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SENTENÇA DE EMBARGOS DE EXECUTADO
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
INEXEQUIBILIDADE DE LIVRANÇA POR OMISSÃO DA DATA DE EMISSÃO
CASO JULGADO FORMAL
ADMISSIBILIDADE DE NOVA EXECUÇÃO
ACORDO EXTRAJUDICIAL DE REVITALIZAÇÃO DO DEVEDOR
SATISFAÇÃO COERCIVA DO CRÉDITO
Sumário
I – O art.º 732º, n.º 6 do Código de Processo Civil restringe a força do caso julgado material à “decisão sobre a relação material controvertida”, ou seja, àquela que se pronuncie quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda; II – A sentença de embargos de executado que extinguiu a execução embargada com fundamento inexequibilidade de uma livrança na qual se encontrava omissa a data da respetiva emissão, apenas faz caso julgado formal, não obstando à posterior instauração de nova execução, contra os obrigados cambiários, com base na mesma livrança entretanto preenchida quanto ao elemento em falta; III – A vinculação do credor ao plano de pagamentos que resulta da homologação judicial de acordo extrajudicial de revitalização do devedor proíbe-o de instaurar ação executiva contra o devedor, o que não significa, no entanto, que fique impedido de obter a satisfação coerciva do seu crédito, pois mantém o título executivo caso o devedor não lhe satisfaça voluntariamente o crédito nos termos e condições que foram aprovados naquele acordo de revitalização. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
Exequente/Recorrente: Banco 1..., S.A;
Executados/recorridos: A..., SA, AA;
I. Relatório
Banco 1..., S.A., instaurou execução contra A..., SA, AA e BB, apresentando como títulos executivos duas livranças identificáveis pelos n.ºs ...92 e ...52, preenchidas, respetivamente, com os valores de €11.244,47 e €118.494,21, ambas subscritas pela mencionada sociedade e avaliadas pelos identificados AA e BB
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O executado AA veio deduzir oposição à execução pugnando pela integral extinção da execução e requerendo ainda a suspensão da execução, com dispensa da prestação de caução, ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 733º do Código de Processo Civil.
Para tanto, alegou, em síntese, que, em 20.11.2020, a ora exequente instaurou contra ele e a sociedade «A..., SA»um processo executivo que correu termos no Juízo de Execução da Comarca de Viseu (J1), sob o n.º 4643/20...., ao qual serviram de título duas livranças, identificáveis pelos n.ºs ...92 e ...52, subscritas pela dita sociedade e avalizadas pelo executado.
Em 10 de Novembro de 2020, a executada «A..., SA» instaurou nos Juízos de Comércio de Viseu, da Comarca de Viseu, Procedimento Especial de Revitalização (PER), pedindo a homologação de acordo extrajudicial de recuperação, nos termos do artigo 17º-I do CIRE
Tal acordo veio a ser homologado por sentença de 26 de março de 2021, transitada em julgado em 15 de abril de 2021, sendo ali reconhecido o crédito da exequente, no montante titulado nas referidas livranças, acrescido de juros de mora.
Em conformidade com o disposto no artigo 17º-E n.º 1 do CIRE, foi determinada a suspensão daquela execução quanto à executada A... e, prosseguindo a mesma contra os executados avalistas das referidas livranças, vieram estes instaurar embargos de executado, os quais foram julgados procedentes, tendo o tribunal considerado verificada a falta de título executivo, em virtude da omissão, no impresso das livranças, da data da respetiva emissão, consequentemente julgando extinta a execução quer quanto aos executados avalistas, quer quanto à executada subscritora das livranças.
Tal decisão, proferida em 18.04.2023, transitou em julgado em 18.05.2023
Uma vez extinta tal execução, não poderia a exequente instaurar outra execução com o mesmo pedido ou objeto contra os mesmos executados.
Acontece, contudo, que as mesmas livranças, postumamente preenchidas com a informação invalidante em falta, isto é, com a data de emissão, foram apresentadas como título executivo na nova execução – a que agora se opõe - instaurada pela mesma exequente contra os mesmos executados.
