PROVIDÊNCIA CAUTELAR ANTECIPATÓRIA
IRREVERSIBILIDADE DOS EFEITOS
PRESSUPOSTOS
ABSOLUTA NECESSIDADE
FUNDADO RECEIO
INÉRCIA POR CERCA DE DOIS ANOS
Sumário

I – Não obstante o carácter instrumental e dependente do procedimento cautelar em relação à acção principal e a natureza provisória das providências nele decretadas, a eventual irreversibilidade dos efeitos de uma determinada providência cautelar antecipatória e a antecipação da realização do direito que ela potencia não conduz, inevitavelmente, à sua rejeição.
II – Estando verificados os respectivos pressupostos legais e estando o direito do requerente carecido de protecção imediata que apenas pode ser assegurada através de uma providência desse tipo, a providência de natureza antecipatória em relação à qual se antecipe um risco sério de irreversibilidade dos seus efeitos pode – e deve – ser decretada se ela se evidenciar como absolutamente necessária para assegurar a tutela devida ao direito do requerente que está ameaçado e se, após ponderação dos interesses em confronto à luz do disposto no art.º 368.º, n.º 2, do CPC (a urgência da tutela pretendida, o dano que com ela se pretende evitar e o prejuízo que a providência e a irreversibilidade dos seus efeitos pode provocar na esfera jurídica do requerido), ela se evidenciar como justa e proporcionada.
III – Se a situação invocada pelos requerentes para fundamentar a providência cautelar que vêm solicitar se mantinha há quase dois anos sem que, durante esse período, tivessem instaurado qualquer acção ou procedimento e sem que tivessem invocado qualquer facto novo que tivesse alterado aquela situação, não pode ter-se como demonstrado o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora) que justifique (agora) a necessidade urgente de tutela através de uma medida cautelar; se essa necessidade e urgência não existiu durante quase dois anos, é certo que, mantendo-se a situação inalterada, continua a não existir.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

Por apenso aos autos de insolvência de A..., Ld.ª – cuja insolvência foi declarada por sentença de 13/12/2022 – vieram AA e esposa BB, residentes na Rua... – ... ... – ..., instaurar procedimento cautelar comum contra a Massa Insolvente de A..., Ldª e contra os credores da Massa, pedindo que se decrete a imediata remoção de todos os móveis e embarcações apreendidos a favor da Massa Insolvente que se mostram a ocupar os prédios dos Requerentes (identificados na petição), fixando-se um prazo não superior a 30 dias para que a Massa Insolvente proceda à remoção daqueles bens, quer do interior dos barracões, quer dos logradouros ou espaço exterior ao mesmo prédio urbano dos Requerentes, fixando-se ainda a sanção pecuniária compulsória de, pelo menos, 50 €/dia por cada dia de atraso na remoção dos bens.

Alegam, para fundamentar a sua pretensão: que são proprietários dos prédios que identificam (um urbano e um rústico) que a Insolvente utilizou para o exercício da sua actividade no âmbito de um contrato de arrendamento celebrado em 01/04/2019 em relação ao prédio urbano, tendo ali depositado diversos barcos (alguns de grande porte) e equipamentos; que, apesar de a Insolvente ter feito cessar esse contrato de arrendamento com efeitos a partir de 01/03/2022 e apesar de terem sido apreendidos para a Massa em 12/01/2023, aqueles bens ainda ali continuam, apesar de já terem solicitado à Sr.ª Administradora de Insolvência a respectiva remoção; que, por essa razão, estão impedidos de rentabilizar os imóveis, procedendo ao respectivo arrendamento ou à sua venda, tendo sofrido até à data e continuando a sofrer um prejuízo mensal correspondente a pelo menos 700,00€.

A Massa Insolvente veio deduzir oposição, aceitando, no essencial, o direito dos Requerentes e o prejuízo que a situação que lhes está a causar, alegando, contudo, que o prejuízo emergente da providência para a Massa Insolvente excede consideravelmente o dano que com ela se pretende evitar, uma vez que a Massa Insolvente não dispõe de espaço alternativo para depositar os referidos bens e qualquer espaço que encontrasse seria sempre por valor que a Massa não poderia suportar pondo em causa os interesses dos credores, quando é certo que os Requerentes poderão ser indemnizados do seu prejuízo, bastando, para o efeito, que deduzam o pedido de pagamento da valor da compensação devida pela ocupação que corresponderá a uma despesa da Massa.

