuda psicológica e psiquiátrica.
68. Sendo acompanhada em consultas de psicologia.
69. Despendendo a autora a quantia de 25 euros por cada consulta.
70. E em consulta de psiquiatria.
71. Despendendo a Autora a quantia de 75 euros por cada consulta.
72. A autora à data de propositura da ação encontrava-se ainda a tomar medicação, para o seu estado depressivo, a qual importa a quantia de 25,54 euros/mensais.
73. Face ao exposto, ficou a autora com um défice funcional permanente da integridade física e psíquica de 16 pontos,
74. Sofreu e sofre de fortes dores físicas em virtude das lesões e sequelas do acidente.
75. A autora durante o período de 30 dias esteve com incapacidade temporária absoluta para as mais elementares tarefas diárias (levantar-se, comer, tomar banho, ir à casa de banho, etc.).
76. E durante os restantes dias da doença (1.783 dias), esteve com uma incapacidade temporária parcial, em percentagem não determinada.
77. A autora permanece num estado psíquico doloroso, caracterizado por perturbações persistentes do humor, sentimentos de tristeza, desânimo, humor depressivo e ansiedade latente, com repercussão a nível do funcionamento social e laboral.
78. A autora, após a data da alta e até março de 2021, teve as seguintes despesas: palmilhas, 120€, fisioterapia, 900,00€, medicação, 68,21€, consultas de psicologia, 500€, consultas de psiquiatria, 375€.
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Factos não provados.
79. Ao longo da travessia a autora era visível para a condutora da viatura ..-NU-...
80. A autora sofreu luxação da tíbia e exposição por corte circular que contornava o tornozelo quase na sua totalidade,
81. Desde 7 de outubro de 2015 até 22 de novembro de 2015, quando retirou os pontos, a autora teve indicação médica de repouso absoluto.
82. Tendo tido apoio domiciliário por parte do Centro de Saúde para cuidados com o penso.
83. No dia 27 de abril de 2016, a autora consultou um especialista em Ortopedia do Tornozelo, Dr. DD, tendo-lhe sido diagnosticado danos articulares graves eventualmente provocados pela inserção do cravo de Steinman e artrose pós-traumática definitivamente instalada.
84. Os cuidados com o penso, a sutura e a retirada de pontos foram prestados pelo Centro de Saúde.
85. Após a data da alta referida em 32, a autora começou a caminhar auxiliada por duas canadianas.
86. Só tendo retirado as canadianas em finais de outubro de 2018.
87. Tendo sido acompanhada por fisioterapeutas especializados no treino e adaptação a este tipo de ortótese.
88. A restrição da flexão dorsal do tornozelo irá diminuir a sobrevida da prótese exigindo a sua substituição.
89. Revisões estas a serem feitas na clínica onde foi operada, na Suíça.
90. Pelo que, a autora com a revisão das próteses terá de suportar as seguintes despesas: consulta Suíça para análise revisão prótese – 857,85 euros (285,95€x3), RX para análise revisão prótese – 715,56 euros (238,52€x3), despesas de deslocação à Suíça p/ analise revisão prótese – 2.620,95 euros (873,65x3), 3 cirurgias revisão da prótese – 106.689,00 euros (35.563€x3), internamento futuras cirurgias – 817,92 euros (272,64€(8 dias)x3), despesas de deslocação à Suíça p/ cirurgia – 2.620,95 euros (873,65x3), consulta Suíça seguimento pós cirurgia - 857,85 euros (285,95€x3), despesas de deslocação Suíça p/ revisão cirurgia – 2.620,95 euros (873,65x3), ajuda 3ª pessoa após cada cirurgia – 3.432,24 euros (21 diasx8horasx6,81€x3), incapacidade Absoluta Laboral após cirurgia – 6.000,00 euros (60 diasx1.000€x3), MFR após operatório revisão prótese – 10.125,00 euros (90 sessõesx3x37,50€), medicamentos após cirurgia – 180,00 euros (60€x3), tratamento de Enfermagem (penso) – 45 euros (15€x3), RX após 6 semanas cirurgia - 75,00 euros (25€x3), RX após 6 meses cirurgia – 75,00 euros (25€x3) e RX após 1 ano cirurgia – 75,00 euros (25€x3).
