FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
EXAME CRÍTICO DA PROVA
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário

1 - Não havendo ou sendo insuficiente a sua fundamentação, não é possível conhecer por inteiro as razões da decisão judicial, o que leva a que os interessados não possam verdadeiramente reagir à substância de tais razões; e do mesmo passo, fica o tribunal de recurso impedido de exercer na sua plenitude o seu papel de escrutínio.
2 – Uma decisão instrutória não pode deixar de discutir suficientemente a prova produzida e os indícios existentes e tomar sobre eles posição: só desse modo os seus destinatários poderão compreender o que fica decidido e a tanto reagir, e só desse modo poderá o Tribunal da Relação exercer o seu papel, no exercício de um real e efetivo, e não meramente teórico ou ilusório, segundo grau de jurisdição.
3 - Se há nos autos prova que, pelo menos a uma primeira análise, concorre num sentido díspar daquele que vem a ser acolhido pela decisão judicial, importa que esta explicite, ainda que concisamente, porque desconsiderou ou teve por irrelevante ou impertinente aquela prova; não o fazendo, a decisão fica até destituída da possibilidade de, sequer em tese, persuadir os seus destinatários e a comunidade em geral, ficando desse ponto de vista deslegitimada.
4 - Uma decisão judicial que omita o exame crítico da prova é irregular, a menos que haja norma que consagre a nulidade; essa norma existe em relação à sentença, mas já não a propósito de decisões instrutórias de não pronúncia.
5 - Pese embora se trate de uma irregularidade, não está o Tribunal da Relação impedido de dela conhecer, mesmo oficiosamente, ao abrigo do preceituado pelo art.º 123º, nº 2 do Código de Processo Penal.
6 - Ponderada efetivamente toda a prova disponível, se o Tribunal recorrido ainda assim persistir numa situação de dúvida razoável quanto à suficiência dos indícios, o princípio in dubio pro reo será decerto um mecanismo possível para solucionar a problemática a decidir, não pronunciando os Arguidos ou algum deles; isto, sem prejuízo de, ante a natureza e seriedade das dúvidas com que possa sentir-se confrontado em face das concretas provas analisadas, poder equacionar-se a feitura de diligências suplementares para o seu esclarecimento.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO
No Juízo de Instrução Criminal de Cascais (Juiz 2), foi proferido no dia 2 de outubro de 2024 despacho com o seguinte dispositivo:
«Em função do expendido:
não pronuncio os arguidos AA e BB pela prática do crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo art.º 365º do Código Penal; ordenando o oportuno arquivamento dos autos.
Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em duas U.C..»
A Assistente CC interpôs recurso, que termina com as seguintes conclusões:
«§ 1.º O presente recurso tem por objeto exclusivo o despacho proferido pela Mmª JIC de não pronúncia dos arguidos AA e BB, por considerar “que falece o elemento subjetivo do crime de denúncia caluniosa que é um crime exclusivamente doloso, não se mostrando, pois, preenchido o elemento subjetivo do tipo criminal em apreço.” (art.º 365.º/1, do CPP).
§ 2.º Para a Mmª JIC, “Efetivamente, não resultou suficientemente indiciado nos autos que os arguidos, tivessem apresentado a referida queixa contra a aqui assistente, com consciência da falsidade da imputação dos factos que lhe imputaram nessa sede, tendo querido lançar sobre a mesma a suspeita de um crime com intenção de que contra ela se instaurasse procedimento criminal.”
§ 3.º O que faz de tal Decisão nula, conforme previsão do artº 283º nº 1 alínea b), aplicável à decisão instrutória, por força do artº 308º nº 2, todos do CPP, isto é, não descreve, nem especifica quais os factos que considera suficientemente indiciados, o que no nosso ponto de vista e da jurisprudência maioritária, é uma exigência que se aplica não só ao despacho de Pronúncia, mas também, ao despacho de Não Pronúncia, na medida que esta decisão é também uma decisão de mérito, que tem força de caso julgado.
§ 4.º Perante a escassa fundamentação da Mm. ª JIC, no despacho de não pronúncia, em linha com o despacho de arquivamento, compete à aqui Recorrente, submeter à apreciação de V. Exas., os factos tal qual se passaram.
§ 5.º Contra a ora Recorrente foi apresentada queixa-crime, por burlas, no processo n.º 208/20.2JDLSB, que correu termos no Juiz 2, do Juízo Central Criminal de Cascais.
§ 6.º Os autores da denúncia foram AA e BB, este em representação da sociedade “DD”
§ 7.º O fundamento da denúncia, assenta no facto de os Denunciantes terem negócios com o ex-marido da denunciada, há vários anos, dos quais, dizem, resultaram dívidas de valores elevados que o ex-marido da ora Recorrente não pagou.
§ 8.º Consideram que a ora Recorrente era cúmplice do ex-marido, com as seguintes versões: A do Demandante AA, que confirmou o teor da queixa por si apresentada, mais concretamente relativamente às quantias que tinha entregado ao arguido [EE] para pagamento das despesas hospitalares da filha menor de ambos, que uma ocasião, recorda-se que se encontrou com a arguida CC, tendo desejado rápidas melhoras à filha e esta, anuiu, agradeceu, ainda que envergonhada e comprometida, dizendo que a filha estava melhor”; A do Demandante BB, porque no dia .../.../2020, enquanto o legal representante da sociedade DD, seguindo as instruções do arguido EE (ex-marido da ora recorrente), transferiu a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) para a conta titulada pela arguida CC (mulher do arguido), com o ..., convencido que a mesma se destinava à aquisição do veículo com a matrícula ..-BR-.., marca ....
§ 9.º Qualquer destas versões foi desmentida, tornada inverosímil e fantasiosa.
§ 10.º A queixa-crime contra a ora Recorrente foi arquivada.
§ 11.º Os Denunciados, ali queixosos, conformaram-se com a decisão de arquivamento.
§ 12.º Ficou amplamente demonstrado e provado, que a ora Recorrente desconhecia por completo os negócios do marido e as relações estabelecidas com os Denunciantes, há mais de 5 anos.
§ 13.º A Apresentação da queixa-crime contra a ora Recorrente, não passou, portanto, de um expediente utilizado para “justificar o assédio junto da ora Recorrente e de seus pais, com o objetivo de extorquir valores e bens, capazes de pagar as alegadas dívidas do ex-marido.”
§ 14.º Na verdade, os Denunciantes ao se aperceberem que o ex-marido da ora Recorrente se encontrava ‘falido’ e, portanto, incapaz de pagar as suas dívidas, passaram a exercer pressão sobre esta e seus pais, para que estes solvessem as dívidas daquele.
§ 15.º As ameaças e pressões passaram a ser constantes, seja por telefone, por esperas à porta da casa da ora recorrente e reuniões com advogada de um dos Denunciantes, tudo com o objetivo de extorquir desta valores e bens, para pagamento das dívidas do ex-marido.
§ 16.º Efetivamente, os ora arguidos, não hesitaram em narrar factos inexistentes, conversas que nunca existiram e encontros que nunca se realizaram.
§ 17.º Por outro lado, os arguidos foram transmitindo outras falsidades nos depoimentos que foram prestando, designadamente coligindo elementos propositadamente distorcidos para criar a ideia de uma cumplicidade entre a ora Recorrente e os negócios ilícitos e ilegais do ex-marido.
§ 18.º Bem como foram narrando outras situações desfasadas da realidade com o propósito de construir um cenário eminentemente desfavorável à ora Recorrente, exatamente para densificar as probabilidades de o procedimento despoletado vir a ser credor de êxito.
§ 19.º Sabiam que a ora Recorrente não era nem nunca foi cúmplice dos negócios ilícitos e ilegais do ex-marido e que os desconhecia por completo.
§ 20.º Sabiam os arguidos que a denúncia por si apresentada não correspondia à verdade, não retratando a verdade dos factos e tendo como objetivo único justificar o assédio junto da ora Recorrente e de seus pais, com o objetivo de extorquir valores e bens, capazes de pagar as alegadas dívidas do ex-marido.
