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PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
EFEITO DE CASO JULGADO
ALTERABILIDADE
RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
RESIDÊNCIA HABITUAL
ORDEM DE ENTREGA IMEDIATA
CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES
Sumário
I – Apesar de as resoluções proferidas em processos de natureza de jurisdição voluntária produzirem efeito de caso julgado logo que deixem de ser passíveis de recurso ordinário ou de reclamação, as mesmas não são irrevogáveis, podendo, por isso, ser alteradas sempre que, posteriormente, se verifique uma alteração das condições ou das circunstancias de facto que levaram ao seu decretamento. II – A Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças tem por objeto o regresso imediato da criança deslocada ou retida ilicitamente (artigo 1º, nº1), independentemente das decisões que venham a ser tomadas ulteriormente em matéria de substância dos aludidos direitos. III – Decretado neste Estado, o regresso imediato da criança ao estado da sua residencial habitual (Brasil) e a sua entrega ao progenitor, a existência de uma posterior decisão da Jurisdição Brasileira a conceder a guarda provisória da criança à progenitora, à qual se segue uma decisão a reconhecer a existência da decisão aqui proferida de regresso imediata da criança e a sustação de todos os processos aí pendentes entre as partes, não integra uma circunstância superveniente capaz de levar à alteração/revogação da ordem de entrega imediata. IV – Também não constituiu alegação relevante, a invocação da situação de facto da permanência da criança em Portugal junto da mãe, quando, antes de decorrido um ano, foi decretada a entrega imediata da criança ao país da sua residência habitual. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Anabela Marques Ferreira
2º Adjunto: Catarina Gonçalves
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
AA, vem, por apenso ao processo tutelar cível respeitante ao seu filho menor, BB, instaurar a presente providência provisória e cautelar, ao abrigo do disposto nos artigos 13º, 28º, ns. 1 e 2, e 33º do Regime Geral do Processo Tutelar cível, contra o progenitor CC,
Alegando, em síntese:
por acordo homologado por sentença proferida pela autoridade judiciária Basileira a 10 de novembro de 2023, foi atribuída a guarda compartilhada do menor, com residência fixa com o pai, estabelecendo-se um regime de visitas para o período em que a progenitora se desloque ao Brasil;
a 17 de dezembro de 2023, a mãe emigrou para Portugal, tendo trazido consigo o menor que, desde então, reside com a mãe e o marido desta em ..., encontrando-se matriculado para o não letivo de 2024/2025, no Agrupamento de Escolas ..., em ..., indo frequentar a Escola Básica ..., ..., escola esta que frequenta desde maio de 2024;
o menor é portador de Transtorno do Espetro de Autismo, pelo que necessita de cuidados especiais de educação, terapias e de saúde, indo receber acompanhamento especializado nessa escola;
a 08-08-2024, foi julgado, por decisão de “ação de modificação de guarda” do menor BB, proposta pela sua progenitora contra o aqui requerido, que corre termos sob o processo 0...16-65.2024.8.06.0001, na Comarca de Fortaleza, 15ª Vara de Família (SEJUD 1º Grau), Poder Judiciário do Estado do Ceará, que decidiu “Posto isto, acolho o pedido de antecipação da titela para conceder a guarda provisória do menor BB à parte promovente e genitora, AA”;
esta decisão judicial, aliada ao facto de a Requerente estar a exercer de facto a guarda do menor, veio fazer perigar a decisão judicial proferida nos presentes autos de entrega judicial do menor e seu regresso ao Brasil, decisão esta que é contrária à decisão que atribui a título provisório a guarda e residência à requerente;
o cumprimento e a execução da decisão proferida nos presentes autos a 03-07-2024, já transitada em julgado, vai causar uma lesão grave e dificilmente reparável aos interesses do menor e ao direito da requerente; o centro de vivência do menor, quer a nível pessoal, quer a nível familiar, quer a nível social, encontra-se estabilizada em Portugal, na cidade em ..., onde vive.
