ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ESPECIFICAÇÃO DOS CONCRETOS MEIOS PROBATÓRIOS
Sumário

I – Só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora de nulidade da sentença, e não apenas a mera deficiência, mediocridade ou erro da dita fundamentação [cf. art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC].
II - A falta de indicação, nas conclusões de recurso, dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados implica a rejeição imediata da impugnação da matéria de facto (cf. art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 3, a contrario, e 640.º, todos do CPC).
III - A exigência, imposta pelo artigo 640.º n.º 1 alínea b) do CPCivil, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.
IV - Não cumpre aquele ónus a apelante que a apelante não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a verter excertos de gravações de depoimentos e a fazer referência a documentos, mas sem que defina a que concreto ponto de facto se referem.

Texto Integral

Processo nº 3345/24.0T8VNG.P1-Apelação

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia-J2
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr.ª Eugénia Marinho da Cunha
2º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., ..., 3º Frente Recuado, ..., ... Vila Nova de Gaia, intentou ação declarativa de condenação com processo comum contra Banco 1..., S. A., com sede na Av.ª ..., formulando os seguintes pedidos:
1º A condenação da ré a pagar a quantia de 5.000,01€ à Autora, acrescida de juros legais a contar da data da notificação até ao efetivo e integral pagamento;
2º A condenação da autora a proceder ao cancelamento do ónus da inalienabilidade que recai sobre o imóvel;
3º A declarar a nulidade do registo da inalienabilidade com efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver prestado ou, se a restituição não for possível, o valor correspondente.
Para o efeito, a autora alega que a ré registou com atraso o ónus de inalienabilidade associado à alteração dos termos do mútuo contraído pela autora junto da ré e que considerou liquidado, também com atraso, o mútuo, o que provocou danos à autora.
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Na contestação apresentada, a ré alegou que inexiste fundamento jurídico para a nulidade do ónus da inalienabilidade e que o período de tempo decorrido entre o pedido de liquidação do empréstimo e a sua aceitação pela ré não foi excessivo nem provocou à autora os danos alegados.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos teve lugar a audiência de julgamento que decorreu com observância de todas as formalidades legais.
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A final foi proferida sentença que julgando a ação improcedente absolveu a Ré de todos os pedidos contra si formulados.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância que julgou inteiramente improcedente a ação.
II. Salvo devido respeito por opinião contrária, a Recorrente considera existir uma manifesta ausência de fundamentação na sentença in crise, a qual não teve em consideração a prova produzida, nomeadamente testemunhal e documental, e foi desconsideradora dos mais elementares pilares do direito, na persecução de decisões justas.
III. Salvo devido respeito por opinião contrária, a Recorrente considera existir uma manifesta ausência de fundamentação na sentença in crise, a qual não teve em consideração a prova produzida, nomeadamente testemunhal e documental, e foi desconsideradora dos mais elementares pilares do direito, na persecução de decisões justas.
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento destas é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a sentença padece de nulidade por falta de fundamentação.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. Por escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, celebrada no dia 3 de abril de 1998, BB e CC declararam vender à aqui autora, que declarou comprar, a fração autónoma designada pelas letras BU, correspondente a uma habitação no terceiro andar recuado direito frente, corpo V, com entrada pelo n.º ..., e a fração autónoma designada pelas letras CM, correspondente a um lugar de garagem na cave, com entrada pelo n.º ..., ambas pertencentes ao prédio afeto ao regime da propriedade horizontal situado na Rua ..., ..., e Rua sem denominação oficial, n.ºs ... a ..., da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia com o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...
2. Na mesma escritura pública, o Banco 2..., S.A., concedeu à autora um empréstimo de catorze milhões de escudos no regime do crédito jovem bonificado pelo prazo de trinta anos, sujeito à taxa base Variável de 10,25%, e a autora constituiu a favor do mutuante hipoteca sobre as frações autónomas acima referidas.