§ 21.º Não obstante, não se coibiram de apresentar uma queixa-crime contra a ora Recorrente na qual lhe imputam factos que integram um crime de burla, previsto no artigo 217º do Código Penal, perante a autoridade competente e com o pedido formalizado de lhe ser instaurado um processo-crime.
§ 22.º Ora se a apresentação da queixa, implica o início de um procedimento, embora os arguidos não tenham agido com esse objetivo directo, mas formalizaram tal pedido, nos termos acima transcritos, devemos concluir, atentas as regras da experiência comum, que os arguidos representaram a instauração de procedimento contra a ora Recorrente, como consequência necessária e inevitável da sua conduta de apresentação de queixa.
§ 23.º Ora, uma tal realidade é coerente com a existência de um dolo necessário. Os arguidos através da apresentação da queixa quiseram justificar o assédio junto da ora Recorrente e de seus pais, com o objetivo de extorquir valores e bens, capazes de pagar as alegadas dívidas do ex-marido, representando como necessária a instauração do procedimento criminal contra a ora Recorrente e aceitaram tal instauração de procedimento como consequência necessária da sua conduta.
§ 24.º Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente, representando o procedimento criminal contra a ora Recorrente como consequência necessária da sua conduta, que aceitaram, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida criminalmente, não se abstendo, mesmo assim, de a praticar.
§ 25.º Em conclusão, o elemento subjetivo do crime de denúncia caluniosa impõe que o agente saiba e queira a falsidade da imputação, devendo o dolo (intenção de que contra outrem se instaure procedimento) revestir duas das três formas previstas no art.º 14º do Código Penal, dolo directo ou necessário, sendo de excluir a punibilidade a título de dolo eventual.
§ 26.º Ora, considerando este princípio logo se conclui que a circunstância de o motivo determinante da acção dos Denunciantes ser o de justificar o assédio junto da ora Recorrente e de seus pais, com o objetivo de extorquir valores e bens, capazes de pagar as alegadas dívidas do ex-marido, em nada obsta a que os arguidos tenham agido (ao apresentar denúncia) representando o procedimento criminal contra a ora Recorrente como consequência necessária da sua conduta, que aceitaram, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida criminalmente, não se abstendo, mesmo assim, de a praticar, como vem demonstrado e provado.
§ 27.º Tanto basta para que se mostre provada a intenção de que contra a pessoa denunciada se instaure procedimento criminal.
§ 28.º Atenta a factualidade demonstrada e provada, mostram-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de denúncia caluniosa, o que tem como consequência a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.
§ 29.º No caso presente, pois, e em suma, a aqui Recorrente assume a qualidade de titular dos “interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, p e p pelo artigo 315.º do Código Penal.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve o despacho de Não Pronúncia ser revogado e substituído por outro que Pronuncie os arguidos nos precisos termos em que foram Acusados.»
O recurso foi admitido por despacho de 4 de novembro de 2024, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Os Arguidos responderam ao recurso, resposta que finalizam com as seguintes conclusões:
«A. O Requerimento de Abertura de Instrução não foi estruturado como uma verdadeira acusação, nos termos impostos pelo art.º 283º, nº 3, als. b) e c), do CPP, porquanto encontra-se eivado de considerações conclusivas, críticas, não descrevendo, de forma clara e objectiva, os factos «quer quanto ao modo, tempo e circunstâncias da sua ocorrência, quer identificando os autores da prática desses factos e, faz a sua integração/subsunção jurídica, imputando-os aos arguidos, descrevendo igualmente o elemento subjectivo, indispensável para a eventual aplicação de uma pena» (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra supra transcrito).
B. A Recorrente limitou-se a apresentar no Requerimento de Abertura de instrução a sua opinião sobre o Despacho de Arquivamento, proferido pelo Ministério Público, suscitando apenas meras suspeitas.
C. Mas os princípios que tutelam o Processo Penal impõem que para levar alguém a Julgamento não basta a mera suspeita, é necessário colher indícios sérios e credíveis que formem no Julgador a convicção de que é mais provável que o Arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.
D. «Tem de existir uma alta probabilidade de futura condenação do Arguido, ou pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição» (cfr. respetivamente Germano Marques da Silva in “Do Processo Penal Preliminar”, pág. 347 e Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal”, Vol. I, pág. 133, no mesmo sentido Ac da RP de 13/11/74 in BMJ 241º-347, RL de 22/02/74 in BMJ 234º-338, RE de 19/06/74 in BMJ 238º-295).
E. Ora esses indícios não existem no processo, nem foram produzidos em sede de Instrução.
F. O que se retira das conclusões apresentadas pela Recorrente é apenas uma mera discordância em relação ao que se decidiu.
G. As referências que a Assistente faz ao Despacho de Arquivamento e às queixas apresentadas pelos Recorridos, contra si, não nos conduzem a conclusão diversa da contida no Despacho de Não Pronúncia, sub judice.
H. Não resultou suficientemente indiciado nos autos que os Recorridos tivessem apresentado as queixas-crime contra a Recorrente com consciência da falsidade da imputação dos factos que lhe imputaram nessa sede, tendo querido lançar sobre a mesma a suspeita de um crime com intenção de que contra ela se instaurasse procedimento criminal.
I. Em face do exposto o Despacho de Não Pronúncia recorrido não merece qualquer censura porquanto fez uma correta apreciação dos factos em discussão nos Autos e aos mesmos fez a correta aplicação do Direito.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e mantido na íntegra o Despacho de Não pronúncia nos Autos, fazendo-se, assim, Justiça.»
O Ministério Público também apresentou uma resposta ao recurso, que concluiu defendendo a improcedência do recurso ou, em última análise, que se reconheça a irregularidade da decisão recorrida, traduzida na não enumeração dos factos indiciados e não indiciados, e o reenvio dos autos à 1ª Instância a fim de a reparar.
Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta lavrou parecer acompanhando a posição expressa pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância.
*
Cumprida a notificação prevista pelo art.º 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, a Assistente veio responder, defendendo, entre o mais, que «a fundamentação da sentença - mutatis mutandis, falando nós aqui de decisão instrutória - deve permitir o convencimento do arguido, em particular, e da comunidade jurídica, em geral, relativamente à bondade da decisão, tornando-a transparente e apreensível, permitindo ainda a sua controlabilidade em sede de recurso, designadamente no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto» e concluindo, entre o mais, que «por ausência de fundamentação da decisão instrutória, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em conformidade, declarar[-se] nula a decisão de não pronúncia, com reenvio do processo ao Tribunal de Instrução, para que o Mmº Juiz de Instrução fundamente a decisão em conformidade com as exigências legais».
Em sede de exame preliminar não se julgou verificado nenhum obstáculo ao conhecimento do recurso.
Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a decidir
É pacífico, a partir do preceituado pelo nº 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, que são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do tribunal de 2ª Instância, sem prejuízo do poder de apreciar as questões de conhecimento oficioso.
E aqui importa começar por notar que a Recorrente concluiu o seu recurso dizendo que «deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve o despacho de não pronúncia ser revogado e substituído por outro que pronuncie os arguidos»; já em sede de resposta ao parecer lavrado pela Sra. Procuradora-Geral Adjunta, no quadro do art.º 417º do Código de Processo Penal, a Recorrente conclui nos seguintes e bem distintos termos: «deve o presente recurso ser julgado procedente, e em conformidade, declarar[-se] nula a decisão de não pronúncia, com reenvio do processo ao Tribunal de Instrução, para que o Mmº Juiz de Instrução fundamente a decisão em conformidade com as exigências legais».
Por outro lado, enquanto nas conclusões de recurso a Recorrente alude à nulidade da decisão instrutória por falta de especificação dos factos suficientemente indiciados, na resposta que lavra ao abrigo daquele art.º 417º do Código de Processo Penal já acrescenta a isso uma outra causa de nulidade, na sua ótica, que se prende com a «falta de fundamentação (…) da decisão instrutória (…) no que respeita à validade da prova, à sua valoração e à impugnação da matéria de facto (…)».