91. O que lhe permitia conciliar com o seu gosto imenso por viajar e conhecer novos povos e culturas.
92. E, após a conclusão da sua formação em dança, integrou o “Grupo ...”, onde fez espetáculos públicos a nível local e nacional.
93. Tendo retomado a mesma em setembro de 2014, até à data do acidente.
94. Tendo ainda aprendido danças de salão, tango, forró nordestino, danças tradicionais europeias e danças tradicionais africanas, as quais lhe davam grande satisfação pessoal.
95. Tendo-se afastado deste círculo de amigos, uma vez que sempre que os via e estava com eles sabia que jamais poderia voltar a dançar.
96. As limitações com que a autora ficou a afetam no relacionamento íntimo com o seu namorado, face à supra descrita limitação de mobilidade.
97. Começou a comer compulsivamente.
98. Não conseguia dormir, acordando muitas vezes à noite e sonhando constantemente com o acidente.
99. Quando andava na rua e ia atravessar uma passadeira tinha sempre receio de ser novamente atropelada.
100. Bastando ouvir um barulho mais forte de um carro para ficar logo muito nervosa.
101. Com a alta definitiva atribuída pela ré e perdendo a esperança de quaisquer melhoras, a autora começou a sentir raiva com o que lhe aconteceu.
102. As consultas de psicologia prolongar-se-ão durante dois anos e meio e as de psiquiatria durante dois anos
103. A autora necessitará da medicação para o seu estado depressivo durante 12 meses.
104. Face ao exposto, ficou a autora com um défice funcional permanente da integridade física e psíquica de 40 pontos,
105. A autora durante o período de 120 dias esteve com incapacidade temporária absoluta para as mais elementares tarefas diárias (levantar-se, comer, tomar banho, ir à casa de banho, etc.).
106. A autora receia ainda as operações a que virá a ser submetida e que algo possa correr mal, e todo o percurso pós-operatório de dor e de incapacidade temporária.
107. Já antes da alta definitiva atribuída pela ré a autora recorreu a consulta psiquiátrica e psicológica.
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IV - Fundamentação jurídica
a - Da medida da indemnização por dano biológico
A A. pediu que a R. fosse condenada a indemnizá-la no montante de € 75.000,00 a título de indemnização por esforços acrescidos para o exercício da profissão habitual e de €80.000,00 a título de défice funcional permanente de integridade física e psíquica.
A sentença recorrida condenou a R. a pagar a € 65 000,00 a título de dano biológico.
Alega a recorrente que não logra perceber de que forma terão sido usados os juízos de equidade, sendo a sentença lacónica e até conclusiva. Aduz que a jurisprudência tem vindo a usar de forma consistente as fórmulas de cálculo como ponto de partida e que os juízos de equidade não consentem que se perceba como se atingiu o montante de 65.000,00€, com que salário anual (ainda que ficcionado) e se houve ou não desconto pela antecipação de pagamento/recebimento.
A apelante passa, então, a sindicar aquela quantia, concluindo que se não se proceder ao «desconto» justificado pelo pagamento/recebimento de uma só vez (…) temos que o montante a que aquela fórmula permite chegar seria de 64.550,40€ [= 820,00€ x 12 meses = 9.840,00€ x 41 anos (= 70 – 29) x 16 pontos (5%)]. Sendo efetuada uma dedução devida pela antecipação do pagamento/recebimento desta parte da indemnização que se entende não dever ser inferior a ¼ (ou 25%), o valor a que seria possível chegar situar-se-ia no montante de 48.412,80€ [= 64.550,40€ x ¼ (ou 25%) = 16.137,60€; 64.550,40€ - 16.137,60€ = 48.412,80€]. Temperado com o recurso à equidade, aceita a recorrente que se possa chegar a um máximo de € 50.000,00.
Antes de mais, sempre se dirá que as regras da portaria 377/2008 de 26/05, alterada pela portaria 679/2009, de 25/6, se aplicam apenas no âmbito da regularização extra-judicial dos sinistros. Podendo constituir um elemento a considerar na indemnização, não invalidam as regras dos artigos 562 e ss. do C.C.. Essas, sim, são aplicáveis na fase judicial do litígio, visando assegurar ao lesado a reparabilidade integral do dano sofrido.
