EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
VALORES A CEDER AO FIDUCIÁRIO
PERIODICIDADE MENSAL
VARIABILIDADE TEMPORAL DOS RENDIMENTOS
ACERTO FINAL DOS VALORES
Sumário

I – Resulta do art. 239.º do CIRE que, mesmo nas situações de variabilidade dos rendimentos ao longo do ano, o valor a ceder pelo devedor dever ser aferido numa base mensal.
II – A circunstância de, quer a informação do fiduciário (art. 240.º, n.º 2, parte final do CIRE), quer a notificação da cessão aos credores (art. 241.º do CIRE), revestirem a periodicidade anual não significa que a obrigação do devedor de entregar o objeto de cessão tenha em conta o seu rendimento anual, apresentando-se aquelas apenas como um meio para que os credores e o tribunal conheçam, ainda que sucintamente, os rendimentos comunicados, os valores entregues pelo devedor e em que termos foram afetados.
III – Ainda assim, em determinados casos, quando o apuramento da quantia a ceder pelo insolvente ao fiduciário se apresente como uma operação complexa, em que alguns dos elementos do cálculo só se conseguem obter no final do ano, pode justificar-se um acerto final dos valores.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral



Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

Por sentença de 08.01.2023 (ref. 92121038) foi decretada a insolvência de AA, com residência na Travessa ... ... ....

Por decisão de 26.04.2023 (ref. 92908982) o tribunal admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela devedora, determinando que:

- Durante os três anos posteriores ao encerramento do processo (art. 235º do CIRE) o rendimento disponível da Devedora seja entregue a um fiduciário, com exclusão do elencado no nº 3 do art. 239º do CIRE.

- No mesmo período a Devedora ficará adstrita ao cumprimento das obrigações elencadas no nº 4 do art. 239º do C.P.C.”.

Mais se decidiu “Considerando todos os factos já considerados provados, e sopesando o interesse dos credores e a necessidade de assegurar que a Devedora mantenha um mínimo de rendimento capaz de proporcionar uma vida digna, e dando especial ênfase às despesas necessárias ao sustento da sua filha menor, fixo em 1 s.m.n. e ½ , o montante necessário para garantir o sustento da Devedora para os efeitos do disposto no ponto i) da al. b) do nº3 do art. 239º do CIRE”.

                                                                  *

Em 21.06.2024 a fiduciária BB apresentou requerimento (ref. 6642527) onde, com os fundamentos que então aduziu, solicitou ao tribunal que esclarecesse se, para elaborar o relatório anual “deverá apenas ter em conta o resultado líquido ou como acontece nos trabalhadores independentes sem contabilidade organizado, ser considerado 70% dos proveitos e 30% serem consideradas despesas”.

Na sequência, a 25.06.2024 (ref. 95750381), foi proferido o seguinte despacho

A obrigação central dos Devedores (central porque produz efeitos na esfera jurídico-patrimonial dos credores) é a prevista na al. c) do nº 4 do art. 239º do CIRE: “Durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a: … c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.” Os rendimentos objecto de cessão são todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos elencados nas duas alíneas do nº3 do art. 239º do CIRE. A exclusão relativa ao rendimento necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar (art. 239º, nº3, al. b), ponto i) é fixada em salário mínimos nacionais (Rendimento Mínimo Nacional Garantido) que tem uma periodicidade mensal. Este valor é referencial pois nem todo o rendimento obtido pelo Devedor é proveniente da retribuição do trabalho prestado por conta de outrem, pese embora ser esta a forma mais comum da obtenção de rendimentos. Saliente-se uma vez mais que o nº3 do art. 239º do CIRE prevê que “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao Devedor …” Assim, o Rendimento Mínimo Nacional garantido a que alude o artigo referido só releva quanto ao montante, sendo indiferente a configuração concreta do direito de crédito que proporciona a obtenção do rendimento. Logo, é também indiferente saber se o rendimento é obtido por via de uma relação laboral ou por outra via, e se no primeiro caso o Devedor tem outros direitos laborais com conteúdo patrimonial (subsídios de férias, de natal, ajudas de custo, etc.)

Estas normas apenas autorizam a interpretação de que o rendimento disponível é aferido numa base mensal.