Vale o exposto por recordar e reiterar que o objeto do recurso é à partida o que resulta das conclusões da Recorrente, sem prejuízo da possibilidade de apreciação de questões de conhecimento oficioso, nos termos adiante mencionados, que acabarão, em termos prático-jurídicos, por não se distanciar muito, na verdade, do que vem a Recorrente, afinal, a alegar na citada resposta ao parecer da Sra. Procuradora-Geral Adjunta. Veremos a seu tempo.
Em suma, face às conclusões plasmadas no recurso da Assistente, importa em particular e em via de princípio tocar os seguintes pontos:
i. Se a decisão instrutória é nula por falta de especificação dos factos suficientemente indiciados;
ii. Se a decisão instrutória deve ser substituída por outra que pronuncie os Arguidos.
2.2 Factos processuais relevantes e despacho recorrido
2.2.1 No final do Inquérito o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, em 20 de fevereiro de 2024, com o seguinte teor:
«Despacho de Arquivamento
Notícia dos factos
Os presentes autos tiveram início com a denúncia apresentada em ........ 2022 (a fls. 1 a 7) por CC imputando a AA e BB factos ocorridos no âmbito do processo nº 208/20.2JDLSB que correu os seus termos neste DIAP de Oeiras.
Nessa denúncia, CC refere que os denunciados eram pessoas que se relacionavam profissionalmente com o seu ex-marido, EE, no ramo do comércio de automóveis usados.
O denunciado, BB é gerente da empresa DD, cujo objecto comercial está relacionado com o comércio de viaturas. O seu ex-marido foi alvo de uma investigação criminal que se desencadeou com denúncias formalizadas pelos denunciados, sendo que o processo correu termos no Tribunal de Oeiras, desconhece concretamente o número do processo, contudo confirma tratar-se do que consta dos presentes autos com o NUIPC 208/20.2JDLSB, sendo que o seu ex-marido acabou por ser acusado pelo Ministério Público e depois condenado pela prática de crimes de burla.
Esclarece que acabou por também ser constituída arguida no referido processo, contudo não foi deduzida acusação pelo Ministério Público, sendo o processo arquivado na parte que lhe dizia respeito.
No decorrer das diligências de inquérito no referido processo, no momento em que foi prestar declarações como arguida nas instalações da Polícia Judiciária de ... que foi confrontada com as acusações que os denunciados lhe fizeram e que basicamente a envolviam no esquema ilícito levada a cabo pelo seu ex-marido e que seria inclusivamente cúmplice deste.
Especifica que ficou totalmente surpreendida com as acusações que lhe foram dirigidas. Entre as acusações falsas a denunciante refere que o denunciado AA terá referido à Polícia Judiciária que esta em conluio com o seu ex-marido teria usado a sua filha menor de idade para lhe extorquir dinheiro de forma ardilosa, fazendo crer que a sua filha estaria muito doente e que necessitava de dinheiro para pagar as despesas hospitalares e que inclusivamente se teria encontrado consigo no interior de um estabelecimento da sua propriedade.
Refere que os referidos factos são totalmente falsos, nunca a sua filha esteve doente e necessitada de receber tratamento hospitalar e também é falso que alguma vez tenha sequer entrado em algum estabelecimento do AA, é verdade que chegou a acompanhar o seu ex-marido a um estabelecimento do denunciado alegadamente para falarem de negócios, mas aguardou sempre no exterior dentro do seu carro.
Para além da referida acusação, o Sr.º AA também levantou a suspeição de ter participado num jantar onde o mesmo esteve presente com o seu ex-marido, dando a entender que estava a par dos negócios ilícitos e dos seus esquemas, quando na realidade pensou que seria um jantar para o seu ex-marido lhe apresentar um futuro sócio de negócios totalmente transparente.
Acrescenta que também foi confrontada na mesma circunstância com as declarações que o denunciado BB terá feito à Polícia Judiciária, nas quais a acusou de participar nos esquemas ilícitos do seu ex-marido, nomeadamente de ter facultado a sua conta bancária alegadamente para dissimular a origem e o destino de uma importância monetária de 5.000,00 Euros.
Esclarece que na realidade autorizou que o seu ex-marido indicasse a sua conta bancária para receber tal montante, julgando que seria respeitante a um pagamento de um carro, que seria uma situação perfeitamente normal à data porque era o negócio dele, visto que na data trabalhava na ... e se dedicava à compra e venda de veículos.
A depoente declara que não se conforma com as acusações caluniosas que lhe foram feitas pelos denunciados, que colocam em causa o seu bom nome, a sua reputação e integridade pessoal e profissional. sendo que, em consequência das acusações que os denunciados lhe moveram, viu a sua vida transformar-se de avesso por completo, por esse motivo começou a desenvolver ataques de pânico e crises de ansiedade, desenvolveu um burnout que lhe afetou a memória, diz que atualmente ainda anda a ser seguida em consultas de psiquiatria e psicoterapia.
Acrescenta que viu o seu empenho laboral ser drasticamente afectado, com necessidade de entrar de baixa médica durante um ano, com perda de remuneração e prejuízo de progressão na carreira como enfermeira e que naturalmente afectou também o seu papel enquanto mãe de três filhos menores, que ficaram a seu cargo em condições muito difíceis em que estava muito fragilizada psicologicamente e com o pai preso no referido processo, só lhe valendo nessa circunstância o apoio familiar.
Integração Jurídica
Estes factos, em abstrato são suscetíveis de configurar a prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo 365º nº 1 do Código Penal.
- Crime de denúncia caluniosa
Dispõe o nº 1 do art.º. 365 do Código Penal “Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”
Trata-se de um crime de perigo concreto, estando o tipo preenchido em termos de consumação, quando há instauração de um procedimento contra determinada pessoa, sem qualquer fundamento, determinado por intuito meramente persecutório do agente que efectuou a denúncia.
Embora o tipo de crime em causa esteja inserido no capítulo dedicado aos crimes contra a realização da justiça, a doutrina e jurisprudência mais recentes vêm entendendo que, apesar de aí se proteger directamente a realização da justiça – visando o Estado garantir a credibilidade e seriedade do procedimento criminal, disciplinar ou contra-ordenacional em ordem à realização da justiça – é também reflexamente tutelada a liberdade de determinação, a honra e consideração do visado.
Conforme se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20.11.2023 (relatora Maria Dolores da Silva e Sousa in www.dgsi.pt) “Os elementos constitutivos do tipo de crime são os seguintes: - Conduta típica: Denunciar ou lançar suspeita por qualquer meio; - Sujeito passivo: Outra pessoa (determinada ou identificável); - Objecto da conduta: Imputação de factos, ainda que sob a forma de suspeita, idóneos a provocarem procedimento criminal…; - Destinatário da acção: autoridade e/ou círculo indeterminado de pessoas (i.é denúncia a uma autoridade ou suspeita feita publicamente); - Elemento subjectivo: Dolo qualificado por duas exigências – A consciência da falsidade da imputação e a intenção de que contra outrem se instaure procedimento (Cfr. Ac. RC n.º 2999/03, de 7/5/2003, in www.dgsi.pt)
Conforme se escreveu no “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora 2001, pág. 548 § 66, “Efectivamente, sobressai da norma em análise que o facto só é punível a título de dolo. E, dolo qualificado por duas exigências cumulativas: por um lado, o agente terá de actuar “com consciência da falsidade da imputação”; por outro lado e complementarmente, terá de o fazer “com intenção de que contra ela se instaure procedimento”.
A consciência da falsidade significa que, no momento da acção o agente conhece ou tem como segura a falsidade dos factos objecto da denúncia ou suspeita.
Precisando a segunda exigência, escreve-se na obra citada, págs. 550, § 70: “Não resulta linear nem óbvio o significado do segundo e específico momento subjectivo, a intenção (“de que contra ela se instaure procedimento”). Segura e líquida apenas a exclusão do dolo eventual. A partir daqui multiplicam-se os desencontros e as soluções. Em consonância com os ensinamentos da dogmática geral da infracção criminal (...) também aqui nada parece impor uma solução rígida e fechada. (...)”
