I – Tendo em conta que a usucapião é uma forma de aquisição originária do direito que se funda directamente na posse e tendo em conta que a existência de posse prescinde de título – e, por maioria de razão, de título válido –, a invalidade do acto de fraccionamento que esteja na sua origem (por força do disposto no art.º 1376.º do CC) não obsta ao reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre concretas parcelas do prédio com área inferior à unidade de cultura que tenham resultado desse fracionamento.
II – O abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pressupõe uma actuação contraditória do agente que, ao exercer o direito, contradiz a sua actuação anterior e pressupõe que essa actuação anterior seja idónea para criar em determinada pessoa uma situação de confiança que seja objectiva, justificada, legítima e merecedora de protecção e que seja defraudada pelo exercício do direito em termos que justifiquem a sua paralisação.
III – A conduta (meramente passiva e cujo significado está longe de ser claro) dos réus que, apesar de terem sido notificados no âmbito de execução onde foi penhorado e vendido o direito a ¼ de um imóvel, não reagiram a essa penhora e venda não releva para o efeito de concluir que actuam com abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, quando vêm, posteriormente, invocar a aquisição por usucapião, do direito de propriedade sobre parcelas certas e determinadas do prédio em resultado de uma divisão física e material do prédio que, há muitos anos, havia sido efectuada.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, residente na Estrada ..., ..., ..., ... ..., intentou acção de divisão de coisa comum contra BB e marido CC, residentes em ..., ... ... e contra DD, residente no lugar ..., ... ..., alegando, em resumo:
- Que, tal como os Réus, é comproprietário do prédio rústico que identifica, com a área de 1340m2 e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...12 (o Requerente é titular de uma quota correspondente a ¼, os primeiros Requeridos são titulares de uma quota correspondente a ¼ e a segunda Requerida é titular de uma quota correspondente a 2/4);
- Que não é obrigado nem pretende continuar na situação de compropriedade;
- Que o prédio é indivisível à luz do disposto no artigo 1376º do Código Civil que impede o fraccionamento de terrenos em áreas inferiores à unidade de cultura.
Com esses fundamentos, pede:
A. Que seja fixado o valor do prédio e fixadas as quotas de Requerente e Requeridos supra identificados;
B. Que seja considerado e declarado que o referido imóvel é indivisível em substância, tendo por fundamentos os factos supra expostos.
C. Que se proceda à adjudicação do imóvel ao Requerente ou a cada um dos Requeridos, compensando-se os outros em dinheiro; ou que se proceda à sua venda com a repartição, em conformidade, do produto da venda.
Os Réus CC e mulher, BB apresentaram contestação, impugnando a existência de compropriedade em relação ao identificado prédio e alegando que o mesmo foi dividido de facto e fisicamente, pelos anteriores proprietários, em quatro parcelas, uma das quais – perfeitamente individualizada e delimitada e com a área de 384,40m2 – foi doada aos contestantes por escritura de doação de 09/04/1974 e está na sua posse e dos seus antecessores que dela vêm usufruindo, procedendo à sua exploração e cultivo, colhendo os frutos e pagando as respectivas contribuições, o que é feito há mais de 49 anos, de forma continuada, pública e pacífica e na convicção de que não lesam os direitos de outrem e exercem um direito próprio, tendo adquirido, por isso e por usucapião, o respectivo direito de propriedade.
Sustentam, por isso, que já não existe qualquer compropriedade, que o prédio foi dividido em substância e que adquiriram, por usucapião, a propriedade singular da concreta parcela que lhes coube e vêm possuindo.
Com esses fundamentos, concluem pela improcedência da acção e pedem em reconvenção:
i. - Que sejam declarados proprietários da parcela de terreno destinada a agricultura, com oliveiras e videiras, com área de 384,2 m2, sita em ..., freguesia ..., Concelho ..., a confrontar a norte com caminho, a nascente com EE, a poente com DD, e a sul com AA, omissa na matriz e em sede de registo predial;
ii. - Que se determine a comunicação à Autoridade Tributária para subtracção da área de 384,2 m2, ao imóvel correspondente ao artigo matricial ...03.º, da freguesia ... e Concelho ....
A Ré DD também apresentou contestação e deduziu reconvenção, o que fez em termos semelhantes aos que haviam sido alegados pelos outros Réus, alegando que o prédio foi dividido há mais de 50 anos em quatro partes fisicamente delimitadas e autónomas e que vem exercendo a posse sobre duas dessas faixas de terreno (com as áreas de 363 m2 e 375m2), tendo adquirido uma delas por escritura de compra e venda celebrada em 30/05/2003 e a outra por escritura de compra e venda celebrada em 15/07/2023, sempre respeitando a divisão que havia sido operada no passado e tendo adquirido, dessa forma e por usucapião, o direito de propriedade sobre essas concretas parcelas de terreno.
Conclui pela improcedência da acção e pede, em reconvenção:
a) Que o Autor seja condenado a reconhecer que a Ré é dona e legítima possuidora de duas parcelas de terreno, as identificadas no art.º 30 e 31 da Reconvenção, com a localização, configuração e confrontações aí descritas por as ter adquirido por aquisição prescritiva ou usucapião;
b) Que o Autor seja condenado a reconhecer que, estas parcelas, sorte ou courelas, constituem hoje, dominicalmente, duas fracções autónomas, independentes e distintas das restantes; ou seja, dois novos prédios rústicos que, embora tendo feito parte do prédio rústico identificado no art.º 1 da p.i., com o mesmo não se confunde;
c) Que o Autor seja condenado a reconhecer que a Ré tem o direito a desanexar tais parcelas por subtracção à área do prédio com o artigo matricial ...03.º da freguesia ... ou a proceder ex-novo à inscrição matricial de tais parcelas e bem assim a proceder ao registo das mesmas junto da Conservatória do Registo Predial.
O Autor replicou, impugnando – por desconhecimento – os factos alegados pelos Réus, dizendo ter adquirido ¼ indiviso do prédio em questão no âmbito de leilão electrónico promovido pelo Serviço de Finanças no âmbito de processo em que era executada FF e alegando: que sempre se comportou como titular de uma quota ideal do prédio; que quaisquer actos de posse que tenham sido praticados pelos restantes comproprietários sobre parcelas certas e determinadas o foram sem o seu conhecimento e contra a sua vontade; que os Réus nunca invocaram o seu direito no âmbito do processo de execução em que o Autor adquiriu o seu direito; que a aquisição do referido direito por usucapião não seria possível em face do regime legal imperativo referente ao fracionamento dos prédios rústicos; que as pretensões formuladas pelos Réus configuram abuso de direito tendo em conta a sua inércia por um período prolongado durante o qual não invocaram e não exerceram o seu direito e que, além do mais, a área das parcelas de que os Réus se arrogam proprietários exclusivos, excede a sua área em 117,40m2, sobrando para o Autor uma área de apenas 217,60m2 que sequer representa 1/6 do imóvel.