Mais especificamente no que concerne ao dano biológico, está em causa termo que entrou na terminologia da doutrina e da jurisprudência nacionais por influência direta da doutrina e da jurisprudência italiana. Na jurisprudência portuguesa o conceito tem vindo a ser utilizado sobretudo a respeito da fixação de indemnizações em caso de acidentes de viação (cf. ac. do S.T.J. de 26.01.2012, proc. 220/2001-7.S1, João Bernardo, com resenha histórica do conceito e construção do dano biológico, consultável in http://www.dgsi.pt/, tal como os demais acórdãos que vierem a ser nomeados).
O dano biológico tem uma componente física e psíquica, repercutindo-se na vida concreta do lesado. Neste sentido, entende-se que tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano não patrimonial, o que só casuisticamente é verificável. Há que avaliar se a lesão originará durante o período da vida ativa do lesado e/ou para além dele, uma perda da capacidade de ganho ou uma afetação das potencialidades somática, psíquica ou intelectual, a latere do agravamento natural resultante da idade. Tem a natureza de perda in natura que o lesado sofreu nos interesses materiais, espirituais ou morais que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar (cf. ac. do S.T.J., de 21-4-2022, proc. 96/18.9T8PVZ.P1.S1, Fernando Baptista).
Lê-se no ac. do S.T.J. de 18-10-2018 (proc. 3643/13.9TBSTB.E1.S1, Hélder Almeida): a doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão, entre eles avultando, pelo seu significado ou relevância o “quantum doloris” – que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária –, o “dano estético” – que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima –, o “prejuízo de afirmação social” – dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afetiva, recreativa, cultural e cívica) – o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” – aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar, valorizando-se os danos irreversíveis na saúde e no bem estar da vítima e corte na expectativa da vida – e, por fim, o “pretium juventutis” – que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida.
No ac. do S.T.J. de 10-11-2016 (proc. 175/05.2TBPSR.E2.S1, Lopes do Rego) consigna-se que ao avaliar e quantificar o dano patrimonial futuro, pode e deve o tribunal refletir também na indemnização arbitrada a perda de oportunidades profissionais futuras que decorra do grau de incapacidade fixado ao lesado, ponderando e refletindo por esta via na indemnização, não apenas as perdas salariais prováveis, mas também o dano patrimonial decorrente da inevitável perda de chance ou oportunidades profissionais por parte do lesado.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o dano biológico remete mais acentuadamente para as consequências patrimoniais da incapacidade geral ou funcional do lesado (cf. ac. do S.T.J de 24-2-2022, proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Maria Graça Trigo).
O julgador deve recorrer à equidade para fixar a indemnização devida pelo dano biológico, ainda que se sirva, num primeiro momento, do auxílio de tabelas financeiras ou de fórmulas matemáticas. (cf. ac. do S.T.J de 16-1-2024, proc. 3527/18.4T8PNF.P2.S1, Luís Correia de Mendonça).
O critério último, obrigatório e decisivo, é a equidade (cf. ac. do S.T.J de 18-10-2018, proc. 3643/13.9TBSTB.E1.S1, Hélder Almeida).
Em suma, dano biológico é o prejuízo na qualidade de vida do lesado, no que ela poderia ter sido e que, por causa da lesão, não é, nem será, a afeção do dia a dia, nas relações sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. É um dano de perda imediata e para o futuro, eventualmente mais gravoso com o passar dos anos. Poderá vir a demandar esforços acrescidos em todas ou nalgumas das vertentes identificadas da potencial vida do lesado. Tem em consideração que a desvalorização funcional comporta um esforço suplementar e uma diminuição da qualidade de vida futura. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências em termos de diminuição de proventos. Suscita especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra, ou em ambas as vertentes. Deve ser indemnizado em função da equidade.
Recordemos a factualidade que mais diretamente respeita a esta matéria, sem descurarmos a dificuldade de distinguir com precisão quanto se reporta especificamente ao dano biológico e quanto diz respeito estritamente aos danos não patrimoniais.