Como resulta da sentença proferida nos embargos de executado n.º 4643/20...., estas livranças não estavam completamente preenchidas no momento em que deram entrada em juízo, em 20 de novembro de 2020, tendo sido preenchidas em data posterior à da sua apresentação a pagamento, de forma abusiva e de má-fé, e sem que fosse dado conhecimento aos executados.
Assim, quer pelos efeitos do caso julgado, previstos no art.º 732º, n.º 6 do Código de Processo Civil, quer porque os títulos foram preenchidos em momento muito posterior à da sua apresentação a pagamento, não tais podem valer como título executivo.
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Após admissão liminar dos embargos, e notificada da dedução desta oposição, veio a exequente apresentar contestação, alegando, em suma, que a sentença proferida no processo n.º 4643/20.... somente se pronunciou sobre a invalidade dos títulos executivos, ou seja, apenas sobre os aspetos adjetivos e processuais, não decidindo do mérito da causa, razão pela qual inexiste a exceção de caso julgado invocada.
Por outro lado, as livranças exequendas mostram-se preenchidas com o montante em divida à data do incumprimento, sendo certas, liquidas e exigíveis as dividas cuja cobrança coerciva se requer e que são tituladas pelas livranças exequendas; a omissão da data de emissão da livrança apenas torna ineficaz o titulo cambiário e não a obrigação per se.
Mais alega que as livranças foram entregues em branco pela sociedade mutuária à embargada e avalizadas pessoalmente pelos embargantes que, ao outorgarem os contratos que se juntam, assentiram que a embargada procedesse ao preenchimento das livranças quando o entendesse.
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Por seu turno, também a executada A..., Ldª deduziu embargos de executado – que vieram a dar origem ao apenso B - onde alega, em síntese, que, na pendência da execução supra identificada, instaurou processo especial de revitalização (PER) para homologação de acordo extrajudicial de recuperação da sociedade, nos termos do artigo 17º-I do CIRE, sendo que, nos termos do art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE, foi então determinada a suspensão da dita execução.
Tal acordo veio a ser foi homologado por sentença de 26 de março de 2021, transitada em julgado em 15 de abril de 2021, sendo ali reconhecido o crédito da ora exequente, no montante titulado nas referidas livranças, acrescido de juros de mora.
A homologação esse acordo – que vincula a ora exequente, ainda que a mesma não o haja subscrito - teve como consequência necessária a extinção ope legis da mencionada execução n.º 4643/20...., no tocante à executada A..., após o que as mencionadas livranças perderam a sua força executiva.
Não pode assim a exequente instaurar nova execução quanto à executada embargante com base nas mesmas livranças, quando o crédito a elas subjacente foi alterado, modificado e “reconformado” pelo mencionado acordo extrajudicial de revitalização, o qual, de resto, se encontra em plena execução e cumprimento, verificando-se assim a inexigibilidade da obrigação exequenda.
Com a homologação deste acordo, o título representativo do crédito passou a ser a sentença homologatória do mesmo, sendo o acordo alcançado a nova fonte de obrigações entre as partes
Deve, assim, ser julgada a inexequibilidade das livranças apresentadas como título executivo.
Invoca ainda o efeito de caso julgado material da decisão proferida nos embargos de executado instaurados pelos executados avalistas, por apenso à mencionada execução n.º 4643/20...., que julgou procedente a arguida falta de título executivo e consequentemente julgou extinta a execução quanto quer quanto aos embargantes/avalistas, quer quanto à executada pessoa coletiva, subscritora da livrança, situação que impede que contra ela seja instaurada nova execução com base nas mesmas livranças.
Finalmente, diz ter existido um posterior preenchimento abusivo das livranças, pois, como resulta da sentença proferida nos embargos de executado n.º 4643/20...., tais títulos não estavam completamente preenchidos no momento em que deram entrada em juízo, em 20 de novembro de 2020, tendo sido preenchidos em data posterior à da sua apresentação a pagamento, de forma abusiva e de má-fé, e sem que fosse dado conhecimento aos executados.
Termina pedindo seja julgada extinta a execução.
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Após admissão liminar dos embargos, e notificada da dedução desta oposição, veio a exequente apresentar contestação nos exatos moldes da contestação que apresentou aos embargos de executado instaurados pelo executado AA.