Conclui pela procedência da acção e improcedências das reconvenções.
Após admissão dos pedidos reconvencionais e prolação de despacho a determinar que os autos seguissem a forma de processo comum – nos termos do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 37.º, n.ºs 2 e 3, 547.º, 549.º, n.º 1, 266.º, n.ºs 2, alíneas a), e 3, e 926.º, n.º 3, todos do CPC – foi realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e delimitados os temas da prova.
Após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu:
“I – Julgar a acção de divisão comum do prédio rústico, sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo matricial ...03, da freguesia ... e Concelho ... totalmente improcedente, por não se verificar um dos requisitos essenciais para a procedência da presente acção – a compropriedade, absolvendo-se os Réus BB, CC e DD dos pedidos;
II – Julgar a reconvenção deduzida pelos Réus BB e CC parcialmente procedente e, em virtude disso, declarar que estes adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela de terreno destinada a agricultura, com oliveiras e videiras, sita em ..., freguesia ..., Concelho ..., a confrontar a norte com caminho, a nascente com EE, a poente com DD, e a sul com AA, a destacar do prédio rústico inscrito na matriz rústica sob o artigo matricial ...03, da freguesia ... e Concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...12, no mais se julgando improcedente a reconvenção;
III – Julgar a reconvenção deduzida pela Ré DD parcialmente procedente e, em virtude disso, declarar que esta adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela de terreno afecta a cultivo, que confronta do sul com a estrada pública, do norte com GG, no nascente com AA e do poente com HH e sobre a parcela de terreno afectiva a cultivo que confronta do norte com o caminho, do sul com a própria, do nascente com BB e do poente com HH, a destacar do prédio rústico inscrito na matriz rústica sob o artigo matricial ...03, da freguesia ... e Concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...12, as quais constituem hoje, dominicalmente, duas frações autónomas, independentes e distintas das restantes, no mais se julgando improcedente a reconvenção”.
Inconformado com essa decisão, o Autor veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
Não foi apresentada resposta ao recurso.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
¨ Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto (saber se há razões para alterar a decisão que julgou provados os factos constantes dos pontos 10 e 11 e a decisão que não julgou provados os factos constantes das alíneas c) e d));
¨ Pressupostos necessários para a aquisição por usucapião (saber se existem elementos para concluir pela inversão do título da posse e saber se a circunstância de não ter resultado apurada a área das parcelas obsta ao reconhecimento da respectiva aquisição por usucapião);
¨ A proibição de fracionamento estabelecida no art.º 1376.º do CC e a sua interferência na usucapião (saber se a usucapião pode operar em relação a parcelas resultantes de divisão do prédio que não era permitida à luz da citada disposição legal);
¨ Abuso de direito (saber se, ao invocar a usucapião, os Réus actuam com abuso de direito modalidade de venire contra factum proprium, pelo facto de terem tomado conhecimento da penhora e venda efectuada no processo de execução onde o Apelante adquiriu ¼ do imóvel e não terem reagido).
III.
Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:
1) O prédio rústico, composto de terreno de cultura com 20 oliveiras e videiras, sito em ..., freguesia ..., Concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...12, com o artigo matricial rústico n.º ...03, que teve origem no artigo ...65, encontra-se descrito na referida conservatória na proporção de 1/4 a favor de AA, pela Ap. ...95 de 23/09/2016, por compra em processo de execução, de 1/4 a favor de BB e de CC, casados entre si, no regime de comunhão geral, pela Ap. ...98 de 21/03/2019, por aquisição por doação, e 1/4 a favor de DD, pela Ap. ...35 de 18/07/2023, por aquisição por compra.
2) Na caderneta predial do prédio referido em 1), encontra-se inscrita a área de 1340m2 e encontram-se actualmente como titulares inscritos, CC, na proporção de ¼, DD, na proporção de 2/4, e AA, na proporção de ¼.
3) Através da escritura denominada por “escritura de doação”, datada de 09/04/1974, II e mulher JJ, casados no regime de comunhão geral de bens, com reserva de usufruto, doaram, por conta da sua legítima a CC e mulher KK, entre outros, um quarto de uma terra de cultura com vinte videiras, sita ao “...”, inscrita na matriz predial sob o artigo ...65.
4) Em momento anterior a Abril de 1974, há pelo menos 40 anos, os anteriores proprietários do prédio referido em 1) acordaram na partilha física de tal prédio em quatro partes/parcelas, definindo as parcelas que caberiam a cada um, explorando tais parcelas individualmente, delimitadas entre si através de marcos cravados no solo, levantamento de estacaria e plantação de cordões de videiras junto às linhas de estrema, dando origem a parcelas de terreno autónomas e distintas entre si, passando cada um dos proprietários a praticar todos os actos inerentes à respectiva parcela, dentro dos limites da parcela que lhe coube, com respeito pelas estremas definidas, apresentando tais parcelas diferentes morfologia e vegetação.
5) Aos Réus CC e mulher KK ficou a pertencer uma parcela, em forma de rectângulo, que confronta a norte com caminho, a nascente com EE, a poente com DD, e a sul com AA.
6) Os Réus CC e mulher KK já na data referida em 3) cultivavam e cuidavam da parcela de terreno referida em 5), por mero favor dos pais do R. CC, tendo a partir de tal data continuado a fazê-lo na qualidade de verdadeiros proprietários, explorando aquela faixa de terreno cavando, lavrando e tratando o terreno, plantando no mesmo produtos hortícolas, cerealíferos e outros de idêntica natureza, plantando fruteiras diversas e oliveiras e vinha, podando-as e tratando-as, colhendo e fazendo seus todos os frutos e produtos gerados com tais actividades, procedendo à sua limpeza, manutenção e conservação constantes, na convicção de que com tais actos não lesavam nem lesam os direitos de outrem, pois que exercem um direito próprio, à vista da generalidade das pessoas, sem oposição ou intromissão de quem quer que fosse.
7) Através da escritura denominada por “Compra e Venda”, datada de 30/05/2003, LL e mulher MM, declararam vender a DD um quarto indiviso de uma terra de cultura com oliveiras e videiras sita em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...65.
8) Através da escritura denominada por “Compra e Venda”, datada de 15/07/2023, NN, OO e OO, na qualidade de herdeiras de GG, declararam vender a DD um quarto indiviso do prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...03 e descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...12, da freguesia ....
9) O ¼ do prédio referido em 7), quando adquirido pela Ré DD já se encontrava perfeitamente autonomizado das demais parcelas, afeta a cultivo, e confronta do sul com a estrada pública, do norte com GG, no nascente com AA e do poente com HH.