Acrescentando-se na já citada decisão que “a doutrina hoje dominante, cremos dever reconhecer ao conceito uma extensão mais alargada, no essencial sobreponível ao âmbito do que no direito alemão se designa por dolo directo, que abrange também o chamado dolo necessário. Assim, para haver intenção, no sentido e para efeitos do crime de denúncia caluniosa, será bastante que o agente represente a instauração do procedimento como consequência necessária, segura ou inevitável da sua conduta. (...) “A intenção no sentido do § 164 não é o mesmo que o motivo determinante da acção. Basta, pelo contrário, que o agente queira que se instaure o procedimento contra o denunciado, mesmo que ele prossiga outros fins”.
A instauração do procedimento pode, assim, configurar um procedimento concorrente com outros ou apenas um fim intermédio e instrumental em relação a um fim último e decisivo. Pode mesmo não corresponder à vontade do agente nem ser ele por ele querida, já que pode antecipar a sua verificação (necessária ou segura) como uma contrariedade e, por isso, com desagrado e com pena.
Na síntese de Herdegen (…): “quando o agente sabe ou tem como seguro que o resultado (a saber: o procedimento) terá lugar, não precisa de querer alcançá-lo. Ele pode ser-lhe pura e simplesmente indiferente ou encará-lo mesmo como coisa indesejável”.
A intenção tem de se reportar apenas à instauração (ou continuação) do procedimento e não ao seu desfecho, nomeadamente ao seu desfecho negativo ou desfavorável para a pessoa objecto da denúncia ou suspeita. Comete a infracção quem realiza o facto com a intenção de que o processo venha a ser instaurado, mesmo que não tenha razões para acreditar na condenação.
Em conclusão, o elemento subjectivo do crime de denúncia caluniosa impõe que o agente saiba e queira a falsidade da imputação, devendo o dolo (intenção de que contra outrem se instaure procedimento) revestir duas das três formas previstas no art.º 14º do Código Penal, dolo directo ou necessário, sendo de excluir a punibilidade a título de dolo eventual.
Nessa sequência, foi solicitada cópia do despacho de arquivamento proferido relativamente à denunciante no âmbito do processo nº 208/20.2JDLSB que correu na 1.ª Secção deste DIAP de Oeiras.
Nessa decisão de 02.11.2021 além do mais, escreveu-se que “No caso em apreço nos presentes autos, em virtude da relação comercial de confiança que mantinha com BB (este na qualidade de legal representante da sociedade DD), dado que já haviam efectuado negócios anteriormente que haviam corrido sem qualquer incidente, o arguido EE, convenceu BB, de que tinha na sua disponibilidade veículos automóveis para venda, fazendo com que este, naquela qualidade, procedesse à entrega de quantias monetárias, criando-lhe a expectativa de que, em troca, receberia viaturas.
Assim, no dia .../.../2020, o legal representante da sociedade DD, seguindo as instruções do arguido EE, transferiu a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) para a conta titulada pela arguida CC (mulher do arguido), com o ..., convencido que a mesma se destinava à aquisição do veículo com a matrícula ..-BR-.., marca ....
O arguido EE fez sua, nomeadamente, a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) que foi transferida pela sociedade DD para a conta titulada pela arguida CC, como se disse, mulher do arguido EE.
Todavia, para a imputação fáctica geradora de responsabilidade criminal a assacar à arguida, cumpre aferir se dos elementos de prova juntos aos autos, é ou não possível o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo.
A arguida, no uso de um direito que a lei lhe concede, decidiu prestar declarações sobre os factos e apresentou uma versão dos factos que se nos afigura verosímil.
Segundo a tese apresentada a própria terá sido enganada pelo marido, e só terá tido conhecimento das situações denunciadas pela ... no dia ........2020, quando o chefe do marido e um colega de trabalho se deslocaram a sua casa e depois o acompanhou a uma reunião nas instalações da empresa e o confrontaram os factos relacionados com a apropriação de verbas de vendas de veículos da empresa. Até então, teria sempre o marido como bom funcionário, competente e de confiança. Sabia que o marido se dedicava à compra e venda de automóveis pelo que, do pouco conhecimento que teve através do marido, sempre ficou com a convicção de que os negócios eram perfeitamente legítimos, nem teve qualquer razão para desconfiar já que se enquadravam no ramo das actividades que o marido efectivamente desempenhava.
Foi só com o despedimento da ... que o marido acabou por lhe confessar que as situações foram motivadas por vício de jogo que desenvolvera e que tinha, até então, vergonha de assumir perante si.
Confirmou, ser titular da conta ... e que não é titular conjuntamente de nenhuma conta com o marido nem teve acesso a extractos bancários das contas do mesmo e esclareceu, numa ocasião, que terá sido antes do dia ........ 2020, o marido pediu-lhe para receber uma quantia na sua conta, relativo ao pagamento de um veículo, na medida em que a conta titulada pelo marido estava com saldo negativo e se a transferência fosse feita para a dele, iria ficar de imediato cativo pelo banco, sendo que, anuiu.
Explicou que nessa noite, pelas 23h00, o marido lhe pediu com alguma insistência que transferisse os 5.000,00 € para a conta do alegado proprietário (BB), indicando-lhe um NIB e a referência como sendo a empresa “...”, o que fez a solicitação do marido.
Só após o dia ........ 2020, após o despedimento da ... é que se apercebeu que a tal conta era titulada pela empresa ..., cujo único sócio era o marido.
A sua versão, afigura-se-nos verosímil, desde logo porque, dos autos não decorre que a arguida tenha tipo melhoria das suas condições de vida ou que a mesma tenha beneficiado, efectivamente, das quantias em causa.
Ademais, não resultam dos autos indícios que nos permitam não dar credibilidade à versão que asseverou uma vez que, em nenhum outro momento se vislumbra a participação da arguida nos factos praticados pelo arguido EE e cuja acusação infra se deduzirá nem que a mesma tenha sinais exteriores de riqueza.
Na verdade, a eventual intervenção de CC documentada foi efectivamente o recebimento dos 5.000,00 € na sua conta, que foi explicado e supra referenciado que em tudo não nos suscita hesitações uma vez que até àquela data (........ 2020), a arguida não tinha motivos para suspeitar da legalidade dos negócios do marido cuja actuação naquele ramo de actividade, nunca tinha tido qualquer incidente, tendo efectuado a transferência para uma conta indicada pelo mesmo, nesse mesmo dia.
Pese embora o recebimento da quantia numa conta por si titulada, não resultam dos autos elementos que nos permitam afirmar que a arguida sabia que o motivo daquela transferência assentava num esquema de burlas orquestrado pelo seu marido, quantia esta de que a arguida nunca veio a beneficiar nem tinha conhecimento que seria em prejuízo de terceiros, julgando que se tratavam de transferências que tinham por base pagamentos/transações de veículos perfeitamente legítimas, porque integradas na actividade profissional do seu marido.
Não existem mais elementos de prova que nos permitam colocar em causa as declarações da arguida que nos parecem lógicas, coerentes e assertivas, designadamente quanto à data do conhecimento dos factos (........2020) e também porque não se afigura que a mesma beneficiou das aludidas quantias, que, segundo sabe, apenas serviram para alimentar o vício do jogo do arguido EE, tanto mais que a arguida refere inclusivamente que, pese embora seja enfermeira e aufira cerca de 1.000,00€, uma vez que tem três filhos, beneficia de apoio familiar para o pagamento de despesas correntes.
Assim, aqui chegados, cumpre concluir que, pese embora o recebimento daquela quantia na sua conta, não resulta dos autos que a arguida tivesse conhecimento do esquema ardiloso que o arguido criou para obter de terceiros quantias monetárias, tendo em vista o prejuízo patrimonial de terceiros, nomeadamente da sociedade DD.
Por outro lado, também não foi possível juntar aos autos elementos de prova que nos permitam concluir que a arguida ao indicar o seu NIB para o recebimento daquela quantia, tivesse intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento que sabia ser ilegítimo, tanto que, como a própria disse, achava que se tratava de um negócio perfeitamente legítimo e o motivo apresentado pelo marido se mostrava também aceitável.
