JUNÇÃO DE DOCUMENTO EM RECURSO
RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
VALOR DOS BENS
Sumário

I – A mera surpresa quanto ao resultado da decisão judicial proferida na primeira instância não constitui motivo válido para que o recorrente, com base no disposto na segunda parte do n.º 1 do art. 651.º do CPC, possa juntar às alegações documentos destinados a demonstrar factos que, já antes da decisão recorrida, sabia estarem sujeitos a prova.
II – A determinação dos factos provados e não provados obedece a princípios lógicos e, quando não existe prova directa dos factos, deve ser feita sob o enquadramento das regras daquilo que a experiência da vida nos diz ser normal e razoável.
III – A improcedência de uma reclamação contra a relação de bens não determina que o valor dos bens que foi indicado pelo cabeça-de-casal fique definitivamente fixado, pois esse valor constitui matéria que deve ser objecto de deliberação na conferência de interessados (cf. artigo 1111º, nº1, al. b), do CPC), mais resultando do artigo 1114.º, n.º 1, do CPC que, até ao início das licitações, o tribunal pode ser chamado a intervir para fixar definitivamente o valor dos bens que, então, seja objecto de impugnação.

Texto Integral

Processo: 2531/20.7T8PRD-A.P1

Relator: José Nuno Duarte;
1.ª Adjunta: Teresa Fonseca;
2.º Adjunto: A. Mendes Coelho.

Acordam os juízes signatários no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Nos autos de inventário para partilha dos bens em consequência do divórcio de AA e BB, casados que foram sob o regime de comunhão de adquiridos, a cabeça-de-casal, AA apresentou relação de bens (cf. ref.ª citius 83963623 de 29/11/2018), na qual incluiu, entre o mais, os ciclomotores aí melhor descritos sob as verbas n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24, atribuindo a cada um o valor de 1.000,00 euros.
O interessado BB reclamou da relação de bens apresentada (cf. ref.ª citius 83963613 de 13/01/2019), tendo, no que diz respeito às mencionadas verbas n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24, pugnado pela sua exclusão da relação de bens a partilhar mediante a alegação de que as mesmas “foram vendidas ainda na constância do matrimónio tendo o valor da venda, no montante de Euros 1.000,00, entrado no património do dissolvido casal”. Ainda assim, salvaguardando a possibilidade de a sua reclamação não ser atendida, o interessado impugnou o valor que a cabeça de casal atribuiu às verbas, alegando que, à data da venda, cada um dos ciclomotores tinha o valor de 60,00 euros.
A cabeça-de-casal respondeu, dizendo que, por não corresponder à verdade aquilo que foi alegado pelo reclamante, “mantém todas estas Verbas, bem como os montantes nelas indicados” (cf. ref.ª citius 83963585 de 19/02/2019).
O processo seguiu os seus trâmites, tendo, no âmbito da audiência prévia que foi realizada, sido alcançado acordo parcial entre os interessados quanto à reclamação contra a relação de bens, do qual, no entanto, ficou excluída a matéria relativa às verbas n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24. Por isso, o incidente de reclamação prosseguiu, unicamente para efeitos de apreciação desta matéria, realizando-se, entre o mais, uma sessão de produção de prova (cf. acta com a ref. citius 95022074 de 15/04/2024), na qual foram ouvidas, em declarações, as duas partes, mais sendo inquirida a testemunha CC, irmão do interessado reclamante. Concluída esta diligência, os autos foram conclusos à sra. Juíza titular do processo, a qual proferiu decisão final sobre a reclamação contra a relação de bens (Ref.ª citius 95061681 de 02/05/2024) com o seguinte dispositivo:
- «Face a tudo o exposto, julgo totalmente procedente a reclamação apresentada pelo interessado e, consequentemente, determino sejam excluídas da relação de bens os veículos automóveis ciclomotores relacionados sob verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24.
Custas do incidente a cargo da Cabeça de Casal».