10) Desde tal data, 30/05/2003, tomou também a Ré DD de empréstimo de GG a parcela deste, afecta a cultivo, a confrontar do norte com o caminho, do sul com a própria, do nascente com BB e do poente com HH, passando a cultivar e a semear a mesma, até a adquirir em 15/07/2023 como referido em 8), assim como posteriormente.
11) Assim, desde, pelo menos, 30 de Maio de 2003, que a Ré DD, respeitando a divisão operada no passado pelo anteriores proprietários, fez sua a parcela inicialmente adquirida, entrando de imediato na posse daquela, considerando-a como um bem próprio, autónomo, distinto e independente das demais parcelas e sobre a mesma cavava e fresava a terra, procedia ao cultivo de batatas e hortaliças, frutíferas, apanhando azeitona e os frutos das árvores, avivando as linhas de estrema dentro dos limites da sua parcela com absoluto respeito pelas demais, sempre de forma continuada, sem qualquer interrupção, de forma pública à luz do dia, pacífica, de boa fé, como dona, com exclusão de outrem, sem interferência ou intromissão alguma, quer de terceiros, quer dos proprietários das restantes parcelas, incluindo do Autor e de quem lhes antecedeu na propriedade da mesma, com respeito e obediência aos marcos cravejados no solo, estacaria, e demais limites da parcela, na convicção de que exercia um direito próprio.
12) O Autor, no âmbito da venda executiva n.º ...37, em execução fiscal n.º ...13 e apensos, do Serviço de Finanças ..., adquiriu ¼ indiviso do prédio rústico referido em 1).
13) No âmbito do referido processo de execução fiscal, os Réus foram notificados pelo referido Serviço de Finanças da realização da venda na modalidade de leilão eletrónico de ¼ do prédio referido em 1), para, na qualidade de comproprietários, querendo, exercer o direito de preferência a que alude o artigo 1409.º do Código Civil, não apresentando qualquer requerimento ou oposição.
*
Não se julgaram provados os seguintes factos:
a) A parcela referida em 5) dos factos provados tem cerca de 11,30 metros de largura e 34 metros de comprimento, com a área de 384,40m2.
b) O ¼ do prédio referido em 7) tem uma área de 363 m2.
c) Após a aquisição referida em 12) dos factos provados, o Autor comportou-se como sendo titular de uma quota ideal do referido terreno (1/4) e nunca praticou actos de posse sobre parcela certa e determinada, e quaisquer actos praticados pelos restantes proprietários sobre parcela certa e determinada, o foram com o desconhecimento e contra a vontade do mesmo.
d) Teria se ser no âmbito do processo de execução fiscal que os Réus deveriam alegar a questão da divisão do referido prédio e a sua aquisição por usucapião, de modo a obstar que a fazenda Pública vendesse a parcela de terreno referida em 12) dos factos provados.
IV.
Impugnação da matéria de facto
Na impugnação deduzida em relação à decisão proferida sobre a matéria de facto, estão em causa os pontos 10 e 11 dos factos provados e as alíneas c) e d) dos factos não provados.
Analisemos tal impugnação.
(…)
Em relação à alínea d), considera o Apelante que apenas corresponde a matéria de direito, devendo, por isso, ser suprimida.
Tem razão o Apelante.
Já resulta da matéria de facto que os Réus foram notificados, no âmbito do processo onde foi efectuada a venda ao Autor, para, na qualidade de comproprietários, exercerem o direito de preferência e que, na sequência dessa notificação, não apresentaram qualquer requerimento ou oposição.
A questão de saber se era no âmbito desse processo que os Réus tinham que invocar a divisão do prédio e a sua aquisição por usucapião é questão de direito que, nessa medida, não deve ser objecto da decisão a proferir sobre a matéria de facto. Não está em causa um facto que possa ser julgado provado ou não provado em função da prova produzida, mas sim um juízo conclusivo a retirar (ou não) das normas legais aplicáveis e daquela que se entenda ser a sua correcta interpretação.
Elimina-se, portanto, o citado ponto de facto.
Direito
A decisão recorrida julgou improcedente a acção de divisão de coisa comum por ter considerado que não se verificava uma situação de compropriedade e, simultaneamente, julgou procedentes os pedidos reconvencionais que haviam sido deduzidos, declarando:
- Que os Réus BB e CC adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre uma concreta parcela de terreno – ali melhor identificada – a destacar do prédio rústico cuja divisão era peticionada nos autos inscrito na matriz rústica sob o artigo matricial ...03, da freguesia ... e Concelho ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...12;
- Que a Ré DD adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre as duas parcelas de terreno ali identificadas – que constituem duas frações autónomas, independentes e distintas das restantes – a destacar do mesmo prédio rústico (inscrito na matriz sob o art.º ...03 e descrito na CRP sob o n.º ...12).
Tal decisão assentou na partilha e divisão física do prédio em quatro parcelas que, conforme resulta da matéria de facto provada, havia sido efectuada antes de Abril de 1974 (há pelo menos 40 anos) pelos então comproprietários e na posse que, desde então e por força da inversão do título da posse que se considerou ter existido, passou a ser exercida sobre cada uma dessas parcelas e que se entendeu ser bastante para a aquisição, por usucapião, do respectivo direito de propriedade por parte dos Réus CC (no que toca à parcela identificada no ponto 5 da matéria de facto) e por parte da Ré DD (no que toca às parcelas identificadas nos pontos 9 e 10), por ser uma posse pública, pacífica e de boa-fé que se manteve durante o período temporal legalmente exigido para a aquisição por usucapião, mais se considerando que a proibição de fraccionamento do prédio estabelecida no art.º 1376.º do CC não obsta à referida aquisição, por usucapião, das referidas parcelas.
Em função das conclusões das alegações (sendo certo que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso), as razões da discordância do Apelante – os fundamentos do recurso, portanto – são, no essencial, as seguintes:
- Segundo o Recorrente não se verificam os requisitos para a aquisição por usucapião, não só porque da matéria de facto nada se extrai em relação à inversão do ónus da posse, mas também porque não resultou apurada a área das parcelas e esse era um elemento essencial para a inscrição de cada nova parcela destacada;
- Segundo o Recorrente, a aquisição da propriedade das parcelas por usucapião também não podia operar porque implicaria uma divisão do prédio que não é permitida pelo art.º 1376.º do CC e que seria nula nos termos do art.º 1379.º;
- Segundo o Recorrente, os Réus actuam com abuso de direito modalidade de venire contra factum proprium, uma vez que tiveram conhecimento da penhora e venda efectuada no processo de execução onde o Apelante adquiriu ¼ do imóvel e não reagiram a essa penhora
Analisemos então cada uma dessas questões.
