SEGUNDA PERÍCIA
DECISÃO DE ADMISSÃO OU REJEIÇÃO
MODO DE RECORRIBILIDADE
APELAÇÃO AUTÓNOMA
Sumário

O despacho que admite ou rejeita a segunda perícia corresponde a despacho que admite ou rejeita meio de prova; nessa medida, tal despacho insere-se no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC e é, por isso, susceptível de recurso (autónomo).
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

(Reclamação – art.º 643º do CPC)
Relatora: Maria Catarina Gonçalves
1.º Adjunto: Chandra Gracias
2.º Adjunto: Maria João Areias


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No âmbito da acção instaurada por A..., Lda (melhor identificada nos autos) contra B... S.A., C..., Lda e D... - Companhia de Seguros, S.A. (melhor identificadas nos autos) e após realização de uma perícia (oportunamente requerida e deferida), veio a Autora requerer a realização de segunda perícia que foi indeferida por despacho de 13/06/2024.

A Autora interpôs recurso desse despacho, invocando o disposto no art.º 644º, nº 2, d) e h) do CPC.

Tal recurso não foi admitido – conforme despacho de 03/10/2024 – por se ter considerado que o despacho não havia rejeitado qualquer meio de prova e por não estar em causa uma decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final se tornasse absolutamente inútil.

A Autora veio reclamar nos termos do art.º 643.º do CPC, reclamação que veio a ser atendida – com a consequente admissão do recurso – por decisão da Relatora de 17/02/2025 que foi fundamentada nos termos que a seguir se reproduzem:

Sendo evidente que não ocorre nenhuma das outras situações previstas na lei, coloca-se na presente reclamação a questão de saber se o despacho sobre o qual incidiu o recurso (cuja admissibilidade está aqui em causa) se insere (ou não) no âmbito de previsão da alínea d) ou h) do n.º 2 do art.º 644.º do CPC, o que, no caso, equivale a saber se o despacho em questão pode (ou não) ser configurado como um despacho que tenha rejeitado um meio de prova ou como decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final se tornasse absolutamente inútil.

Adiantando a resposta e ainda que a questão seja controvertida na jurisprudência, entendo que o despacho em causa – que indefere a realização de segunda perícia – corresponde a despacho que rejeita meio de prova, sendo, por isso, susceptível de recurso ao abrigo da citada disposição legal.

Na verdade, ao contrário do que se considerou na decisão reclamada, a segunda perícia não pode ser vista como mero incidente ou vicissitude no contexto da prova pericial previamente admitida e realizada, mas sim como um novo e diferente meio de prova que, não obstante a sua ligação à 1.ª perícia (na medida em que pressupõe a prévia realização desta e tem como objectivo a correcção da eventual inexactidão dos seus resultados), tem total autonomia como meio probatório, possuindo total aptidão para, só por si ou em conjunto com outros elementos probatórios, poder vir a fundar a convicção do tribunal. Ainda que a segunda perícia tenha por objecto os mesmos factos sobre as quais incidiu a primeira (cfr. art.º 487.º, n.º 3, do CPC), ela pode conduzir a resultados/conclusões coincidentes ou divergentes dos resultados da primeira e, nessa medida, cada uma delas tem que ser valorada pelo julgador de forma autónoma no juízo que lhe cabe fazer, de acordo com a livre apreciação a que cada uma delas fica submetida (cfr. art.º 489.º), com vista à decisão a proferir. E tanto basta, a meu ver, para que possam e devam ser consideradas como meios probatórios autónomos.

Para os efeitos previstos na alínea d) do n.º 2 do citado art.º 644.º, os meios de prova aí mencionados não podem ser vistos em abstracto ou “em bloco” de acordo com a categoria da prova em questão (prova testemunhal, prova documental ou prova pericial), mas sim em concreto (cfr. Rui Pinto in, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. LXI (2020) 2, pág. 640). Ou seja, o despacho que admite/rejeita meio de prova para os efeitos ali previstos não é apenas o despacho que admite/rejeita em bloco a produção de prova testemunhal, documental ou pericial, mas também o despacho que admite/rejeita a admissão de determinada testemunha, ou o despacho que admite/rejeita a admissão de determinado documento, na medida em que, não obstante possam incidir sobre os mesmos factos, cada uma das testemunhas ou cada um dos documentos corresponde a concreto meio de prova com total autonomia. E, nos mesmos termos em que o depoimento de cada uma das testemunhas corresponde a meio de prova autónomo e independente que, como tal, deve ser valorado pelo julgador (ainda que todos os depoimentos se insiram no âmbito da prova testemunhal) e nos mesmos termos em cada um dos documentos corresponde a meio de prova autónomo e independente (ainda que todos os documentos apresentados se incluam no âmbito da prova documental), também a primeira e a segunda perícia correspondem a meios de prova autónomos (não obstante se insiram ambas no âmbito da prova pericial), na medida em que também estas – à semelhança do que acontece com os outros meios de prova – podem conduzir a resultados coincidentes ou diferentes, podendo e devendo ser objecto de valoração autónoma pelo julgador no processo de formação da sua convicção.

