CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
REGIME
PRESSUPOSTOS
TENTATIVA
INSTRUMENTO PERIGOSO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
Sumário

I - O atual artigo 145º do CP, diferentemente do anteriormente estipulado no artigo 146º do CP, autonomizou a moldura penal correspondente à ofensa à integridade física qualificada simples (artigo 145º, n.º 1, al. a)), da moldura penal correspondente à ofensa à integridade física qualificada grave (art. 145º, n.º 1 al. b) e refere expressamente que as ofensas à integridade física, produzidas em circunstância que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, são punidas com prisão até quatro anos no caso do artigo 143º.
II - A tentativa deste crime é punível sempre que o agente pratica actos de execução do crime de ofensa à integridade física, sem que este chegue a consumar-se, em circunstâncias (integráveis ou análogas às referidas nos exemplos-padrão do art. 132º-2) suscetíveis de revelar especial censurabilidade.
III - O uso de uma forquilha com as suas pontas de ferro, pesadas e afiadas, com alta capacidade lesiva é o uso de um meio suscetível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos nomeadamente perigo para o bem jurídico vida, bem jurídico importante que o uso daquele instrumento é suscetível de pôr em perigo e ofender, por isso entendemos que se trata do uso de um meio particularmente perigoso quando usado para ofender a integridade física, já que os meios normalmente usados para ofender a integridade física são as mãos, os pés, caso da bofetada, do murro e do pontapé, o corpo, caso do encontrão e empurrão, fustiga ou chibata, cinto, pedra e paus, etc.
IV- Não há nos factos provados qualquer razão que permita minimamente compreender o comportamento do arguido, cuja motivação ainda que não concretamente apurada se perfila, atentos os factos e o seu encadeamento, como uma motivação fútil, tendo o arguido de dia e na via pública desviado o seu trajeto viário para ir ao encontro do assistente, espelhando o seu comportamento um dolo direto muito intenso, tendo perseguido o assistente brandindo uma forquilha com violência e dizendo vou-te matar, razões pelas quais entendemos que o arguido se tornou com o seu comportamento merecedor de um severo e muito especial juízo de censura pelo acrescido desvalor que tal conduta encerra.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Rec. Penal n.º 299/22.1GBVFR.P1

Comarca de Aveiro

Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira

Acordam, em Conferência, na 2ª secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I-Relatório.

No Processo Comum Singular n.º 299/22.1GBVFR do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Comarca de Aveiro, Juiz 2, foi submetido a julgamento o arguido AA identificado na sentença.

Após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença datada de 30.09.2024, com o seguinte dispositivo:

«Nos termos expostos, decido:

1). Absolver o arguido AA da prática do crime de ofensa à integridade física na forma tentada que lhe era imputado.

2). Condenar o arguido e demandado civil AA a pagar ao assistente e demandante civil BB a quantia de € 800 (oitocentos euros).

3). Condenar o assistente nas custas criminais do processo, fixando a taxa de justiça no mínimo legal – artigo 515.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

4). Condenar demandante e demandando nas custas cíveis do processo, na proporção do respectivo decaimento – artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi o artigo 523.º do Código de Processo Penal.

(...)»


*

Inconformado com a precedente decisão o MP veio interpor recurso, apresentando a competente motivação, que rematou com as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso versa a questão de saber se, do enquadramento jurídico-penal dos factos assentes como provados, resulta configurada a autoria do crime de ofensa à integridade física, na forma tentada, com a qualificativa de “meio particularmente perigoso”, nos termos do art. 132.º, nº 2, al. h), do CP, pelo uso da forquilha que, imputada ao arguido, foi deste absolvido.

2. O crime é qualificado se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente (art. 145º, nº 1 do C. Penal), sendo suscetíveis de revelar estas qualidades, entre outras, as circunstâncias previstas no 2 do art. 132º do C. Penal.

3. A especial perversidade supõe uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, que revelam um egoísmo abominável.

4. A especial perversidade, tem a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui em relação à desconformidade, já de si grande, subjacente à prática de um crime simples, embora, não seja pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; para tanto que é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade.

5. O crime de ofensa à integridade física imputado ao arguido é qualificado com fundamento na previsão da al. h) do n.º 2 do art. 132º, no segmento de utilização de "meio particularmente perigoso", sendo que, a apetência do meio para ser particularmente perigoso tem de ser aferida e correlacionada com o ato ofensivo ou lesivo da integridade física.

6. O “meio particularmente perigoso” para efeitos do crime de ofensa à integridade física, é nos termos da lei reportado à utilização de um instrumento, um método ou um processo que dificulte exponencialmente a defesa da vítima e que crie ou seja suscetível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes.

7. Meio particularmente perigoso é, assim, sinónimo de meio muito desproporcional a causar o resultado pretendido pelo agente, ou seja, que para além deste resultado visado, coloca ou tem virtualidade de colocar em perigo outros bens jurídicos, em enorme desproporção com aqueles que era necessário e suficiente colocar em perigo para obter o fim pretendido pelo agente.