Pressupostos para a aquisição por usucapião/inversão do título da posse/área das parcelas
Ainda que isso não tenha sido clarificado nas conclusões das alegações, é possível perceber no corpo das alegações que a questão suscitada pelo Apelante relacionada com a inversão do título da posse prende-se apenas com a parcela referida no ponto 10, aí se sustentando que, ainda que a Ré tenha tomado de empréstimo a quarta parte do terreno aí referida, ela seria uma detentora em nome alheio, e, portanto, para poder adquirir o que quer que fosse por via da usucapião teria que inverter o título da posse e nada se provou sobre essa matéria. Alude ainda, no que toca a esta matéria, ao facto de o negócio de compra e venda celebrado em 15/07/2023 em relação a essa parcela ser incompatível com a inversão do título da posse, incompatibilidade que também, resulta do facto de as herdeiras do falecido GG, terem relacionado a quota de que o mesmo era titular na relação de bens apresentada por seu óbito (cfr. relação de bens: refª: 107443075, verba 9; ainda que se mostre relacionado apenas 1/8).
Conclui, com base nessa alegação, que, pelo menos quanto à quota parte transmitida nos termos daquela escritura (na qual se refere um quarto indiviso) não poderá afirmar-se – como se afirmou na sentença recorrida – que, no caso dos autos, se impõe concluir, “...que os Réus/reconvintes inverteram o título de posse e adquiriram por usucapião, as parcelas identificadas em 5), 9) e 10)”.
Pensamos não ter razão.
É certo que a detenção da parcela referida no ponto 10 por parte da Ré DD corresponde a simples detenção ou posse precária e em nome de outrem (cfr. 1253.º do CC) que, como tal, não faculta a aquisição do direito por usucapião a não ser que se haja invertido o título de posse (cfr. art.º 1290.º).
Sucede que essa detenção da referida Ré foi totalmente irrelevante para a aquisição da sua posse com base na qual se veio a reconhecer a aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Na verdade, a aquisição da posse da Ré sobre a referida parcela não resultou de qualquer inversão do titulo da posse em relação à detenção que exercia em nome de GG (ou respectivos herdeiros), mas sim da tradição da coisa que lhe foi efectuada pelo anterior possuidor por via do contrato de compra e venda celebrado em 15/07/2023, em conformidade com o disposto no art.º 1263.º, alínea b), do CC. Por via desse contrato e subsequente tradição da coisa, os anteriores possuidores (as herdeiras de GG que haviam sucedido na posse deste por efeito do disposto no art.º 1255.º) transferiram para a Ré a posse que se havia iniciado aquando da divisão do prédio (há pelo menos 40 anos) e que, por si (ou eventualmente também pelos seus antecessores), exerciam em nome próprio sobre a referida parcela de terreno.
Está em causa, portanto, uma aquisição derivada da posse (por transferência efectuada pelo anterior possuidor) e que, nessa medida, permitia à Ré juntar à sua posse (assim adquirida) a posse dos respectivos antecessores (conforme previsto no art.º 1256.º do CC) para o efeito de aquisição do direito por usucapião.
A anterior detenção da Ré sobre a referida parcela (nos termos que constam do ponto 10) é, portanto, totalmente irrelevante para a aquisição da posse e para a aquisição do direito por usucapião. A Ré adquiriu a posse por transferência (tradição da coisa) que lhe foi efectuada pelo anterior possuidor e, podendo juntar à posse assim adquirida a posse do seu antecessor, essa posse era relevante e bastante para aquisição do direito por usucapião.
Não tem, portanto, qualquer fundamento a alegação do Apelante quando sustenta que a Ré não poderia ter adquirido, por usucapião, o direito de propriedade da referida parcela por não ter resultado provada qualquer inversão da posse em relação à detenção que exercia em nome alheio. Sendo certo que não resultou provada qualquer inversão do título da posse em relação a essa detenção, a verdade é que não foi por essa via que a Ré adquiriu a posse; a Ré adquiriu a posse – como se disse – por transferência (tradição da coisa) efectuada pelo anterior possuidor, sendo totalmente irrelevante para o efeito a detenção que exercia até esse momento.
Diz também o Apelante que a área das parcelas é um elemento essencial para a inscrição de cada nova parcela destacada, na matriz e no registo predial, bem como para efeitos de rectificar a área do prédio-mãe e que, por isso, não é possível adquirir por usucapião parcela de terreno cuja área não se apurou.
Ora, ainda que a área das parcelas (que, de facto, não se julgou provada) possa ser essencial para concretizar o destaque e a inscrição na matriz e no registo predial de cada uma das parcelas, pensamos não haver razões para afirmar que essa circunstância seja susceptível de impedir ou condicionar a aquisição por usucapião do direito de propriedade em relação a cada uma dessas parcelas, tanto mais que – conforme se julgou provado no ponto 4 – essas parcelas estão delimitadas entre si através de marcos cravados no solo, levantamento de estacaria e plantação de cordões de videiras junto às linhas de estrema. Sabendo-se, portanto, que o prédio foi dividido em quatro parcelas fisicamente delimitadas nos termos referidos e sabendo-se que, pela divisão acordada entre os comproprietários, cada um deles passou a exercer, desde então, uma posse exclusiva sobre a concreta parcela que lhe coube na divisão e dentro dos limites que lhe foram definidos, a mera circunstância de se desconhecer (porque a medição não foi efectuada) a concreta área que está contida dentro dos limites estabelecidos para cada uma das parcelas, não obsta a que se reconheça a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade em relação a cada uma delas se, conforme se considerou na sentença, a posse assim exercida era uma posse relevante para esse efeito e se ela foi exercida durante o período temporal definido na lei.
O mais que poderia resultar do desconhecimento da área de cada uma das parcelas seria uma indefinição dos exactos limites de cada uma. Mas isso é questão que já se prende com a delimitação e demarcação de cada uma delas e que não interfere com o reconhecimento do direito de propriedade dos Réus por via da respectiva aquisição por usucapião.
A sentença recorrida poderá, portanto, não ser suficiente (só por si) para concretizar o destaque das parcelas e proceder aos respectivos registos, na medida em que não indica as respectivas áreas; isso não implica, porém, que não possa ser reconhecida a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre cada uma dessas parcelas.
Improcede assim esta questão.
A usucapião e a proibição de fracionamento estabelecida no art.º 1376.º do CC
No que toca a esta questão, está em causa o disposto no art.º 1376.º, n.º 1, do CC, onde se dispõe que “Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País”, sustentando o Apelante que, por força dessa norma e do disposto no art.º 1379.º onde se determina que é nulo o acto de fraccionamento que viole aquela imposição, a usucapião não pode operar sobre parcela com área inferior à unidade de cultura (como é o caso das parcelas em causa nos autos).