Aquilo que pode ser visto como incidente no contexto da prova pericial são as questões ou vicissitudes que sejam suscitadas ou venham a ocorrer durante a fase de realização da perícia, apresentação do relatório, reclamações contra o relatório e eventuais esclarecimentos solicitados aos peritos e que por estes venham ser prestados (cfr. artigos 478.º a 486.º) e que, não visando alcançar novos e diferentes resultados/conclusões que sejam susceptíveis de valoração autónoma, apenas têm com objectivo a concretização/realização da diligência ou a consolidação ou esclarecimento dos seus resultados. Não é esse, no entanto, o objectivo da 2.ª perícia que, como se referiu, pretende alcançar novos resultados/conclusões sobre a mesma matéria que podem ser coincidentes ou diferentes daqueles a que chegou a 1.ª perícia, mantendo as duas perícias total autonomia enquanto meios de prova que subsistem “lado a lado” e ficam sujeitos à livre apreciação do tribunal (cfr. art.º 489.º). A 2.ª perícia corresponde, portanto – como dizem José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, pág. 554 – a um novo elemento de prova que pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial.

O recurso é, portanto, admissível”.

Notificada dessa decisão, veio a Ré D... - Companhia de Seguros, S.A. reclamar para a Conferência, requerendo – ao abrigo do disposto nos arts. 643.º, n.º 4 e e 652.º, n.º 3, do CPC – que sobre a matéria da decisão recaia um acórdão que julgue procedente a sua pretensão e que, em conformidade, rejeite, por legalmente inadmissível, o recurso do despacho de indeferimento do pedido de segunda perícia.

Fundamenta essa pretensão nos termos das conclusões que apresentou e que têm o seguinte teor:

(…).

As restantes partes nada disseram.

Submetida a questão à apreciação da conferência, considerou-se ser de manter, na íntegra, a decisão da Relatora, nada mais se impondo acrescentar à fundamentação dessa decisão, tendo em conta que a decisão indicou, de forma clara, as razões pelas quais se conclui pela admissibilidade legal do recurso e a Reclamante não invoca nenhum argumento novo que não tivesse sido apreciado e que merecesse nova e autónoma avaliação.

Sabemos – é certo – que, como diz a Apelante, está em causa uma questão em relação à qual não existe consenso na jurisprudência, designadamente ao nível desta Relação (no sentido de que o recurso é admissível foi proferido, por unanimidade, o Acórdão de 11/03/2025 referente ao processo n.º 932/23.8T8LRA-A.C1; em sentido contrário, foi proferido, por maioria, o Acórdão de 09/01/2024 referente ao processo n.º 58/19.9T8GRD-A.C1 e, por unanimidade, o Acórdão de 13/12/2023 referente ao processo n.º 3181/19.6T8LRA-A.C1[1]).

Sendo – como, de facto, tem sido – uma questão controvertida, a nossa posição sobre a matéria é aquela que ficou vertida no despacho da Relatora, ou seja, entendemos, pelas razões ali mencionadas, que o despacho em causa é susceptível de recurso.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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DECISÂO

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, decide-se indeferir a reclamação e manter o despacho da Relatora que admitiu o recurso interposto e determinou requisição, ao tribunal recorrido, do apenso que deverá ser formado com vista à subida do recurso em separado.

Custas pela Reclamante.

Notifique.

                              Coimbra, 2025/04/08


(Maria Catarina Gonçalves)

(Maria João Areias)

(Chandra Gracias – vencida, conforme Decisão Sumária proferida no Proc. n.º 3708/22.6T8VIS-B.C1, de 14 de Outubro de 2024).



[1] Todos disponíveis em https://www.dgsi.pt.