3. Na cláusula 13ª do documento complementar à referida escritura pública de compra e venda, ficou estipulado que ao mutuário é permitida a amortização antecipada do empréstimo nas seguintes condições: o mutuário deverá enviar uma carta ao mutuante, manifestando essa intenção, a qual deverá dar entrada dez dias úteis antes da data desejada para o reembolso; a data do reembolso tem de coincidir com as datas de vencimento das prestações.
4. Encontra-se inscrita no registo predial a aquisição, por compra, a favor da autora, pela Ap. ..., de 20 de Janeiro de 1998, a fração autónoma designada pelas letras BU, correspondente a habitação no terceiro andar recuado direito frente, corpo V, com entrada pelo n.º ..., pertencente ao prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. Gaia com o n.º ... e inscrito na respectiva matriz da freguesia ... sob o artigo ...
5. Sobre a referida fração autónoma BU encontra-se inscrito, pela Ap. ..., de 30.11.2023, o ónus da inalienabilidade pelo prazo de cinco anos, decorrente da alteração das condições de empréstimo garantido por hipoteca inscrita sob a Ap. ..., de 20 de janeiro de 1998.
6. Encontra-se inscrita no registo predial a aquisição, por compra, a favor da autora, pela Ap. ..., de 20 de janeiro de 1998, a fração autónoma designada pelas letras CM, correspondente a garagem na cave, com entrada pelo n.º ..., pertencente ao prédio urbano constituído em propriedade horizontal, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de V. N. Gaia com o n.º ... e inscrito na respetiva matriz da freguesia ... sob o artigo ...
7. Sobre a referida fração autónoma CM encontra-se inscrito, pela Ap. ..., de 30.11.2023, o ónus da inalienabilidade pelo prazo de cinco anos, decorrente da alteração das condições de empréstimo garantido por hipoteca inscrita sob a Ap. ..., de 20 de janeiro de 1998.
8. A 10 de Outubro de 2022, a autora solicitou uma alteração do regime de crédito bonificado Jovem à habitação para o regime de crédito bonificado à habitação para pessoas com deficiência, ao abrigo da Lei n.º 64/2014, de 26 de agosto.
9. No dia 6 de outubro de 2023, a Autora pediu no balcão de ... da ré a amortização da totalidade do empréstimo, pelo valor de € 31.843,99, sendo a data-valor de 16 de Outubro de 2023.
10. No dia 17.10.2023, o valor da amortização ainda não tinha sido retirado da sua conta à ordem.
11. Tendo-se dirigido ao balcão de ... da ré, a autora foi informada de que deveria aguardar.
12. Autora fez vários telefonemas para o banco e foi várias vezes ao balcão de ... para se informar sobre o estado da liquidação do empréstimo.
13. No dia 3 de novembro de 2023, a ré debitou da conta da autora o valor da prestação mensal - € 224,19 - referente ao empréstimo.
14. Nesse mesmo dia, o marido da ré dirigiu-se ao balcão pelo marido da autora.
15. No mesmo dia, a ré informou a autora de que o empréstimo já havia sido amortizado e realizado o estorno da prestação debitada naquele dia, devolvendo à autora tal montante.
16. A autora solicitou à ré o documento para distrate da hipoteca.
17. No dia 10 de dezembro de 2023, a autora apresentou reclamação no Banco de Portugal.
18. A ré entregou à autora o documento de distrate da hipoteca em 10 de Fevereiro de 2024.
19. A Autora está desempregada.
20. A Autora recebe pensão social para a inclusão e respetivo complemento.
21. A autora tem incapacidade de 60%.
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Factos não provados
Não se provou que:
a. O débito da prestação do empréstimo no dia 3 de novembro de 2023 provocou na autora uma crise de ansiedade.
b. O descrito tempo de espera provocou à autora ansiedade, obrigando-a a recorrer a ajuda médica e familiar.
c. Por causa do tempo de espera, a autora ficou com dificuldade de dormir, de se alimentar de conviver socialmente.
d. A autora passou a ficar desconfiada das entidades financeiras e das que prestam serviços ao público.
e. A descrita conduta da ré fez com que a autora ficasse deprimida.
f. A descrita conduta da ré tornou a autora triste.
g. A descrita conduta da ré retirou à autora força de viver.
h. A autora gastou € 100,00 com o tempo e combustível nas deslocações ao banco e ao Banco de Portugal.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a sentença padece de nulidade por falta de fundamentação.
Se bem entendemos as conclusões, a apelante alega que a decisão recorrida padece de falta de fundamentação por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (cf. parte final das conclusões) e, portanto, se bem que nunca faça alusão, de forma expressa, à nulidade plasmada na al. b) do nº 1 artigo 615.º do CPCivil, resulta à evidência que é tal vício que a apelante pretende assacar à decisão recorrida.

Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615.º a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A referida nulidade está relacionada com o comando do artigo 607.º, nº 3 que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615.º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.[1]
Ora, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão[2], coisa que, manifestamente, no caso em apreço não acontece, pois que, o tribunal recorrido, como o evidência a sentença recorrida, aí descriminou os factos que resultaram provados e não provados e aí indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas correspondentes.
Repare-se, todavia, que saber se a “análise crítica da prova” foi, ou não, corretamente realizada, ou se a norma selecionada é a aplicável, e foi corretamente interpretada, não constitui omissão de fundamentação, mas sim “erro de julgamento: saber se a decisão (de facto ou de direito) está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma.
Portanto, ao contrário do que afirma a recorrente, a sentença recorrida não enferma da nulidade que lhe vem assacada e constante da alínea b) do nº 1 do artigo 615.º.
Efetivamente, o que alega a vertido pela apelante nas suas conclusões é, em retas contas, que o tribunal recorrido não valorou como devia, determinados elementos probatórios (documentos e depoimentos), ou seja, que houve erro de julgamento na decisão da matéria de facto.

Todavia, como tem sido reiteradamente afirmado na doutrina e na jurisprudência, não há que confundir entre nulidades de decisão e erros de julgamento.

As primeiras (error in procedendo) são vícios de formação ou atividade (referentes à autenticidade, inteligibilidade, estrutura ou limites da decisão, isto é, trata-se de vícios que afetam a regularidade formal da peça processual que é a decisão), nada tendo a ver com erros de julgamento (error in iudicando), seja em matéria de facto seja em matéria de direito.


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Como assim, o dissenso da apelante traduz, precisamente, a sua discordância com o julgamento efetuado, mas não patenteia algum vício de nulidade por falta de fundamentação nos moldes suprarreferidos.

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Poder-se-ia entender que a apelante, não obstante pedir a anulação da decisão por verificação da invocada nulidade (falta de fundamentação), também pretende a impugnação da matéria de facto como parece resultar da motivação recursiva.

Acontece que, para esse efeito de ver incluídos factos alegados e sobre os quais versou o julgamento na matéria de facto, o tribunal de recurso carece de ter elementos concretos sobre a indicada pretensão e, concretamente, quais os factos a aditar e porquê e quais os meios de prova que sustentam o aditamento, ou seja, o recorrente tem de cumprir os ónus impostos pelo artigo 640.º do CPCivil.

Acontece que, a apelante não cumpre os referidos ónus.

Como se sabe, o recorrente que pretenda impugnar, com sucesso, a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de cumprir (“sob pena de rejeição”) vários ónus de especificação que podem ser assim enunciados (artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil):

-especificação dos concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados pelo tribunal recorrido, obrigação que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida;

-indicação das concretas provas (constantes do processo ou que nele tenham sido registadas) que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que se cumpre com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe outra decisão;

- indicação da decisão (diversa da recorrida) que, no seu juízo, se impõe quanto a cada um dos pontos de facto que considera mal julgados.

E decorrente da imposição de tais ónus, tendo hoje a consolidar-se e a tornar-se pacífico o entendimento de que a rejeição do recurso que impugna a decisão sobre matéria de facto só se justifica verificada alguma destas situações:

- falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto [artigos 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b), de CPCivil];

- falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados [artigo 640.º, n.º 1, al. a), do CPCivil], pela importante função delimitadora do objeto do recurso que essa especificação desempenha;

- falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;

- falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

- falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.


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Ora, lendo as conclusões a apelante nelas não especifica que factos concretos considera incorretamente julgados.

Para além disso, na própria motivação também a apelante não dá cumprimento ao preceituado na al. b) do nº 1 do citado artigo 640.º.

A exigência, imposta pela mencionada alínea de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova.

Ora, lendo a motivação recursiva a apelante não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a verter excertos de gravações de depoimentos e a fazer referência a documentos, mas sem que defina a que concreto ponto de facto se referem.


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Como assim, ainda que se entendesse que apelante pretendia impugnar a matéria de facto sempre se impunha a sua rejeição pela falta ostensiva do não cumprimento dos apontados ónus.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Autora apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 28 de abril de 2025.
Manuel Domingos Fernandes
Eugénia Cunha
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Neste sentido, ver Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, 140 e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 669.
[2] Cf. Antunes Varela, obra citada pág. 670.