Donde concluí, pedindo que o tribunal julgue:
a) Procedente por provado os factos aqui alegados e o aqui requerido, e em consequência, ser,
b) Provisoriamente, alterada ou revogada a decisão final/sentença proferida nos autos a 03/07/2024, nos termos e ao abrigo dos artigos 28º n.º 1 primeira parte e 28º n.º 2 do RGPTC,
c) E, em consequência, ser alterada ou revogada provisoriamente, a decisão proferida a 03/07/2024, decidindo Vexa. pela não entrega judicial do menor BB ao progenitor e pelo não regresso imediato do menor à República Federativa do Brasil;
d) e, em consequência ser, proferida decisão provisória, de revogação (alteração) da ordem judicial de execução da decisão proferida a 03/07/2024,
e) Nos termos e para os efeitos do art.º 13º do RGPTC e art.º 262º e ss. do CPC, requer-se a Vexa. Seja mantido/concedido caracter urgente ao presente processo, uma vez que a sua demora face à matéria de facto alegada e face aos pedidos, pode prejudicar o superior interesse do menor BB.
f) Seja decretada a providência, sem o exercício do contraditório do Requerido, por a sua audiência colocar em risco sério o fim e a eficácia desta providência, tudo nos termos do art.º 33º n.º 1 e 65º do RGPTC art.º 362º, 366º n.º 1 segunda parte, do CPC.
g) Em alternativa, ser julgada a inutilidade superveniente de lide, e em consequência a extinção do pedido e da instância desta presente ação, face à alteração de facto e de direito essencial, julgado em sentença judicial proferida em poder judiciário da República Federal do Brasil, que julgou a 08/08/2024, atribuir à progenitora, aqui Requerente, a guarda e a residência provisória do menor.
A Requerente junta duas decisões judiciais que decidem da atribuição da guarda provisória do menor à sua progenitora, bem como de decisões interlocutórias e pareceres ministeriais proferidos no âmbito do processo judicial nº 0...16-652024.8.06.001, 15ª Vara de Fortaleza, Ceará.
Citado o requerido para deduzir oposição, nada veio dizer.
Pelo Ministério Publico foi promovido o indeferimento do requerido e o arquivamento dos autos.
Notificada para se pronunciar, a requerente mantém a sua posição, acrescentando que, no processo de busca e apreensão de menor – procedimento comum cível n.º 0...12-03.2024.8.06.0001, que corre termos na 15ª vara de Família, comarca de Fortaleza TJEC, tendo em conta as decisões proferidas naquela ação de modificação e de guarda (0...16-65.2024.8.06.0001) suspendeu o processo de busca e apreensão de menor – procedimento comum cível n.º 0...12-03.2024.8.06.0001, que corre termos na 15ª vara de Família, comarca de Fortaleza TJEC –, por decisão proferida nesses autos a 28/11/2024, com o seguinte teor: “Considerando que esta ação é acessória à ação acima referida proceda o gabinete com a suspensão destes autos”.
Pelo juiz a quo é proferido Despacho a indeferir a providência cautelar requerida, por manifesta improcedência.
*
Inconformada com tal decisão, a Requerente dela interpôs recurso de Apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
(…).