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Por despacho proferido no decurso da audiência prévia realizada a 8 de abril de 2024, no âmbito dos embargos instaurados pelo executado AA (apenso A), exarado na ata de tal diligência, com fundamento no disposto no art.º 267º, n.º 2 e 4 do CPC, foi determinada a apensação a tais embargos dos embargos de executado instaurados pela executada A... (apenso B), “passando a ser tramitados em conjunto no âmbito do apenso A”.
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No dia 1 de junho de 2024, foi proferido despacho saneador que, conhecendo do mérito de causa relativamente a ambos os processos de embargos, decidiu: Ante o exposto, sem necessidade de outros considerandos, o Tribunal considera procedentes os presentes embargos, determinando a extinção da execução que constitui os autos principais, uma vez que os documentos em que a mesma se baseia não constituem título executivo. Custas pela embargada.
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Não se conformando com esta decisão, veio a exequente embargada interpor recurso da mesma, que finaliza com as seguintes conclusões:
(…).
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O executado AA apresentou contra-alegações onde conclui nos termos que, a seguir, se enunciam:
(…).
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Foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos previstos no art. 665º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
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Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso.
O âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim, em primeira linha, impõe-se apreciar a questão não verificação da autoridade de caso julgado da sentença proferida nos embargos de executado instaurados por apenso à anterior execução que a ora recorrente moveu contra os aqui recorridos, a qual julgou extinta tal execução por falta de título executivo.
Na hipótese de proceder o recurso, deverá apreciar-se a questão da invocada inexigibilidade do crédito exequendo, quanto à executada embargante «A...», por efeito da homologação judicial do acordo extrajudicial de revitalização, cuja apreciação ficou prejudicada pela solução que o tribunal recorrido deu ao litígio (art.º 665º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
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Como questão prévia, porém, deve ser apreciada a da admissibilidade dos documentos apresentados pelo recorrido AA com o requerimento com o requerimento que apresentou na sequência da sua notificação nos termos e para os efeitos previstos no art.º 665º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Dir-se-á, sem necessidade de grandes considerações, que tal documentação é manifestamente intempestiva, uma vez junta aos autos após as alegações de recurso (sendo, portanto, inócuo apreciar se se verificam, ou não os pressupostos previstos no art.º 651º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Não se vislumbra qualquer fundamento legal para a junção, neste momento, dos documentos em causa, motivo pelo qual não se admite a mesma, não se atendendo ao seu teor.
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III. Fundamentação fáctica.
A factualidade a ter em conta para a apreciação e decisão do recurso é a que vem indicada no relatório acima enunciado, devendo ainda atender-se aos seguintes factos que resultam da prova documental junta aos autos:
1) A recorrida «A..., Ldª» instaurou nos Juízos de Comércio de Viseu, da Comarca de Viseu, procedimento especial de Revitalização (PER), pedindo a homologação de acordo extrajudicial de recuperação, nos termos do artigo 17º-I do CIRE, assinado por ela própria, na qualidade de devedora recuperanda e pelos seguintes credores: Banco BIC Português, S.A; Caixa Geral de Depósitos, S.A.; Caixa Leasing e Factoring – Sociedade Financeira de Crédito S.A. e B..., S.A., sendo esta última titular de um crédito subordinado;
2) A lista provisória de credores (que se converteu em definitiva) apresentada pelo administrador judicial provisório, identificava como credor comum a exequente Banco 1..., com um crédito sobre a «A...», no valor total de total de €131.113,90;
3) O Acordo Extrajudicial de Recuperação previa, na sua cláusula sétima, sob a epígrafe «Créditos de Instituições Financeiras» com garantias pessoais prestadas por terceiros fiadores ou avalistas, o seguinte: 1. Pagamento integral de capital; capitalização de juros remuneratórios vencidos e dos juros moratórios eventualmente ocorridos 8sendo estes calculados à taxa de juro contratada para os juros remuneratórios). 2. A capitalização será repostada à data do trânsito em julgado da Sentença Homologatória do AER. 3. Dispensa do pagamento de quaisquer eventuais penalidades ou cláusulas análogas e demais comissões e despesas contratualmente previstas decorrentes de mora, de incumprimento, e/ou de vencimento antecipado de crédito. 4. Manutenção das garantias existentes. 5. A amortização da dívida processar-se-á no prazo de 10 (dez) anos, após o período inicial de carência de capital de 12 (doze) meses, de forma progressiva e crescente (…);
4) Tal Acordo foi homologado por sentença a 26 de março de 2021, tendo transitado em julgado a 15 de abril de 2021;
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IV. De Direito
Está em causa saber se, tendo transitado em julgado uma sentença de embargos de executado que extinguiu uma execução movida contra o subscritor e os avalistas de duas livranças, das quais não constava a data de emissão, com fundamento em que tais documentos não configuravam título executivo por falta de preenchimento de um dos seus elementos essenciais, o exequente não está impedido de instaurar de nova execução contra os ditos avalistas e subscritora, após preencher a data de emissão dessas livranças.