Conclui pedindo a improcedência do procedimento.

Na sequência, foi proferida decisão que indeferiu o procedimento cautelar.

Inconformados com essa decisão, os Requerentes vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

 1ª – Os factos alegados no requerimento inicial devem considerar-se provados, pois os Requeridos não os impugnaram na sua oposição, factualidade essa que, de resto, por provada, levou o tribunal a quo a entender suficiente, não passando à fase da prova (audiência) como lhe permite o artigo 367º, nº1 do CPC.

2ª – Desta factualidade (alegação dos factos e documentos não impugnados) resulta que os Requerentes são donos e legítimos possuidores dos imóveis identificados no artigo 1º do requerimento inicial (imóveis destinados, como têm sido, a arrendamento comercial – actividade industrial e armazenamento).

3ª – Está provada também a perturbação dos Requerentes no exercício do seu direito de propriedade e posse, até por confissão da Requerida opoente.

4ª – Está provada não só a ocupação dos imóveis dos Requerentes, como anunciada a sua continuação pela Requerida (como refere em 9º da oposição: “aí se encontram ainda hoje (os bens integrantes da massa) e aí se encontrarão enquanto não foram objecto de liquidação e venda”.

5ª – Ocupação essa sem título, com também confessam.

6ª – Ocupação que está a causar prejuízos aos Requerentes, como também confessam (16º da oposição).

7ª – Está, assim, provado:

a) O fumus boni iuris

b) O periculum in mora

8ª – Mostra-se provado que o eventual prejuízo da Requerida é apenas e tão só um benefício, resultante da sua locupletação injusta (sem título), sendo o seu benefício “suportado” pelos Requerentes.

9ª – Mas, de qualquer modo, o prejuízo eventual com a remoção dos móveis (que nem sequer a Requerida quantificou) jamais excederia sequer – e muito menos consideravelmente – o dano que os Requerentes pretendem evitar – excesso que, aliás, a Requerida não provou, alegando os factos pertinentes (como lhe competia).

10ª – A providência antecipatória requerida é adequada (e única, aliás) para remover o periculum in mora e assegurar a efetividade do direito ameaçado.

11ª – As providências cautelares antecipatórias antecipam a realização do direito (ou também antecipam).

12ª – A eventual irreversibilidade dos seus efeitos, provado que seja, como está, o fumus boni iuris, não pode justificar a negação da providência, projectando os efeitos do indeferimento na esfera dos Requerentes.

13ª – Dada a alegação dos factos e a prova documental constantes do requerimento inicial (não impugnados uns e outra), a presente providência cautelar antecipatória deve ser deferida.

14ª - Violados, pois, foram, pela douta decisão em recurso, os artigos: 362º, nº 1 e 2, 368º, nº 1 e 2 e 379º do CPC e 342º, nº 2 do CC.

Termos em que – Venerandos Desembargadores – deve ser revogada a decisão que indeferiu a providência cautelar requerida, sendo substituída por outra que defira a providência, fixando-se a sanção pecuniária compulsória de, pelo menos, 50€/dia por cada dia de atraso na remoção dos bens, tal como peticionado.

Tudo sem prejuízo, Venerandos Desembargadores, do disposto no artigo 376º, nº 3 do CPC.

A Requerida Massa Insolvente respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão (ou não) reunidos os pressupostos necessários para decretar a providência cautelar que vem solicitada, analisando, em particular, a questão de saber se a circunstância de estar em causa uma providência que antecipa os efeitos da acção principal de modo irreversível pode (ou não) justificar, só por si, a sua rejeição.


/////

III.

Antes de mais, importa enunciar os factos com eventual relevância para a decisão (factos que correspondem aos alegados na petição e que, não tendo sido impugnados, estão admitidos por acordo das partes) e que são os seguintes:

1. Os Requerentes são donos e legítimos possuidores dos seguintes imóveis que adquiriram por escritura pública de compra e venda de 9/11/2009, outorgada no cartório Notarial ..., à B..., Ldª:

- “Prédio urbano, sito em ..., freguesia ..., composto de barracão amplo, destinado à indústria e logradouro, inscrito na matriz predial respectiva sob o artº. ...33 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...88/...”;

- “Prédio rústico, sito no lugar ..., freguesia ..., composto de cultura arvense, inscrito na matriz predial respectiva sob o artº. ...6 – secção J, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...69/..., imóvel este que se encontra anexo ao prédio urbano supra identificado e serve para depósito para indústria do mesmo”.

