I – A interpelação admonitória com fixação de prazo perentório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808º é uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo.
II – No caso dos autos, em que a promitente vendedora se obrigou a expurgar hipoteca que incidia sobre imóvel, e onde foi feita a inclusão de uma cláusula contraditória nos seus próprios termos (A escritura pública de compra e venda ou contrato equivalente (…) será outorgado no prazo máximo de 15 dias (…) após cancelamento da hipoteca voluntária (…), incumbindo a marcação da mesma à primeira outorgante para data não posterior a cinco dias após o final daquele período temporal), ainda que se aceite que as partes não tenham fixado um prazo para o cancelamento da hipoteca, tal não permite concluir que a celebração da escritura pública esteja condicionada ao sucesso na obtenção do cancelamento da hipoteca por parte da promitente vendedora ou que o promitente adquirente permaneça obrigado a aguardar indefinidamente que a promitente vendedora efetue o cancelamento.
III – Na interpretação do contrato e dos demais factos provados, o expurgar da hipoteca apresenta-se como vinculativo para a promitente vendedora, e traduz-se num mero ato acessório, prévio à escritura, a realizar razoavelmente no prazo de 2-3 semanas após a celebração do contrato-promessa, e sempre no pressuposto, comunicado à promitente vendedora, que o promitente comprador necessitava que a escritura se realizasse a breve trecho e ter sido com essa expectativa que o havia celebrado.
IV – Ante as necessidades de celeridade na concretização da compra, oportunamente comunicadas à Ré, o lapso temporal entretanto decorrido (mais de 7 meses após a celebração do contrato-promessa), a razoabilidade do prazo fixado para o cumprimento (leia-se realização da escritura), e a falta de comunicação de qualquer fundamento que obstaculizasse a sua presença ou realização, a não comparência à escritura por parte da promitente vendedora revela a sua recusa definitiva e culposa relativamente à compra e venda prometida.
(Sumário elaborado pelo Relator)
I - Relatório
AA, viúvo, residente na Rua ..., ..., ..., ... ...,
intentou contra
BB, residente na Av. ...., ... ...,
a presente ação sob a forma comum, pedindo, na procedência da ação,
“a) Declarar-se resolvido o contrato de promessa de compra e venda celebrado entre A. e R. e identificado em 1º da p.i., por incumprimento contratual da R.;
b) Condenar-se a R. a restituir ao A. a quantia recebida a título de sinal em dobro, no valor de 30.000,00 € (Trinta mil euros), acrescido de juros legais desde a citação da R. até efectivo pagamento;
c) Reconhecer-se que o A. tem direito de retenção sobre o imóvel identificado no artigo 1º da p.i., até ao pagamento dos valores acima mencionados, com preferência sobre a hipoteca constituída anteriormente”.
Invocou, em curta síntese, ter sido celebrado entre o Autor e a Ré contrato-promessa de compra e venda do prédio que identificou, mediante o qual o A. se obrigou a comprar o dito imóvel pelo valor de € 75.000,00, tendo entregado, aquando da celebração desse contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, o montante de € 15.000, obrigando-se a Ré, para além da venda prometida, a cancelar uma hipoteca que incidia sobre o imóvel, tendo, na sequência, o A. entrado posse do imóvel e efetuado pedido de licenciamento de obras que nele tinham que ser realizadas.
Todavia, segundo referiu, apesar de sucessivas interpelações, a Ré não marcou a escritura de compra e venda, vindo o A. a tomar conhecimento que sobre o imóvel incidia também uma penhora, circunstâncias que motivaram o agendamento da escritura de compra e venda para o dia 03.03.2022, ato a que a Ré faltou, o que revela o incumprimento definitivo do contrato promessa.
(…).
*
O A/recorrido respondeu defendendo o acerto da decisão recorrida, culminando com as seguintes conclusões.
(…).
*
Foram colhidos os vistos, realizada conferência, e obtidos os votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*
II- Questão prévia
No âmbito do recurso o A./recorrido veio requerer a retificação daquilo que considerou um erro material da sentença, ao omitir no ponto II do dispositivo a condenação da Ré no pagamento dos juros devidos, desde a citação, sobre o valor a devolver a título de sinal em dobro (€ 30.000):
“Requer-se assim a V. Ex. a rectificação do aludido lapso manifesto por forma a que a redacção daquele segmento da Decisão (II) estatua o seguinte: Condenar a Ré a devolver a quantia paga a titulo de sinal, em dobro, no valor de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescidos de juros de mora, calculados à taxa civil de 4%, desde a citação e até integral pagamento (artigos 566º, nº2, 805º, nº3, 559, nº1 do CC e Portaria nº 291/03, de 08/04)”.