A questão relaciona-se, pois, com a natureza, objeto e limites do caso julgado da sentença proferida nos embargos de executado.
A propósito do valor do julgado da decisão de embargos, refere lapidarmente Castro Mendes[1], «A sentença de embargos de executado decide da execução, absolvendo o executado (embargante) da instância executiva, se o fundamento dos embargos houver sido processual ou mesmo do pedido (transitando neste caso em julgado e gerando caso julgado material) se o fundamento dos embargos for de índole ou eficácia substantiva».
De acordo com Rui Pinto[2], “Pode ensaiar-se uma divisão de acordo com os fundamentos do pedido de oposição. De um lado estão os fundamentos que, por respeitarem à concreta relação processual executiva, nunca podem sustentar senão efeitos quanto e para essa mesma execução, nos termos do art.º 620º, n.º 1. Assim, a sentença de embargos fará caso julgado formal quando os fundamentos são os relativos à regularidade da relação processual executiva, nos termos do art.º 278º, n.º 1: as excepções dilatórias (cf. al. c) do art.º 279º e al. b) do artº. 857º n.º 3). Sendo considerada procedente a arguição do vício formal, o juiz decreta a extinção da execução e o exequente é absolvido da instância, como defendeu CASTRO MENDES. De outro lado, estão todos os demais fundamentos que respeitam à causa de pedir. No entanto, uns respeitam à demonstração formal da causa de pedir – a inexistência ou inexequibilidade do título (art.º 739º al. a)), as nulidades originárias u supervenientes da sentença (cf, als. b), d) e f) do art.º 729º) a nulidade ou anulabilidade da confissão ou transação, na sentença homologatória (art.º 729º, al. h)) e anulabilidade da sentença arbitral (art.º 730º) – e outros são atinentes à existência e caracteres do direito exequendo: factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação (cf. al. g) do artigo 729ç), à certeza, liquidez e exigibilidade do direito (artigo 729º al. e). Ora, é amplamente discutido se a decisão que conheça de questões atinentes à relação de dívida chega a alcançar valor de caso julgado material. Para CASTRO MENDES, a sentença de procedência por exequibilidade do título executivo e por incerteza ou iliquidez da obrigação exequenda determinaria a absolvição da instância executiva, com caso julgado formal, Já a inexigibilidade do direito e a oposição de factos modificativos, impeditivos e extintivos – e ainda ocaso julgado anterior á sentença executada, se desconforme – levariam a absolvição do pedido executivo, com valor de caso julgado material. Desse modo, a decisão pode ser invocada em qualquer ação futura, executiva ou declarativa, e evitar-se-ia uma dupla e sucessiva execução do devedor”.
O legislador veio tomar posição expressa sobre a questão consagrando n.º 6 do art.º 732º do Código de Processo Civil que a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda.
Quer isto dizer, conforme referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[3], que a “sentença que julgue procedentes os embargos com base em factos impeditivos, modificativos ou extintivos da obrigação exequenda ou com fundamento na exigibilidade dessa obrigação, faz caso julgado material, em desvio à regra do art.º 91, n.º 2. Naturalmente que a sentença de procedência dos embargos que assente na exequibilidade do título, na incerteza ou iliquidez da obrigação exequenda apenas faz apena caso julgado formal, não impedindo que seja instaurada nova ação executiva em que tais condições venham a ser satisfeitas.”.
