COLIGAÇÃO ILEGAL DE RÉUS
IMPEDIMENTOS PROCESSUAIS
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
COMPETÊNCIA MATERIAL PARA PARTE DOS PEDIDOS
PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO NA PARTE EM QUE HÁ COMPETÊNCIA
Sumário

I – Subjacente à coligação (art. 36.º do Código de Processo Civil) estão razões de economia e a celeridade processuais, a justa composição do litígio e interesses de ordem pública para obstar à prolação de decisões contraditórias ou divergentes.
II – O art. 37.º, n.º 1, é linear quanto aos impedimentos processuais: a coligação é inadmissível, v.g., quando a cumulação de pedidos infrinja as regras de competência em razão da matéria, daqui se retirando que é legítima quando o tribunal seja materialmente competente para a tramitação e julgamento integrado de todos eles.
III – A cumulação, no mesmo processo, de pretensões para as quais o tribunal só seja materialmente competente para algumas, significa que a acção prosseguirá exclusivamente para o julgamento daquelas para as quais sempre seria originariamente competente.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Recurso de Apelação

Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria/Juízo Local Cível de Leiria (J1)

Recorrente: A..., Lda.

Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):

(…).

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I.

Em 10 de Abril de 2024, A..., Lda. intentou acção declarativa de condenação (sinistro automóvel), contra B..., S.A.[2] e C..., S.A., sustentando que em 22 de Julho de 2023 o seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-RB-.., seguia na Auto-Estrada A17, sentido Norte/Sul, tripulado por um dos seus gerentes quando, nas proximidades do Km 9 da A17, foi surpreendido pela presença na faixa de rodagem da esquerda, de um objecto que ocupava transversalmente grande parte da faixa por onde circulava, cuja presença não era perceptível, não tendo podido evitar a colisão.

Tal objecto era um troço dos rails de segurança que delimitam o separador central da AE, que caíra para a faixa de rodagem, ali se encontrando, sem qualquer sinalização.

A reparação dos danos orçou 27 603,11 €, o que excede o valor comercial do veículo, sendo certo que o valor dos salvados não excede 10 070 €, resultando um prejuízo avaliado em 17 591,50 €, já que à data do sinistro o veículo tinha o valor comercial de 27 661,50 €.

A 1.ª R.  é  a  empresa  concessionária  da  exploração  do  troço  de  AE  onde  o

acidente ocorreu, e com a 2.ª R. havia celebrado contrato pelo qual esta se obrigou a ressarci-la pelos danos resultantes de acidentes ocorridos, incluindo danos no próprio veículo, titulado pela apólice n.º ...19.

Sendo assim, peticiona:

«…serem  as  RR.,  solidariamente,  condenadas  a  pagar  à  A.  quantia  não inferior a € 17.591,50, pela perda do veículo ..-RB-.., em consequência do acidente acima descrito.

Mais deverá a segunda R. ser condenada a pagar, à A., quantia não inferior a €50,00 por cada dia em que a A. esteja privada do uso veículo sinistrado, por mora no cumprimento, por parte da R.  Seguradora, do contrato  de  seguro  entre  ambas  celebrado, compensação  que,  na presente data ascende a € 13.200,00.

Mais deverão as duas RR. ser condenadas a pagar, à A. juros de mora, à taxa legal, sobre os  montantes indemnizatórios que vierem a ser condenadas a pagar, até integral pagamento.».

Em sede de contestação, e para o que aqui é pertinente:

- a 1.ª R. excepcionou a incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, porquanto «O litígio discutido nos presentes autos refere-se ao exercício de um poder público pela concessionária, que está vinculada ao dever de manutenção e de vigilância das autoestradas, as quais integram o domínio público do Estado.», e, no mais, impugnou a versão carreada pela A.[3];

- a 2.ª R. confirmou a existência de contrato de seguro, alegou que nesse dia houve um acidente de viação na A17 ao km 10,400, sentido Sul/Norte, por força do qual foram projectados destroços para a via de trânsito de sentido contrário, o condutor da viatura automóvel aqui em causa passou sobre esses destroços, danificando a zona inferior e frente da mesma, e em vez de a ter imobilizado, prosseguiu a marcha, sendo este comportamento causal e culposo do agravamento do dano, e os danos agravados não estão cobertos pelo contrato.