-
A cabeça-de-casal veio recorrer desta decisão, apresentado alegações, motivadas nos termos legais, com as seguintes conclusões:
(…)
-
O interessado reclamante apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
(…)
-
O recurso foi admitido por despacho, que o classificou como sendo de apelação e lhe atribuiu efeito meramente devolutivo, ordenando a sua subida imediata a este Tribunal da Relação, em separado dos autos principais.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso, bem como da não sujeição do tribunal à alegação das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), as questões a tratar são as seguintes:
a) da junção aos autos do documento que a recorrente apresentou nas suas alegações;
b) da alteração da matéria de facto provada e não provada;
c) do mérito da reclamação apresentada contra a relação de bens.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

A) Do documento apresentado nas alegações
A recorrente, nas alegações de recurso que apresentou, requereu a junção aos autos de uma certidão da decisão homologatória do acordo que foi celebrado pelas partes (a ora recorrente e o ora recorrido) em 21 de Fevereiro de 2017 nos autos do procedimento cautelar n.º 3105/16.2T8PRD-A que correu termos no Juízo de Família e Menores de Paredes [Juiz 3] do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.
O recorrido pugnou pela não admissibilidade da junção desse documento por não se verificarem os requisitos legais necessários, alegando, em suma, que o documento em causa data de momento muito anterior ao da resposta da cabeça-de-casal à reclamação da relação de bens e que a recorrente jamais invocou qualquer circunstância fáctica que a tenha impossibilitado de juntar o referido documento nessa altura.
O artigo 651.º, n.º 1 do Código do Processo Civil estatui que “[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações de recurso nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Por sua vez, dispõe o artigo 425.º do Código do Processo Civil, que “[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da conjugação destes preceitos legais resulta que, aquando da apresentação das alegações de recurso, apenas é admissível a junção de prova documental quando estejam em causa:
a) documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento; ou
b) documentos cuja junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
No caso sub judice, a recorrente pretende juntar aos autos a decisão judicial que homologou um acordo estabelecido em diligência judicial realizada em 21 de Fevereiro de 2017, no qual ela própria foi uma das partes intervenientes. Seja devido à anterioridade desse documento em relação à decisão objecto do presente recurso (a decisão recorrida foi proferida em 2-05-2024), seja devido ao facto de não se cogitar que a recorrente dele não tenha tido conhecimento (pois esteve presente na diligência judicial onde foi lavrado o acordo), é de excluir que a junção do documento em causa seja admissível devido à impossibilidade da sua apresentação anterior.
Subsiste, consequentemente, a questão de saber se a junção do documento se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Quanto a este pressuposto, apesar da literalidade do preceito poder gerar dúvidas quanto ao seu alcance, há muito que se vem entendendo que a mera surpresa quanto ao resultado da decisão não pode justificar que o recorrente se apresente a juntar documentos para provar factos que já antes da decisão sabia estarem sujeitos a prova. Essa era já a posição que, à luz do preceito legal similar do artigo 706.º, n.º1 do antigo Código do Processo Civil, era defendida por João de Matos Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, designadamente quando escreveram que “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida[1]. Essa é também a interpretação que, até aos nossos dias, continuou a ser acolhida de forma largamente maioritária, agora quanto ao actual artigo 651.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, na nossa doutrina e na jurisprudência dos nossos tribunais superiores [2].
Assim, porque também aderimos ao entendimento que se acaba de referir, há que observar que, no caso em apreço, não se vislumbra que a ora recorrente, antes de a decisão recorrida ser proferida, sabendo da controvérsia que havia entre si e o seu ex-marido quanto ao facto de este, ainda no ano de 2016, ter vendido ou não os ciclomotores cuja propriedade, na altura, estava registada em seu favor, não pudesse contar com a possibilidade de o tribunal, vir a decidir em sentido contrário àquele que sustentava. Por isso, aquando da discussão que culminou com a prolação da decisão recorrida, era possível à ora recorrente, para defender a sua posição, juntar o documento que só agora, em sede de recurso, surge a apresentar. O conteúdo do documento em causa, tendo em conta o assunto que se discutia, não se mostrava desfasado do objecto da discussão, nem se revelava inútil relativamente a este. Como a recorrente, podendo-o fazer, não procedeu então à junção do documento, esgotou-se a correspondente possibilidade, não se mostrando, pois, reunidas as condições necessárias para que, com base no disposto no artigo 651.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, o documento em causa ora possa ser junto a estes autos.
Nos termos e pelos motivos expostos, não se admite a junção aos autos do documento que a recorrente apresentou com as suas alegações.