*
Quer o requerido, CC, quer o Ministério Público, apresentaram as respetivas contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
*
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso. II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, a questões a decidir são as seguintes:
1. Se as decisões proferidas a 08.08.2024 e a 25.09. 2024, no proc. 0...16-65.2024.8.06.0001, que atribuíram a guarda provisória à progenitora, implicam a alteração ou revogação da decisão proferida nos autos principais, a 03/07/2024, que ordenou o regresso imediato da Criança à Republica Federativa do Brasil
2. Se a execução da ordem de regresso da criança é contrária ao princípio do superior interesse da criança face às circunstancias atuais III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O tribunal a quo veio a indeferir a pretensão formulada pela requerente/Apelante – de alteração/revogação da decisão de entrega judicial do menor ao progenitor e do seu regresso ao Brasil –, por manifesta improcedência, com os seguintes fundamentos, que aqui se sintetizam:
inexiste qualquer fundamento legal que legitime que, perante o mesmo tribunal, se peça a alteração/revogação de decisão proferida com trânsito em julgado, seja por via cautelar, seja por via definitiva, sendo uma tal pretensão ofensiva do caso julgado material;
nem se diga que essa pretensão assenta agora em facto novo, qual seja decisão da autoridade judiciária brasileira que atribuiu a guarda provisória da criança à mãe (Processo n.º 0...16-65.2024.8.06.0001);
a referida decisão não tem, sem mais, qualquer validade, em território nacional e é por isso que, aliás, está pendente no Tribunal da Relação de Coimbra – 1.ª Secção, ação de Revisão/Confirmação de Sentença Estrangeira 267/24...., intentada pela requerente contra o requerido, com vista a ser revista e confirmada a decisão judicial estrangeira referida supra, ao que se sabe, sem decisão final;
a decisão da 1.ª Vara Federal brasileira de 05.11.2024, no Processo n.º 0...35-92.2024.4.05.8100 - Procedimento Comum Cível, acerca de pedido da progenitora de “pedido de tutela de urgência em caráter liminar” referente à criança, negou tal pedido, mantendo integralmente a decisão nacional de regresso da criança ao Brasil, ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, mais determinando: “Oficie-se ao juízo da 15ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza, para suspender o andamento das Ações que envolvam as partes aqui presentes, notadamente o processo nº 0...16-65.2024.8.06.0001, em face do art.16 da Convenção da Haia de 1980 e art. 22 da Resolução 449, de 30/03/2022 do CNJ. Deve o réu, pai da criança, CC, comunicar a chegada da criança ao Brasil, de imediato a este juízo, para que se possa marcar com a autora audiência de mediação na forma do art. 13, da Resolução 449, de 30/03/2022 do CNJ (…)”;.
a criança foi trazida para Portugal pela progenitora de forma ilícita, dada a fixação prévia da sua residência com o pai (residente no Brasil), conforme decisão de autoridade judiciária brasileira, mais concretamente sentença de 10.11.2023, homologatória de acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais alcançado por reporte ao menor, pelo qual se determinou: “2) A guarda do menor permanecerá de forma compartilhada, com residência fixa com o pai; 3) A modificação se dará em relação ao informado nos autos e neste ato, que a requerente, Sra. AA, passará a residir em Portugal, e que o menor passará a residir somente na residência do seu genitor, não havendo mais a alternância de lares, como acordado anteriormente, e quando ela vier ao Brasil, no período de suas férias, a visitação e convivência com o menor se dará durante 7 (sete) dias da semana (de segunda a domingo), com pernoite, com a genitora e alternadamente, 7 (sete) dias da semana seguinte, com pernoite, com o genitor;
para todos os devidos efeitos, a residência oficial da criança mantém-se em território brasileiro, seja porque a sua deslocação para Portugal foi ilícita, seja porque ocorreu há menos de um ano, seja porque antes da propositura desta ação foi instaurada e até decidida, por sentença transitada em julgado um pedido de regresso ao mencionado país;
de resto, tal é, corretamente, assumido e reconhecido pelas autoridades judiciárias brasileiras, dado que se encontra pendente no Brasil ação tendente a alterar a regulação do exercício das responsabilidades parentais da criança movida pela mãe, tendo as autoridades judiciárias brasileiras proferido decisão a este propósito, decisão essa cuja revisão/confirmação em território nacional se encontra no presente pendente.
a decisão que determina o regresso da criança ao Brasil não colide com a possibilidade, de ali, a mesma ser mantida à guarda e cuidados da mãe caso as autoridades judiciárias do referido país assim o considerem, posto que para tal se consideraram – e bem, em nosso entender – internacionalmente competentes para o efeito, por naquele país se manter a lícita residência da criança ao abrigo da Convenção supra citada, não cabendo ao ordenamento jurídico nacional legitimar a pretensão da progenitora de manter a sua residência em Portugal, e aqui reter o seu filho, até porque, conforme já referido nos autos de regulação, para tal carece de competência internacional, posto que a criança para aqui foi ilicitamente deslocada, tendo sido requerido e deferido, o seu regresso e correndo diligências com vista à execução do decidido a que a requerente vem obstaculizando.