8. As características do objecto utilizado não podem ver-se em abstrato, mas sim em concreto, não devendo atender-se unicamente à espécie ou características do instrumento, mas a um conjunto de elementos, factos e circunstâncias de que resulta o modo como o mesmo foi usado, para daí se inferir se tal uso era suscetível e adequado a causar graves danos para a saúde ou fazer perigar a vida.

9. A utilização da forquilha para atingir o assistente pela sua evidente característica perfurante, acarretava acrescidas dificuldades de defesa e assumia um manifesto maior potencial lesivo, factualidade esta que é suficiente para preencher o elemento subjetivo relativo à circunstância qualificativa traduzida na utilização de um meio particularmente perigoso, como ao arguido foi imputado em acusação.

10. A conduta do arguido ao utilizar a forquilha para perseguir o assistente procurando atingi-lo, anunciando que o matava, integra a qualificativa do crime de ofensa à integridade física, ainda que, na forma tentada, pelo uso de meio particularmente perigoso, sendo, pois, da natureza deste utensílio que resulta a especial censurabilidade do agente e daí que esteja verificada a circunstância prevista na alínea h) do nº 2 do art. 132º do C. Penal.

11. Decidindo de modo diverso, a sentença “a quo” violou o disposto nos artigos 22º, 23º, 143º, 1, 145º, 1, al. a) e 2 “ex vi” art.º 132º, 2, al. h), todos do Código Penal.

Nestes termos e nos demais de direito aplicável, e o douto suprimento de Vossas Excelências ― que sempre se espera, é de conceder integral provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e, em consequência, ser substituído por outro que, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada, determine a condenação do arguido pela sua autoria.


*

O arguido não respondeu.

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Nesta Relação, o Exmo. Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer fundamentado em jurisprudência no sentido da procedência do recurso.

Foi cumprido o artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o assistente oferecido resposta na qual se associou ao Parecer do Exmo. PGA.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II- Fundamentação.

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

1.-Questões a decidir.

Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- Tentativa de crime de ofensa à integridade física qualificada?

- No caso da procedência da questão anterior tirar as devidas consequências.


*

2. Factualidade.

Segue-se a enumeração dos factos provados e não provados, tal como constam da sentença sob escrutínio:

«Matéria de facto provada

Da acusação pública:

Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto:

1.- No dia 7 de Maio de 2022, pelas 15:30 horas, o arguido AA conduzia a viatura automóvel ligeira de mercadorias da marca Peugeot, modelo ..., de cor branca e com a matrícula ..-BU-.., de que é proprietário, na Rua ..., Santa Maria da Feira.

2.- Naquela ocasião, o arguido por motivo não concretamente apurado, mas que estará relacionado com uma disputa no trânsito ocorrida momentos antes, deu sinais de luzes, buzinou e encostou o seu veículo à retaguarda do veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca Opel, modelo ... e com a matrícula ..-DP-.., conduzido por BB.

3.- Ao constatar que aquele ia parar na Bomba de Combustíveis A..., em ..., Santa Maria da Feira, foi no seu encalço e ultrapassou-o.

4.- Aí chegado, o arguido parou o veículo automóvel que conduzia e retirou do interior da bagageira uma forquilha, dirigindo-se, em acto contínuo, para a viatura conduzida pelo ofendido BB.

5.- Ao aperceber-se de tal facto, BB abriu inopinadamente a porta do condutor, batendo com a mesma na parte lateral direita do veículo automóvel de matrícula ..-ES-.., então conduzido por CC.

6.- De imediato, o arguido, sempre munido com a referida forquilha, perseguiu na via pública o ofendido BB, dizendo-lhe em voz alta e em tom sério, “vou-te matar”, sem, contudo, lograr alcançá-lo.

7.- O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, não conseguido, de molestar fisicamente BB, bem sabendo que uma forquilha é um instrumento particularmente perigoso, dado o seu elevado carácter perfuro-contundente.

8.- AA estava também ciente que a sua conduta é proibida e punida por lei.


*

Do pedido de indemnização civil:

1.- A conduta do arguido causou perturbação, medo e ansiedade ao assistente.

2.- Aliás, a violência com que brandiu a forquilha, acompanhada da afirmação “vou-te matar”, levou a que o assistente, sentisse de forma intensa a possibilidade de atentado contra a integridade física.

3.- Tudo acontecendo, à luz do dia, em plena via pública, o que envergonhou bastante o Assistente, tanto mais que se encontrava na presença de pessoas conhecidas e desconhecidas.

4.- E, para além do mal-estar e desgosto, bem como a perturbação e a tensão da situação, o Assistente sentiu a sua integridade física colocada em causa.

Mais se provou com relevância para a determinação da sanção aplicável:

1.- Após a realização do julgamento, o arguido apresentou um pedido de desculpa ao assistente.

2.- À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais.

3.- O arguido tem o 4.º ano de escolaridade e trabalha numa fábrica de componentes para a indústria automóvel, auferindo o vencimento de € 820 mensais.

4.- Vive com a sua mulher, a qual é cozinheira na cantina de uma fábrica, auferindo também o salário mínimo nacional.