No mesmo sentido, afirma-se, no Ac STJ de 3/5/2023[4], que:“O sentido do atual art. 732.º/6 do CPC é o de deixar claro que uma decisão de mérito proferida nos embargos é dotada da força geral do caso julgado material em relação à causa de pedir e aos fundamentos que ali foram invocados (não impedindo nova ação de apreciação baseada em outra causa de pedir), ou seja, o caso julgado que se constitui é restrito à causa de pedir invocada e, em consequência, não há preclusão em relação ao que não foi invocado/discutido nos embargos”.
No caso em análise, tanto o recorrido AA, demandado enquanto avalista das ditas livranças, como a recorrida «A...», demandada enquanto subscritora das mesmas, invocaram, nos respetivos embargos de executado, a exceção de caso julgado, com fundamento na decisão proferida nos embargos de executado que o primeiro deles instaurou contra uma anterior ação executiva que lhes moveu a ora recorrente, na qual foram dadas à execução as mesmas livranças que fundamentam a pretensão executiva dos autos principais.
Aquela decisão julgou procedentes os embargos, com fundamento em que as livranças ali apresentadas à execução não continham a indicação da data sua emissão, concluindo, por conseguinte, pela invalidade das mesmas enquanto título de crédito e, nessa medida, que não configuravam títulos executivos, nos termos do art.º 703º, n.º 1. al. c) do Código de Processo Civil.
A decisão recorrida, apreciando tal fundamento (quanto nós a sob o prisma da exceção perentória da autoridade de caso julgado), entendeu que não obstante as livranças conterem, no momento em que foi instaurada a execução, a indicação da data da sua emissão, em face da mencionada decisão transitada em julgado, não podem as mesmas constituir título executivo, “atenta a decisão proferida na execução anterior, cujo caso julgado é vinculativo para ambas as partes”. Quer dizer, entendeu a decisão recorrida que, uma vez decidido, naquele processo executivo que correu termos entre as mesmas partes, que as referidas livranças foram preenchidas e acionadas (apresentadas a pagamento) sem o cumprimento daquele requisito de validade, nunca mais poderão recuperar a característica da exequibilidade, não sendo, pois, possível a exequente recuperar o valor dos referidos documentos como título cambiário e, consequentemente, executivo.
Concluiu decidindo pela improcedência dos embargos, determinando a extinção da execução que constitui os autos principais, uma vez que os documentos em que a mesma se baseia não constituem título executivo.
Contudo, face às considerações acima expostas, parece-nos manifesto que a Mmª Juiz a quo não poderia ter determinado a extinção da execução com fundamento na decisão proferida nos embargos de executado do processo n.º 4643/20....
Como se disse, o art.º 732º, n.º 6 do Código de Processo Civil restringe a força do caso julgado material à “decisão sobre a relação material controvertida”, ou seja, aquela que se pronuncie quanto á existência, validade e exigibilidade da obrigação. Sucede que a sentença que julga a inexequibilidade do título e declara extinta a execução não contém qualquer pronúncia o mérito da mesma, por ter um conteúdo processual.
A sentença proferida em 18 de abril de 2023, nos embargos de executado do processo nº 4643/20...., que extinguiu a execução embargada com fundamento inexequibilidade dos títulos executivos, apenas faz caso julgado formal, porque nela somente se ajuizou da não demonstração da dívida, mas nada decidiu quanto à existência e validade da própria dívida[5] .
Não estava assim vedado à recorrente instaurar nova execução com fundamento nas mesmas livranças, desde que estas contivessem, à data da instauração da mesma, todos os requisitos essenciais, referidos nos artigos 75º e 76º da LULL, para que consistiam um título cambiário autónomo e abstrato, integrado no elenco dos títulos executivos, por via do disposto no art.º 703º, n.º 1 do CPC.