Como se evidencia do despacho de 24.02.2025, o tribunal recorrido, ao aperceber-se do suscitar dessa questão em sede de recurso, procedeu oficiosamente à retificação pretendida, sendo que as partes nada alegaram para efeitos do art. 614.º, n.º 2 do CPC.
Assim, tendo-se como válida a retificação já decidida, considera-se prejudicada a apreciação dessa questão suscitada na resposta do A.
*
III - Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, de acordo com a respetiva precedência lógica, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
Saber se:
a) O facto provado n.º 18 não deve ser considerado provado
e se
b) A decisão deve ser revogada por assentar na interpretação errada de uma cláusula do contrato.
*
IV - Fundamentação
Para habilitar a decisão das questões a apreciar, passa a transpor-se a factualidade que o tribunal de primeira instância considerou provada e não provada:
“Julgam-se provados os seguintes factos:
1. No dia 02.06.2021 foi outorgado entre o Autor e a Ré um contrato promessa de compra e venda do prédio que teve por objecto o imóvel sito em ... – ..., freguesia ... e concelho ... e inscrito com a matriz predial urbana sob o artigo ...73º proveniente do artigo ...86º e rústica sob o artigo ...80º da secção 006 proveniente do artigo ...22 secção, imóvel esse descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a ficha ...80, pelo preço de €75.000,00 (Setenta e cinco mil euros);
2. Autor e Ré acordaram que o imóvel seria transmitido livre e desembaraçado de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades;
3. Na data da assinatura do referido Contrato Promessa o Autor entregou à Ré, a título de sinal e princípio de pagamento e ainda em reforço do mesmo, a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), a qual a Ré recebeu e fez sua, dela prestando respectiva quitação;
4. Acordaram Autor e Ré que o remanescente do preço, a quantia de €60000,00 (sessenta mil euros), seria pago pelo Autor à Ré, na data da celebração da escritura pública ou de qualquer outra forma escrita permitida por lei para o contrato prometido;
5. Porquanto sobre o prédio prometido transmitir incidia uma hipoteca voluntária a favor de CC para garantia de responsabilidades e obrigações da Ré, mais se ajustou, que o respectivo cancelamento deveria ser assegurado pela mesma;
6. Encontra-se estipulado na cláusula quarta do acordo subscrito por Autora e Ré que:
“1. A escritura pública de compra e venda ou contrato equivalente, respeitante imóvel identificado na clausula primeira, será outorgado no prazo máximo de 15 dias (quinze dias) após cancelamento da hipoteca voluntária constituída a favor de CC, incumbindo a marcação da mesma à primeira outorgante para data não posterior a cinco dias após o final daquele período temporal.
As hipotecas correspondentes às apresentações duas e três de dezoito de fevereiro de dois mil a favor da Banco 1..., S.A. já se encontram liquidadas.
2. O disposto no número anterior não obsta a que a primeira outorgante se tenha que certificar – com a colaboração ativa do segundo outorgante – que toda a documentação já se encontra emitida e entregue para efeitos de outorga do contrato prometido.”