B) Dos factos
1. Para resolver a primeira questão enunciada quando se delimitou o objecto do recurso, cumpre atentar, antes de mais, na factualidade que foi dada como provada e não provada na decisão recorrida, a qual foi a seguinte:

MATÉRIA DE FACTO PROVADA
1) AA e BB casaram um com o outro no dia 02 de Março de 1996, sem convenção antenupcial.
2) Por sentença de 21 de Fevereiro de 2017, transitada em julgado, foi declarada a dissolução, por divórcio, do casamento entre as partes.
3) A petição inicial de divórcio deu entrada no tribunal em 29 de Dezembro de 2016.
4) A propriedade dos ciclomotores identificados nas verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24 da relação de bens encontra-se inscrita a favor do reclamante BB desde, respectivamente, 09.12.2013, 25.08.2009, 07.06.2011, 30.12.2009, 07.06.2011, 25.08.2009, 05.04.2016, 18.05.2010, 05.04.2016, 05.04.2016, 25.08.2009, 28.05.2012, 31.10.2012, 31.10.2012, 31.10.2012 e 17.12.2008.
5) Por contrato verbal celebrado em data não concretamente apurada, entre os meses de maio e junho de 2016, BB, ora interessado reclamante, declarou vender ao seu irmão, CC, e este declarou comprar, os ciclomotores referidos, pelo valor global de €1000,00.
6) A propriedade dos ciclomotores identificados nas verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24 da relação de bens encontra-se inscrita a favor de CC desde 20.02.2017.

MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA - Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir.