5.- O casal tem um filho, de dezanove anos de idade, estudante universitário, suportando os progenitores a quantia de € 600 anuais de propinas e € 280 mensais pelo alojamento num quarto na Cidade ....

6.- O agregado familiar reside em casa própria pagando uma prestação bancária de € 250 mensais, atinente ao crédito contraído na sua aquisição.

7.- O casal tem dois veículos automóveis, um da marca “Peugeot”, modelo ..., do ano de 2003, outro da marca “Ford”, modelo ..., do ano de 2012, pagando uma prestação bancária de € 300 mensais do crédito contraído para sua aquisição.


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Matéria de facto não provada

Do pedido de indemnização civil:

a).- Por força do comportamento e conduta do Arguido, a porta do veículo onde se deslocava o Assistente ficou gravemente danificada, carecendo, pois, de ser reparada, sendo que o dito custo de reparação se cifra em € 2.082,88 (dois mil e oitenta e dois euros e oitenta e oito cêntimos).»


*

3.- Apreciação do recurso.

3.1.- Tentativa de crime de ofensa à integridade física qualificada?

Sustenta o Ministério Público que os factos integram uma tentativa do crime de ofensa á integridade física qualificada, em virtude do meio usado pelo arguido ser um meio particularmente perigoso.

O Tribunal a quo fundamentou a subsunção jurídica dos factos do seguinte modo:

«Ao arguido é imputada a prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), 22.º e 23.º, todos do Código Penal.

Os crimes de ofensas à integridade física – simples e qualificada – encontram-se tipificados, nos seus elementos essenciais no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, cuja redacção é a seguinte:

«Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.».

O crime de ofensa à integridade física simples surge como o tipo fundamental em matéria de crimes contra a integridade física. É a partir da “ofensa ao corpo ou à saúde de outrem” que se arquitecta uma série de variações qualificadas, como a ofensa à integridade física grave, agravada pelo resultado, qualificada, e privilegiadas e por negligência.

O bem jurídico protegido por esta norma é a integridade física da pessoa humana. Trata-se de um crime material e de dano pois o tipo legal abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente (artigo 10.º do Código Penal).

Assim, o tipo legal do artigo 143.º do Código Penal fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde independentemente da dor ou do sofrimento causados ou de uma eventual incapacidade para o trabalho. Não relevam igualmente os meios empregues pelo agressor, ou a duração da agressão, circunstâncias que, no entanto, são consideradas em sede de determinação da medida concreta da pena.

A lei distingue duas modalidades de realização do tipo: a) ofensas no corpo, entendidas como todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante e b) ofensas na saúde, considerando-se aqui toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica, sendo certo que a ofensa ao corpo, para ser ilícita e assim merecer tutela penal, não poderá ser insignificante. Com efeito, a apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendido, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes deverá partir de critérios objectivos (duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade da tutela penal), se bem que não perdendo totalmente de vista factores individuais (Paula Ribeiro de Faria, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, páginas203 a 210).

Revertendo ao caso dos autos.

Vistos os elementos do tipo dúvidas não existem quanto ao preenchimento dos elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física, todavia apenas sob a sua forma tentada, já que o arguido, empunhando uma forquilha, perseguiu o assistente com o objectivo de o atingir com aquele objecto no seu corpo, o que apenas não conseguiu por o assistente ter logrado fugir.

Ora, no nosso ordenamento jurídico, a tentativa do crime de ofensa à integridade física qualificada é criminalmente irrelevante.

Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 23.º do Código Penal que: «Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão.», pelo que, estando em causa a tentativa do crime de ofensa qualificada por referência ao tipo simples do artigo 143.º do Código Penal, a moldura abstracta a considerar é a de tal inciso incriminador, a qual não só não excede os três anos de prisão, como também não pune autonomamente a tentativa.

Na realidade, a tentativa do crime do artigo 145.º do Código Penal é punível desde que a acção seja dirigida a uma lesão da integridade física grave, nas modalidades típicas previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 144.º do Código de Processo Penal (neste sentido, Paula Ribeiro Faria, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte especial, Tomo I, Coimbra Aditora, 1999, página 253).

Donde que, para além de se exigir que o facto revele a atitude do agente especial censurabilidade, envolvendo um elemento da culpa, que no caso se detectaria in casu pela consideração do exemplo-padrão das apontadas alíneas a) e h), como, aliás, acontece com todas as outras circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, em virtude de o sistema do facto punível ser sequencial, por existir uma hierarquia normativa dos graus de imputação, não podemos furtar-nos, como expressão dum primeiro degrau de valoração, à questão da tipicidade, donde ressalta a exigência de serem graves as lesões da integridade física, já que no artigo 143.º, a norma que pune as ofensas simples, não se admite a punição da tentativa. Ou seja, sendo a tentativa de ofensa qualificada que aqui poderia estar em causa apenas por remissão ao tipo fundamental das ofensas – o tipo simples do artigo 143.º do Código Penal – esta não é punível porque também não o é o crime base, sem o qual não se passa ao degrau seguinte da qualificação da conduta, pois que a pena aplicável é inferior a três anos de prisão (artigos 143.º, n.º 1, e 23.º, n.º 1, do Código Penal).