2. Por contrato celebrado em 1/4/2019, a Insolvente tomou de arrendamento o referido prédio urbano para nele exercer a sua actividade (objecto do seu pacto social) de construção e venda de embarcações em materiais compósitos, reparação e manutenção de embarcações e motores, peças e acessórios, material e equipamento náutico, comércio, importação e exportação, bem como outras actividades associadas a náutica e recreio, pela renda mensal de 600 €.

3. Durante o arrendamento, a arrendatária, ora insolvente, utilizou também o anexo (hoje cimentado) que serve de depósito de indústria do urbano (prédio inscrito na matriz sob o artº. ...6 – secção J, supra referido) para nele colocar diversos barcos, alguns de grande porte, com vista à construção e reparação dos mesmos.

4. A Insolvente fez cessar o referido arrendamento com efeitos a partir de 01/03/2022.

5. Na sequência desse facto, os Requerentes celebraram em 01/03/2022 um novo contrato de arrendamento com uma outra sociedade de reparação de embarcações, denominada de C..., Ldª. com o mesmo objecto social da Insolvente e representada pelo mesmo gerente, pela renda mensal de 700 €.

6. À data da celebração do contrato referido no ponto anterior, permaneceram no local equipamentos e embarcações da Insolvente que se encontravam no local, uma vez que a sociedade C... iria continuar a actividade desta (reparação e construção de barcos).

7. Entretanto, na sequência da insolvência declarada nos autos em 13/12/2022, os referidos equipamentos e embarcações foram aqui apreendidos mediante auto de apreensão de 12/01/2023, correspondendo aos constantes das verbas 1 a 34 do referido auto.

8. O arrendamento com a C..., Ldª veio a cessar por caducidade em 29/04/2023 por força da dissolução da referida sociedade, mantendo-se no local (nos prédios dos Requerentes) – onde ainda permanecem – os aludidos bens que haviam sido apreendidos.

9. Após a apreensão, os Requerentes solicitaram à Exma. Administradora Judicial a desocupação dos imóveis nos quais se encontram os bens apreendidos a favor da Massa Insolvente, mas esta não procedeu a tal desocupação, informando – por carta de 30/03/2023 – que não conseguia desocupar o imóvel porque os bens careciam de ser alienados, além que também haviam sido instaurados pedidos de separação de bens que aguardavam decisão judicial.

10. Por força desse facto, os Requerentes estão impedidos de proceder à rentabilização dos imóveis, mediante o respectivo arrendamento ou venda.


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IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

A decisão recorrida recusou a providência solicitada por ter considerado que ela esgotaria por completo o objecto da acção principal, constituindo uma verdadeira antecipação dos seus efeitos, de modo irreversível e em termos que tornavam dispensável a propositura da acção, afrontando, dessa forma, a natureza instrumental das providências cautelares. Considerou-se que as providências cautelares não constituem um fim em si mesmas, mas antes um meio para se acautelar um determinado efeito jurídico e que, nessa medida, a providência cautelar, ainda que antecipatória, tem de ser sempre instrumental e dependente de uma ação principal, pois os procedimentos cautelares (conservatórios ou antecipatórios) serão sempre e apenas uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal, mas não a sua substituição.

Os Apelantes discordam, dizendo, em resumo, que a providência requerida, ainda que antecipatória, é a adequada (a única, aliás) para remover o periculum in mora e para assegurar a efectividade do direito ameaçado e que, uma vez provado o fumus boni iuris, a eventual irreversibilidade dos efeitos da providência não pode justificar a sua negação.

Analisemos então a questão.

É sabido que – conforme resulta do disposto no n.º 2 do art.º 2.º do CPC[1] – os procedimentos cautelares e, por consequência, as providências que nele possam ser decretadas, visam acautelar o efeito útil da acção da qual, salvo inversão do contencioso, são dependência (cfr. art.º 364.º). Tais providências não se destinam, portanto, a definir e efectivar (em definitivo) o direito, correspondendo apenas a meios de tutela provisória que visam assegurar o efeito útil da tutela definitiva que venha a ser atribuída a esse direito. É certo, por isso, que, com ressalva das situações de inversão do contencioso, a tutela obtida mediante a concessão de uma providência cautelar não tem carácter definitivo e está dependente do resultado da acção da qual é dependência e da concessão (ou não) da tutela definitiva que aí lhe seja concedida.