2. A recorrente, em cumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, apenas impugnou especificadamente o ponto de facto 5) acima referidos, pugnando para que o mesmo seja julgado não provado.
Está em causa saber se o interessado BB, numa data não concretamente determinada de Maio ou Junho de 2016, vendeu ou não ao seu irmão CC, pelo valor global de 1000,00 euros, os dezasseis ciclomotores que a cabeça-de-casal indicou na relação de bens a partilhar sob as verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24.
O tribunal a quo deu como provado que tal venda ocorreu, por considerar que, não obstante o registo da propriedade desses ciclomotores ter sido averbado em nome de CC apenas em 20-02-2017, mereceram credibilidade as declarações que foram prestadas na sessão de produção de prova pelo interessado BB e pelo seu irmão CC quanto ao facto de os dois terem celebrado, algures nos meses de Maio ou Junho de 2016, um acordo verbal pelo qual o primeiro vendeu ao segundo os referidos ciclomotores pelo preço global de 1000.00 euros, quantitativo que o comprador foi pagando em prestações, através de entregas em numerário que se estenderam até cerca de 5-6 meses depois do acordo.
A recorrente discorda da valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, por considerar que este, por um lado, deu indevida credibilidade àquilo que foi afirmado pelo interessado BB e pelo seu irmão CC e, por outro lado, desconsiderou as declarações da cabeça-de-casal AA, designadamente na parte em que esta asseverou que, até ao momento em que saiu da casa de morada de família, em Novembro de 2016, aquele que era o seu marido não tinha procedido à venda dos ciclomotores que havia adquirido durante o casamento e que, então, se encontravam na casa de ambos.
Os elementos de prova existentes para se fixar a matéria de facto controvertida resumem-se aos depoimentos das partes e da testemunha acima referidas, bem como ao teor das certidões do registo automóvel juntas aos autos, que atestam que a propriedade de todos os ciclomotores relacionados pela cabeça-de-casal estava averbada, desde datas anteriores a 2016, em nome do interessado BB e que, somente em 20-02-2017, é que foi registada a transferência da respectiva propriedade para CC.
Como se sabe, o registo, na nossa ordem jurídica, não é constitutivo de direitos, mas, cumprindo a importante função de dar publicidade à situação jurídica dos bens, tendo em vista a segurança do comércio jurídico, constitui presunção de que “[o] direito existe e pertence ao titular inscrito” (cf. artigo 7.º, n.º 1, do Código Registo Predial, aplicável ao registo de veículos ex vi artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro). Esta é uma presunção ilidível, mas, conforme decorre do disposto no artigo 350.º do Código Civil, possui um enorme alcance prático, pois, quem quiser demonstrar o contrário daquilo que se encontra definido no registo é que tem o ónus de efectuar a prova correspondente.
Desta forma, no caso sub judice, para se determinar se os ciclomotores relacionados pela cabeça-de-casal sob as verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24 foram ou não adquiridos, durante o ano de 2016, por CC, ter-se-á que ter sempre como ponto de partida o facto de existir prova documental reforçada que aponta no sentido de que tal não aconteceu, pois o teor do registo público de veículos faz presumir que, durante todo esse ano, o proprietário desses ciclomotores nunca deixou de ser o interessado BB. Consequentemente, ante a inexistência de qualquer outra prova documental, há que avaliar se a apreciação global das declarações que foram prestadas pelas duas partes interessadas no inventário e do depoimento da testemunha CC permite, ou não, ilidir a mencionada presunção de molde a que se considere provado que, tal como alegado na reclamação contra a relação de bens, BB vendeu os dezasseis ciclomotores acima referidos em data anterior àquela (29-12-2016) em que a sua ex-esposa apresentou em tribunal a acção de divórcio de ambos.
Procedendo-se à audição das declarações de BB e do seu irmão CC, por um lado, e da cabeça-de-casal AA, por outro lado, surge evidente que, referindo os primeiros que, em Maio ou Junho de 2016, firmaram entre si um acordo verbal de compra e venda dos ciclomotores do qual não existe qualquer registo escrito, é deveras difícil à cabeça-de-casal infirmar tais declarações. Não obstante, não se pode deixar de valorar as declarações de AA na parte em que a mesma referiu que, enquanto residiu na mesma morada que o seu ex-marido, este jamais lhe transmitiu que tivesse feito qualquer negócio com o irmão relacionado com os ciclomotores e que estes veículos, quando saiu de casa no dia 6-11-2016, permaneciam, como sempre, na garagem e no interior de um “anexo” sob a guarda daquele que era o seu marido. Não se olvida que as declarações da cabeça-de-casal, dada a sua qualidade de parte directamente interessada no inventário, devem ser apreciadas de forma cautelosa. Isso não afasta, porém, que, no caso em apreço, tais declarações se tivessem revelado tendencialmente credíveis, pois, ouvidas as declarações que, por sua vez, foram prestadas por BB, é possível constatar, não só que este interessado jamais mencionou que, na altura, informou a sua esposa do negócio que asseverou ter feito com o irmão (como seria normal que acontecesse, dado o vínculo que os unia e considerando que o próprio BB afirmou que os seus problemas conjugais apenas emergiram por alturas de Outubro de 2016), como principalmente que resultou daquilo que foi relatado por BB (designadamente quanto ao facto de, em Novembro, se ter confrontado com a falta de acesso às chaves dos ciclomotores) que estes veículos, aquando da separação do casal, permaneceriam, efectivamente, nos mesmos locais onde habitualmente se encontravam.