Assim sendo, os factos praticados pelo arguido não consubstanciam a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, sendo penalmente irrelevante a factualidade em apreço.» [fim de citação]


**

Parece-nos que a tese acolhida pelo tribunal a quo não pode vingar e inverte a necessária análise relativamente ao crime em causa.

Vejamos.

Não há dúvidas que o tribunal a quo considerou preenchidos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de ofensa à integridade física simples, na forma tentada.

Disse-o assim:

Vistos os elementos do tipo dúvidas não existem quanto ao preenchimento dos elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física, todavia apenas sob a sua forma tentada, já que o arguido, empunhando uma forquilha, perseguiu o assistente com o objectivo de o atingir com aquele objecto no seu corpo, o que apenas não conseguiu por o assistente ter logrado fugir

Mas escusou verificar se se tratava de uma tentativa de ofensa à integridade física qualificada, por entender que a mesma não era punível.

Analisando.

Estabelece o art. 145º, do CP. 1.- Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.

2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º

Dispõe o nº2 al. h), do artigo 132º do CP que: “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância do agente:

- h) “...utilizar meio particularmente perigosos…”.

O atual artigo 145º do CP refere expressamente que as ofensas à integridade física, produzidas em circunstância que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, são punidas com prisão até quatro anos no caso do artigo 143º.

Após o necessário estudo da decisão sob escrutínio verificamos que o tribunal a quo não teve em atenção que a tese que propugna respeita a uma anotação ao anterior crime de ofensa à integridade física qualificada, então previsto no artigo 146º do CP, pois, é aí que se encontra a anotação de Paula Ribeiro de Faria, de fls. 253 do I volume do Código Conimbricense, 1999, que usou para ilustrar a decisão.

E, consequentemente, verificamos que o tribunal a quo não teve em atenção a diferença de redação entre o referido artigo 146º e o atual 145º do CP, sendo que numa versão atual da mesma doutrinadora, agora no âmbito do artigo 145º, como decorre do que consta no Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte especial, Tomo I, Coimbra Editora, 2ª edição, Maio de 2012, se refere expressamente, primeiro a págs. 369 e 370, que a revisão do CP de 2007 veio introduzir alterações ao nível do tipo legal de crime, nomeadamente eliminando do âmbito da qualificação as ofensas à integridade física agravadas pelo resultado, restringindo-a à integridade física simples (art. 143º) e graves (art. 144º). E além disso, com especial acuidade no caso concreto, autonomizou a moldura penal correspondente à ofensa à integridade física qualificada simples (artigo 145º, n.º 1, al. a)), da moldura penal correspondente à ofensa à integridade física qualificada grave (art. 145º, n.º 1 al. b).

Como decorre da alínea a), do n.º 1 do art. 145º do CP, o crime de ofensas à integridade física qualificada por referência ao artigo 143º é punível com pena de prisão até 4 anos e não até 3 como pretende a tese do tribunal a quo[1].

Ainda em anotação ao atual artigo 145º do CP, continua a mesma autora, agora no âmbito das formas especiais de crime e, nomeadamente, da tentativa: “A tentativa deste crime é punível sempre que o agente pratica actos de execução do crime de ofensa à integridade física, sem que este chegue a consumar-se, em circunstâncias (integráveis ou análogas às referidas nos exemplos-padrão do art. 132º-2) suscetíveis de revelar especial censurabilidade. Por isso mesmo, a tentativa tanto se poderá referir a ofensas à integridade física graves, como a ofensas a integridade física simples, porque será sempre a tentativa de uma ofensa à integridade física qualificada prevista nas als. a) ou b) do n.º 1 do art. 145º”[2].

Portanto, atenta a moldura penal abstrata do crime de ofensa à integridade física qualificada, por referência ao artigo 143º do CP e prevista na al. a) do n.º 1 do art. 145º, temos por certo que uma tal tentativa é em abstrato punível, pois ‘ao crime consumado - de ofensa à integridade física qualificada - corresponde pena superior a 3 anos de prisão’, para efeitos do artigo 23º, n.º 1 do CP.

Assim concluído, impõe-se analisar se os factos integram uma tentativa do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, por referência ao artigo 143º do CP, p. e p. pelos artigos 145.º n.º 1 alínea a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2 alínea h), 22.º e 23º, todos do CP.

Como anteriormente dissemos o tribunal entendeu verificada a tentativa das ofensas à integridade física referentes ao artigo 143º, o que não foi posto em causa e é inatacável, visto que acordo com a definição legal contida no n.º 2 do art. 22º, são actos de execução de um crime: a) aqueles que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; b) os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

Na presente situação é inequívoco que o arguido, ao munir-se de uma forquilha que brandiu com violência e com ela ter perseguido o assistente com o objectivo de o atingir no seu corpo, o que apenas não conseguiu por o assistente ter logrado fugir, praticou actos que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, levam de forma lógica a que se esperasse que, não fora a fuga do assistente, o arguido teria dado/batido com a referida forquilha no corpo do assistente e teria produzido pelo menos[3] uma ofensa no corpo daquele.