Discordando do decidido, a Apelante pugna pela sua revogação e pelo deferimento da providência, com base na seguinte ordem de razões:
o processo de entrega judicial de menor assumindo a natureza de jurisdição voluntária, tem como uma das suas caraterísticas a revogabilidade das suas resoluções, podendo as sentenças ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos com o fundamento em circunstancias supervenientes que justifiquem a alteração;
no caso, existem factos suficientes dos quais resulta a sua modificabilidade e atualidade, à revogação da sentença de 03.07.2024, do pedido de entrega imediata do menor ao progenitor:
existência de fundamentos e de factos que a legitimam, alegados e junta prova idónea na p.i. da PC, nomeadamente, os factos essenciais que constituem o superior interesse do menor em permanecer à guarda, a residir com a progenitora, na morada desta em Portugal, a estudar e receber tratamento especializado de equipa de profissionais multidisciplinar, desde saúde, educação, psicólogo e terapias ocupacionais e da fala, necessário pelo facto de o menor sofrer de espectro de TEA;
após a sentença proferida a 03/07/2024, já transitada em julgado, no âmbito dos presentes autos principais, a 08/08/2024, foi julgado, por decisão da “ação de modificação de guarda” do menor BB, proposta pela aqui AA contra o progenitor CC, que corre termos sobre o processo n.º 0...16-65.2024.8.06.0001 na Comarca de Fortaleza, 15ª Vara de Família (SEJUD 1º Grau), no Poder Judiciário do Estado do Ceará, o seguinte: “Posto isso, acolho o pedido de antecipação de tutela para conceder a guarda provisória do menor BB à parte promovente e genitora, AA.”, conforme sentença judicial, documento junto na p.i. da PC como doc. n.º 4.
a requerente juntou ainda cópias de decisões interlocutórias e pareceres ministeriais, proferidas no âmbito do processo judicial n.º 0...16-65.2024.8.06.0001, que corre termos na 15ª Vara de Família de Fortaleza – CE, as quais foram enviadas por esses autos para o email do Ministério da Justiça subtracao.acaf@mj.gov.br, remetidos pelo email daquele douto Tribunal for.15familia@tjce.jus.br, como resposta aos pedidos efetuados pela Direção Geral da Administração da Justiça portuguesa, com o assunto: RE: Portugal – BB – ativo – retorno – ...72/24-10, documentos datados de 25/09/2024, cfr. doc. 7 junto nesta PC.;
juntou igualmente ao processo as decisões atualizadas proferidas no âmbito do processo de busca e apreensão de menor – procedimento comum cível n.º 0...12-03.2024.8.06.0001, que corre termos na 15ª vara de Família, comarca de Fortaleza TJEC, tendo em conta as decisões proferidas naquela ação de modificação e de guarda (0...16-65.2024.8.06.0001), que suspendeu o processo de busca e apreensão de menor sic “suspendendo o feito” – procedimento comum cível n.º 0...12-03.2024.8.06.0001, que corre termos na 15ª vara de Família, comarca de Fortaleza TJEC, por decisão proferida nesses autos a 28/11/2024 a fls. 183 e 186 desses autos “Considerando que esta ação à acessória à ação acima referida, proceda o gabinete com a suspensão destes autos (processo de busca e apreensão de menor – procedimento comum 14 cível, n.º 0...12-03.2024.8.06.0001, que corre termos na 15ª vara de Família, comarca de Fortaleza TJEC”. Decisão esta proferida por despacho judicial datado de 28/11/2024 (fls. 183)
decisão essa que resulta da sentença proferida a fls. 155 e 156 dos autos processo de busca e apreensão de menor – procedimento comum cível n.º 0...12-03.2024.8.06.0001 e apensos, que corre termos na 15ª vara de Família, comarca de Fortaleza TJEC, onde por sentença datada de 13/09/2024 foi decidido em suma o seguinte: “… este juízo concedeu à genitora a guarda provisória do filho menor BB, caracterizado a hipótese de perda superveniente do objeto, extingo o presente feito sem resolução do mérito, nos termos do art.º 485º, inciso V do CPC.” (doc. 9)
o cumprimento e a execução da decisão proferida nos presentes autos no passado dia 03/07/2024, já transitada em julgado, ao determinar a entrega judicial do menor ao progenitor e o seu regresso à República Federal do Brasil vai causar uma lesão grave e dificilmente reparável aos interesses do menor e ao direito da Requerente de lhe ter sido atribuída a guarda e a residência provisória do menor;
a execução da decisão, vai causar lesões graves e irreparáveis na segurança, na saúde, na educação, no desenvolvimento psíquico, físico e na integração do menor na sociedade onde vive atualmente.