É que, de facto, o título (executivo) deve estar formado ao tempo da instauração da ação executiva
E não há dúvidas que as livranças dadas à execução, uma vez suprido o elemento em falta (omissão da data da respetiva omissão), constituem título executivo, por conterem, à data da instauração da execução a que se referem os embargos em causa, todos aqueles elementos que, nos termos das disposições legais conjugadas dos artigos 75º e 76º da LULL são necessários para que possa possam valer como livranças.
Assim, poderá o legítimo portador de tais títulos de crédito intentar execução, com base exclusivamente na obrigação cambiária, contra o executado recorrido, que avalizou as mesmas.
Concluímos, por conseguinte, que a apreciação da sobredita questão inexequibilidade dos títulos dados à execução, por falta de verificação dos respetivos pressupostos formais, não poderia ter merecido a solução que lhe foi dada pela decisão recorrida a qual, por isso, deve ser revogada.
Tal revogação importará, sem mais, a improcedência dos embargos de executado instaurados pelo recorrido avalista pois que este apenas fundamentou a sua oposição à execução na pretensa inexequibilidade dos títulos executivos decorrente da autoridade de caso julgado da decisão proferida nos anteriores autos de execução n.º 4643/20.....
Assim, soçobrando esse (único) fundamento de recurso, terão os embargos deduzidos pelo recorrido AA de improceder.
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A mesma conclusão não se extrai, de imediato, relativamente aos embargos de executado instaurados pela recorrida «A..., SA» (originalmente correspondentes ao apenso B), já que esta opôs à execução outros fundamentos para além daquele que partilhava com o co-executado avalista, designadamente aquele que designa de inexigibilidade da obrigação exequenda como consequência da homologação judicial do acordo de extrajudicial de revitalização da executada recorrida «A...» e da vinculação da ora recorrente aos respetivos termos.
A apreciação desse fundamento não chegou a ocorrer na primeira instância, certamente pela circunstância da Mmª Juiz a quo ter considerado que a mesma se tornou desnecessária, em face da decisão que que julgou inverificados os pressupostos de exequibilidade das livranças apresentadas à execução.
Sucede que a regra no nosso Código de Processo Civil em matéria de recursos é o da substituição (e não o da cassação), determinando a lei (art.º 665º nº 2 do Código de Processo Civil) que “Se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários”.
No caso, entendemos que este tribunal dispõe de todos os elementos necessários para apreciar o mencionado fundamento dos embargos de executado instaurados pela executada «A...», razão pela qual, oportunamente, se ordenou a observação do disposto no n.º 2 do mencionado art.º 665º do Código de Processo Civil.
Vejamos, então.
Com relevância para apreciação de tal fundamento de oposição, está demonstrado que a recorrida instaurou nos Juízos de Comércio de Viseu, da Comarca de Viseu, Procedimento Especial de Revitalização (PER), pedindo a homologação de acordo extrajudicial de recuperação, nos termos do artigo 17º-I do CIRE.
Tal acordo, do qual não fez parte a ora exequente (mas cujo crédito foi reconhecido, pelo valor reclamado na execução, na lista definitiva de créditos apresentada pelo administrador judicial provisório nomeado), foi homologado por sentença de 26 de março de 2021, tendo transitado em julgado a 15 de abril de 2021.
Nos termos da sua cláusula sétima, sob a epígrafe «Créditos de instituições financeiras» com garantias pessoais prestadas por terceiros fiadores ou avalistas, esse acordo previa, além do mais, o seguinte: 1. Pagamento integral de capital; capitalização de juros remuneratórios vencidos e dos juros moratórios eventualmente ocorridos, sendo estes calculados à taxa de juro contratada para os juros remuneratórios); 2. A capitalização será reportada à data do trânsito em julgado da Sentença Homologatória do ERA; 3. Dispensa do pagamento de quaisquer eventuais penalidades ou cláusulas análogas e demais comissões e despesas contratualmente previstas decorrentes de mora, de incumprimento, e/ou de vencimento antecipado de crédito. 4. Manutenção das garantias existentes. 5. A amortização da dívida processar-se-á no prazo de 10 (dez) anos, após o período inicial de carência de capital de 12 (doze) meses, de forma progressiva e crescente (…);
É sabido que, uma vez iniciado o processo [PER] e recebido o mesmo no Tribunal, o juiz nomeia, através de despacho, o administrador judicial provisório (artigo 17.º-C, n.º 4, do CIRE), sendo que esta decisão obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja homologado e aprovado o plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação (cf. artigo 17.º-E, n.º1, do CIRE, ex vi do n.º 5 do art.º 17º-I do CIRE).
