I – O conflito de competências entre os tribunais portugueses e os tribunais suíços, para efeitos de regulação das responsabilidades parentais, é resolvido por via da aplicação da Convenção Relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção das Crianças, adotada na Haia em 19 de outubro de 1996, e aprovada pelo artº 1º do Dec.-Lei n.º 52/2008, de 13 de Novembro, e não pelo Regulamento (EU) mº 1111/2019, de 25 de Junho;
II – Para o efeito de determinar qual o país de residência habitual da criança, há que verificar em qual deles a mesma está mais inserida socialmente e qual tem maior proximidade com a vida da criança, para melhor poder apurar dos factos relevantes à decisão da causa;
III – Se a criança, desde que nasceu e durante, pelo menos, cerca de dois anos, teve a sua residência habitual nesse país e se desconhecem as circunstâncias em que veio para Portugal com a mãe, bem como qual a sua integração no país ou o tempo de permanência aqui, há que considerar que a sua residência habitual se situa na Confederação Suíça.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente AA
Recorrida BB
Criança: CC
Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira
Juízes Desembargadores Adjuntos: Maria João Areias
Chandra Gracias
Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
(…).
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
Nos autos de regulação das responsabilidades parentais, que correram termos no Juízo de Competência Genérica de Castro Daire, a Requerente AA demandou o Requerido BB, alegando, sem síntese, que o Requerido se encontra atualmente a residir em ... ... ..., Suíça, sendo que não entregou o menor à mãe, conforme acordado, no dia 10 de outubro de 2024.
Com tais fundamentos, requereu a regulação das responsabilidades parentais relativas ao menor, filho das partes, mais se requerendo que, a título provisório, seja o menor entregue aos cuidados da mãe.
O Ministério Público proferiu parecer, concluindo nos seguintes termos:
Assim, entendemos que, embora a criança e os seus progenitores tenham nacionalidade portuguesa, a criança neste momento tem a sua residência habitual na Suíça, pelo que ao abrigo dos artigos 9.º, n.º 1 e 10.º do RPTC e artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho competente para a regulação das responsabilidades parentais da criança é o Tribunal com competência em família e menores na área da residência da mesma, devendo, pois, este Tribunal ser declarado internacionalmente incompetente para tal ação, o que desde já se promove.
Foi produzida prova e proferida sentença, decidindo:
De todo o exposto resulta, breviatis causa, que, à luz dos artigos 9.º, n.º 1 e 10.º do RGPTC e artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho, os tribunais internacionalmente competentes para conhecerem do pedido de regulação das responsabilidades parentais da criança são os tribunais suíços por serem os tribunais do Estado-Membro onde a mesma reside habitualmente, razão pela qual se declara a incompetência internacional deste Tribunal e absolve-se o requerido da instância.
A Requerente AA interpôs recurso da referida sentença, concluindo, nas suas alegações, que:
(…).
O Recorrido BB não respondeu ao recurso.
II – Objeto do processo
Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal ad quem às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim:
Questões a decidir:
Da competência internacional dos tribunais portugueses
O supra descrito e ainda que:
Os presentes autos correm por apenso a uns autos de divórcio.
Os autos de divórcio foram intentados a 8 de Outubro de 2024.
À respetiva Petição Inicial foram juntos vários documentos, nomeadamente uma certidão de assento de nascimento e uma sentença (não confirmada em Portugal) de regulação das responsabilidades parentais.
Da certidão de assento de nascimento junta resulta que a criança CC nasceu a ../../2022, sendo filho da Requerente AA e do Requerido BB.
Bem como que nasceu na Suiça, onde ambos os progenitores tinham residência habitual.
Da sentença suprarreferida, datada de 27 de Fevereiro de 2024, resulta que, nessa data, a criança e os seus progenitores continuavam a ter residência na Confederação Suíça.
Na petição de divórcio, a Requerente alega, para além do mais, que:
4. À data da separação, as partes viviam na Suíça, tendo aí sido reguladas as responsabilidades parentais quanto ao filho menor, nos termos da sentença que se junta como documento n.º 3
5. O Réu pretende usar o filho comum para conseguir reatar a sua relação com a A., conforme print de conversa que se junta como documento n.º 4
6. Na verdade, o Réu, sem o consentimento da Autora, levou o filho para a Suíça, estando o mesmo longe da sua mãe e dos seus necessários cuidados.
7. A A. não pretende continuar casada com o R, estando rompido qualquer laço afetivo que os unira, o que confere à Autora o direito ao divórcio, não tendo de ficar presa a uma situação que já não deseja.
8. Estes factos explanados supra justificam a efetiva e definitiva rutura da vida conjugal e familiar deste casal, cujo perpetuar apenas traria mais infelicidade e sofrimento para as partes bem como para os filhos e restante família.
Os presentes autos de regulação das responsabilidades parentais foram intentados a 18 de Outubro de 2024.
B) De Direito
Da competência internacional dos tribunais portugueses
Está em causa saber qual a jurisdição internacionalmente competente para conhecer dos presentes autos, se os Tribunais portugueses, ou se os Tribunais da Confederação Suíça.
Dispõe o artº 9º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, que:
1 - Para decretar as providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado.
2 - Sendo desconhecida a residência da criança, é competente o tribunal da residência dos titulares das responsabilidades parentais.