Assim, não há dúvidas que foram praticados actos de execução enquanto actos dotados de capacidade potencial para a produção do comportamento criminoso consumado.

Posto isto e verificada a tentativa de o arguido bater no assistente com a forquilha impõe-se averiguar se o evento criminoso tentado integra uma ofensa à integridade física qualificada com especial perversidade ou censurabilidade pelo uso de meio particularmente perigoso.

Como se sabe a qualificação da ofensa à integridade física, faz-se por reporte ao homicídio qualificado, previsto no artigo 132º do C.P. e é realizada através da combinação de uma cláusula genérica de agravação, prevista no nº 1 do art. 145º, em tudo idêntica à do n.º 1 do artigo 132º do C.P. – a especial censurabilidade ou perversidade do agente – com a técnica dos exemplos-padrão, enunciados no nº 2 do artigo 132º e para os quais remete o n.º 2, do artigo 145º. “Os exemplos-padrão concretizam e determinam o critério generalizador e o critério generalizador delimita a enumeração exemplificativa numa interação decisiva …que conduz a um resultado qualitativamente novo.”[4].

A verificação de um ou mais exemplos-padrão, no caso concreto, não significa, necessariamente, a realização do tipo de culpa especial pressuposto nem a qualificação, no caso, da ofensa à integridade física.

Por outro lado, a não verificação de nenhum dos exemplo-padrão não impede a qualificação, uma vez que o uso, no nº 2 do art. 132º, da expressão “entre outras” indica que o elenco legal não é taxativo.

Todavia, a exigência legal é a da verificação no caso concreto, de elementos substancialmente análogos aos descritos no tipo qualificado; ou seja, a verificação de elementos que embora não elencados, correspondam à mesma estrutura valorativa correspondente a um dos exemplos padrão ou ao sentido, desvalor e gravidade de um exemplo-padrão[5].

E, com estas limitações, é admissível integrar os factos na ofensa à integridade física qualificada.

Daí que se conclua, que as circunstâncias qualificativas do homicídio, comuns à ofensa à integridade física, não são de funcionamento automático e o elenco legal das mesmas é exemplificativo, mas num sentido globalmente interpretativo.

Como escreveu Figueiredo Dias[6]sendo essas circunstâncias elementos da culpa (dado o seu funcionamento não automático e a sua não taxatividade) teremos aqui um tipo de culpa qualificado resultante de uma “imagem global do facto agravada”.

O pensamento da lei, nestes casos, e segundo refere Figueiredo Dias[7], parece ser o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas.

Enquanto a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativamente ao facto, a especial perversidade reporta-se aos componentes da culpa relativas ao agente[8].

Em causa nos presentes autos está o eventual preenchimento da al. h), do n.º 2, do art. 132º do Código Penal, ou seja, a prática do facto com “utilização de meio particularmente perigoso”.

Portanto, atento o supra referido, além da necessidade de se demonstrar a prática dos factos na circunstância da al. h), para que se verifique qualquer das qualificativas haverá também necessidade de provar que a actuação do arguido ocorreu em circunstâncias que revelem, no caso, especial censurabilidade ou perversidade do agente.

O que é um meio particularmente perigoso?

A resposta é-nos dada pelo Prof. Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 67, em anotação ao crime de homicídio qualificado: “Utilizar meio particularmente perigoso é, (…) servir-se (...) de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de um crime de perigo comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. (...) deve sobretudo ponderar-se que a generalidade dos meios usados (...) são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio utilizado revele uma perigosidade superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes) - (...); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente”

A Jurisprudência do STJ e dos Tribunais da Relação acolhe também este sentido interpretativo no que respeita ao crime de homicídio.

Mas o crime de ofensas à integridade física é um crime diferente do homicídio quer na intensidade de lesão do corpo e, vá, de saúde da vítima, quer no que respeita ao bem jurídico protegido.

O crime de ofensas corporais é um crime com um bem jurídico menos valioso que a vida, se é que podemos aqui fazer uma gradação, visto que o valor vida é o mais valioso dos bens jurídicos.

Mas, se isto assim é, a questão que se nos coloca é a de saber se a particular perigosidade do instrumento terá de ser exatamente igual quer se esteja perante um crime de homicídio quer perante um crime de ofensa à integridade física. E usando a fórmula argumentativa do prof. Figueiredo Dias para o uso de meio particularmente perigoso, agora no âmbito do crime em causa, pensamos que não.

Com efeito, os critérios usados pelo insigne Professor, adaptados ao crime em causa, são: o agente servir-se para ofender a integridade física de outrem de um meio que dificulte a defesa da vítima e que esse meio crie ou seja suscetível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes.

Assim, o meio utilizado – forquilha - na perspetiva do bem jurídico vida, embora seja um meio perigoso e que dificulta a defesa da vítima não excede a perigosidade que advém do uso de uma arma de fogo ou de uma faca de ponta e mola, mas se se refere à integridade física essa perigosidade é maior porque normalmente quando se usa uma arma de fogo ou uma faca de ponta e mola pretende-se matar e os bens normalmente usados para ofender a integridade física são usualmente as mãos os pés, caso da bofetada, do murro e do pontapé, o corpo, caso do encontrão e empurrão, fustiga ou chibata, cinto, pedra e paus, etc.