A natureza provisória da tutela concedida pela providência e a sua dependência em relação a uma acção que tenha por objecto a tutela definitiva do direito (a acção principal a que se reporta o art.º 364.º) legitimará, portanto, a conclusão de que as providências não podem, em princípio, criar situações irreversíveis que, na prática, traduzam a efectiva e imediata satisfação do direito em termos que dispensem e tornem inútil a instauração da acção e os efeitos da decisão que nela seja proferida[2]. Conforme diz M. Teixeira de Sousa[3], “As providências que podem ser requeridas nos procedimentos cautelares não podem tornar inútil a posterior tutela definitiva. Noutros termos: o objecto de um procedimento cautelar não pode ser algo que retire a necessidade da tutela definitiva. É por isso que, p. ex., não é possível pedir o pagamento de uma dívida ou de uma indemnização num procedimento cautelar”, acrescentando[4] que “As providências decretadas nos procedimentos cautelares não podem criar situações irreversíveis. Trata-se de uma consequência natural do carácter provisório da tutela que é obtida nos procedimentos cautelares. P. ex.: uma providência cautelar não pode decretar a destruição de uma coisa ou o despejo de um locatário”.

Essas afirmações/conclusões poderão não ter, no entanto, um carácter absoluto.

Na verdade, com a preocupação de assegurar a protecção devida ao titular do direito que está carecido de uma tutela urgente (que não se compadece com a previsível demora de uma acção judicial) e com a consciência de que, muitas vezes, não é possível assegurar essa tutela provisória com meras providências de carácter conservatório, o legislador admitiu expressamente a possibilidade de decretar providências antecipatórias, ou seja, providências que antecipam a realização e efectividade do direito mediante a concessão (ainda que, a título provisório) de uma tutela idêntica àquela que se pretende obter na acção principal. O legislador fê-lo no âmbito dos procedimentos de restituição provisória de posse, alimentos provisórios e arbitramento de reparação provisória, mas também o fez ao nível do procedimento cautelar comum onde admitiu, em termos genéricos, a possibilidade de decretar providências antecipatórias (cfr. art.º 362.º).

Ora, sendo certo que essas providências de natureza antecipatória produzem, desde logo, um efeito que acaba por ter carácter definitivo[5] e irreversível, é certo que, ao admiti-las, o legislador conformou-se com esse resultado (ainda que tal possa desvirtuar o carácter provisório que, por regra e por princípio, é inerente à providência cautelar), no pressuposto de que o direito do requerente (ainda que aparente em função da prova sumária exigida no procedimento cautelar comum – art.º 365.º)  está efectivamente ameaçado e carecido de tutela urgente, apenas podendo ser acautelado por uma providência desse tipo.

 Parece, portanto, não poder afirmar-se, em termos absolutos, que a irreversibilidade dos efeitos de determinada providência e a antecipação da realização do direito que ela potencia conduz, inevitavelmente, à sua rejeição.

Estando verificados os pressupostos legais e estando o direito do requerente carecido de protecção imediata que apenas pode ser assegurada através de uma providência desse tipo, parece que, à luz daquela que foi a intenção e a vontade do legislador, não haverá razões ou fundamento legal para a rejeitar e para deixar o direito do requerente totalmente desprotegido perante a ameaça de ser lesado de forma grave e irremediável. E isso não significa que a providência perca a natureza provisória que lhe é inerente e a sua dependência em relação à causa principal. Na verdade, a manutenção da providência estará sempre dependente da tutela definitiva que seja concedida na causa principal e ainda que não seja possível eliminar os efeitos que ela já produziu e que, eventualmente, até se tornem definitivos (mesmo para o futuro), a sua caducidade implicará, pelo menos, a responsabilidade do requerente nos termos previstos no art.º 374.º.