os factos supra alegados demonstram que o centro de vivencia do menor quer a nível pessoal quer a novel familiar quer a nível social se encontra estabilizada em Portugal, aqui na cidade ... onde vive.
Cumpre apreciar o objeto do recurso.
Tendo os processos tutelares cíveis a natureza de jurisdição voluntária (artigo 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), as resoluções adotadas pelo tribunal podem ser livremente modificadas e revistas, sempre se verifique uma alteração superveniente das circunstâncias que estiveram na base dessas resoluções, sem prejuízo da salvaguarda dos efeitos entretanto produzidos (artigo 988º, nº1 do CPC).
Apesar de essas resoluções produzirem efeito de caso julgado logo que deixem de ser passíveis de recurso ordinário ou de reclamação – tornando-se, por conseguinte, estáveis na ordem jurídica – o certo é que as mesmas não são irrevogáveis, podendo, por isso, ser alteradas sempre que, posteriormente, se verifique uma alteração das condições ou das circunstancias de facto que levaram ao seu decretamento[1].
Maria dos Prazeres Beleza clarifica o sentido da livre revogabilidade contido no nº1 do artigo 988º CPC:
“Na jurisdição voluntária vale a regra da modificabilidade das resoluções, em adaptação à evolução da situação de facto, ou à consideração de factos que não tenham sido alegados por ignorância ou outro motivo ponderoso (…).
Significa isto que tais decisões não adquirem a imutabilidade de caso julgado própria da generalidade das decisões judiciais, ainda que tenham sido objeto de recurso ou que o recurso não tenha sido interposto por inadmissibilidade ou por esgotamento do prazo respetivo (artigos 619º e 628º do CPC).
Trata-se como se sabe, de uma regra que permita a adequação das medidas determinadas à situação verificada a cada momento e que é uma das vias de execução do princípio da atualidade nos processos tutelares cíveis, e que possibilita por exemplo, os frequentes pedidos de alteração das decisões de regulação do exercício das responsabilidades parentais – nomeadamente, relacionados com deslocações de crianças, licitas ou ilícitas, para outros estados[2]”.
A questão a discutir passará, assim, não por qualquer análise do caso julgado cuja existência é indiscutida, mas por determinar se as circunstancias invocadas pela requerente/Apelante envolvem uma alteração superveniente suscetível de levar à prolação de nova decisão.
A decisão que se pretende ver alterada/revogada foi proferida no âmbito do processo principal de que este é apenso, a impulso do Ministério Público em representação de BB, nos termos dos artºs 11º, nº 1, 13º e 67º do Regime Geral dos Processo Tutelares Cíveis e 16º da Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
Encontrando-se a residência do menor fixada junto do pai, no Brasil, e considerada ilícita a retenção do menor pela progenitora em Portugal, foi proferida sentença pela qual “se decide ordenar o regresso imediato da criança BB, nascida ../../2015, filha de CC e AA à República Federativa do Brasil. Para o efeito será a criança conduzida para junto da delegação de ... da DGRSP, acompanhada de todos os documentos que lhe sejam respeitantes, que deverão ser entregues pela mãe, a fim de que se possa providenciar pelo regresso da criança para junto do pai.”
A Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças tem por objeto o regresso imediato da criança deslocada ou retida ilicitamente (artigo 1º, nº1), independentemente das decisões que venham a ser tomadas ulteriormente em matéria de substância dos aludidos direitos.