Partimos da circunstância essencial de à data do acidente a A. ter 24 anos de idade.
Ficou com as seguintes sequelas definitivas e permanentes: cicatrizes do tornozelo direito, edema ligeiro do tornozelo e atrofia muscular (cerca de 3cm) da perna; prótese total do tornozelo direito; artrose subastragalina direita; marcha por vezes claudicante e pé doloroso à esquerda por sobrecarga, sendo o défice funcional permanente da integridade física e psíquica de 16 pontos.
A fim de proteger o tornozelo direito, sobrecarrega o joelho direito, o pé esquerdo e a anca direita e a articulação sacro-ilíaca, o que origina frequentes dores nessas regiões e obriga, por vezes, a usar as canadianas. A situação clínica da autora irá degradar-se ao longo dos anos.
A A. não pôde enveredar pela área de arquitetura de intervenção, na sequência de catástrofes, por esta exigir uma condição física que deixou de ter.
A A. não consegue correr, saltar, agachar-se, estar muito tempo em pé, subir e descer escadas com facilidade.
As sequelas determinam esforços acrescidos para o exercício da profissão habitual da A. enquanto arquiteta.
A A., que costumava dançar e que frequentou aulas desde criança deixou de o poder fazer, bem como deixou de poder frequentar o ginásio e fazer caminhadas.
Inexistindo uma tabela a aplicar pelos tribunais, a fim de tornar as indemnizações tão equilibradas quanto possível, e com vista a introduzir segurança no sistema, há que proceder a uma análise comparativa.
Vejamos alguns casos concretos de avaliação pelos tribunais de recurso, já que importa, não normalizar ou padronizar as indemnizações, mas conferir alguma unidade ao sistema jurídico, tornando tão previsíveis, quanto possível e desejável, as decisões judiciais.
No ac. do S.T.J. de 16-6-2016 (proc. 1364/06.8TBBCL.G1.S2, Tomé Gomes), decidiu-se que “tendo a A. a idade de 40 anos, à data da consolidação das sequelas, e permanecendo com uma incapacidade genérica de 6%, em termos de rebate profissional, compatível embora com a sua atividade profissional, mas não conseguindo realizar ou só executando com grande dificuldade tarefas que exigem maior esforço físico ou que requerem a sua posição de sentada por períodos mais ou menos prolongados, o que é de molde a influir negativamente e sobremaneira na sua produtividade como costureira, sendo ainda tais limitações suscetíveis de reduzir o leque de possibilidades de exercer outra atividade económica similar, alternativa ou complementar, e de se traduzir em maior onerosidade no desempenho das tarefas pessoais, mormente das lides domésticas, o que se prevê que perdure e até se agrave ao longo do período de vida expetável, mostra-se ajustada a indemnização de € 25.000,00 para compensar o dano biológico na sua vertente patrimonial”.
No ac. da Relação de Lisboa de 26-9-2017 (proc. 10421/14.T2SNT-7, Carlos Oliveira), tendo o lesado 43 anos, sendo o défice funcional permanente da integridade física de 7 pontos, ponderando-se o rendimento mensal mínimo garantido, fixou-se uma indemnização de € 13 000, 00.
No ac. do S.T.J. de 6-12-2017 (proc. nº 559/10.4TBVCT.G1.S1, Maria Graça Trigo), à lesada com défice funcional de 2 pontos, 31 anos de idade, operária fabril que apresenta cervicalgias, sempre que roda a coluna cervical para a esquerda e para a direita, sempre que a flete para a esquerda e para a direita, sempre que a flete no sentido ante-posterior, foi atribuída indemnização de € 20 000,00.
No ac. do S.T.J. de 28-02-2019 (proc. 1940/14.5T8CSC.L1.S1, Nuno Pinto Oliveira) decidiu-se que o montante de € 50 000 euros era adequado a indemnizar o dano biológico sofrido pela lesada em acidente de viação, na consideração das seguintes circunstâncias: (i) a autora tinha 28 anos de idade, (ii) ficou com um défice funcional permanente da integridade física de 20 pontos, (iii) era estudante e sofreu uma diminuição da sua capacidade de concentração pelo período de dois anos, o que implicou um esforço acrescido, (iv) não consegue ficar muito tempo na mesma posição, (v) o eczema e impossibilidade de permanecer muito tempo de pé limitaram a escolha da especialidade médica da autora, (vi) atualmente exerce a profissão de médica e as lesões sofridas limitam a capacidade de trabalho e de resistência na sua vida profissional.