Em todo o caso, é evidente que as providências dessa natureza envolvem um risco acrescido de lesar direitos do requerido e de lhe causar prejuízos que se revelem irremediáveis e insusceptíveis de reparação. Daí que o decretamento de providências não especificadas de natureza antecipatória em relação às quais se antecipe um risco sério de irreversibilidade dos seus efeitos deva merecer uma maior ponderação com particular destaque para o princípio da proporcionalidade (cfr. art.º 368.º, n.º 2), atendendo, naturalmente, à necessidade da tutela reclamada pelo requerente, à urgência dessa tutela e ao prejuízo que a providência e a eventual irreversibilidade dos seus efeitos pode provocar na esfera jurídica do requerido. Tais providências apenas deverão ser decretadas quando sejam absolutamente necessárias para assegurar a tutela devida ao direito do requerente que está ameaçado (reduzindo-se a providência, sempre que possível, aos seus justos limites) e quando, com efectiva ponderação do prejuízo que dela resulte para o requerido e da eventual irreversibilidade desse prejuízo, ela se evidencie como necessária, justa e proporcional em face dos interesses em confronto[6].

Conforme refere Abrantes Geraldes[7], “...uma vez provado o perigo de lesão séria de direitos do requerente, só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa de providência”, sendo que “...entre a rejeição total da medida, por verificação de efeitos consideravelmente mais gravosos na esfera do requerido, e a sua total admissão, por se verificar o justo receio de lesão grave e dificilmente reparável, o princípio da proporcionalidade impõe que o tribunal, quando na posse dos necessários elementos, ajuste a providência à concreta situação de perigo”.

Retornando ao caso dos autos, podemos concluir que a providência solicitada pelos Requerentes (Apelantes) corresponde, de facto, a uma providência de natureza antecipatória por via da qual se pretende antecipar a efectiva realização do direito e que corresponde à pretensão a exercer na acção principal. Com efeito, a providência solicitada corresponde à intimação da Requerida (Massa Insolvente) no sentido de remover os bens (designadamente embarcações) que se encontram (sem qualquer título que o legitime) nos prédios pertencentes aos Requerentes e seria essa naturalmente (porque não se vislumbra outra) a pretensão a formular na acção principal.

É certo, por outro lado, que os efeitos dessa providência se evidenciam como potencialmente irreversíveis e definitivos. Com efeito, ainda que, em teoria, esses efeitos apenas se mantivessem durante a vigência da providência (período em que se tornariam efectivamente irreversíveis e definitivos), a verdade é que, na prática, eles permaneceriam para o futuro ainda que a acção principal não fosse instaurada ou viesse a improceder, já que, depois de arranjar outro espaço e de suportar as despesas inerentes ao transporte daqueles bens (despesas que se presumem ser elevadas dada a natureza dos bens), não seria provável que a Massa Insolvente tivesse futuramente a pretensão de fazer retornar os bens aos prédios dos Requerentes (onde se encontram), tanto mais que reconhece não ter qualquer título para o efeito. Ou seja, na prática, e por via da presente providência, os Requerentes obtinham, em termos imediatos, a satisfação do seu direito e da sua pretensão sem se sujeitar à demora previsível de uma acção judicial e sujeitando-se apenas à possibilidade de serem responsabilizados nos termos previstos no art.º 374.º caso a providência viesse a caducar.

Já vimos, no entanto, que, pelo menos em teoria, essa circunstância não obstaria, só por si, ao decretamento da providência.

Caso estivessem verificados os pressupostos legais para o decretamento dessa providência e concluindo-se que ela era efectivamente necessária para assegurar e acautelar os direitos dos Requerentes, ela teria que ser decretada a não ser que se entendesse, à luz do disposto no art.º 368.º, n.º 2, que, atendendo ao prejuízo que dela resultava para a Requerida (tendo em conta, designadamente, os efeitos irreversíveis que ela potenciava), tal providência não se revelasse como adequada, justa e proporcionada.

Sucede que, no caso, não se mostram verificados os pressupostos necessários para o decretamento dessa providência.

Tendo em conta o disposto nos artigos 362.º e 368.º, a providência cautelar não especificada pressupõe a probabilidade séria da existência de um determinado direito e o fundado receio de que outrem possa causar lesão grave e dificilmente reparável desse direito.

No caso, não haverá grandes dúvidas no que toca ao direito dos Requerentes e no que diz respeito ao facto de esse direito estar a ser lesado pela Massa Insolvente, tendo em conta que, conforme alegado pelos Requerentes – e aceite pela Requerida – os bens acima identificados apreendidos para a Massa Insolvente estão a ocupar, sem qualquer título que o legitime, os prédios dos Requerentes.

Pensamos, no entanto, não poder ter-se como demonstrado o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (periculum in mora) que justifique a necessidade urgente de tutela através de uma medida cautelar que, no caso, seria – conforme se referiu – uma medida que anteciparia a realização do direito com efeitos irreversíveis.