7. Por escrito particular, datado de 14 de Junho de 2021, epigrafado “declaração”, a Ré declarou autorizar o Autor a usar o prédio descrito em 1.;
8. A partir de 14 de Junho de 2021, que o Autor usa e frui o prédio, pagando os consumos de água e electricidade, pedindo os licenciamentos e ainda tendo instaurado os competentes procedimentos de certificação de toponímia e numeração de polícia, dando entrada junto da Câmara Municipal ... do respectivo pedido de execução de obras de conservação, pedido esse deferido pelo mesmo município em 13/10/2021;
9. Acontece que desde a tomada da posse do imóvel que nunca mais a Ré contactou o Autor;
10. Assim, por carta registada com aviso de recepção datada de 18/10/2021, o Autor interpelou a Ré para que a mesma se dignasse a informa-lo, no prazo de 8 dias, qual a data, dia e hora para a celebração do contrato definitivo.;
11. Após boa recepção da referida comunicação a Ré não respondeu;
12. No mesmo dia 18/10/2021 o Autor, interpelou a imobiliária que está a mediar o negócio para que a mesma informasse sobre o ponto da situação da celebração do contrato definitivo;
13. Por carta datada de 19/10/2021, a mencionada imobiliária respondeu ao Autor, dizendo que dependia da vendedora e das condicionantes que constam do próprio contrato;
14. O Autor, por carta enviada a 19/11/2021 e recepcionada pela R. a 22/11/2021 voltou a interpelar a mesma para que esta marcasse até 22/12/2021 a escritura definitiva de compra e venda, acto esse onde deveria atestar que todos os ónus e encargos que oneravam o imóvel prometido deveriam estar cancelados do ponto de vista do registo predial;
15. A Ré nada respondeu;
16. Da certidão permanente do prédio identificado em 1., verifica-se que a hipoteca registada sob a Ap. ...88 de 2013/05/17 ainda se encontra e que pela Ap. ...62 de 2021/07/21 encontra-se registada uma penhora, resultante do processo executivo n.º 1369/21..., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – ... – Juízo de Execução;
17. Mais resulta da consulta à dita certidão que pela AP. ...18 de 2021/08/20 foi recusado o cancelamento da hipoteca registada pela Ap. ...88 de 2013/05/17;
18. No acto de subscrição do contrato-promessa e antes, a Ré declarou ao Autor que a hipoteca associada ao imóvel seria solucionada sem qualquer problema e em não mais de 2-3 semanas;
19. O Autor carecia que a escritura se realizasse a breve trecho e foi com essa expectativa que celebrou contrato-promessa de compra e venda, circunstância que foi comunicada à Ré;
20. Por notificação judicial avulsa, que correu termos no Juízo Local Cível de Porto de Mós, com o n.º 28/22...., através da qual foi comunicada à Ré a designação do dia 3 de Março de 2022, pelas 10h000, no Cartório Notarial ..., a cargo do Dr. DD, para a celebração da escritura publica de compra e venda do imóvel prometido, sob cominação de a não comparência ser interpretada como recusa definitiva e culposa, ao cumprimento do contrato-promessa, notificação essa concretizado no dia 20.01.2022;
21. Chegado o dia designado para a realização da escritura definitiva, a Ré não compareceu;
22. A 9 de Julho de 2021, a Ré deu entrada de um processo de consignação em depósito, que correu termos no Juízo Local Cível de Porto de Mós sob o n.º 378/21...., pedindo a declaração de quitação da obrigação subjacente à hipoteca voluntária registada pela Ap. n.º 1388 de 2013/05/17, no valor de €30.000,00, a favor de CC e de EE, com o depósito do remanescente do valor, na quantia de €5.026,54;
23. No dia 25 de Junho de 2021, CC deu entrada de processo executivo, que corre termos sob o n.º 1369/21...., no Juízo de Execução ..., no qual peticiona o pagamento do valor garantido pela hipoteca, no valor de €13.229,26;
24. Por decisão proferida em 13/5/2022, o processo de consignação em depósito identificado em 22., por apenso A ao processo executivo n.º 1369/21..., no Juízo de Execução ..., foi declarado extinto;
25. Em data não concretamente apurada, em Agosto de 2021, o Autor teve conhecimento que a Ré intentou processo especial de consignação em depósito;
26. Em Maio e Junho de 2021 foi transmitido à Ré que o Autor pretendia ocupar o prédio identificado em 1., o mais depressa possível porque, na sequência da viuvez, pretendia andar ocupado.
3.2 – Factos não provados
a) Que o Autor tivesse conhecimento que o credor hipotecário, Sr. CC estivesse a reclamar da Ré valor muito superior o valor efectivamente em dívida;
b) Que o Autor se tivesse conformado com a possibilidade de não ser logrado o acordo de levantamento da hipoteca com o credor hipotecário, Sr. CC e que por isso tenha sido logo concedida autorização para utilizar o imóvel;
c) Que o documento particular subscrito pela Ré, datado de 14 de Julho de 2021 tivesse como intuito compensar o Autor pela demora causada pelo processo executivo n.º 1369/21...;
d) Que a Ré tivesse transmitido ao Autor que a partir de 2 de Junho de 2021, poderia fazer o que bem entendesse no prédio descrito em 1., porque para a Ré seria uma questão de tempo ter sentença no processo executivo n.º 1369/21....;
e) Que a Ré tivesse baixado o valor do imóvel, face aos valores de mercado e acordado vender o prédio por €75.000,00, por causa da existência da hipoteca a obstaculizar a venda”.