Daqui decorre que, depois de nomeado administrador judicial no PER, não poderão ser instauradas ações executivas e as já iniciadas suspendem-se e são extintas logo que aprovado plano de recuperação, por decisão transitada em julgado, desde que não preveja no plano de recuperação a continuação da ação.
É inequívoco que a presente ação executiva se inclui naquele conceito de “ação para cobrança de dívidas”, pelo que se impõe determinar se, por força do referido comando legal, poderia a mesma ter sido instaurada pela recorrente após a ter sido aprovado e homologado o mencionado acordo extrajudicial de recuperação.
Como é bom de ver, a questão coloca-se tão só quanto à executada recorrida «A...» e não quanto aos co-executados avalistas. É que, sendo a obrigação do avalista uma obrigação autónoma, independente da relação subjacente entre o portador imediato e o subscritor, então não podem, consequentemente, os avalistas desobrigarem-se com base em exceções fundadas na relação subjacente, maxime vedado lhes está oporem ao credor, por ex., a alteração de prazo de pagamento do crédito avalizado em face de medida aprovada em sede de plano de recuperação[6].
Devemos também atender ao disposto no artigo 17.º-F, n.º 10, do CIRE (ex vi do n.º 5 do art.º 17º-I do mesmo Código), nos termos do qual, “A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C…” e é certo que, nos termos do artigo 197.º, al. c) – aqui aplicável por força do disposto no artigo 17.º-F, n.º 7 –, “Na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência…O cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes”.
Significará isso, portanto, que, estando em causa um crédito que já se havia constituído em momento anterior, a recorrente, ainda que não tenha reclamado o seu crédito e não tenha participado nas negociações, ficará também vinculada ao plano e às condições de pagamento que nele se encontram previstas, as quais, como vimos, abrangem o crédito que agora novamente vem reclamar através da instauração da execução contra a subscritora da livrança.
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21.01.2016[7]“a razão de ser da proibição da instauração e da suspensão das acções que, caso o plano seja aprovado e homologado, importará a extinção das acções suspensas, a não ser que o plano preveja expressamente a sua continuação, é conceder um período “de paz” ao devedor para estabelecer as condições de recuperação com os seus credores, sendo que, aprovado e homologado o plano, as dívidas ter-se-ão modificado, por força de eventuais perdões parciais de capital e/ou juros, estabelecimento de períodos de carência, pelo que a sua continuação deixará de fazer sentido”.
Esta proibição de instaurar nova ação executiva contra o devedor não significa, no entanto, que a exequente fique impedida de obter a satisfação do seu crédito, pois mantém o título executivo caso a executada não lhe satisfaça voluntariamente o crédito exequendo nos termos e condições que foram aprovados no plano de recuperação.
Com efeito, existindo incumprimento do plano de revitalização aplica-se subsidiariamente o regime do incumprimento respeitante ao plano de insolvência previsto no art. 218º do CIRE, por força do disposto no n.º 12 do art. 17.º-F do CIRE. Donde, se o plano de recuperação prever alguma moratória ou perdão, estes ficam sem efeito, salvo disposição expressa do plano em sentido diverso, quanto aos créditos relativamente aos quais o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor.
Ficarão igualmente sem efeito os créditos modificados que não sejam suscetíveis de recondução à moratória e ao perdão. Mas para isso já será necessário que os credores adotem um comportamento ativo e exerçam o seu direito de resolução nos termos dos art.ºs 432º e segs. do Código Civil[8]
Uma parte da jurisprudência entende que, em caso de incumprimento, o credor cujo crédito foi abrangido por aquele acordo dispõe sempre de título executivo caso o revitalizado/executado não lhe satisfaça voluntariamente o crédito nos termos e condições que foram aprovados no plano de recuperação, sendo ele a sentença homologatória do plano de recuperação e plano de pagamentos[9].