Ora, o uso da forquilha[9] com as suas pontas de ferro, pesadas e afiadas, com alta capacidade lesiva é o uso de um meio suscetível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos nomeadamente perigo para o bem jurídico vida, bem jurídico importante que o uso daquele instrumento é suscetível de pôr em perigo e ofender, por isso entendemos que se trata do uso de um meio particularmente perigoso para ofender a integridade física.

No sentido da particular perigosidade do instrumento forquilha se pronunciou o Ac. do TRC de 26.05.2009[10][11], que entendeu que uma forquilha usada na prática de ofensas à integridade física é um instrumento particularmente perigoso, pois que encerra uma potencialidade de dano muito superior aos meios e instrumentos normalmente usados na prática de agressões físicas, o que determinou que o crime ameaçado fosse indexado – no caso tratava-se de uma ameaça – ao crime ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, g), do C. Penal, na redacção em vigor na data dos factos.

A qualificação das ofensas à integridade física, como também do homicídio, baseia-se num especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade[12];[13] ou perversidade do agente, conceitos que já anteriormente referimos e conexionamos ao respetivo fundamento.

Também já vimos que na questão concreta releva o exemplo padrão que consta do art. 132º, nº 2, al h) do C. Penal.

Atentemos nos factos que relevam para aquilatar da especial censurabilidade ou perversidade do agente.

Assim:

- No dia 7 de maio de 2022, pelas 15:30 horas, o arguido AA que conduzia uma viatura automóvel ligeira de mercadorias, em Santa Maria da Feira, por motivo não concretamente apurado, mas que estará relacionado com uma disputa no trânsito ocorrida momentos antes, deu sinais de luzes, buzinou e encostou o seu veículo à retaguarda do veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca Opel, conduzido por BB.

- Ao constatar que aquele ia parar na Bomba de Combustíveis A..., em ..., Santa Maria da Feira, foi no seu encalço e ultrapassou-o.

- Aí chegado, o arguido parou o veículo automóvel que conduzia e retirou do interior da bagageira uma forquilha, dirigindo-se, em ato contínuo, para a viatura conduzida pelo ofendido BB.

- Ao aperceber-se de tal facto, BB abriu inopinadamente a porta do condutor, batendo com a mesma na parte lateral direita do veículo automóvel conduzido por CC.

- De imediato, o arguido, sempre munido com a referida forquilha, perseguiu na via pública o ofendido BB, dizendo-lhe em voz alta e em tom sério, “vou-te matar”, sem, contudo, lograr alcançá-lo.

- O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, não conseguido, de molestar fisicamente BB, bem sabendo que uma forquilha é um instrumento particularmente perigoso, dado o seu elevado carácter perfuro-contundente.

- A violência com que brandiu a forquilha, acompanhada da afirmação “vou-te matar”, levou a que o assistente, sentisse de forma intensa a possibilidade de atentado contra a integridade física.

- Tudo acontecendo, à luz do dia, em plena via pública...

Ora, nestas circunstâncias, não há nos factos provados qualquer razão que permita minimamente compreender o comportamento do arguido, cuja motivação ainda que não concretamente apurada se perfila, atentos os factos e o seu encadeamento, como uma motivação fútil, sendo que trazia na mala do carro que conduzia um instrumento perigoso, como já vimos, que não é usual ser transportado na bagageira de automóveis ligeiros ainda que de mercadorias e de que o arguido, por trabalhar numa fábrica de componentes para a indústria automóvel, nem sequer faz uso na sua profissão, sendo que não se trata de um objeto de uso comum, especialmente nos dias de hoje.

Acrescem as circunstâncias de ser de dia e na via pública, tendo o arguido desviado o seu trajeto viário para ir ao encontro do assistente, espelhando o seu comportamento um dolo direto muito intenso, sendo que perseguiu o assistente brandindo a forquilha com violência e dizendo vou-te matar, razões pelas quais entendemos que o arguido se tornou com o seu comportamento merecedor de um severo e muito especial juízo de censura pelo acrescido desvalor que tal conduta encerra. A conduta do arguido espelhada nos factos é, portanto, reveladora de uma especial censurabilidade, que conduz à qualificação da ofensa à integridade física por si praticada.

Com as referidas circunstâncias e verificada a particular perigosidade do instrumento usado, que se configura como circunstância respeitante à forma como o agente executa o facto, entendemos que dos factos provados resulta uma imagem global do facto agravada e uma culpa qualificada a revelar a especial censurabilidade da conduta do arguido, o que tem como consequência que o crime de ofensa à integridade física deva ser qualificado pelo preenchimento da circunstância prevista na alínea h), do nº 2, do artigo 132º do Código Penal.

A apurada conduta do arguido preenche, portanto, o tipo objetivo e subjetivo do crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 e 145º, nºs 1, al. a) e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, h), e 22º e 23º todos do C. Penal.