A reparação foi estimada em 6925,01 €, único montante que se disponibiliza a pagar à A.

Subsequentemente, a A. pronunciou-se pelo indeferimento das excepções.   

Por despacho que remonta a 12 de Setembro de 2024, tendo em conta que a 1.ª R. foi demandada com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, e a 2.ª R. ao abrigo da responsabilidade contratual, as partes foram convidadas a dizerem o que reputassem conveniente quanto a eventual «…coligação ilegal das RR., por ofensa das regras de competência do Tribunal em razão da matéria (art. 37.º, n.º 1, do Código do Processo Civil)», nada tendo sido transmitido aos autos.

Em Saneador Sentença datado de 29 de Outubro de 2014 foi decidido:

«…Julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal invocada pela 1.ª ré «B..., S.A.», declarando este Juízo Local Cível de Leiria do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos presentes autos e, consequentemente, absolver a 1.ª ré da instância.

- Julgar verificada a excepção dilatória de coligação ilegal de rés, por ofensa das regras de competência em razão da matéria e, nessa conformidade, absolver a 2.ª ré «C..., S.A.» da presente instância.».

II.

Dissentindo, a A. interpôs Recurso de Apelação, culminando as suas alegações estas

«CONCLUSÕES

(…).».

III.

Questão decidenda

Para além da apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):

- Da coligação ilegal das RR., com a absolvição da instância da 2.ª R.

IV.

Do Direito

Perante os termos como vem conformada a instância recursiva, a questão é a de saber se a incompetência absoluta do tribunal recorrido para a apreciação da eventual responsabilidade da 1.ª R. – decisão expressamente aceite pela Recorrente –, determina que o processo finde, com a absolvição da instância da co-R., por coligação ou cumulação ilegal de pedidos, como foi decidido, ou se deve prosseguir para apreciação do(s) pedido(s) para os quais é materialmente competente, como defende a Recorrente.

Após julgar procedente a excepção de incompetência material suscitada pela 1.ª R., o Tribunal justificou a sua decisão, no tocante à co-R., como segue:

«Aqui chegados, resta avaliar a posição da 2.ª ré «C..., S.A.», que é demanda ao abrigo da responsabilidade contratual (contrato de seguro automóvel firmado com a autora com cobertura de danos próprios do veículo).

A cumulação subjectiva não procede da mesma fonte. Vale por dizer que os pedidos em relação à 1.ª e à 2.ª ré emergem de relações materiais distintas.

Dúvidas inexistem que a competência para apreciação da relação material controvertida em relação à 2.ª ré «C..., S.A.» pertenceria aos Tribunais Comuns. Todavia, a coligação pretendida pela autora não é legalmente admissível neste foro, por ofender regras de competência em razão da matéria (artigo 37.º, n.º 1 do Código do Processo Civil).

Com efeito, a incompetência em razão da matéria impede, nomeadamente, a coligação de autores ou réus (artigo 37.º, n.º 1 do Código do Processo Civil), a cumulação de pedidos (artigo 555.º, n.º 1), a formulação de pedidos subsidiários (artigo 554.º, n.º 2), a apensação de acções propostas separadamente e que pudessem ser reunidas num único processo (artigo 267.º, n.º 1) e a extensão da competência do Tribunal às questões deduzidas por via de reconvenção (artigo 93.º, n.º 1 do Código do Processo Civil).

A regra é, pois, a de que o uso concreto das mencionadas faculdades processuais, justificado por critérios de conveniência do autor, não pode envolver a derrogação das normas de competência material.

Acresce não se poder afastar a aplicação de uma competência material expressamente prevista na lei com base em considerações de economia processual ou no risco de contradição ou desarmonia de julgados, como sustentado pela autora. Assim como não se pode afirmar a inconveniência de poderem ser proferidas decisões de mérito por Tribunais com competências materiais distintas, pois os critérios legais para a eventual responsabilização das rés têm diferenças substanciais, desde logo pela diversidade dos institutos jurídicos mobilizados (a 1.ª ré é demandada com fundamento na responsabilidade civil extracontratual e a 2.º ré com base na responsabilidade contratual, ao abrigo de contrato de seguro automóvel firmado com a autora com cobertura de danos próprios do veículo).