Daí que o facto de o cumprimento desta obrigação ser apreciado no relatório do fiduciário que reveste uma periodicidade anual (art. 240º, nº2 parte final), não significa que a obrigação do Devedor de entregar o rendimento objecto de cessão tenha em conta o seu rendimento anual. A análise da declaração de impostos sobre o rendimento obtido anualmente é, por isso, apenas um meio de aferir se o Devedor incumpriu o dever de entregar o rendimento disponível. Já não garante, porém, que o Devedor tenha cumprido esta obrigação quando esse rendimento declarado seja inferior a 12 vezes o montante fixado para os efeitos do disposto no ponto i) da al. b) do nº3 do art. 239º do CIRE. E, como vimos acima, uma vez que o rendimento a considerar não é o anual, não tem interesse saber se este é divisível por 12 ou por 14. 

O que poderá acontecer, em determinadas circunstâncias, é que o juiz exclua do rendimento disponível, ao abrigo do disposto no ponto iii do nº3 do art. 239º despesas que ocorram em determinados períodos do ano (férias ou Natal), coincidentes com os subsídios que as entidades patronais pagam aos trabalhadores nesses períodos e por essas razões. Todavia, isso terá que ser alegado e justificado pelo próprio Devedor.

No nosso caso, apenas resulta da decisão proferida que foi fixado em 1 s.m.n. e meio, o montante necessário para garantir o sustento da Devedora AA para os efeitos do disposto no ponto i) da al. b) do nº3 do art. 239º do CIRE, não existindo outras exclusões.

A obrigação de entregar o rendimento objecto de cessão é mensal, ou seja, deve ser aferida pelo rendimento obtido pela Devedora em cada mês.

A Devedora tem a obrigação de informar (se possível, documentalmente) a Sra. Fiduciária dos rendimentos que obteve em cada um dos meses deste 1º ano do período de cessão. Caso não tenha fornecido a informação nestes termos, a Sra. Fiduciária solicitá-la-á à Devedora.

Será com base nesta informação que a Sra. Fiduciária elaborará o relatório anual”.

                                                                       *                                             
A insolvente interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:
(…).
                   *                                 

Não foi oferecida resposta.
*

Dispensados os vistos, foi realizada conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*

II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, a única questão a apreciar e decidir é a de saber se o apuramento do rendimento objeto da cessão deve ser feito pela média anual dos rendimentos da insolvente, e não, como decidido, pelo rendimento obtido em cada mês.
                                                                  *

III-Fundamentação

O instituto da exoneração do passivo restante constitui uma medida especial de proteção do devedor, concedendo-lhe a possibilidade de retomar a sua atividade liberto das consequências da anterior insolvência.

A obtenção de tal benefício conduz a que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (designado período de cessão) adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.

Durante esse período ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores, integrando o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos previstos nas als. a) e b) do n.º 3, do artigo 239.º do CIRE, impondo simultaneamente o n.º 4 deste mesmo artigo ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, tendo em vista assegurar a efetiva prossecução dos fins a que é dirigida.

A questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se a quantificação do rendimento a ceder (disponível) deve necessariamente ter como referência o valor apurado em cada um dos meses, ou se essa quantificação pode/deve, nas situações em que ocorra uma significativa variabilidade do rendimento ao longo do ano, ter como referência o valor global dos rendimentos (anual).

Posta a questão através de um exemplo: no pressuposto de que o sustento mínimo do devedor e do seu agregado familiar tenha sido fixado em 1,5 do salário mínimo nacional, o devedor que durante os 3 primeiros meses do ano de 2025[2] aufira o rendimento mensal de € 1.000 e nos restantes de € 2.400,

- não apresenta rendimento disponível a ceder durante os aludidos primeiros 3 meses do ano (considerado a necessidade de se salvaguardar o sustento minimamente digno do devedor – art. 239.º, n.º 3, b) i) e, nos demais, dever ter que entregar mensalmente € 1095 (€ 2400-1305) o que corresponde ao valor global anual de rendimento disponível de € 9.855 (1095x9)[3]

ou

- independentemente dos meses a que se reporta o rendimento, deve entregar o quantitativo mensal de € 745 [(2400x9)+(1000x3)- (1305x12):12], ou seja, o valor global anual de rendimento disponível de € 8940 (745x12)[4].

De acordo com a decisão recorrida, o art. 239.º, n.º 3 do CIRE apenas autoriza a interpretação de que o rendimento disponível é aferido numa base mensal.