Quanto ao ofendido AA.
O ofendido, quando inquirido, confirmou o teor da queixa por si apresentada, mais concretamente relativamente às quantias que tinha entregado ao arguido para pagamento das despesas hospitalares da filha menor de ambos, que uma ocasião, recorda-se que se encontrou com a arguida CC, tendo desejado rápidas melhoras à filha e esta, anuiu, agradeceu, ainda que envergonhada e comprometida, dizendo que a filha estava melhor.
A versão apresentada pelo denunciante não é, contudo, corroborada por qualquer outra prova, quer documental quer testemunhal que nos permita concluir pela comparticipação ou, sequer, pelo conhecimento, dos negócios ou dos esquemas que o arguido EE engendrou com o fito de obter ilicitamente quantias de dinheiro do ofendido, bem sabendo que não lhe pertenciam.
Também não decorre dos autos, como se disse, que a arguida tenha beneficiado de quaisquer quantias monetárias originárias desses artifícios criados pelo marido.
Por sua vez, a arguida apresentou uma versão diametralmente oposta à do denunciante. Quando interrogada, negou de forma peremptória a prática dos factos que lhe são imputados. Mais esclareceu que nunca teve conhecimento do artifício que o seu marido criou, designadamente que teria pedido e logrado obter de AA as quantias de 3.000,00 € e 1.500,00€, tendo-lhe dito que a filha de ambos tinha sido hospitalizada.
Referiu que, efectivamente, a filha nunca esteve hospitalizada.
E também só posteriormente teve conhecimento que o mesmo terá alegado a morte do pai para pedir empréstimos, facto este que também afirma não ser verdade.
Ademais, negou peremptoriamente que tenha confirmado ao ofendido AA como verdadeira a história do internamento, nem sequer se recordando deste alguma vez a ter abordado a este respeito.
Reiterou que, apenas nas reuniões no escritório da advogada é que teve conhecimento desta situação, quando o ofendido mostrou as mensagens que EE lhe tinha enviado a este propósito, nomeadamente com a fotografia de uma menor hospitalizada, que não é a sua filha - que aliás nunca esteve hospitalizada.
Existe, pois, uma contradição insanável, porque insuperável, entre o depoimento do ofendido e as declarações da arguida.
Ademais, inexistem quaisquer outras testemunhas presenciais e com conhecimento directo dos factos que pudessem ser inquiridas e/ou outros elementos probatórios que cumprisse juntar.
As apontadas incoerências permitem fundar uma dúvida séria sobre a realidade dos factos que considerámos não estarem suficientemente indiciados. E a dúvida não pode deixar de ter, como consequência, a impossibilidade da formação de um juízo seguro de convencimento sobre a veracidade dos factos, sendo esse o resultado que maior probabilidade teria de vir a ocorrer em julgamento. Destarte, é de prever que essa incerteza viesse a ser o resultado da apreciação da prova produzida num futuro julgamento, sem que se vislumbrassem outras diligências susceptíveis de conduzir ao seu afastamento.
Nestes termos, e porque não se afigura útil a realização de outras diligências conducentes à recolha de prova para apurar a responsabilidade criminal da arguida, teremos necessariamente de concluir que não foram recolhidos indícios suficientes da prática dos factos denunciados e, portanto, proceder-se-á ao arquivamento do presente inquérito quanto à arguida CC.
Há, pois, que concluir que não foram juntos aos autos quaisquer elementos probatórios que permitam sustentar os factos conforme foram denunciados e imputar à arguida a prática do crime que, abstractamente, se indiciava.
Assim, tendo em conta a ausência de outros elementos de prova, ter-se-á forçosamente de concluir que, apesar dos esforços institucionais e das diligências de prova realizadas, a investigação desenvolvida não apresentou e não colheu indícios suficientes da prática e consumação do crime denunciado, permanecendo uma dúvida inultrapassável sobre o que objectivamente aconteceu no que respeita a esta arguida.
Por outro lado, e face a essa mesma ausência de prova, não foram levantadas suspeições válidas, consistentes e credíveis, nem indicadas outras testemunhas com conhecimento directo dos factos que nos permitam assacar responsabilidade criminal a CC pelos factos relatados no auto de denúncia.
Ademais, não se vislumbra a possibilidade de serem carreados outros elementos de prova que viabilizem a realização de diligências suplementares que se afigurem virtualmente úteis ao apuramento dos factos.
Destarte, os indícios recolhidos não permitem fazer um préjuízo favorável a uma forte possibilidade desta arguida ser condenada, pelo contrário, tudo indica que é mais provável a sua absolvição se levada a julgamento do que a sua condenação.
Decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que o decisor terá de “se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa, anotada, Coimbra Editora, 1993, p. 204).
Com efeito, teremos de atender ao “princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. Este princípio denomina-se também «benefício da dúvida» e significa que o arguido tem o direito a ser absolvido, a ser declarado inocente (direito à inocência), se não for feita prova plena da sua culpabilidade (beyond a reasonable doubt).” (Germano Marques da Silva in Direito Processual Português, Universidade Católica Editora, 2013, p. 93).
Podendo, e devendo, o princípio in dubio pro reo ser aplicado em sede de inquérito, “Depois de um primeiro momento em que se negou a sua aplicação, a jurisprudência vem agora, pacificamente, admitindo a aplicação do princípio “in dubio pro reo” em todas as fases do processo.” (Acórdão do TRL de 16.11.2010, relatado por Neto de Moura, disponível in www.dgsi.pt).
Nesse sentido pronunciou-se também Maia Costa, que entende que o enunciado normativo contido no artigo 283.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal “demonstra uma inquestionável similitude entre a posição do magistrado do Ministério Público que aprecia a prova do inquérito e a do juiz que analisa a prova da audiência de julgamento: em qualquer dos momentos, cada um daqueles magistrados, caso se confronte com uma dúvida inultrapassável sobre as provas produzidas, deve fazer funcionar a (mesma) regra (in dubio pro reo), arquivando o inquérito o Ministério Público, proferindo sentença absolutória o juiz. Considerações idênticas são válidas evidentemente para o juiz de instrução, após o debate instrutório devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra in dubio pro reo, no caso de se encontrar perante idêntica situação de dúvida quanto às provas”. (in Revista do Ministério Público, n.º 92, p. 71).
Assim sendo, não tendo sido possível no inquérito dissipar a dúvida, e esclarecer se a arguida foi co-autora da prática dos aludidos factos ilícitos e a medida da sua participação, a dúvida terá de favorecer a arguida, pelo que, não poderemos considerar suficientemente indiciado que esta praticou os factos em investigação, tinha conhecimento dos mesmos, ou sequer beneficiou directa ou indirectamente da conduta do arguido EE.
Neste contexto, face à inexistência de indícios de prova válidos e relevantes, como se disse, não se conjectura uma probabilidade séria de obter a sua condenação pelos factos denunciados.
Em face do exposto, sem necessidade de mais considerandos, por não se terem recolhido indícios suficientes da verificação da prática por CC, não se poderá proferir um despacho de acusação, determinando-se assim o arquivamento dos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (sublinhado nosso) sem prejuízo de posterior reabertura se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos supra mencionados, nos termos do disposto no artigo 279.º, do mesmo diploma legal”.
E aqui chegados, não foi possível apurar que a situação denunciada efetivamente não ocorreu e que os denunciados conhecendo esses factos lançaram mão de uma denúncia contra a aqui denunciante, sabendo que esses factos não corresponderiam à verdade, sabendo e querendo a falsidade da imputação faltando assim o elemento subjetivo, dolo do crime aqui em questão.
Do processo nº 208/20.2JDLSB resultou apenas uma contradição insanável perante as versões apresentadas, não tendo sido demonstrado que efetivamente os factos que ali foram denunciados não se verificaram e que os aqui denunciados tinham conhecimento disso, atuando com o propósito que fosse instaurado procedimento criminal.
Nada disso ficou demonstrado nesses autos, sendo que, aqui também se coloca a questão de existência de indícios suficientes.