No ac. da Relação de Guimarães de 30-5-2019 (proc. 1760/16.2T8VCT.G1, Margarida Sousa), tendo o lesado 48 anos aquando da consolidação médico-legal das lesões, sendo o défice funcional de 4 pontos, a indemnização foi de € 15.000,00.
No ac. da Relação do Porto de 12-7-2021 (proc. 3924/18.5T8AVR.P1, Eugénia Cunha), tendo o lesado 52 anos de idade e ficado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14 pontos, sendo o quantum doloris no grau 5/7 e o dano estético permanente no grau 3/7, fixou-se uma indemnização de € 40.000,00.
No ac. do S.T.J de 24-2-2022 (proc. 1082/19.7T8SNT.L1.S1, Maria Graça Trigo), tendo o lesado 34 anos à data do sinistro e ficado com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, tendo apenas sido feita prova do seu rendimento anual ao tempo do acidente (€ 7.798,00), estando em causa lesões com significativa repercussão negativa sobre o desempenho da profissão de serralheiro cujo exercício exige um elevado nível de força e de destreza físicas ao nível dos membros superiores (atingidos pelas lesões), atribuiu-se uma indemnização de € 50.000,00.
No ac. do S.T.J. de 21-4-2022 (proc. 96/18.9T8PVZ.P1.S1, Fernando Baptista): datando o acidente de 1-2-2015, sendo o défice funcional permanente de 2, tendo a vítima com 51 anos de idade, com profissão de enfermeira instrumentista, sendo o défice compatível com o exercício da atividade profissional habitual, mas a exigir esforços suplementares, a indemnização por dano biológico foi de € 22.000,00.
No ac. do S.T.J. de 11-10-2022 (proc. 1822/18 1T8PRT.P1.S1, Ricardo Costa), com acidente ocorrido em 23/12/2015, em que a vítima tinha 35 anos de idade, era médico e professor, ficou com défice funcional permanente de 3 pontos, com necessidade de esforços suplementares no desempenho habitual da atividade profissional, a indemnização por dano biológico foi de € 30.000,00.
No ac. de 17-1-2023 (proc. 5986/18.6T8LRS.L1.S1, António Barateiro Martins), tendo a lesada 23 anos na data do acidente e tendo ficado com uma incapacidade de 14,8 pontos, sem rebate profissional, mas com sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional, entendeu-se equitativo fixar a indemnização por tal dano biológico em € 50.000,00.
A plêiade de limitações de que a apelada padece não deixa dúvidas acerca das dificuldades acrescidas no exercício da profissão, como na vida diária. Tem capacidade para exercer a sua profissão habitual, mas usando de maior esforço, sendo suscetível de ver diminuída a sua valorização no mercado de trabalho.
Há a considerar que as limitações se prolongarão previsivelmente durante cerca de 45 anos (entre os 24 e os 70 anos, entendida esta idade como aquela até à qual um profissional da área presumivelmente trabalhará) e, para além desse lapso temporal, no que concerne aos esforços na sua vida particular no período da reforma.
A progressão salarial, com evolução na carreira, foi limitada pelas sequelas do acidente.
Levando em linha de conta a esperança média de vida para as mulheres portuguesas de 83 anos que vimos de referir, teremos uma sobrecarga de esforço durante cerca de 60 anos, o que equivale a 720 meses. Dividindo a indemnização fixada em 1.ª instância por 720 meses, alcançamos uma indemnização de € 90,27 mensais.
Este quantitativo não se nos afigura exagerado a título de ressarcimento por perda de rendimento. As limitações da A. são penosas e inabilitantes e prolongar-se-ão por todos os anos para aquela expetavelmente vindouros. Daí que a indemnização referente a dano biológico não deva sofrer redução.