A imposição, pelas normas da Convenção, de um processado expedito, visa evitar a legitimação, contra os interesses da criança, de comportamentos dos progenitores com condutas contrárias às decisões assumidas de guarda e, sobretudo, independentemente da questão de fundo, fazer retornar de forma célere e expedita, a criança a quem foi retirada[3].
Na Convenção de Haia o interesse da criança é acautelado sobre o prisma do direito de não ser retida ou deslocada para um país estranho apenas em função do desejo dos seus progenitores e de não ser inopinadamente retirada do seu país de origem (ressalvadas as situações excecionais do artigo 13º).
Em caso de afastamento ou retenção ilícita da criança, as autoridades do Estado contratante, no qual a criança tinha residência habitual imediatamente antes do seu afastamento ou retenção, mantêm as suas competências até que a criança adquira residência habitual num outro estado (o que só ocorrerá quando a criança tiver residido noutro estado por um período mínimo de um ano e não se encontre pendente nenhum pedido de regresso apresentado durante esse período) – artigo 12º da Convenção.
Enquanto as autoridades do estado Contratante no qual residia a criança conservarem as suas competências, as autoridades do estado Contratante para onde a criança foi afastada ou no qual ficou retida, apenas poderão tomar medidas urgentes previstas no artigo 11º, necessárias à proteção da pessoa ou bens da criança.
Vejamos, assim, a ordem cronológica das decisões proferidas pelo Estado Contratante da residência da criança (a República Federativa do Brasil):
1. por acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, homologado por sentença proferida por autoridade judiciária brasileira, a 10 de novembro de 2023, foi determinado a guarda do menor de forma compartilhada com residência fixa com o pai, residente no Brasil;
2. A 17 de dezembro de 2023, a progenitora vem residir para Portugal, trazendo o menor consigo;
3. A 03 de julho de 2024, foi, no processo principal, decretado o regresso imediato da criança ao Brasil e a sua entrega ao pai.
4. A 08 de Agosto de 2024, na “ação de modificação de guarda” do menor BB, proposta pela progenitora contra o progenitor (processo n.º 0...16-65.2024.8.06.0001 na Comarca de Fortaleza, 15ª Vara de Família), foi proferida decisão a acolher o pedido de antecipação de tutela para conceder a guarda provisória do menor BB à parte promovente e genitora, AA;
5. No referido processo, foi ainda proferida decisão a 25 de setembro de 2024, que, atendendo “às regras pertinentes à Convenção de Haia, bem como do parágrafo único do art. 22º da Resolução 449/22 do CNJ”, manteve a decisão que concedeu a guarda provisória do menor BB à progenitora, determinando em simultâneo o sobrestamento do processo com a suspensão da audiência já designada para o dia 1.10.2024.
6. Por decisão da 1.ª Vara Federal brasileira de 05 de novembro de 2024, no Processo n.º 0...35-92.2024.4.05.8100 - Procedimento Comum Cível, acerca de pedido da progenitora de “pedido de tutela de urgência em caráter liminar” referente à criança, negou tal pedido, mantendo integralmente a decisão nacional de regresso da criança ao Brasil, ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, mais determinando: “Oficie-se ao juízo da 15ª Vara de Família da Comarca de Fortaleza, para suspender o andamento das Ações que envolvam as partes aqui presentes, notadamente o processo nº 0...16-65.2024.8.06.0001, em facedo art.16 da Convenção da Haia de 1980 e art. 22 da Resolução 449, de 30/03/2022 do CNJ. Deve o réu, pai da criança, CC, comunicar a chegada da criança ao Brasil, de imediato a este juízo, para que se possa marcar com a autora audiência de mediação na forma do art. 13, da Resolução 449, de 30/03/2022 do CNJ (…)”;.
De tais factos resulta que, notificada da decisão proferida a 03-07-2024, nos autos principais, a ordenar o regresso imediato da criança à República Federativa do Brasil e a sua entrega ao progenitor, a progenitora, em vez de cumprir tal ordem, instaura na Jurisdição Brasileira uma Ação de Modificação de Guarda, com pedido de antecipação da tutela (omitindo a existência de decisão da Justiça Portuguesa a determinar o seu regresso imediato ao país), onde por decisão de 08-08-2004, consegue que lhe seja concedida a guarda provisória da criança.