E sendo os factos apurados no decurso do inquérito aqueles a que se fez referência, cumpre agora decidir, à luz do que dispõem, conjugadamente, os artigos 277.º, 280.º, 281.º e 283.º do Código de Processo Penal, do desfecho do presente inquérito.
Incumbe, assim, verificar se, realizadas todas diligências probatórias tendentes à descoberta da verdade, os indícios recolhidos no inquérito são suficientes para, a manterem-se em julgamento, determinarem a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de ....
Há que ter em conta o disposto no n.º 2 do artigo 277.º do Código de Processo Penal, onde se estatui que “o inquérito é arquivado se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os agentes”, esclarecendo o n.º 2 do artigo 283.º do mesmo diploma que se consideram “suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de ...”.
No âmbito dessa correlação e da sua sequente valoração, assume-se, em razão de critérios objetivos de legalidade a que o Ministério Público está especial e especificamente vinculado, que esse grau valorativo terá que assumir uma particular qualificação, de probabilidade elevada, “(…) por ser a que melhor salvaguarda o referente de condenação, a exigência de verdade do julgamento e os princípios que convergem no procedimento e no momento (presunção de inocência, in dubio pro reo, etc). (…)” - cfr. Teixeira, Carlos Adérito, “Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, Revista do CEJ, n.º 1, 2004, Almedina, Coimbra.
Resta, assim concluir que não existem quaisquer diligências de inquérito que se afigurem por profícuas e suscetíveis de esclarecer a autoria dos factos denunciados.
*
Em conformidade com o exposto, determina-se o arquivamento do presente inquérito por insuficiência de indícios, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.»
*
2. A Assistente requereu a abertura de instrução nos seguintes termos:
«I - DOS FACTOS CONSTANTES DA DENÚNCIA
1.°
A Denunciante apresentou a presente denúncia, pelas condutas dolosas dos Denunciados AA e BB, melhor identificados nos autos, que aqui se sintetizam:
a. Os Denunciados, em ..., apresentaram queixa-crime, contra a ora Denunciante (entre outros), imputando-lhe a prática de um crime de burla previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.
b. O processo, com o n.° 208/20.2JDLSB, correu os seus termos neste DIAP de Oeiras.
c. Por despacho de 02/11/2021, o Ministério Público procedeu ao arquivamento do processo, contra a ora Denunciante.
d. Os Denunciados, ali queixosos, conformaram-se com a decisão.
e. Pela razão simples, de que sabiam, conscientemente, que a ora Denunciante não tinha praticado o crime de que a acusavam.
f. Aliás, a apresentação da queixa-crime contra a ora Denunciante, comprovadamente, apenas tinha por objetivo atemorizar e “amarrar” esta às práticas ilícitas perpetradas pelo seu ex-marido e os denunciados, pretendendo estes locupletar-se à custa do património da ora Denunciante e dos seus pais.
g. Todo este comportamento ardiloso dos Denunciados, foi recheado de mentiras e peripécias, através das quais pretendiam dar verosimilhança à queixa-crime apresentada contra a ora Denunciante.
h. Pouco se importando com a honra e consideração que era devida à ora Denunciante e do mal que causariam a esta e aos seus filhos, com a infundada queixa-crime.
i. Ambos, com a queixa-crime, mesmo sabendo falsa e caluniosa, pretendiam extorquir à ora Denunciante os eventuais danos patrimoniais que dizem terem sofrido.
j. Isto porque a ora Denunciante é enfermeira, tem uma atividade estável e de reconhecido mérito.
k. Para além disso, usufrui de um vencimento médio, o que lhe permite fazer face às despesas familiares e dos seus três filhos, contando apenas com a ajuda dos seus pais, não só para o pagamento de dívidas do jogo deixadas pelo seu ex-marido, como para acompanhar os netos fornecendo refeições, comprar a roupa de que eles necessitam, etc.
l. São, por isso, indecorosas, as denúncias formuladas contra a ora Denunciante, que é uma mãe exemplar e uma profissional digna e de reconhecido mérito.
m. Sabiam os queixosos que a aqui Denunciante nunca teve qualquer conhecimento e/ou intervenção nos negócios do ex-marido seja com os denunciados seja com quaisquer outros.
n. Ao apresentarem queixa-crime, contra a ora Denunciante, por crime de burla, os ora queixosos agiram com a intenção, concretizada, de que contra o ora Denunciante fosse instaurado procedimento criminal, bem sabendo que tudo quanto aí imputavam à ora Denunciante não correspondia à verdade.
o. Em consequência direta e necessária da queixa-crime apresentada pelos ora denunciados contra a ora Denunciante, foi esta constituída arguida no processo mencionado no artigo 1.º, deste articulado, o qual veio a ser arquivado por total ausência de prova dos factos denunciados e por a prova produzida refutar/infirmar os factos denunciados, tendo-se aí concluído por inexistência de qualquer crime, por parte da ora Denunciante.
p. Os ora Denunciados agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
q. Em consequência, direta e necessária, da queixa-crime apresentada pelos Denunciados, contra a ora Denunciante, esta ficou apreensiva, nervosa e revoltada.
r. Em consequência, direta e necessária, da queixa-crime apresentada pelos Denunciados, contra a ora Denunciante, esta sentiu-se gravemente ofendida na sua honra e consideração.
s. Em consequência, direta e necessária, da queixa-crime apresentada pelos Denunciados, contra a ora Denunciante, esta durante alguns dias, não conseguiu repousar normalmente.
t. A ora Denunciante sentiu-se muito incomodada com a denúncia criminal que contra si foi instaurada, sem qualquer fundamento.
u. A ora Denunciante, que exerce a profissão de enfermeira há alguns anos, sendo, nessa qualidade, conhecida como uma profissional competente, cumpridora e respeitadora dos deveres profissionais.
v. Em consequência, direta e necessária, da queixa-crime apresentada pelos Denunciados, contra a ora Denunciante, esta sentiu apreensão, amargura e intranquilidade, não conseguindo perceber o alcance e objetivo daquela acusação.
w. Em consequência, direta e necessária, da queixa-crime apresentada pelos Denunciados, contra a ora Denunciante, esta durante alguns dias não conseguiu exercer normalmente a sua atividade profissional, acabando por ficar de baixa médica psiquiátrica por mais de um ano.
x. Em consequência, direta e necessária, da queixa-crime apresentada pelos Denunciados, contra a ora Denunciante, esta pôs termo ao seu casamento com EE, também arguido no processo, supramencionado.
y. A apresentação da queixa-crime que deu origem aos autos que contra a ora Denunciante correram, consubstancia um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.º, n.° 1, do Código Penal.
z. São elementos do crime de denúncia caluniosa: “(1) - Elementos objetivos: denunciar ou lançar suspeita da prática de crime (ou falta disciplinar) sobre pessoa determinada; denúncia perante autoridade ou publicamente; falsidade da denúncia ou suspeita; (2) - Elementos subjetivos: ter o agente consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia; intenção de ver instaurado procedimento (disciplinar) contra a pessoa visada na denúncia.” (Ac. TRP, Proc. 4214/15.0T9MAI.P1, de 24-01-2018, in www.dgsi.ptl)
aa. As condutas dos denunciados, ao apresentarem queixa-crime contra a ora Denunciante, por um alegado crime de burla, sabendo que tal não correspondia à verdade, preenche «in totum» os pressupostos do crime de denúncia caluniosa, pelos quais deverão ser condenados.
I. - DO DOUTO DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
1.- Para o digno Procurador do Ministério Público, "... não foi possível apurar que a situação denunciada efetivamente não ocorreu e que os denunciados conhecendo esses factos lançaram mão de uma denúncia contra a aqui denunciante, sabendo que esses factos não corresponderiam à verdade, sabendo e querendo a falsidade da imputação faltando assim o elemento subjetivo, dolo do crime aqui em questão.”
E acrescenta: “Do processo n.º 208/20.2JDLSB resultou apenas uma contradição insanável perante as versões apresentadas, não tendo sido demonstrado que efetivamente os factos que ali foram denunciados não se verificarem e que os aqui denunciados tinham conhecimento disso, atuando com o propósito que fosse instaurado procedimento criminal.”