A – Da impugnação da matéria de facto
(…).
*
B – Do erro decisório (jurídico)
No entender da Ré, na decisão recorrida considerou-se erradamente (por não ter o mínimo de correspondência com o texto ou resultar dos factos provados) que o sentido a dar à cláusula quarta do contrato-promessa é o de que o prazo de 15 dias se reporta à marcação da escritura, quando na realidade as partes pretenderam com essa cláusula condicionar a celebração do contrato definitivo ao cancelamento da hipoteca que não se veio a verificar.
É este - o erro interpretação da cláusula quarta -, conjugado com a consideração da mesma cláusula como encerrando uma condicionante (cancelamento da hipoteca) à celebração do contrato prometido o único fundamento para a Ré ter divergido do decidido.
*
Entrando então na abordagem do mérito da decisão.
De acordo com o que resulta provado nos autos:
- No dia 02.06.2021 foi outorgado entre o Autor e a Ré um contrato promessa de compra e venda do prédio (…) descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob a ficha ...80, pelo preço de € 75.000,00 (Setenta e cinco mil euros);
- Autor e Ré acordaram que o imóvel seria transmitido livre e desembaraçado de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades;
- Na data da assinatura do referido contrato promessa o Autor entregou à Ré, a título de sinal e princípio de pagamento e ainda em reforço do mesmo, a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros),
- Acordaram Autor e Ré que o remanescente do preço, a quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros), seria pago pelo Autor à Ré, na data da celebração da escritura pública ou de qualquer outra forma escrita permitida por lei para o contrato prometido;
- porquanto sobre o prédio prometido transmitir incidia uma hipoteca voluntária a favor de CC para garantia de responsabilidades e obrigações da Ré, mais se ajustou, que o respetivo cancelamento deveria ser assegurado pela mesma;
- encontra-se estipulado na cláusula quarta do acordo subscrito por Autora e Ré que:
“1. A escritura pública de compra e venda ou contrato equivalente, respeitante imóvel identificado na clausula primeira, será outorgado no prazo máximo de 15 dias (quinze dias) após cancelamento da hipoteca voluntária constituída a favor de CC, incumbindo a marcação da mesma à primeira outorgante para data não posterior a cinco dias após o final daquele período temporal.”
Quando se atente na decisão recorrida, de imediato se evidencia que, contrariamente ao sustentado pela recorrente, em momento algum o tribunal recorrido estabeleceu como sentido a dar à cláusula quarta o de que “o prazo de 15 dias se reporta ao cancelamento do ónus e a marcação da escritura” (alínea c) das conclusões), antes o de que “a Ré se comprometeu a obter o cancelamento da hipoteca em 2-3 semanas (15 dias), e a agendar a celebração da escritura definitiva nos dias imediatamente seguintes (5 dias)”.
E, a este propósito, não sobram dúvidas que o n.º 1 da cláusula quarta do contrato-promessa se apresenta contraditória nos seus próprios termos:
i) fixa o limite temporal para a celebração da escritura/ato equivalente para os 15 dias imediatos cancelamento da hipoteca
e
ii) determina que a vendedora marque a escritura para data não posterior a 5 dias após o aludido limite temporal (ou seja, já depois de esgotado o limite temporal para a celebração da escritura).
Na ausência de facto provado que revele inequivocamente a vontade real das partes, apresenta-se-nos razoável, no sentido de ultrapassar a aludida contradição, com o alcance aproximado ao que se fez na primeira instância, a incluir a ponderação dos factos provados 18 e19, considerar-se que as partes, embora não tenham fixado um prazo limite para a Ré cancelar a hipoteca, aceitaram como razoável que a mesmo se faria em 2/3 semanas, e que, a partir de então, em 5 ou 15 dias, seria marcada a escritura/ato equivalente.
Seja como for, há duas leituras que essa cláusula não consente; a de que a celebração da escritura pública estivesse condicionada ao sucesso na obtenção do cancelamento da hipoteca por parte da promitente vendedora com o sentido e alcance a que se refere o art. 270.º do código Civil, e, na decorrência, que o promitente adquirente estivesse obrigado a aguardar indefinidamente que a promitente vendedora concretizasse o cancelamento desse ónus a que expressamente se obrigara.