Posta a qualificação dos factos operada nesta instância impõe-se determinar a pena a aplicar ao arguido dentro da moldura do crime em causa.


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§ 1ºDeterminação da medida concreta da pena.

Realizado o enquadramento jurídico-penal da conduta cumpre determinar a pena concretamente aplicável ao caso, atendendo à pena abstratamente aplicável, aos critérios de escolha e medida da pena e às suas finalidades.

Nos termos do art. 145º n.º 1, al. a) do C.P. o crime de ofensa á integridade física qualificado é punido com pena de prisão (de 1 mês, art. 41º, n.º1, limite mínimo) até 4 anos, superior.

Estamos, no entanto, não perante um crime consumado, mas perante um crime na forma tentada.

Assim, há que fazer apelo ao disposto no artigo 23, n.º2[14] do CP e, em consequência ao artigo 72º CP, sendo a tentativa um dos casos de atenuação especial da pena expressamente previsto na lei; há que considerar, nos termos do art. 73º do CP, os limites da pena aplicável, sendo nos termos do numero 1 al. a), “o limite máximo da pena de prisão reduzido de um terço;” e nos termos do n.º1 al. b) “o limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior;”.

Posto isto, no caso concreto, a moldura abstrata do crime praticado tem como limite mínimo 1 mês de prisão e como limite máximo, 2 anos e 8 meses de prisão.

Vejamos, então a pena concreta dentro destes limites.

Nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 40.º, do Código Penal, “[a] aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, sendo que, para os efeitos do disposto no artigo 71.º, do Código Penal, está subjacente o seguinte pressuposto: “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida da pena[15].

A pena encontra o seu fundamento último na exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana, toda a pena tem de ter como suporte axiológico normativo uma culpa concreta, princípio que significa que não há pena sem culpa, e que a culpa decide sobre a medida da pena a aplicar; ou seja, a culpa é o pressuposto de validade e o limite inultrapassável da pena em relação a cada crime, ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 1.º, da Constituição da República Portuguesa.

Nas palavras de Figueiredo Dias “[a] culpa (…) é o ponto de referência que o julgador não pode ultrapassar; até esse limite jogam então as considerações relativas à prevenção, geral e especial.”.

Até ao limite da culpa, cabe às exigências de prevenção geral positiva, ou seja, à medida exigida pela tutela dos bens jurídicos, determinar a medida da pena.

Dentro desta “moldura de prevenção”, devem ser valorados todos os factores relevantes para a medida da pena, nomeadamente os que se prendem com a chamada prevenção especial, com as exigências de socialização e com o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, estabelecendo-se um limiar máximo, que coincide com o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos, e um ponto mínimo, que coincide com as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico[16].

De acordo com o exposto, a determinação da medida da pena desenvolve-se em 3 fases: primeiro, determina-se a moldura penal (medida legal ou abstracta da pena) aplicável ao caso, depois, dentro daquela moldura legal, determina-se a medida concreta da pena a aplicar, e, finalmente, o juiz escolhe a espécie de pena que efectivamente deve ser cumprida, de entre as penas postas à sua disposição no caso[17].

Posto isto, considerando o disposto no art. 71º do CP, vejamos as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido.

O arguido actuou com dolo directo e intenso.

Os factos revelam uma ilicitude mediana/elevada uma vez que não insistiu no seu comportamento, após a fuga do assistente nem esperou pelo seu regresso, não havendo consequências físicas dos factos perpetrados.

As exigências de prevenção geral são elevadas dado o elevado número de crimes desta natureza praticados e as consequências gravosas de alguns deles, e, nomeadamente, nas circunstâncias do trânsito rodoviário.

O arguido beneficia de atenuantes como é o caso do pedido de desculpas ao assistente após a realização do julgamento e o facto de ser primário à data dos factos, tudo a incutir necessidade de prevenção especial diminutas.

As suas condições pessoais conhecidas são, o nascimento em 13.03.1978, com 44 anos de idade à data da prática dos factos, atualmente com 47 anos de idade, estando inserido familiar, laboral e socialmente, como decorre dos factos provados.

Ponderadas todas as circunstâncias supra referidas, entendemos proporcional à culpa evidenciada nos factos e adequada à satisfação das exigências de prevenção que no caso imperam, sendo por isso justa, necessária e adequada a pena de 1 ano de prisão.


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§§2º Pena substitutiva.

Visto que a pena principal encontrada para o crime em causa é de 1 ano de prisão, impõe-se averiguar se há razões para substituí-la por uma pena substitutiva de carácter não detentivo.

Vejamos.

Dispõe o art. 50º, do Cód. Penal, que:

«1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.

4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.»

Dispõe o artigo 58º do CP que:

1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Entendemos atentas as circunstâncias gravosas do crime praticado e o facto de não constar dos factos provados que o arguido tenha dado o seu consentimento à aplicação desta pena - n.º 5 do art. 58º do CP – não deve ser aplicada ao arguido a pena de prestação de trabalho favor da comunidade, que também não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Quanto à suspensão da execução da pena de prisão.