Para concluir: “Em conformidade com o exposto, determina-se o arquivamento do presente inquérito por insuficiência de indícios, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.”
Entende o digno Procurador do Ministério Público, que “falta (...) o elemento subjetivo, dolo do crime aqui em questão.”
Ou seja, no seu entendimento, os denunciados, não tinham consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia, nem a intenção de ver instaurado procedimento criminal contra a ora Denunciante.
Esta é a maior mistificação que se pode fazer nos presentes autos.
Tivesse a acusação feito uma investigação apurada e facilmente chegaria à conclusão dos propósitos conscientes, dos queixosos, na queixa apresentada contra a ora Denunciante.
A ora Denunciante, nunca participou em quaisquer negócios efetuados entre o seu ex-marido e os denunciados. Resulta expressamente dos autos.
11.
A ora Denunciante, não sabia, e nunca lhe foi comunicado, que tipo de negócios havia entre o seu ex-marido e os Denunciados, há quanto tempo existiam, e quais os montantes envolvidos.
Os ora denunciados, não apontam qualquer atividade da ora Denunciante com eles, que a pudessem envolver nos negócios efetuados.
A ora Denunciante, nem antes nem depois, dos negócios obscuros do seu marido, com os denunciados, viu aumentado o seu património ou nível de vida, antes pelo contrário.
As histórias falsas e fantasiosas, apresentadas pelos Denunciados, foram prontamente desmascaradas pela ora Denunciante, por testemunhos prestados, inclusive na presença de terceiros (advogada de um dos denunciados).
Os negócios informais e pouco claros dos denunciados com o ex-marido da ora Denunciante, seriam indícios suficientes para afastar qualquer suspeitas sobre a ora Denunciante, cuja retidão e probidade, estão muito acima do padrão apresentado.
Estes indícios, nunca deveriam ter sido afastados de uma investigação séria e rigorosa que o assunto merecia.
A honra e consideração de uma pessoa, no caso a ora Denunciante, merecem a tutela do direito, quando devassada ou posta em causa.
A queixa-crime apresentada contra a Denunciante é gratuita e deveria ter merecido severa censura das autoridades.
19.
É, por isso, perversa a decisão do arquivamento dos presentes autos, já que do mesmo resultam, comprovadamente, factos que deveriam levar os Denunciados a julgamento.
II. - DOS FUNDAMENTOS DA ABERTURA DE INSTRUÇÃO
20.
Como resultam dos “factos constantes da denúncia”, supramencionados no artigo 1.º e respetivas alíneas, deste articulado, que aqui se dão por reproduzidos na íntegra, a Denunciante foi objeto de uma queixa-crime, por alegada burla, apresentada pelos Denunciados.
21.
Os denunciados firmam a sua queixa-crime contra a ora Denunciante, num alegado conluio entre ela e seu ex-marido, destinado a burlar os Denunciados em negócios que tinham com eles.
22.
Nunca, porém, em momento algum, a ora Denunciante teve qualquer participação e/ou conhecimento dos negócios existentes entre o ex-marido e os denunciados.
23.
Isto, de resto, encontra-se comprovadamente demonstrado quer no inquérito quer nas diligências efetuadas pelo Ministério Público quanto à ora Denunciante.
24.
Todas as alegações falsas, enganosas ou não realistas, dos queixosos contra a ora Denunciante, foram prontamente desmentidas e denunciadas.
25.
Resulta, do teor do próprio despacho de arquivamento nos autos que deram origem à presente denúncia, a total ausência de conhecimento da ora Denunciante dos negócios entre o seu ex-marido e os denunciados.
26.
Aliás, não fosse o excessivo academismo do douto despacho de arquivamento, fácil seria verificar da personalidade e modo de estar dos quatro envolvidos, nos autos que deram origem à presente denúncia caluniosa.
27.
O ex-marido e os dois denunciados, pessoas ligadas a negócios informais, tipicamente à margem da lei.
28.
Pelo contrário, a ora Denunciante, mãe de três filhos, profissional de saúde exemplar, com uma carreira imaculada.
29.
É certo que foi casada com o arguido, já condenado, EE. E daí?
30.
O princípio «in dubio pro reo» não serve para colocar todos os envolvidos no mesmo ‘saco’.
31.
A ora Denunciante não se conforma com a proteção que é dada aos agentes do crime, neste caso os ora denunciados.
32.
Foram eles que, sem motivo algum, deduziram queixa-crime contra a ora Denunciante, colocando em causa o seu bom nome e consideração que lhe é devida.
33.
Este ato gratuito, apenas tinha como objetivo “amarrar” a ora Denunciante à satisfação dos eventuais prejuízos dos negócios entre os denunciados e o ex-marido desta.
34.
As dúvidas do inquérito só não foram convenientemente dissipadas por deficiente investigação do que se passou.
35.
O despacho de arquivamento nega a justiça, e ofende a honra e consideração da ora Denunciante.
36.
Os denunciados usaram um expediente proibido por lei para atingir a honra e consideração devidas à ora Denunciada.
37
Fizeram-no totalmente conscientes, na convicção de que assim obteriam as vantagens pretendidas.
38.
Ora, o crime de denúncia caluniosa consuma-se logo que a denúncia ou o lançamento da suspeita seja feita perante autoridade ou publicamente (assim, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 26-01-2011, proferido no processo n.º 11018/08.5TDPRT, de 25-11-2009, processo n.º 7451/05.2TDPRT e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17-02-2010, processo n.° 2174/07.0TAGMR-A.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt e ainda, Manuel da Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo III, p. 530 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, p. 943, ponto 13).
39.
“No crime de denúncia caluniosa o bem jurídico mediatamente protegido pela incriminação é a honra e o bom nome dos visados pela denúncia, únicos afetados pela conduta imputada ao arguido e já não o bom nome da sociedade por eles representada (note-se que o 3º denunciado pelo aqui arguido nem sequer era representante legal da sociedade), ainda que a imagem social desta possa ter sofrido eventuais prejuízos indiretos.” (Ac. TRP, Proc.º n.º 167/20.1T90VR.P1, de 07-07-2021, in www.dgsi.pt)
40.
Em todas as suas condutas, agiram livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.
Nestes termos e nos mais de Direito, designadamente, os do artigo 287.º n.° 1 e seguintes do Código de Processo Penal, requer a V. Exa. que, declarando-se aberta a instrução, se proceda a:
a. - Novo interrogatório da denunciante, para esclarecer as razões que a levaram a deixar que a sua conta bancária fosse utilizada, para um depósito de € 5.000,00, referente a negócios do seu ex-marido com os denunciados;
b. - Análise da conta bancária da denunciante, com extratos dos 6 meses anteriores, à apresentação da queixa crime, dos denunciados
c. Reinquirição das testemunhas,
i. - FF
…)
ii. - GG, (…), para esclarecer as ameaças e coação exercida sobre elas, em particular, sobre a Mãe da ora Denunciante, FF, pelos denunciados;
(…)»
*
2.2.3 A Instrução foi declarada aberta por despacho proferido em 8 de maio de 2024.
*
2.2.4 No âmbito da Instrução foram colhidas declarações à Assistente, realizou-se o debate instrutório e foi proferido despacho de não pronúncia, ora recorrido, o qual tem o seguinte teor:
«I - Declaro encerrada a instrução requerida pela assistente CC e a que se procedeu.
*
Não concordando com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, veio HH na qualidade de assistente requerer a abertura de instrução, pedindo que os denunciados AA e BB sejam pronunciados pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º do Código Penal.
Alega, para o efeito, que os denunciados firmaram a sua queixa crime contra a denunciante e aqui assistente, num alegado conluio entre ela e o ex marido destinado a burlar os denunciantes em negócios que tinham com eles; sucedendo, porém, que em momento algum teve qualquer participação e/ou conhecimento dos negócios existentes entre o ex-marido e os denunciados.