Com efeito, independentemente de outras considerações que pudessem ser feitas acerca da efectiva verificação do periculum in mora, a verdade é que a situação invocada pelos Requerentes/Apelantes com a consequente violação do seu direito não é de agora; essa situação e lesão do direito mantém-se desde 12/01/2023 (data em que os bens em questão foram apreendidos à ordem da massa insolvente) ou, pelo menos, desde 29/04/2023 (data em que caducou o contrato de arrendamento celebrado com C..., Ldª que vinha usando aqueles bens). É certo, portanto, que, à data da instauração deste procedimento cautelar, aquela situação verificava-se há quase dois anos (tempo mais do que suficiente para que os Requerentes – sentindo-se lesados no seu direito – tivessem instaurado uma acção judicial no sentido de ver desocupados os prédios de que são proprietários e que, provavelmente, já estaria decidida). A verdade é que, durante todo esse período, os Requerentes nunca instauraram qualquer acção ou qualquer procedimento cautelar, sinal evidente de que a lesão do seu direito não era tão grave que justificasse a sua reacção pelas vias legais.

E o que foi que mudou agora, para que, de repente e ao fim de quase dois anos, os Requerentes sentissem a necessidade urgente de obter uma tutela para o seu direito por via de uma providência cautelar? Nada, ao que parece, sendo certo que não alegaram qualquer facto em função do qual se pudesse concluir pela alteração da situação que existia e que permitisse agora concluir pela existência de um periculum in mora que justificasse uma necessidade de tutela cuja urgência não se compadecesse com a demora de uma acção judicial.

Na verdade, o único prejuízo que os Requerentes invocam para fundamentar a providência que vieram requerer é o facto de estarem impedidos de rentabilizar os imóveis mediante o respectivo arrendamento ou de proceder à sua venda e esse prejuízo sempre existiu (desde há quase dois anos), não correspondendo, portanto, a prejuízo ou ameaça de lesão do direito que, pelo seu carácter de novidade em relação à situação que perdurou durante período temporal alargado, possa constituir agora fundamento para uma intervenção urgente por via da concessão de uma providência cautelar antecipatória por se dever concluir que o direito dos Requerentes exige uma tutela imediata que não possa aguardar pela tutela definitiva a obter mediante instauração de acção judicial.

Nesse sentido, afirma M. Teixeira de Sousa[8] – citando a propósito os Acórdãos da Relação de Évora de 11/04/2019 (processo n.º 22/19.8T8BNV.E1), de 24/10/2019 (processo n.º 794/19.0T8PTM.E1) e de 09/09/2021 (processo n.º 662/21.5T8TMR.E1) e a decisão, também da Relação de Évora, de 02/12/2022 (processo n.º 1500/22.7T8BJA.E1) que também assim decidiram – que “O p.i.m. está afastado qd a conduta do requerente demonstra que, durante muito tempo, se conformou com a situação que agora pretende alterar com a providência cautelar”, aludindo, a propósito, àquilo a que a doutrina e jurisprudência alemãs apelidam de uma “(auto)refutação da urgência”.

Entendemos, portanto, em face do exposto, não estarem reunidos os pressupostos legais para decretar a providência solicitada por não se verificar o necessário periculum in mora. Além do mais, ainda que tal pressuposto se tivesse por verificado, nunca se poderia justificar, nas circunstâncias descritas, a providência solicitada, que, pela sua natureza antecipatória e pelos seus efeitos potencialmente irreversíveis, não se revelaria como necessária, justa e proporcionada em face da situação invocada pelos Apelantes e em face da sua inação ao longo de dois anos.  

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                             (Anabela Marques Ferreira)

                                                  (Maria João Areias)


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 29/06/2017 (processo n.º 25601/16.1T8PRT.P1); Acórdão da Relação de Lisboa de 12/09/2019 (processo n.º 2844/19.0T8LSB.L1-2) e Acórdão da Relação de Guimarães de 08/07/2020 (processo n.º 3155/19.7T8VCT-A.G1), disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[3] CPC online, anotação 6 em NP art. 362.º-409.º no  Blog do IPPC.
[4] Nota 10, no mesmo local já citado.
[5] Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., 4.ª edição revista e actualizada, pág. 115.
[6] Cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 118.
[7] Ob. cit., páginas 247 a 249.
[8] CPC online, anotação 22 ao art.º 362.º, no Blog do IPPC.