A apelante censura outrossim à sentença recorrida a circunstância de não ter tomado em consideração o facto de a apelada ir receber a indemnização de uma só vez.
A vantagem de a indemnização ser percebida de uma só vez esteia-se na ideia de se tratar de um capital reprodutor de rendimento. Lê-se no ac. da Relação de Coimbra de 21-5-2024 (proc. 3919/19.1T8LRA.C1, Cristina Neves), para cálculo dos valores indemnizatórios deverá o tribunal ter em consideração, para além do grau de incapacidade, factores como a idade da vítima, o tempo provável em que se poderá manter ativo, a natureza do trabalho que realizava, o salário auferido, a progressão na carreira profissional, o facto de o capital ser ressarcido por uma vez só, eventuais desvalorizações da moeda, corrigidos estes por recurso a juízos de equidade.
Atentas as taxas de juro que vêm sendo praticadas no mercado financeiro nos últimos anos, dificilmente a entrega única poderá, todavia, ser considerada como constituindo factor para um abaixamento significativo da indemnização. Por outro lado, o acentuado fenómeno inflacionista em curso, que desvaloriza a quantia indemnizatória, menos deve fazer propender para a diminuição de valores. No caso concreto, atente-se ainda em que o acidente data de 2015.
Em suma, não é verosímil que a quantia indemnizatória, se colocada a render num produto de risco diminuto, como seja um depósito a prazo ou um certificado da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, venha a gerar uma verba que possibilite à A. maior lenitivo para o seu infortúnio.
Tampouco por esta via é de reduzir a indemnização por força da entrega única.
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b - Da medida da indemnização por danos não patrimoniais;
Não se conforma igualmente a recorrente com o valor de € 75.000,00 arbitrado como indemnização por danos não patrimoniais, por considerar que o mesmo se mostra excessivo. Entende que a indemnização não deverá ser superior a € 45.000,00.
A reparação de um dano deve, em princípio, como já se disse, servir para reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562.º do C.C.).
A indemnização pode ser alcançada de duas formas: ou através da reconstituição natural, em espécie ou específica, ou mediante uma compensação monetária, em dinheiro.
O nosso Código Civil, como se viu, consigna o princípio geral da indemnização em espécie.
Esta reconstituição, obviamente, é impossível quanto aos danos não patrimoniais em geral e no tocante ao dano morte em particular.
Trata-se, por isso, de impor ao ofensor uma sanção em benefício do ofendido, sanção, que, pela própria natureza das coisas, só poderá consistir em facultar a este um substituto pecuniário.
É que, fora das hipóteses em que a infração cometida tivesse carácter criminal ou disciplinar e não existindo danos patrimoniais, o infrator escaparia a toda e qualquer sanção, sem embargo da lesão causada na esfera pessoal de outros, o que só é aceitável para quem tenha uma visão inteiramente não punitiva da responsabilidade civil.
Por outra parte, entende-se que determinadas satisfações de ordem material, intelectual ou espiritual, proporcionadas por um maior bem-estar económico poderão, de algum modo, ainda que imperfeitamente, minorar o dano não patrimonial sofrido.
Dispõe o art.º 496.º/1 do C.C. que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela de direito. A única condição de ressarcibilidade do dano não patrimonial é a sua gravidade (art.º 496.º, nº 1 do Código Civil).
E o n.º 3 deste mesmo art.º que o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494.º.
O art.º 494.º para o qual este último remete estabelece que quando a responsabilidade se fundar em mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.
No art.º 496.º apela-se a um conceito normativo de dano (normativer Schadensbegriff). O dano não é qualquer prejuízo sentido ou afirmado por alguém como tal. Apesar de a ordem jurídica o não definir em geral, ele deve justificar-se por aplicação de critérios normativos, alicerçar-se numa ponderação da ordem jurídica. (Frada, Manuel Carneiro da, Direito Civil Responsabilidade Civil O Método do Caso, Almedina, 2006, pp. 89-90).
A compensação por danos não patrimoniais, para responder atualizadamente ao comando do art.º 496.º do C.C. e constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Não está em causa verdadeiramente em causa uma indemnização, mas apenas encontrar o montante adequado de uma compensação por danos não patrimoniais, de acordo com o disposto nos artigos 494.º e 496.º do C.C..