A apreciação que se acaba de efectuar sobre as declarações da cabeça-de-casal não afasta, no entanto, o facto de as afirmações que BB produziu quanto à venda dos ciclomotores ao irmão terem sido, na sua globalidade, confirmadas por este último. A coincidência dos depoimentos dos dois não pode deixar de conferir maior consistência à prova produzida do que se apenas se contasse com as declarações de um deles. Todavia, analisando-se criticamente aquilo que por ambos foi relatado, é impossível não observar que, com excepção da matéria de facto relacionada com o acordo que teriam estabelecido em Maio-Junho de 2016 e com o pagamento de 1000 euros que teria sido feito em numerário ao longo de cerca de cinco meses, nenhum dos dois logrou avançar com qualquer pormenor diferenciador susceptível de conferir maior credibilidade às respectivas declarações. Por maior informalidade que tivesse havido ao nível do negócio que afirmaram terem celebrado, seria expectável que algum deles, a propósito de uma qualquer circunstância, retivesse na memória algo que melhor habilitasse o tribunal a não ter dúvidas sobre aquilo que afirmaram; contudo, tanto BB como CC, nem quanto à data do negócio (relativamente à qual os dois apenas disseram ter sido em Maio ou em Junho), nem quanto aos pagamentos que disseram terem sido efectuados (relativamente aos quais se limitaram a afirmar terem sido processados mediante a entrega, sempre em numerário, de quantitativos diversos ao longo de cerca de cinco meses), avançaram com qualquer pormenor concreto que tivesse ocorrido. Mesmo em relação aos pagamentos, ouvidas com atenção as respectivas declarações, nenhum dos dois concretizou qualquer aspecto relevante sobre os mesmos, designadamente quanto à/s data/s do primeiro ou do último, como, pelo menos quanto a esses, seria expectável terem melhor recordação.
Desta forma, considera-se que os depoimentos de BB e CC, apesar da sua solidez aparentemente resultante da consonância havida entre um e outro, padeceram de subtis, mas ainda assim indisfarçáveis, debilidades. Nesse contexto, e ante as reservas que sempre adviriam do interesse de ambos no desfecho da lide (BB por ser interessado directo na partilha; CC por ser titular do registo da propriedade dos motociclos cuja integração no acervo de bens a partilhar se discute), mais se evidenciou uma outra questão que compromete a possibilidade de ora ser dado como provado que, efectivamente, em Maio ou Junho de 2016, foi celebrado um contrato de compra e venda entre os dois: em Novembro de 2016, conforme resultou das declarações de BB, ainda não haviam sido entregues nem os documentos, nem as chaves dos ciclomotores à pessoa (CC) que, alegadamente, os havia adquirido em Maio-Junho e que, supostamente, esteve a pagar o respectivo preço durante os cinco meses subsequentes.
A determinação dos factos provados e não provados obedece a princípios lógicos e, quando não existe prova directa dos factos, deve ser feita sob o enquadramento das regras daquilo que a experiência da vida nos diz ser normal e razoável. Ora, no caso que ora nos ocupa, para se aceitar as afirmações que BB e CC produziram quanto ao facto de, em Maio ou Junho de 2016, terem concluído de forma verbal um contrato de compra e venda de dezasseis ciclomotores (do qual não há qualquer registo documental, seja quanto à sua celebração, seja quanto ao pagamento do respectivo preço), ter-se-ia que considerar razoável e normal que a pessoa que interveio nesse negócio como comprador tivesse aceitado proceder, ao longo de cinco meses, a pagamentos diversos sem jamais possuir qualquer documento susceptível de comprovar a efectividade do negócio e dos pagamentos que estava a suportar e, ainda por cima, sem que jamais lhe fosse entregue qualquer dos ciclomotores objecto do negócio ou qualquer documento dos mesmos. Por maior nível de confiança que houvesse entre os dois irmãos, a realidade retratada escapa às menos exigentes regras da experiência comum. Um contrato de compra e venda, como nos diz o artigo 879.º do Código Civil, tem três efeitos essenciais: a transmissão da titularidade da coisa; a obrigação de entrega da coisa; a obrigação de pagamento do preço. Na tese de BB e CC, ambos concluíram verbalmente um contrato pelo qual operaram, de imediato, a transmissão da propriedade dos bens (nem sequer se tratou de um contrato-promessa!) mas que, diferentemente de tudo o que é habitual, não envolveu a entrega de um ao outro de qualquer documento, de qualquer bem ou de qualquer quantitativo monetário. Neste contexto, impossível se mostra, ultrapassando-se a realidade documentada no registo automóvel, dar como provado que BB, no ano de 2016, vendeu ao seu irmão CC os dezasseis ciclomotores relacionados pela cabeça-de-casal sob as verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24.
Pelo exposto, julga-se procedente a impugnação da matéria de facto do ponto 5. da decisão recorrida, determinando-se que o conteúdo desse ponto seja retirado da matéria de facto provada e passe a constar da matéria de facto não provada.