Como é sabido a finalidade de execução de uma pena é a reintegração social do agente e a sua preparação para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes – vide art. 42º do CP.

Assim, as penas de substituição pressupõem um prognóstico favorável sobre a possibilidade de ressocialização do delinquente. E, entre elas, a suspensão da execução da pena, atualmente, a de maior expressão, por ser a única que abrange penas concretas de prisão até 5 anos, podendo ser reforçada pela imposição de deveres e/ou regras de conduta, de harmonia com o disposto nos arts. 50º n.ºs 2 e 3, 51º e 52º, do Cód. Penal.

Quanto aos fins visados por essa pena substitutiva, ensina o Prof. Figueiredo Dias que, “A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara e terminante: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer «correcção» (…). Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência»[18]”.

Assim, atento o disposto no art. 50º, nº 1, do C. Penal, o pressuposto material [o pressuposto formal é a aplicação de pena de prisão não superior a 5 anos] da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão é a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão – acompanhadas ou não da imposição de deveres, regras de conduta ou regime de prova – realizarão de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Na formulação do juízo de prognose o tribunal deverá correr um risco prudente pois que esta é apenas uma previsão, uma conjetura e não uma certeza. Por isso, se tem dúvidas sérias sobre a capacidade do agente para interiorizar a oportunidade de ressocialização que a suspensão é, a prognose deve ser negativa[19].

Se o julgador duvida séria e fundadamente da capacidade do agente de não repetir a prática de crimes se deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada[20].

Ora, no caso presente, se as exigências de prevenção geral são elevadas, pelo que atrás referimos, as exigências de prevenção especial são de grau diminuto e tendo em atenção que o arguido, à data dos factos com 44 anos de idade, não tinha antecedentes criminais a essa data e viveu toda uma vida de aparente fidelidade ao direito, estando inserido familiar, laboral e socialmente; tendo em conta a sua conduta posterior aos factos, no que respeita ao pedido de desculpas, não havendo notícia da prática de outros factos, entendemos ser possível formular um juízo de prognose positiva de que no futuro se absterá de cometer crimes e de que esta decisão consistirá numa solene e séria advertência.

Assim, entendemos ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 1 ano.

Procede, assim, o recurso do MP.


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III- Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso alterando a decisão da 1ª instância, e sequentemente, revogar a absolvição do arguido e condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art. 143º, nº 1, 145º, nº 1 alínea a) e nº 2 e 132º, nº 2, alínea h), 22º, 23º e 73º do CP, na pena de 1(um) ano de prisão que ficará suspensa na sua execução pelo período de 1(um) ano.

Manter o mais decidido, com exceção das custas crime a pagar pelo assistente.


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Sem custas, nesta instância, visto que o recorrente é o MP e o arguido não deduziu oposição.

Na primeira instância – atenta a condenação - as custas crime serão pelo arguido, art. 513º, n.º 1, 1ª parte do CPP, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.


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Notifique.

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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.


Porto, 02 de abril de 2025.
Maria Dolores da Silva e Sousa
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
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[1] Cfr. tese do tribunal, com sublinhados nossos, onde se diz: “Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 23.º do Código Penal que: «Salvo disposição em contrário, a tentativa só é punível se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a três anos de prisão.», pelo que, estando em causa a tentativa do crime de ofensa qualificada por referência ao tipo simples do artigo 143.º do Código Penal, a moldura abstracta a considerar é a de tal inciso incriminador, a qual não só não excede os três anos de prisão, como também não pune autonomamente a tentativa.
[2] Ibidem, pág. 376.
[3] Dizemos, pelo menos, porque o arguido em perseguição dizia “vou-te matar” e o meio que usava era apto para tanto.
[4] Cf. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado tipo de culpa e medida da pena, Almedina, 1995, Pág. 127.
[5] Cf. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª edição, 2012, pag. 49 e Teresa Serra, Ob. Citada, págs. 72 a 75.
[6] Cf. Colectânea de Jurisprudência XII, IV, pág.. 51.
[7] Agora, novamente no Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 55.
[8] Cf. Teresa Serra, Obra citada, pág. 64.
[9] Cuja definição é a de instrumento agrícola composto por um longo cabo de madeira com dentes de ferro compridos, finos e bem separados, na extremidade.
[10] Acedido, aqui: https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b9f606ded3601ce4802575d900499bb9?OpenDocument
[11] E, bem assim, o Ac. do TRP de 06.01.1993, acedido aqui: https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/a970800821fd230a8025686b006654f8?OpenDocument
[12] A especial censurabilidade – conceito de censurabilidade que fundamenta a conceção normativa da culpa – prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que refletem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., 29).
[13] Enquanto a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativamente ao facto, a especial perversidade reporta-se aos componentes da culpa relativas ao agente (cfr. Teresa Serra, ob. cit., 64).
[14] «A tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada
[15] Cf. Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, página 214.
[16] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, página 107.
[17] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, in Ob. Cit., página 198.
[18] Ob. cit., pág. 343.
[19] Cf. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, I Vol., 2ª Ed., 444.
[20] Cf. Figueiredo Dias, ob. cit., 344.