Torna-se forçoso encontrar um quantitativo dentro dos padrões jurisprudenciais em vigor, que possa, porventura, servir para suportar o custo de lenitivos do sofrimento.
Estão em causa, não só os sofrimentos experimentados pela A. no momento do acidente e meses subsequentes, as dores e o receio relativamente ao futuro, como o cortejo de verdadeiros transtornos que se seguiram, no caso envolvendo cirurgias, internamentos hospitalares, deslocações ao médico e ao hospital, exames, fisioterapia. Há que ponderar as mudanças no quotidiano, as dependências de terceiros, as limitações nas atividades correntes, incluindo, nos meses iniciais, para tomar banho e para comer, os esforços acrescidos e o próprio sofrimento ao longo dos anos vindouros, que não se incluem no dano biológico.
Relativamente ao pedido da apelante de redução do valor indemnizatório por danos não patrimoniais, para além de todo o enquadramento fáctico expressivo do sofrimento da A., respigamos que a A. nunca mais dançou, o que lhe causou e causa grande angústia e frustração, que fazia caminhadas, corridas, que frequentava o ginásio, onde fazia aulas de pilates e ioga, tendo deixado de praticar qualquer exercício físico, uma vez que não consegue correr, saltar, agachar-se, andar de bicicleta ou sequer de estar de pé muito tempo. Esta situação deixou-a e deixa-a bastante angustiada. A perspetiva de ser mãe angustia-a, por ter fortes receios de não conseguir prestar os cuidados que uma criança exige. Viu frustrados os seus sonhos profissionais de exercer a sua profissão na vertente de habitação social e de arquitetura de intervenção. A apelada teve crises de ansiedade e entrou em depressão, sendo que à data de propositura da ação se encontrava ainda a tomar medicação, para o seu estado depressivo. Sofreu e sofre de fortes dores físicas em virtude das lesões e sequelas do acidente. Permanece num estado psíquico doloroso, caracterizado por perturbações persistentes do humor, sentimentos de tristeza, desânimo, humor depressivo e ansiedade latente, com repercussão a nível do funcionamento social e laboral.
No âmbito da indemnização por danos não patrimoniais assume fundamental relevo a equidade. Sem embargo, haverá, uma outra vez, que ponderar a indemnização fixada no contexto do que vem sendo jurisprudencialmente praticado.
Escreveu Laurinda Gemas (Revista Julgar n.º 8, 2009, nota de rodapé 57): a quase estagnação dos montantes indemnizatórios atribuídos a título de danos não patrimoniais não é fácil de ultrapassar, para ela contribuindo, por um lado, o baixo valor dos pedidos formulados (registando-se, por razões sociológicas, um certo “pudor em pedir dinheiro” para compensar uma dor que é irreparável, sendo frequentes as decisões judiciais que reconhecem a moderação do pedido); por outro lado, o não reconhecimento pelos tribunais da relevância da função punitiva da responsabilidade civil no âmbito dos acidentes de viação (uma vez que a condenação recai, em regra, sobre a seguradora) e também a necessidade de recurso comparativo às decisões proferidas em casos idênticos. Por isso, embora frequentemente invocada a necessidade de tendencial ampliação dos montantes indemnizatórios, essa subida não tem sido generalizada, por forma a acompanhar a subida do custo de vida e o mais amplo reconhecimento da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais (vida, integridade física e saúde).
A realidade, porém, é que este texto, de 2009, está marcado pelo tempo. Paulatinamente, os montantes indemnizatórios têm vindo a ser atualizados, refletindo a relevância crescente conferida a prejuízos da natureza daqueles sob discussão.
Procedamos a breve resenha, que cremos elucidativa.
No ac. do S.T.J. de 25-5-2017 (proc. 868/10.2TBALR.E1.S1, Lopes do Rego), a um lesado com 19 anos, com um défice permanente de integridade físico-psíquica de 7 pontos e quantum doloris de 4/7 foi fixada indemnização a título de danos não patrimoniais de € 50.000,00.