Ora, dentro da unidade do sistema jurídico e de acordo com o legislador processual, os inconvenientes de ordem prática da eventual necessidade de propositura de duas acções não poderão sobrepor-se à imperatividade das normas sobre a competência em razão da matéria, que por igualdade de razões impedem as faculdades de coligação de autores ou de réus, de cumulação de pedidos, de apensação de acções ou de extensão de competência por via de reconvenção.

Daí que, por força do estabelecido nos citados normativos legais, os Tribunais Judiciais são absolutamente incompetentes, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos, por o pedido formulado relativamente à 1.ª ré dever ser apreciado no foro administrativo.

A incompetência do Tribunal em razão da matéria constitui excepção dilatória, de conhecimento oficioso em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa, cuja procedência conduz à absolvição do réu da instância – artigos 576.º, n.º s 1 e 2, 577.º, alínea a), 578.º, 278.º, n.º 1, alínea a), 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 98.º e 99.º, n.º 1, todos do Código do Processo Civil.

Relativamente à 2.ª ré «C..., S.A.», visto que a coligação de rés não é admissível, por ofender regras de competência em razão da matéria (artigo 37.º, n.º 1 do Código do Processo Civil), a verificação de tal excepção dilatória, de conhecimento oficioso, acarreta igualmente a absolvição desta ré da presente instância - artigos 576.º, n.º s 1 e 2, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código do Processo Civil.».

Em tese, para que a coligação passiva fosse tida por lícita em linha com o art. 36.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, os tipos de conexão material de que a A., ora Recorrente podia lançar mão para demandar as RR. seriam: por pedidos diferentes, se a causa de pedir fosse a mesma e única ou se os pedidos estivessem entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, ou se, acaso fosse diferente a causa de pedir, a procedência do(s) pedido(s) principal(is) dependesse essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas.

Ou seja, «…na coligação a cumulação de ações resulta da pluralidade de relações materiais controvertidas ligadas processualmente entre si por uma circunstância comum arrolada neste artigo…»[4].

Na base desta opção legislativa depõem a economia e a celeridade processuais, a justa composição do litígio e interesses de ordem pública para obstar à prolação de decisões contraditórias ou divergentes.

Na situação concreta, o certo é que, pese embora sejam diferentes as causas de pedir, a procedência dos pedidos depende, essencialmente, da apreciação dos mesmos factos.

Todavia, o art. 37.º, n.º 1, é linear quanto aos impedimentos processuais, prescrevendo a inadmissibilidade da coligação, v.g., quando a cumulação de pedidos infrinja as regras de competência em razão da matéria, daqui se retirando que a coligação é legítima quando o tribunal seja materialmente competente para a tramitação e julgamento integrado de todos eles.

Quando o pressuposto processual da competência do Tribunal esteja assente apenas para parte dos pedidos formulados, como na situação vertente, há quem se abrigue no argumento – perfilhado pelo Tribunal a quo – que os autos não podem prosseguir, posto que, sendo a coligação facultativa, o respectivo autor poderia ter optado pela propositura de acções separadas.

Com efeito, a decisão de absolvição da 2.ª R. desta instância cível alicerçou-se no entendimento de que, em caso de coligação passiva com cumulação de pedidos, a verificação de um obstáculo à coligação inviabiliza todo o processo, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso.

Contudo, de há muito há quem expenda que a cumulação, no mesmo processo, de pretensões para as quais o tribunal só seja materialmente competente para algumas, deve ter como consequência que o processo continue exclusivamente para o julgamento daquelas para as quais sempre seria originariamente competente, paralisando apenas e tão só as acções relativamente às quais falece a competência do tribunal[5].