Defender, como fez a recorrente, que a celebração do contrato definitivo dependia do cancelamento dos ónus do contrato e que o prazo de 15 dias para a marcação da escritura só se iniciava a partir desse cancelamento, e, nessa exata medida, sujeitando a celebração do contrato a uma condição que, a não se verificar, impede indefinidamente a celebração do contrato prometido, ou não demanda que seja celebrado – o que é dizer o mesmo –, não apresenta qualquer suporte.
E não apresenta porque, na interpretação da cláusula e dos demais factos provados, o expurgar da hipoteca apresenta-se como vinculativo para a promitente vendedora, e traduz-se num ato acessório, prévio à escritura, a realizar no prazo que a própria promitente vendedora considerou bastante - 2-3 semanas após a celebração do contrato-promessa - e sempre no pressuposto, comunicado à Ré, que o A. necessitava que a escritura se realizasse a breve trecho e sido com essa expectativa que celebrou contrato-promessa.
*
A nossa legislação substantiva define o contrato-promessa como a convenção através da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato, mandando-lhe aplicar as disposições relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que por sua razão de ser, não se devem considerar extensivas ao contrato-promessa (art. 410.º do C. Civil).
Galvão Telles (Obrigações, 7ª edição, p. 102) define o contrato-promessa como o “acordo preliminar que tem por objecto uma convenção futura, o contrato prometido. Mas em si é uma convenção completa, que se distingue do contrato subsequente. Reveste a natureza de contrato obrigacional, ainda que diversa seja a índole do contrato definitivo. Gera uma obrigação de prestação de facto, que tem apenas de particular consistir na emissão de uma declaração negocial. Trata-se de um pactum de contrahendo”.
Em função da sua natureza de contrato preliminar o contrato-promessa vincula os seus outorgantes à celebração do contrato prometido, que deve ter o mesmo conteúdo do pré-contrato, implicando para todos os outorgantes uma obrigação de facere consubstanciada na obrigação de emissão das declarações negociais que constituirão o definitivo conteúdo contratual.
Trata-se, no caso dos autos, de um contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 02.06.2021 em que o A. se obrigou a comprar, e a Ré a vender, o imóvel acima identificado.
O negócio prometido devia ser realizado no prazo de 5 ou 15 dias (?) após o cancelamento da hipoteca que sobre ele se encontrava constituída, sendo que
- antes e aquando da outorga do contrato-promessa, a Ré declarou ao Autor que a hipoteca associada ao imóvel seria solucionada sem qualquer problema e em não mais de 2-3 semanas;
- o Autor necessitava que a escritura se realizasse a breve trecho e foi com essa expectativa que celebrou contrato-promessa de compra e venda, circunstância que foi comunicada à Ré.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos – “pacta sunt servanda” - (art.º 406º do Cód. Civil) e quando assim não acontece, quando ocorre um qualquer desvio entre a execução do contrato e o programa negocial, verifica-se um “inadimplemento”, que, em certos casos, confere ao credor um direito de resolução legal.
De acordo com o regime legal previsto, sempre que a prestação se torne impossível por culpa do devedor ou nos casos em que a violação e/ou desvio do programa negocial assumem importância e gravidade que justifiquem o desaparecimento do interesse do credor na manutenção da relação contratual, confere a lei ao credor o direito de resolução (cfr. art. 793.º, n.º 2, 801.º, n.º 2, 802º, n.º 1, 808º todos do CC).
Direito de resolução legal que, assim configurado, se apresenta como um direito potestativo extintivo dependente de um incumprimento grave cuja definição, em primeira linha, pertence ao credor, a quem compete a sua invocação.
Assim, visando por norma o credor conseguir, com o cumprimento exato e pontual da obrigação, quer uma finalidade de uso quer uma finalidade de troca, deverá em princípio ser considerada grave toda aquela inexecução ou inexatidão do cumprimento que torne inviável um certo emprego do objeto da prestação ou que impossibilite o credor de a aplicar ao uso especial que tinha em vista.