Outros defendem que a homologação, por sentença, do plano de recuperação não retira a qualidade de título executivo a documento atinente a crédito considerado nesse plano, pois que, em caso de incumprimento do plano/acordo de revitalização, os créditos por ele abrangidos podem recuperar a sua situação originária. De facto, só o cumprimento do plano exonera o devedor da totalidade das dívidas remanescentes. Assim, para proceder à execução, o título executivo a apresentar será o correspondente a tais créditos originais e não a sentença homologatória do plano de recuperação conjugada com a lista de créditos reconhecidos no PER e/ou com interpelação prevista no art.º 218º do CIRE, pois aquele acordo mostra-se extinto e aquela lista, ainda que definitiva, não importa um verdadeiro reconhecimento dos créditos[10]
Em qualquer dos casos, recairá sobre o exequente a alegação (e prova) do incumprimento do plano de pagamentos e das demais condições que lhe permitem voltar a exigir aquele seu crédito[11], sem a qual não pode lançar mão do título dado à execução para obter coercivamente contra os embargantes a satisfação de um crédito que está reestruturado num plano de recuperação.
No caso, a recorrente nada alegou a esse respeito no requerimento executivo.
E, diga-se, que, na contestação à petição de embargos de executado, nem sequer impugnou a alegação da recorrida/embargante, de acordo com a qual o plano de pagamentos do crédito que lhe foi reconhecido no aludido acordo extrajudicial de revitalização homologado pela sentença de 26 de março de 2021 está a ser pontualmente cumprido.
Nestes termos, é de concluir pela inexigibilidade do crédito exequendo no que diz respeito à recorrida/embargante «A...», pelo que procede este fundamento da apelação.
Tal determina a procedência dos embargos instaurados por esta executada, com a consequente extinção da execução na parte referente à recorrida «A..., SA.»
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Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):
(…).
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VI. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência,
- revogar a sentença recorrida na parte referente aos embargos de executado instaurados pelo recorrido AA (apenso A), julgando tais embargos totalmente improcedentes;
- manter a decisão de deferimento dos embargos instaurados pela executada «A..., SA»(apenso B), ainda que por fundamentação diversa da constante da sentença recorrida.
Custas pela recorrente, na parte referente aos embargos instaurados pela embargante A... (apenso B) e pelo recorrido AA, na parte referente aos embargos por ele instaurados (apenso A).
Coimbra, 8 de abril de 2025
Assinado eletronicamente por: Hugo Meireles Luís Miguel Carvalho Ricardo Cristina Neves
(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam)
[1] Direito Processual Civil, parte VI, Acção Executiva, pag. 340. [2] A Ação Executiva, 2023, AAFDL, Reimpressão, pags. 432 e segs. [3] Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2º Edição, pag. 93 [4] Processo n.º 1704/21.0T8GRD.C1.S1, (Relator Barateiro Martins), in www.dgsi. [5] Neste sentido, cf. o Acórdão do STJ de 2.07.2024, processo n.º 257/17.8T8MNC-F.G1.S1 (Relator Jorge Arcanjo), in www.dgsi.pt. [6] Vide Oliveira Ascensão, em D. Comercial, Vol. III, Títulos de Crédito, AAFDL, 1992, págs. 169/175. [7] Proc. 1963/14.4TBCL.1.G1 (Relatora Helena Melo), in www.dgsi.pt [8] Neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência 2018, Almedina, p. 483. [9] Neste sentido, confrontar o Ac. do TRP de 13-01-2020, processo 7725/15.4T8MAI.P1 (Relator Pedro Damião da Cunha), in www.dgsi.pt. [10] Neste sentido, cf. Ac. do STJ de 21/04/2022, processo n.º 4286/20.6T8ALM-D.L1.S1, in www.dgsi.pt. [11] Com referência aos efeitos do incumprimento do plano de recuperação enunciados no artigo 218.º, n.º 1, al. a) “ex vi” do artigo 17º-F, n.º 13, ambos do CIRE –a cessação dos efeitos da moratória ou do perdão cf. o Ac. do STJ de 14/01/2025 [processo n.º , Relatora Clara Sottomayor, in www.dgsi.pt].