É indiscutível que – conforme se considerou na sentença recorrida sem que tal seja questionado no recurso – a divisão do prédio em causa nos autos em quatro parcelas (que foi efectuada pelos respectivos proprietários há pelo menos 40 anos) viola o disposto no citado art.º 1376.º, n.º 1, sendo certo que não se verifica – não resultou provada – nenhuma situação que se enquadre nas excepções à referida proibição que são estabelecidas no art.º 1377.º.
Resta, portanto, saber se e em que termos a violação dessa norma impede ou condiciona a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre as parcelas do prédio que resultem dessa divisão ilegal.
O art.º 1379.º, n.º 1, fere de nulidade os actos de fraccionamento que não respeitem aquela proibição (ou seja, são nulos os actos de fracionamento dos quais resulte a divisão do prédio em parcelas de área inferior à unidade de cultura), importando notar, no entanto, que a actual redacção dessa norma foi introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 20/08; até à entrada em vigor deste diploma, aqueles actos eram apenas anuláveis nos termos previstos na anterior redacção da norma em questão.
Dentro do quadro legal assim definido, coloca-se agora a questão: é (ou não) possível adquirir por usucapião uma determinada parcela de um prédio com área inferior à unidade de cultura, quando é certo que tal fraccionamento não seria admissível e seria inválido face ao disposto no art.º 1376.º do CC?
A maioria da nossa jurisprudência – que é, aliás, praticamente unânime ao nível do STJ – tem dado resposta positiva a essa questão, admitindo a aquisição por usucapião nas circunstâncias descritas, com o argumento (essencial) de que a usucapião é uma forma de aquisição originária que, como tal, não é afectada pelos vícios que afectem o acto ou negócio que dá origem à posse (a usucapião não seria, portanto, inviabilizada pela circunstância de o acto que deu origem à posse ser um acto inválido por implicar o fraccionamento do prédio que não era legalmente permitido)[1]. Mas há também quem entenda não ser possível a aquisição por usucapião de parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura por tal contrariar as normas de interesse público que proíbem esse fraccionamento (o art.º 1376.º do CC)[2].
A sentença recorrida adoptou a primeira posição (maioritária, como se referiu) e pensamos não haver razões para dela discordar. Em primeiro lugar porque é essa a posição que tem vindo a ser adoptada pelo STJ e, em segundo lugar, porque é essa posição que melhor se conforma com a natureza, configuração e regime jurídico da posse e da usucapião.
Na verdade, conforme se diz no art.º 1287.º, a usucapião corresponde a um modo de aquisição do direito (designadamente o direito de propriedade) que tem como único pressuposto a posse do direito e a sua manutenção pelo lapso de tempo definido na lei e que varia em função das características da posse. É certo, por outro lado, que a posse – traduzida numa relação ou poder de facto que se estabelece entre alguém e uma coisa e evidenciada através de uma actuação correspondente ao exercício de um direito de propriedade ou outro direito real (cfr. art.º 1251.º do CC) – prescinde de título (podendo ser titulada ou não titulada – art.º 1258.º) e, por maioria de razão, da validade do título que tenha ditado o seu início, prescinde da intervenção do efectivo titular do direito e prescinde inclusive da existência de boa fé. A aquisição da posse – e, consequentemente, a aquisição do direito que, após o decurso do lapso temporal definido na lei, ela faculta – prescinde, portanto, de qualquer acto anterior que a tenha legitimado, ignorando os direitos que anteriormente incidiam sobre a coisa, dispensando a intervenção do anterior titular do direito e ignorando, portanto, a situação jurídica até aí existente.
Trata-se, portanto, de uma forma de aquisição originária do direito.
Assim o considera Oliveira Ascensão[3] quando afirma: “A usucapião representa (...) uma forma de aquisição originária. O novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo”.
No mesmo sentido, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[4] “...continua a usucapião a corresponder à prescrição aquisitiva positiva ou aquisitiva, isto é, um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa”.
A mesma ideia é reafirmada por Abílio Vassalo Abreu[5] quando diz: “...a usucapião constitui no nosso ordenamento jurídico (...) uma forma de aquisição originária do direito de propriedade (...). O que equivale a dizer que o direito adquirido por esta via surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior (nem quanto à existência, nem quanto ao âmbito ou conteúdo, nem quanto à extensão ou área de incidência); depende, tão-só, do facto aquisitivo em que o processo da usucapião se analisa”.
Tendo em conta as considerações efectuadas, impor-se-á concluir que a proibição legal de fraccionamento de um prédio apto para cultura em parcelas de área inferior à unidade de cultura (art.º 1376.º) e a consequente invalidade dos actos de fraccionamento que violem aquela proibição não obstam à aquisição dessas parcelas por usucapião, precisamente porque, conforme se disse, a usucapião funda-se apenas na posse e esta, para existir, não carece de título e muito menos de título válido, sendo, por isso, irrelevante qualquer vício, ilegalidade ou invalidade de um qualquer acto que tenha estado na sua origem (no caso, a divisão do prédio que foi realizada pelos respectivos comproprietários antes de 1974).
Alude, no entanto, o Apelante – em reforço da tese que pretende fazer vingar – ao disposto no art.º 48.º, n.º 2, da Lei 89/2019 de 03/09 que, na sua perspectiva, teria natureza interpretativa e teria visado precisamente pôr termo à diversidade de decisões sobre essa matéria, tornando claro que, se a parcela de terreno for inferior à área de cultura, fica excluída a aquisição por usucapião.
Será assim?
A norma em questão vem na sequência da redacção que foi introduzida pela Lei n.º 111/2015 de 27/08 ao art.º 1379.º do CC onde se passou a dispor que os actos de fraccionamento contrários ao disposto no art.º 1376.º são nulos (recorde-se que, até esse momento, o que aí se dispunha era que os actos em questão eram anuláveis). A citada lei n.º 111/2015 veio posteriormente a ser alterada pela Lei 89/2019, passando a dispor no seu art.º 48.º o seguinte:
“(...)
2 - A posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.
3 - São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior.
(...)”.
É certo que esta disposição legal se reporta directamente à usucapião, o que poderá legitimar o entendimento de que não é viável a aquisição por usucapião sempre que a posse tenha origem num acto de fraccionamento que é nulo por contrariar o disposto no art.º 1376.º. Assim se entendeu nos Acórdãos da Relação de Guimarães – citados pelo Apelante – de 05/12/2019 e de 22/10/2020[6], onde se considerou, aliás, que a norma citada tinha natureza interpretativa visando pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática.
Temos dúvidas que assim possa ser considerado.
Importa notar, em primeiro lugar, que a norma citada apenas inviabiliza – tornando nulos – os actos de justificação de direitos, aí se englobando as escrituras de justificação notarial e o processo de justificação previsto no Código do Registo Predial, sem que se diga – pelo menos de modo expresso – que, nos casos referidos, esteja excluída a aquisição do direito por usucapião e que, como tal, esta aquisição não possa ser reconhecida por decisão judicial. Na verdade, a norma em causa não estabelece, taxativamente – nem existe qualquer outra norma que o faça – que a posse mantida sobre parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião[7].