C) Do direito
Resta aferir agora do mérito da decisão que foi proferida pelo tribunal a quo (assim se tratando da última ‘questão a decidir’ que foi enunciada quando se delimitou o objecto do recurso).
Como fácil é de perceber, alterada que foi a factualidade fixada na primeira instância e não ficando provado que, em data anterior a 29 de Dezembro de 2016 (data da proposição da acção de divórcio e que, face ao disposto no artigo 1789.º, n.º 1, do Código Civil, é a relevante para a produção dos efeitos patrimoniais da dissolução do casamento), o reclamante BB, ora interessado tenha vendido ao seu irmão, CC, os ciclomotores identificados nas verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24 da relação dos bens (cuja propriedade foi registada em nome deste último apenas em 20-02-2017), é inevitável concluir no sentido da improcedência da reclamação que foi apresentada contra tal relação.
Com efeito, dado que foi demonstrado não só que a aquisição dos referidos ciclomotores foi registada em nome do interessado BB durante a constância do seu casamento, como também que esse registo de propriedade se mantinha aquando da data relevante para a produção dos efeitos patrimoniais do divórcio (29-12-2016), o mérito da reclamação que foi apresentada contra a sua inclusão na relação de bens a partilhar dependia, acima de tudo, da prova de que, aquando dessa última data, eles já não integravam o património do casal. A prova deste facto, porém, não foi feita, pelo que, quanto ao mesmo, ter-se-á que respeitar a presunção do registo da propriedade que, então, estava averbado.
Sem prejuízo do que se acaba de afirmar quanto à improcedência da reclamação contra a relação de bens, esclareça-se que a permanência no acervo dos bens a partilhar dos ciclomotores relacionados nas verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24 não significa que fique já fixado definitivamente o valor que, quanto aos mesmos, foi indicado pela cabeça-de-casal. Com efeito, uma vez que o valor dos bens relacionados constitui matéria que deve ser objecto de deliberação na conferência de interessados (cf. artigo 1111º, nº1, al. b), do Código de Processo Civil) e porque resulta do artigo 1114.º, n.º 1, do Código do Processo Civil que, até ao início das licitações, pode sempre haver lugar à impugnação do valor dado aos bens – cumprindo, então, ao tribunal fixar definitivamente o valor dos mesmos – entende-se que, nesta fase, não se impõe proferir qualquer decisão sobre esse tema.
Finalmente, cumpre dizer que, por se ter concluído no sentido da revogação da decisão recorrida, o interessado BB, devido ao seu decaimento, deve ser responsabilizado pelo pagamento das custas do incidente de reclamação, bem como das custas da apelação (cf. artigo 527.º, n.º 1, do Código do Processo Civil).
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III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida e se decide:
1.º) julgar improcedente a reclamação contra a relação de bens, determinando-se que se mantenham integrados nesta os ciclomotores relacionados pela cabeça-de-casal sob as verbas números 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23 e 24;
2.º) condenar o interessado BB no pagamento das custas da reclamação contra a relação de bens.
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Custas da apelação a cargo do recorrido (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Processo Civil).
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Notifique.
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SUMÁRIO
(da exclusiva responsabilidade do relator - artigo 663.º, n.º 7, do C.P.C.)
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Porto, 28/4/2025

Acórdão datado e assinado electronicamente
(redigido pelo primeiro signatário segundo as normas ortográficas anteriores ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990)

José Nuno Duarte
Teresa Fonseca
Mendes Coelho
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[1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 533-534.
[2] Cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed. actualizada, Almedina, 2022, p. 286; e, na jurisprudência, entre muitos outros: Ac. RP 24-09-2018, proc. 22390/15.0T8PRT.P1, rel. Miguel Baldaia de Morais; Ac. RP 5-12-2024, proc. 608/23.6T8VFR.P1, rel. Manuela Machado; Ac. STJ 29-02-2024, proc. 627/20.4T8PVZ.P1.S1, rel. Ana Paula Lobo; Ac. STJ 25-06-2024, proc. 456/21.8T8SCD.C1-A.S2, rel. Leonel Serôdio.