3 - Se os titulares das responsabilidades parentais tiverem residências diferentes, é competente o tribunal da residência daquele que exercer as responsabilidades parentais.
4 - No caso de exercício conjunto das responsabilidades parentais, é competente o tribunal da residência daquele com quem residir a criança ou, em situações de igualdade de circunstâncias, o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar.
5 - Se alguma das providências disser respeito a duas crianças, filhos dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal em que a providência tiver sido requerida em primeiro lugar.
6 - Se alguma das providências disser respeito a mais do que duas crianças, filhos dos mesmos progenitores e residentes em comarcas diferentes, é competente o tribunal da residência do maior número delas.
7 - Se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do requerente ou do requerido.
8 - Quando o requerente e o requerido residam no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente, o conhecimento da causa pertence à secção da instância central de família e menores de Lisboa, na Comarca de Lisboa.
9 - Sem prejuízo das regras de conexão e do previsto em lei especial, são irrelevantes as modificações de facto que ocorram após a instauração do processo. (sublinhado nosso)
O Tribunal a quo recorre ainda ao disposto no Regulamento (EU) mº 1111/2019, de 25 de Junho, para atribuir a competência aos tribunais suíços.
Porém, há que ter em conta que o referido Regulamento visa dirimir conflitos entre os Estados membros mas a Confederação Suíça não é Estado membro da União Europeia, pelo que não lhe é aplicável tal regulamentação.
É sim aplicável a Convenção Relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção das Crianças, adotada na Haia em 19 de outubro de 1996, e aprovada pelo artº 1.º do Dec.-Lei n.º 52/2008, de 13 de Novembro, cujo artº 5º dispõe que:
1 - As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança.
2 - Com ressalva do artigo 7.º, em caso de mudança da residência habitual da criança para outro Estado Contratante, as autoridades do Estado da nova residência habitual terão a competência. (sublinhado nosso)
Também neste sentido, ver o recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Setembro de 2024, proferido no processo nº 988/23.3T8MCN.P1[1], disponível em www.dgsi.pt.
Em qualquer dos casos – legislação interna, comunitária ou Convenção de Bruxelas -, assume capital importância o conceito de “residência habitual”.
Como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2016[2], proferido no processo 6987/13.6TBALM, disponível na mesma base de dados:
III - O TJUE, por Acórdão de 22-12-2010, considerou que a determinação do conceito de residência habitual há-de ser feita à luz das disposições do dito Regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando 12.º, daí resultando que “as regras de competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade”.
IV - De acordo com esta jurisprudência, o conceito de “residência habitual” corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar, sendo que para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física desta num Estado-Membro, outros factores suplementares (v.g. a duração, a regularidade, as condições e as razões de permanência num território de um Estado-Membro ou da mudança, a nacionalidade da criança, a idade e, bem assim, os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado-Membro) devem indicar que essa presença não tem carácter temporário ou ocasional.
Consequentemente, para o efeito de determinar qual o país de residência habitual da criança, há que verificar em qual deles a mesma está mais inserida socialmente e qual tem maior proximidade com a vida da criança, para melhor poder apurar dos factos relevantes à decisão da causa.
No caso em apreço, tendo em conta os factos trazidos aos autos, supra descritos, sabemos que, na data em que foi instaurada a presente ação (18/10/2024), o menor encontrava-se fisicamente na Suíça, onde vive o seu progenitor, bem como que nasceu nesse país (a ../../2022), onde então também vivia a progenitora, local onde continuavam a residir os três na data de 27 de Fevereiro de 2024.
Consequentemente, desde que nasceu e durante, pelo menos, cerca de dois anos, o menor teve, indubitavelmente, a sua residência habitual nesse país.
Em contrapartida, desconhecemos em que circunstâncias veio para Portugal com a mãe, bem como qual a sua integração no país ou o tempo de permanência aqui.
Também o facto de as responsabilidades parentais terem sido já reguladas na Confederação Suíça, ainda que não estando a sentença reconhecida no nosso país, indiciam a maior proximidade da vida desta criança àquele outro Estado.
Assim, são claramente os Tribunais suíços, os que melhor poderão averiguar das condições em que se encontra a criança e da sua vivência anterior, portanto, que com ela estão numa relação de maior proximidade, sendo os competentes para apreciar da presente causa.
Nestes termos, cumpre julgar improcedente o recurso.
IV - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos Apelantes – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Coimbra, 8 de Abril de 2025
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
Maria João Areias
Chandra Gracias
[1] I - Não sendo a Suíça Estado-Membro da União Europeia, é aplicável, para efeitos de apreciação da competência internacional dos tribunais portugueses em ação de regulação das responsabilidades parentais, a Convenção Relativa à Competência, à Lei aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Proteção das Crianças, adotada na Haia em 19 de outubro de 1996, e aprovada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 52/2008, de 13 de novembro (Convenção de Haia) e não o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11.
[2] E também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto suprarreferido.
Ver ainda, entre outros, acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de Junho de 2022, proferido no processo nº 1110/21.6T8LMG.C1, e de 23 de Janeiro de 2024, proferido no processo nº 1847/2.2T8CLB.C1, ambos disponíveis em www.trc.pt.