Mais se atentará em que, assim que teve por confirmada a existência de tal decisão pelo Ministério da Justiça, a Jurisdição Brasileira reconheceu a decisão de regresso da criança ao Brasil, determinando a suspensão da Ação de modificação da Guarda intentada pela progenitora.
Por outro lado, segundo o artigo 17º da Convenção “O facto de ter sido tomada uma decisão relativa à custódia ou de a mesma ser passível de reconhecimento no Estado requerido não pode justificar a recusa de fazer regressar a criança nos termos desta Convenção; mas as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido poderão tomar em consideração os motivos desta decisão no âmbito da aplicação da presente Convenção”.
Ao contrário do alegado pela Apelante, tal decisão de concessão de guarda provisória da criança à progenitora – em processo tutelar onde foi determinada a sua sustação assim que aí foi dado conhecimento oficial de que previamente havia sido dada ordem de regresso da criança ao Brasil –, não é suscetível de converter em lícita a permanência da criança em Portugal, por mais bem integrada que se encontre no atual ambiente.
Como salienta Maria dos Prazeres Beleza[4], “A definição desse procedimento simplificado e urgente foi uma das vias encontradas para “contrariar os meios de auto-tutela” para resolver divergências relacionadas com o exercício das responsabilidades parentais, especialmente quanto à guarda da criança, dissuadindo os protagonistas de tentar criar situações de facto que lhe sejam favoráveis, numa discussão posterior sobre a guarda da criança – quer tentando deslocar a competência dos tribunais para o Estado onde se encontram, quer criando ligações ao novo ambiente, de modo a que lhe seja prejudicial uma decisão de regresso ao Estado de onde foi deslocada”.
A factualidade por si invocada, com vista a demonstrar que, desde que foi (ilicitamente) trazido pela mãe para Portugal, o menor se encontra a residir com a mãe, está inscrito numa escola, à qual se encontra devidamente adaptado e que é do interesse da criança a sua permanência em Portugal com a progenitora, não assume, assim, aqui qualquer relevo. Assumir posição contrária estaria a legitimar precisamente o comportamento que, com o regime previsto na Convenção de Haia se quer precisamente evitar.
Se é certo ser suscetível de obstar ao regresso ao país de origem a “existência de risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigo de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável” (art. 13º, nº1, al. b) da Convenção), atentar-se-á que só em sede alegações de recurso, e de um modo perfeitamente conclusivo, vem a Apelante alegar que a execução da decisão “vai causar lesões graves e irreparáveis na segurança, na saúde, educação, no desenvolvimento psíquico, físico e na integração do menor onde se encontra atualmente.
Concluindo, o atual circunstancialismo não representa qualquer alteração relevante às circunstâncias que estiveram na base da decisão de regresso proferida no processo principal: o menor continua a ter a sua residência no Brasil (artigo 12º nº1 da Convenção – a residência habitual só se altera ao fim de um ano de permanência noutro estado e caso não se encontre pendente nenhum pedido de regresso apresentado durante esse período), onde se encontra pendente ação com vista à alteração do exercício do poder paternal, cujo prosseguimento se encontra a aguardar a execução da decisão que a progenitora pretende ver alterada/revogada ou considerada inútil.
A Apelação é de improceder.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Coimbra, 08 de abril de 2025
V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.
(…).
[1] Cristina Araújo Dias, João Nuno Barros, Rossana Martingo Cruz, “Regime do Processo Tutelar Civel Anotado”, Almedina, p. 157. [2] “Jurisprudência sobre o rapto internacional de crianças”, in Revista Julgar, nº24, Setembro/Dezembro 2014, p. 76. [3] Helena Bolieiro e Paulo Guerra, Coimbra Editora, p. 458. [4] “Jurisprudência sobre rapto internacional de crianças”, local citado, p. 79.