É, no mínimo, duvidoso que o legislador tivesse pretendido excluir, em absoluto, a aquisição do direito por usucapião, quando é certo que não o disse expressamente (reportando-se apenas à nulidade dos actos de justificação) e quando é certo que tal não se compatibiliza com a natureza e o regime da usucapião que, conforme se referiu, assenta apenas e directamente na posse que, dispensando qualquer título, não é afectada ou beliscada pelos vícios ou ilegalidades de títulos ou actos anteriores que tenham antecedido e originado o seu início.
Releva, a propósito e no sentido de explicitar o nosso pensamento, o sumário do Acórdão do STJ de 27/06/2006[8] com o seguinte teor:
“- Invocada a usucapião, como forma de aquisição da propriedade, porque de uma forma de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam os vícios de natureza formal ou substancial.
- O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse. Concorrendo, aferidas pelas características desta, os requisitos da usucapião, os vícios anteriores não afectam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes.
- Porque a usucapião se funda directa e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fraccionamento (falta de escritura pública e área inferior à da unidade de cultura), carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela”.
Pensamos, portanto, ser muito discutível a leitura da norma acima citada com o sentido de ela inviabilizar ou excluir a aquisição por usucapião sempre que ela se funde em posse com origem num acto de fraccionamento que é nulo por contrariar o disposto no art.º 1376.º. Com efeito, se é certo que – como já se disse – a norma não dispõe expressamente nesses termos (como teria que acontecer para que, à luz do disposto no art.º 1287.º do CC, se pudesse ter como excluída a possibilidade de aquisição por usucapião), também é certo que a mera nulidade do acto de fraccionamento (estabelecida no citado art.º 1376.º) não é bastante para afastar a usucapião com base na posse que se venha a iniciar após esse acto nulo. Veja-se a propósito Mota Pinto[9] quando afirma, relativamente à nulidade, que a possibilidade da sua invocação perpétua (a todo o tempo) pode ser precludida pela verificação da usucapião (prescrição aquisitiva) se a situação de facto foi actuada de acordo com os efeitos a que tendia o negócio (nulo). No mesmo sentido, afirma Manuel de Andrade[10] que o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva (usucapião).
A norma citada (o referido art.º 48.º) terá pretendido obstar a actos de justificação que, sem controlo judicial, possam corresponder apenas a meios (mais fáceis) de contornar a proibição legal de fraccionamento, mas, na nossa perspectiva, não terá pretendido inviabilizar que, em tais situações, possa ser reconhecida judicialmente a aquisição do direito de propriedade quando efectivamente se demonstre a posse e os demais requisitos legais da usucapião.
De qualquer modo e ainda que assim não fosse, a norma em causa não seria aplicável na situação dos autos.
Com efeito, dispondo a lei (cfr. art.º 1288.º do CC) que, uma vez invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse, é certo que a legalidade do fraccionamento e as consequências emergentes da sua eventual ilegalidade terão que ser apuradas em face da lei vigente nesse momento (o início da posse)[11].
Ora, no caso dos autos, a posse teve início em momento anterior a Abril de 1974 (data em que os proprietários acordaram na divisão do prédio em quatro parcelas) e, nesse momento, o fraccionamento do prédio não era nulo, como acontece à luz do regime actualmente vigente. Nessa data, o referido fracionamento era apenas anulável conforme estipulava o art.º 1379.º, na sua redacção original (antes da alteração introduzida pela Lei n.º 111/2015). Tal anulabilidade nunca foi invocada e à data em que a lei veio estabelecer a nulidade daquele fraccionamento já haviam decorrido, há muito, os prazos máximos estabelecidos na lei para a usucapião.
Nesse sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 22/11/2022[12] (subscrito pela aqui Relatora na qualidade de adjunta) em cujo sumário se lê:
“I – O disposto no art. 48.º da Lei n.º 111/2015, de 27-08, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2019, de 03-09, não impede que seja reconhecida a aquisição do direito de propriedade, por usucapião, de uma parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura, num caso em que a posse conducente à aquisição de tal direito se iniciou – início em 1995 – e completou antes da entrada em vigor desta Lei.
II – Neste âmbito, com vista a determinar se ocorre violação de regras legais imperativas, o momento que releva é a data do início da posse”.
Ainda sobre essa matéria, dizem Pires de Lima e Antunes Varela[13] o seguinte:
“Se, através de um negócio jurídico nulo (v.g., por falta de forma) se realizar um fraccionamento ou uma troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais (...) Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)”.
Concluímos, portanto, em face de tudo o exposto, que a circunstância de estarem em causa parcelas de terreno com área inferior à unidade de cultura, não obsta ao reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade dos Réus sobre tais parcelas.
Improcede, portanto, esta questão.
Abuso de direito
Sustenta ainda o Apelante – em desacordo com a sentença recorrida – que a invocação da usucapião constitui abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que, apesar de terem tido conhecimento da penhora efectuada no âmbito da execução onde o Apelante adquiriu o direito a ¼ do imóvel, os Réus não reagiram a essa penhora e não invocaram então o seu direito o que podiam e deviam ter feito mediante a dedução de embargos de terceiro ou mediante instauração de acção nos termos e para os efeitos do art.º 172.º do CPPT.
Conclui, por isso, que, por via desse instituto jurídico, deve ficar impedido o exercício do direito do reconvintes de desanexação de parcelas (ainda que com área indeterminada como decidido da na douta sentença) do artigo matricial ...03, mantendo-se o mesmo em compropriedade, seguindo a presente acção, os seus ulteriores termos.
Pensamos não lhe assistir razão.
O abuso de direito vem regulado no art.º 334º do CC onde se dispõe que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Está em causa, portanto, um excesso no exercício de um direito, excesso que é delimitado/determinado em função dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Haverá, portanto, abuso de direito quando o seu exercício exorbita daqueles limites, em termos manifestos, claros e notórios, de tal modo que, nas concretas circunstâncias do caso, ele se evidencia como clamorosamente ofensivo da justiça ou sentimento jurídico socialmente dominante.
Não relevando aqui dissecar ou explorar outras modalidades ou manifestações de abuso de direito, centremo-nos no venire contra factum proprium na medida em que é essa a situação invocada pelo Apelante.
O venire contra factum proprium corresponde, de facto, a uma das manifestações do abuso de direito, correspondendo, em linhas gerais, ao exercício de uma pretensão ou posição jurídica que, sendo incompatível ou contraditória com o comportamento anterior de quem exerce tal pretensão, defrauda a confiança ou expectativa que a outra parte legitimamente adquiriu com base no comportamento anterior do titular do direito.