E é esse também o nosso entendimento.

Na verdade, o preceito em apreço, em conjugação com a impressividade de entrega imediata a que se reporta o art. 239.º, n.º 4, alínea c) do CIRE, incorpora já, para efeitos de qualificação do rendimento disponível, quer o conjunto dos rendimentos auferidos, quer a sua eventual variabilidade ao longo do ano.

A seguir-se a tese do recurso, nas situações de variabilidade dos rendimentos ao longo do ano, haveria como que uma “conta-corrente”, com a entrega mensal de valores ao fiduciário, mas em que o apuramento final do rendimento disponível só poderia vir a ter lugar no final, quando aferidos os resultados anuais.

Ora, essa lógica foi expressamente afastada nos preceitos em apreço, ao determinar a entrega imediata da parte do conjunto dos rendimentos objeto de cessão, não sobrando dúvidas ter o legislador eleito para esse efeito o critério do apuro mensal, no qual, de resto, se estabelece a exclusão do sustento minimamente digno do devedor.

A circunstância de, quer a informação do fiduciário (art. 240.º, n.º 2, parte final do CIRE), quer a notificação da cessão aos credores (art. 241.º do CIRE), revestirem a periodicidade anual não significa que a obrigação do devedor de entregar o rendimento objeto de cessão tenha em conta o seu rendimento anual, apresentando-se aquelas apenas como um meio para que os credores e o tribunal conheçam, ainda que sucintamente, os rendimentos comunicados, os valores entregues pelo devedor e em que termos foram afetados.

E não se diga, como se defende em sede de recurso, que, à semelhança do decidido, entre outros, nos acórdãos citados no recurso, como também, v.g., no do TRL, de 22.09.2020 (processo n.º 6074/13.7TBVFX.L1-1), só através do apuramento dos rendimentos objeto de cessão por referência aos rendimentos anualmente auferidos é possível garantir aos devedores disporem, em cada mês de cada ano do período de cessão e por recurso aos rendimentos que ao longo do ano vão auferindo, de rendimentos de montante não inferior, ao rendimento mensal indisponível fixado.

Isto porque, desde logo, a recorrente/exonerada não demonstrou, nem resulta inequívoco dos autos, estarmos confrontados com esse risco; ou seja, que, em concreto, a aplicação do critério legalmente fixado (o da entrega imediata da parte do rendimento disponível), implique o perigo de, em determinados meses, auferir rendimento inferior ao do fixado como necessário ao sustento minimamente digno, risco que só poderia ser neutralizado, concedendo-lhe a pretensão de, em determinados meses, conservar em seu poder capital para utilizar noutros em que o rendimento não alcance o valor indisponível.

Ou seja, o que parece pretendido em sede de recurso, é a obtenção de uma determinada interpretação abstrata das normas em apreço e de procedimentos específicos, sem que seja visível que se mostrem necessários à concreta proteção e salvaguarda dos seus interesses, ou que, nessa exata medida, a decisão lhe seja desfavorável.

Depois porque a proteção e garantia da manutenção do valor fixado a título de sustento minimamente digno foi estabelecido pelo legislador, como já acima referido, com base numa referenciação ao intervalo mensal e de vinculação à entrega imediata ao fiduciário de todo e qualquer valor recebido que integre o rendimento disponível.

Inexiste, por isso, fundamento para alterar o decidido.

                                                                    *

Sumário[5]

(…)

                             

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto, e consequentemente, conformar a decisão recorrida.

                                                                      *

Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido (arts. 51.º, n.º 1, a) do CIRE e 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

                                                                     *

Coimbra, 8 de abril de 2025


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(Paulo Correia)

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(Maria João Areias)

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(Chandra Gracias)



[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Maria João Areias e Chandra Gracias
[2] - Em que o salário mínimo nacional corresponde a € 870
[3] - Decisão da primeira instância, na linha, ao demais, do Ac. do TRP de 12.01.2023, proferido no processo 800/20.0T8AMT-C.P1, onde se sumariou “I - O rendimento excluído da cessão ao fiduciário, para efeitos de exoneração do passivo restante, fixado em «um salário mínimo nacional x 12 meses» calcula-se mensalmente, em função do rendimento global do insolvente que se vence nesse mês”.
[4] - Posição pugnada em sede de recurso pela insolvente.
[5] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).