Paradigmáticas são as palavras de Alberto dos Reis para quem «A lei exige, como requisito da cumulação, que para todos os pedidos seja competente, em razão da matéria e da hierarquia, o mesmo tribunal. Não pode, por isso, cumular-se um pedido da competência do tribunal comum com um pedido da competência de qualquer tribunal especial (administrativo …».[6]  

E mais à frente, «Suponhamos que a cumulação é ilegal por infracção do requisito relativo à forma do processo ou do requisito relativo à competência do tribunal.

Cumulou-se, por exemplo, .. um pedido da competência do tribunal comum com outro da competência do tribunal do trabalho.

Qual a sanção da ilegalidade?»[7].

«Daqui se vê que a circunstância de se cumularem pedidos com infracção dos requisitos relativos …à competência do tribunal dá em resultado ficar sem efeito um ou alguns dos pedidos. Qual ou quais? 

Naturalmente aquêle ou aqueles a respeito dos quais a forma do processo empregada é imprópria ou o tribunal é incompetente em razão da matéria ou da hierarquia. Se é a incompetência ou o êrro de forma que faz cair o pedido, para que o efeito esteja em correlação com a causa tem necessariamente de admitir-se que o pedido pôsto fora de campo é precisamente aquêle a que se não ajusta a forma de processo adoptada ou de que o tribunal não pode conhecer em razão da matéria ou da hierarquia.»[8]/[9].

Reputa-se ser esta a posição mais consentânea com o quadro normativo vigente.

Salienta, e bem, a decisão em crise, que o pedido e a causa de pedir que se reportam à (2.ª) R. se inscrevem na esfera de competência dos tribunais judiciais, especificamente daquele juízo local cível.  

Razão pela qual, assistindo inteira razão à Recorrente, deve revogar-se a decisão em análise e determinar-se que a acção prossiga os demais termos processuais.

O pagamento das custas processuais responsabiliza a parte vencida, a final (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

VI.

Decisão:

À luz do supra argumentado, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida e determinando que a acção siga os seus ulteriores trâmites processuais.

O pagamento das custas processuais é encargo da parte vencida a final.

Registe e notifique.


      8 de Abril de 2025


(assinatura electrónica – art. 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil)


[1] Juiz Desembargadora 1.ª Adjunta: Dra. Maria Catarina Gonçalves
Juiz Desembargador 2.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves
[2] Denominação que é a correcta, como afirmado no requerimento da A., de 23-04-2024.
[3] Requereu o incidente de intervenção de terceiros (Intervenção Acessória Provocada), de D..., S.A.
[4] Rui Pinto in, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Volume I, 2018, p. 170, nota I.
Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, 3.ª Edição, 2022, p. 72.
[5] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.º 1380/17.4T8PNF.P1, de 11-04-2018, disponível em www.dgsi.pt.
[6] In, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, Volume 3.º, 1964, p. 164.
[7] Idem, p. 167.
[8] Idem, p. 168.

[9] De harmonia com Teixeira de Sousa in, Código de Processo Civil Online (arts. 1.º a 129.º), Setembro de 2024, p. 52, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2024/02/cpc-online-19.html, «2 (a) A coligação exige a competência absoluta do tribunal para todos os pedidos (n.º 1).

4 (a) A incompetência absoluta do tribunal para um ou alguns dos pedidos cumulados constitui uma excepção dilatória (art. 577.º, al. a)) que impede o conhecimento do mérito desse ou desses pedidos.».

Em idêntico sentido depôs Castro Mendes in, Direito Processual Civil, II Volume (Revisto e Actualizado), Edição AAFDL, 1987, pp. 274/275, adiantando que «Se a ilegalidade da coligação resultar de incompatibilidade, esta é substantiva ou adjectiva.

Se resultar de incompatibilidade processual , …o que se verifica é – quanto a um ou aos dois pedidos – um vício de incompetência ou de erro na forma de processo. Assim aqui a consequência será a absolvição da instância, quanto àquele ou àqueles dos pedidos para que o tribunal for incompetente …».

Igualmente, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Volume 1.º, 4.ª Edição, p. 109, referiram «A separação das causas tem também lugar quando só quanto a alguns pedidos o tribunal é incompetente ou a forma do processo é inadequada, mantendo-se no tribunal da propositura a apreciação dos restantes (CASTRO MENDES, Direito processual civil cit., II, ps. 274-275).».