Como refere Baptista Machado[14], o venire contra factum proprium pressupõe, em primeiro lugar, uma situação objectiva de confiança, sendo que “a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura (…) O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”.
Pressupõe-se, portanto, uma actuação contraditória do agente que, ao exercer o direito, contradiz a sua actuação anterior, podendo dizer-se – como diz Menezes Cordeiro[15] – que “...o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas entre si e diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda”.
Essa actuação ou comportamento anterior – que, sob pena de abuso de direito, não pode ser posteriormente contraditada – tem que ser, no entanto, idónea para justificar uma situação de confiança que seja legítima e merecedora de protecção e que tenha relevância bastante para paralisar o exercício do direito.
E, segundo António Menezes Cordeiro[16], tal acontece – ou seja, justifica-se a protecção da confiança através do venire – quando se verifiquem as seguintes circunstâncias:
“1.º uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.º uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.º um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.º uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.
Segundo se refere nos Acórdãos do STJ 08/09/2021 e de 07/03/2019 (processos n.ºs 564/19.5T8PVZ.P1.S1 e 499/14.8T8EVR.E1.S1, respectivamente)[17], “O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem como pressuposto a existência de uma situação objetiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjetivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada”.
Em idêntico sentido, diz-se no Acórdão do STJ 10/12/2019 (processo n.º 7571/17.0T8CBR.C1.S1)[18] que “ O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium resulta da violação do princípio da confiança, traduzida no facto de o demandante agir, de forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele criadas no demandado, no sentido do não exercício do direito”, afirmando-se no Acórdão do STJ 20/04/2021 (processo n.º 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1)[19] que “Uma das modalidades do abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”.
Olhemos agora a situação dos autos à luz das considerações efectuadas.
O comportamento anterior dos Réus que, segundo o Apelante, teria sido contrariado pela invocação da usucapião nos presentes autos (por via da reconvenção aqui deduzida) corresponde à sua atitude omissa ou passiva perante a penhora de ¼ do imóvel que havia sido efectuada no âmbito da execução onde esse direito foi vendido/adjudicado ao Apelante, uma vez que – segundo o Apelante – os Réus deveriam ter reagido a essa penhora mediante a dedução de embargos de terceiro ou mediante instauração de acção nos termos e para os efeitos do art.º 172.º do CPPT e não o fizeram.
É certo – conforme resulta da matéria de facto – que os Réus foram notificados, no âmbito da referida execução, da realização da venda na modalidade de leilão electrónico de ¼ do prédio aqui em causa, para, na qualidade de comproprietários, exercerem, querendo, o direito de preferência a que alude o artigo 1409.º do Código Civil e é certo que nada fizeram (não apresentaram qualquer requerimento ou oposição).
Será esse comportamento bastante para concluir – como pretende o Apelante – que a invocação da usucapião no âmbito dos presentes autos corresponde a abuso de direito por traduzir um venire contra factum proprium?
Pensamos que não, porque essa actuação (passiva) dos Réus não era idónea para criar no Apelante uma expectativa ou confiança legítimas de que os Réus não viessem a exercer a faculdade (que a lei lhes dava – cfr. art.º 1287.º do CC) de reclamar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinadas parcelas do prédio em questão.
Com efeito, ainda que os Réus tivessem fundamento para deduzir embargos de terceiro no âmbito da referida execução (e não interessa agora saber se tinham ou não), a verdade é que a dedução desse incidente correspondia a uma faculdade que estava à sua disposição e que tinha que ser exercida em prazo curto (cfr. art.º 237.º do CPPT), sendo certo, no entanto, que o não exercício dessa faculdade dentro daquele prazo não fazia precludir o direito de reclamar e fazer valer o seu direito pelas vias normais ainda que após a venda e com a sua eventual anulação nos termos conjugados do art.º 257.º, n.º 1, alínea c), do CPPT e 839.º do CPC.
Por outro lado, o art.º 172.º do CPPT – a que alude o Apelante – apenas nos diz que a acção judicial que tenha por objecto a propriedade ou posse dos bens penhorados suspende a execução quanto a esses bens. Tal disposição, além de deixar claro que a defesa da propriedade ou da posse sobre os bens penhorados pode ser efectuada através de acção judicial (não sendo, por isso, obrigatório que o seja através de embargos de terceiro), não determina que essa acção não possa ser instaurada a todo o tempo; o que essa disposição legal nos diz é apenas que, se essa acção já estiver pendente, ela suspende a execução quanto a esses bens, sem que daí se possa extrapolar para a conclusão de que, não tendo sido instaurada até à venda dos bens, já não o possa vir a ser.
A circunstância de o direito ter sido vendido sem que, até esse momento, os Réus tivessem deduzido embargos de terceiro ou tivessem instaurado acção judicial para fazer valer os seus direitos não precludia, portanto, a possibilidade de virem ainda a invocar o seu direito (no caso, a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinadas parcelas do prédio), fosse por via de acção que instaurassem para o efeito, fosse por via de reconvenção no âmbito de acção contra eles instaurada (como, de facto, aqui aconteceu).
Nas circunstâncias descritas, aquele comportamento dos Réus – puramente passivo e omisso – não tinha idoneidade bastante para criar no Apelante uma expectativa legítima de que não viessem a exercer a faculdade (que a lei lhes dava) de reclamar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinadas parcelas do prédio em questão e, portanto, não era bastante para criar no Apelante a situação de confiança que é pressuposto do venire contra factum proprium e, consequentemente, do abuso de direito. Em bom rigor, nem sequer se poderá concluir pela existência de duas condutas contraditórias por parte dos Réus em termos que permitissem afirmar que a invocação/exercício do direito contradiz a sua anterior conduta, uma vez que essa conduta anterior foi apenas uma conduta passiva cujo significado está longe de ser claro e da qual não era possível inferir – com um mínimo de segurança – que os Réus aceitavam a existência do direito nos precisos termos em que ele estava configurado naquela execução e que, nessa medida, não viessem a contestá-lo nos termos em que agora o fazem.
Admitimos, naturalmente, que o Apelante estivesse convicto de que estava a adquirir o direito a ¼ do imóvel, tendo em conta que era nesses termos que o bem estava ali identificado e anunciado e tendo em conta que ninguém se havia apresentado a contestar esse direito. Mas essa convicção – ainda que legítima – não correspondia a qualquer garantia de que esse direito não viesse a ser contestado pelos Réus ou por qualquer outra pessoa e, sobretudo, não correspondia a uma situação de confiança que lhes tivesse sido criada (ou induzida) directamente pelos Réus no sentido de que não iriam pôr em causa esse direito ou invocar um direito incompatível (como seria necessário para que ocorresse abuso de direito) porque, na verdade, os Réus não fizeram nada e essa passividade não era bastante para criar a situação de confiança justificada que é pressuposto de funcionamento do abuso de direito. A convicção do Apelante quando adquiriu o direito poderá fundamentar a existência de erro e a eventual anulação da venda, mas não basta para fundamentar um abuso de direito por parte dos Réus que possa obstar à invocação da usucapião para o efeito de aquisição da propriedade das parcelas em causa.