Para além dos casos em que a mora, em conjugação ou não com outras causas, fez desaparecer o interesse do credor na prestação, há que ter em conta todos os outros em que tal não acontece mas nos quais não seria legítimo obrigar o credor a esperar indefinidamente pelo cumprimento.
Não seria justo manter o credor indefinidamente vinculado ao contrato (inibindo-o designadamente de fazer uma aquisição substitutiva ou de por qualquer outro modo prover à satisfação da necessidade que o levou a contratar) visto que ele, embora com direito, ficaria sempre sujeito a ter de cumprir, bem como a ter de receber a prestação retardada.
De acordo com o previsto no art. 808.º, n.º 1 do Cód. Civil, é legítima a fixação de um prazo suplementar razoável - mas perentório - dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob pena de resolução automática do negócio, a designada interpelação cominatória.
Trata-se de um remédio concedido por lei ao credor para os casos em que não tenha sido estipulada uma cláusula resolutiva ou um termo essencial nem ele possa alegar, de modo objetivamente fundado, perda do interesse na prestação por efeito da mora.
Constitui, como alguns autores referem, um meio especial de “autotutela privada” que faz do credor árbitro da sorte da relação.
Por esta via, o credor fica legitimado para provocar unilateralmente uma modificação da relação, introduzindo nela um elemento novo, ou seja, um novo prazo de cumprimento que se caracteriza pela sua perentoriedade.
A interpelação admonitória com fixação de prazo perentório para o cumprimento a que se refere a segunda parte do n.º 1 do art. 808º é, pois, uma intimação formal dirigida ao devedor moroso para que cumpra a sua obrigação dentro de certo prazo determinado, sob pena de se considerar o seu não cumprimento como definitivo.
Assim, através da fixação de um prazo perentório, obtém-se uma clarificação definitiva de posições.
Decorridos que estavam mais de 7 meses (!) sem que a escritura tivesse sido agendada, e valendo o consensualizado entre as partes quanto ao prazo razoável para o cancelamento da escritura (2-3 semanas), foi exatamente a esse remédio que os AA. recorreram, agendando a marcação da escritura para o dia 03.03.2022 e comunicando que o não comparecimento no ato seria interpretado como recusa definitiva e culposa ao contrato-promessa.
Estamos, inequivocamente, perante uma interpelação admonitória, que, ante a não comparência ao ato por parte da Ré, valida, numa apreciação objetiva, a consideração como incumprimento definitivo.
É que, ante as necessidades de celeridade na concretização do negócio, oportunamente comunicadas à Ré, o lapso temporal entretanto decorrido após o que se considerou bastante para o cancelamento da hipoteca, a razoabilidade do prazo fixado para o cumprimento/escritura, e a falta de comunicação à A. de qualquer fundamento que obstaculizasse a sua presença no ato ou a realização da escritura, a falta de comparência apresenta-se como recusa definitiva e culposa por parte da Ré relativamente à prometida compra e venda.
Num quadro como o pintado nos autos, a realidade da vida – é a essa a que o direito tem que responder - permite ter como abalado de forma decisiva o interesse do credor no cumprimento.
Na certeza de que o direito à resolução tem de ser aferido à luz da gravidade do incumprimento, segundo um critério objetivo (relevando a projeção do concreto incumprimento, quanto à sua natureza e extensão, no interesse do credor), no caso dos autos estamos em presença de uma mora que, pela sua dimensão temporal, e pela prévia interpelação admonitória, permite sustentar a perda de interesse do A., não sendo legítimo exigir-lhe que continue a aguardar que a contraparte assegure as condições para o ato de transmissão.
Estamos, por isso, em presença de incumprimento definitivo, com base na falta de interesse do credor (A.) em consequência da mora, a viabilizar o exercício do seu direito potestativo à resolução do contrato-promessa.
Impõe-se, como tal, a confirmação do decidido.
*
Sumário[3]
(…).
*
V - DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em:
a) considerar prejudicada a apreciação da questão suscitada em sede de recurso quanto à retificação do texto decisório (juros de mora), uma vez que, entretanto, oficiosamente, o tribunal recorrido, por despacho de 24.02.2025, procedeu à retificação pretendida, nada tendo as partes alegado para efeitos do art. 614.º, n.º 2 do CPC.
b) julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.
*
Custas a cargo da recorrente.
Coimbra, 8 de abril de 2025
(Paulo Correia)
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(Maria João Areias)
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(Catarina Gonçalves)