No ac. da Relação de Guimarães de 27-2-2020 (proc. 4000/16.0T8BRG.G1, Purificação Carvalho), a um lesado com um défice permanente de 22, 4 pontos e quantum doloris de 4/7 foi fixada indemnização de € 40.000,00.
No ac. da Relação do Porto de 12-7-2021 (proc. 3924/18.5T8AVR.P1, Eugénia Cunha), a um lesado com 52 anos de idade, défice permanente de 14 pontos e quantum doloris de grau 5/7, atribuiu-se indemnização de € 40.000,00.
No ac. da Relação de Guimarães de 21-10-2021 (proc. 5405/19.0T8GMR.G1, Pedro Maurício), a um lesado de 21 anos, com défice permanente de 10 pontos e quantum doloris de grau 4/7, atribuiu-se indemnização de € 22.000,00.
No ac. do S.T.J. de 8-11-2022 (proc. 2133/16.2T8CTB.C1.S1, António Magalhães,), a um lesado com 30 anos, com défice permanente correspondente a 15 pontos, e quantum doloris de 6/7, atribuiu-se indemnização de € 70.000,00.
O mosaico espelhado deixa a nu a dificuldade de encontrar valores expectáveis.
Como se lê no ac. do S.T.J. de 2-2-2023 (proc. 2501/10.3TVLSB.L1.S1, Ana Paula Lobo), na avaliação dos danos não patrimoniais, em que o critério da sua fixação segundo a equidade é o único aplicável cremos difícil a definição de um padrão indemnizatório seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça por mais minuciosa que seja a análise dos dados disponíveis em cada processo e em cada fundamentação da indemnização arbitrada. O número de variáveis a considerar é muito elevado dado que cada decisão se molda ao caso concreto com idades, profissões, situações profissionais, sociais, económicas e culturais muito diversas, é escrita por uma pluralidade de juízes com a sua própria visão do direito e do mundo, num mosaico plurifacetado em que será possível delinear pouco mais que tendências e, mesmo estas, fortemente condicionadas não pela justiça do caso concreto mas pelos espartilhos processuais que condicionam, quando não afunilam e fazem descolar da realidade as decisões exclusivamente de direito nos recursos de revista.
Já se viu que os critérios sempre fundamentalmente em análise consistem na idade do lesado e consequente esperança média de vida, ou seja, o número de anos durante os quais é expectável que venha a ter que suportar os sofrimentos imateriais inerentes ao défice permanente, o grau deste - ainda que défices de nível razoavelmente díspar atinjam indemnizações similares - e as dores envolvidas.
A estes critérios aferidores acresce uma plêiade de factos avulsos, como sejam as concretas circunstâncias que se seguiram ao evento desencadeador da responsabilidade civil, a sua duração e impacto na vida do sinistrado.
Está em causa um juízo de justiça concreta, não sindicável ou aferível por uma base normativa, o que torna a questão mais sensível e de difícil avaliação.
Só uma verba de expressão assinalável estará apta a servir de lenitivo, sempre insuficiente, para a limitação de que a A. sofre para a vida. A A. não pode sequer permanecer muito tempo de pé sem sentir dor, não pode fazer um passeio mais prolongado.
É certo que a indemnização é expressiva do ponto de vista dos custos acarretados para a seguradora, mas a redução do quantitativo encontrado em 1.ª instância não encontra correspondência no nível de sofrimento da sinistrada e na juventude desta. É correto afirmar que o acidente mudou muito negativamente a vida da A..
Concluindo, no caso concreto não se nos afigura existir um desvio significativo, no sentido do excesso, à suposta média. A lesada padeceu durante um largo período de modo particularmente intenso as repercussões do acidente. As sequelas são graves e abrangentes. Por ser muito jovem, o seu sofrimento psíquico manter-se-á durante quase 60 anos. A justeza dos montantes indemnizatórios alcançados provém, precisamente, do lapso temporal pelo qual os padecimentos, previsivelmente, perdurarão.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
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As custas serão suportadas pela apelante por ter decaído totalmente na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 28-4-2025
Teresa Fonseca
Teresa Pinto da Silva
Carla Fraga Torres