Concluímos, portanto, pela inexistência de abuso de direito.
Refira-se que, apesar de o Apelante ter colocado a questão sob o prisma do abuso de direito, aquilo que lhe está subjacente poderá ser encarado, na prática, como invocação de uma eventual renúncia (tácita) dos Réus à usucapião, nos termos previstos no art.º 302.º do CC, aplicável por força do disposto no art.º 1292.º (sendo certo que, em bom rigor, o Apelante parece considerar que, de algum modo e por força da sua falta de reacção à penhora e venda do direito, os Réus teriam prescindido ou renunciado ao direito de invocar a usucapião, nos termos em que o fizeram nos presentes autos).
Na verdade, ainda que o direito de adquirir por usucapião seja, em princípio, irrenunciável, tal renúncia passa a ser possível a partir do momento em que haja decorrido o prazo para a usucapião (cfr. citados artigos 302.º e 1292.º). Ou seja, a partir do momento em que o possuidor esteja em condições de poder invocar a aquisição do direito por usucapião por terem decorrido os prazos legalmente exigidos para o efeito, ele passa também a poder renunciar a essa faculdade (a faculdade de adquirir por usucapião) e essa renúncia pode ser expressa ou pode ser tácita, conforme se diz expressamente no n.º 2 do citado art.º 302.º.
De qualquer forma, ainda que já estivessem em condições de renunciar à usucapião por já ter decorrido o prazo respectivo, a conduta dos Réus a que se reporta o Apelante – traduzida na falta de reacção à penhora e venda do direito a ¼ do prédio realizadas no âmbito da referida execução – não poderia valer como declaração tácita de renúncia à usucapião, na medida em que, pelas razões já referidas, tal conduta (meramente passiva/omissiva) não evidenciava e não revelava com a probabilidade bastante a intenção ou vontade de renunciar àquele direito, como seria necessário para que se pudesse falar em declaração tácita (cfr. art.º 217.º do CC).
Na verdade, a declaração tácita pressupõe que o comportamento ou factos concludentes evidenciem, de forma inequívoca, a vontade/declaração implícita que deles se pretenda extrair, em termos de se poder afirmar que esse comportamento ou factos não deixam fundamento razoável para duvidar daquela intenção e correspondente declaração porque, segundo os usos da vida, eles apontam, com toda a probabilidade (com alta probabilidade), para tal intenção e correspondente declaração[20]. Ou seja, é necessário que esse comportamento ou factos indiciem a vontade de emitir essa declaração com um grau de probabilidade que, em termos de razoabilidade e de acordo com as regras de experiência e senso comum, não deixem muitas dúvidas, em termos de se poder afirmar que seria essa a interpretação e conclusão que um qualquer declaratário normal retiraria do comportamento do declarante.
E, pelas razões acima mencionadas, não é isso que acontece na situação dos autos. A passividade ou silêncio dos Réus em relação à penhora e venda do referido direito não têm, em termos de razoabilidade e de acordo com as regras de experiência e senso comum, força ou significado bastante para daí retirar, com o grau de probabilidade necessário, uma qualquer vontade ou intenção de renunciar ao direito de invocar a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre determinadas parcelas do prédio, tanto mais que os Réus não contestam o direito do Autor a uma parcela (certa e determinada) do prédio correspondente a cerca de ¼ do mesmo e nada permite afirmar que, à data, tivessem plena consciência do alcance da penhora efectuada e dos termos em que ela poderia colidir com o direito que agora invocam sobre aquelas parcelas.
Assim e à luz de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida.
SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Maria João Areias)
(Chandra Gracias)
[1] Neste sentido, os Acórdãos do STJ de 18/06/2019, 30/05/2019, 28/03/2019, 21/02/2019, 08/11/2018, 12/07/2018, 03/05/2018, 01/03/2018, 06/04/2017 e 27/06/2006, proferidos nos processos n.ºs 1786/17.9T8STB.E1.S1, 916/18.8T8STB.E1.S2, 7604/16.8T8STB.E1.S1, 7651/16.0T8STB.E1.S3, 6000/16.1T8STB.E1.S1, 7601/16.3T8STB.E1.S1, 7859/15.5T8STB.E1, 1011/16.0T8STB.E1.S2, 1578/11.9TBVNG.P1.S1 e 06A1471, respectivamente, bem como o Acórdão da Relação do Porto de 12/01/2006, proferido no processo n.º 0536437; o Acórdão da Relação de Lisboa de 15/10/2015, proferido no processo n.º 1737-11.4TBALM.L1-6 e o Acórdão da Relação de Guimarães de 01/02/2018, proferido no processo n.º 290/15.4T8PRG.G1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] É o caso do Acórdão do STJ de 30/04/2015 (proferido no processo n.º 10495/08.9TMSNT.L1.S1), do Acórdão da Relação de Évora de 25/05/2017 (proferido no processo n.º 1214/16.7T8STB.E1) e do Acórdão da Relação de Guimarães de 05/12/2019 (proferido no processo n.º 1167/18.7T8PTL.G1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Direito Civil, Reais, 4.ª edição refundida, 1987, págs. 294 e 295.
[4] Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 64.
[5] Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária Versus Usucapião (“Adverse Possession”), pág. 19.
[6] Proferidos nos processos n.ºs 1167/18.7T8PTL.G1 e 4165/18.7T8VCT.G1, respectivamente, disponíveis em https://www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Acórdão do STJ de 01/03/2018, proferido no processo n.º 1011/16.0T8STB.E1.S2, disponível em https://www.dgsi.pt.
[8] Proferido no processo n.º 06A1471 e disponível em https://www.dgsi.pt.
[9] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, pág. 611.
[10] Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1987, pág. 418.
[11] Cfr. Acórdão do STJ de 24/10/2019, proferido no processo n.º 317/15.0T8TVD.L1.S2, disponível em https://www.dgsi.pt.
[12] Processo n.º 3706/19.7T8VIS.C1, disponível em https://www.dgsi.pt.
[13] Ob. cit., pág. 269.
[14] RLJ, Ano 118º, pág. 171.
[15] Tratado de Direito Civil, V., 2011, pág. 278.
[16] Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, pág.964.
[17] Disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[18] Também disponível em http://www.dgsi.pt.
[19] Igualmente disponível em http://www.dgsi.pt.
[20] Vejam-se, a propósito, e entre outros, os Acórdãos do STJ de 24/05/2007 (processo n.º 07A988) e de 29/09/2022 (processo n.º 19/20.5T8ETR.P1.S1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.