Mais invoca a assistente que todas as alegações dos denunciantes contra si são falsas, resultando do próprio despacho de arquivamento dos autos que deram origem à presente denúncia a total ausência de conhecimento pela mesma dos negócios existentes entre o ex-marido e os denunciados.
*
Em sede de instrução, procedeu-se à realização de debate instrutório com observância do legal formalismo.
É, pois, o momento de ser proferida a decisão instrutória, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 307.º do Código de Processo Penal.
*
II - O Tribunal é o competente.
Os sujeitos processuais dispõem de legitimidade.
Não existem outras exceções dilatórias, nulidades ou questões prévias de que cumpra conhecer.
*
III - A instrução, que tem carácter facultativo, visa in casu a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento – art.º 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
Constitui, pois, uma fase preparatória e instrumental relativamente ao julgamento.
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, conforme arts 308.º n.ºs 1 e 2 e art.º 283.º n.º 2 do Código de Processo Penal, ou seja, não é uma prova tão exigente como é aquela que tem na base a condenação de um arguido em audiência de discussão e julgamento, a qual não se fazendo aí, levará a que esse arguido beneficie do princípio in dubio pro reo e seja absolvido.
Constituem indícios suficientes, os vestígios, suspeitas, resoluções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.
Contudo, para a pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado - v., neste sentido, o Ac. da Relação de Coimbra, de 31/03/1993, in Colectânea de Jurisprudência, XVIII, 2, 65.
Dir-se-á, desde já, que não se trata na instrução de recolher prova de que os crimes denunciados não se verificaram. Trata-se de apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelos arguidos de factos que constituam crime.
No caso em apreço, cumpre averiguar em face do requerimento de abertura de instrução apresentado e do teor da prova recolhida em sede de inquérito, se existem ou não nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos AA e BB do crime de denúncia caluniosa que lhes é imputado pela assistente no requerimento de abertura de instrução apresentado.
Vejamos.
Os presentes autos tiveram início com a denúncia apresentada em ........ 2022 por CC imputando a AA e BB factos ocorridos no âmbito do processo nº 208/20.2JDLSB que correu os seus termos neste DIAP de Oeiras.
Nessa denúncia, CC refere que os denunciados eram pessoas que se relacionavam profissionalmente com o seu ex-marido, EE, no ramo do comércio de automóveis usados.
O denunciado, BB é gerente da empresa DD, cujo objecto comercial está relacionado com o comércio de viaturas.
O seu ex-marido foi alvo de uma investigação criminal que se desencadeou com denúncias formalizadas pelos denunciados, sendo que o processo correu termos no Tribunal de Oeiras, desconhece concretamente o número do processo, contudo confirma tratar-se do que consta dos presentes autos com o NUIPC 208/20.2JDLSB, sendo que o seu ex-marido acabou por ser acusado pelo Ministério Público e depois condenado pela prática de crimes de burla.
Também foi constituída arguida no referido processo, contudo não foi deduzida acusação pelo Ministério Público, sendo o processo arquivado na parte que lhe dizia respeito.
No decorrer das diligências de inquérito no referido processo, no momento em que foi prestar declarações como arguida nas instalações da Polícia Judiciária de Lisboa, que foi confrontada com as acusações que os denunciados lhe fizeram e que basicamente a envolviam no esquema ilícito levada a cabo pelo seu ex-marido e que seria inclusivamente cúmplice deste.
Especifica que ficou totalmente surpreendida com as acusações que lhe foram dirigidas. Entre as acusações falsas a denunciante refere que o denunciado AA terá referido à Polícia Judiciária que esta em conluio com o seu ex-marido teria usado a sua filha menor de idade para lhe extorquir dinheiro de forma ardilosa, fazendo crer que a sua filha estaria muito doente e que necessitava de dinheiro para pagar as despesas hospitalares e que inclusivamente se teria encontrado consigo no interior de um estabelecimento da sua propriedade.
Refere que os referidos factos são totalmente falsos, nunca a sua filha esteve doente e necessitada de receber tratamento hospitalar e também é falso que alguma vez tenha sequer entrado em algum estabelecimento do AA, é verdade que chegou a acompanhar o seu ex-marido a um estabelecimento do denunciado para falarem de negócios, mas aguardou sempre no exterior dentro do seu carro.
Para além da referida acusação, o Sr.º AA também levantou a suspeição de ter participado num jantar onde o mesmo esteve presente com o seu ex-marido, dando a entender que estava a par dos negócios ilícitos e dos seus esquemas, quando na realidade pensou que seria um jantar para o seu ex-marido lhe apresentar um futuro sócio de negócios totalmente transparente.
Acrescenta que também foi confrontada na mesma circunstância com as declarações que o denunciado BB terá feito à Polícia Judiciária, nas quais a acusou de participar nos esquemas ilícitos do seu ex-marido, nomeadamente de ter facultado a sua conta bancária alegadamente para dissimular a origem e o destino de uma importância monetária de 5.000,00 Euros.
Esclarece que na realidade autorizou que o seu ex-marido indicasse a sua conta bancária para receber tal montante, julgando que seria respeitante a um pagamento de um carro, que seria uma situação perfeitamente normal à data porque era o negócio dele, visto que na data trabalhava na ... e se dedicava à compra e venda de veículos.
Nestes autos, foi solicitada cópia do despacho de arquivamento proferido relativamente à denunciante no âmbito do processo nº 208/20.2JDLSB que correu na 1.ª Secção deste DIAP de Oeiras.
Nessa decisão de 02.11.2021, consta, além do mais, que “No caso em apreço nos presentes autos, em virtude da relação comercial de confiança que mantinha com BB (este na qualidade de legal representante da sociedade DD), dado que já haviam efectuado negócios anteriormente que haviam corrido sem qualquer incidente, o arguido EE, convenceu BB, de que tinha na sua disponibilidade veículos automóveis para venda, fazendo com que este, naquela qualidade, procedesse à entrega de quantias monetárias, criando-lhe a expectativa de que, em troca, receberia viaturas.
Assim, no dia .../.../2020, o legal representante da sociedade DD, seguindo as instruções do arguido EE, transferiu a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) para a conta titulada pela arguida CC (mulher do arguido), com o ..., convencido que a mesma se destinava à aquisição do veículo com a matrícula ..-BR-.., marca ....
O arguido EE fez sua, nomeadamente, a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) que foi transferida pela sociedade DD para a conta titulada pela arguida CC, como se disse, mulher do arguido EE.
Todavia, para a imputação fáctica geradora de responsabilidade criminal a assacar à arguida, cumpre aferir se dos elementos de prova junto aos autos, é ou não possível o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo.
A arguida, no uso de um direito que a lei lhe concede, decidiu prestar declarações sobre os factos e apresentou uma versão dos factos que se nos afigura verosímil.
Segundo a tese apresentada a própria terá sido enganada pelo marido, e só terá tido conhecimento das situações denunciadas pela ... no dia ........ 2020, quando o chefe do marido e um colega de trabalho se deslocaram a sua casa e depois o acompanhou a uma reunião nas instalações da empresa e o confrontaram com os factos relacionados com a apropriação de verbas de vendas de veículos da empresa. Até então, teria sempre o marido como bom funcionário, competente e de confiança. Sabia que o marido se dedicava à compra e venda de automóveis pelo que, do pouco conhecimento que teve através do marido, sempre ficou com a convicção de que os negócios eram perfeitamente legítimos, nem teve qualquer razão para desconfiar já que se enquadravam no ramo das actividades que o marido efectivamente desempenhava.
Foi só com o despedimento da ... que o marido acabou por lhe confessar que as situações foram motivadas por vício de jogo que desenvolvera e que tinha, até então, vergonha de assumir perante si.
Confirmou, ser titular da conta ... e que não é titular conjuntamente de nenhuma conta com o marido nem teve acesso a extractos bancários das contas do mesmo e esclareceu, numa ocasião, que terá sido antes do dia ........ 2020, o marido pediu-lhe para receber uma quantia na sua conta, relativo ao pagamento de um veículo, na medida em que a conta titulada pelo marido estava com saldo negativo e se a transferência fosse feita para a dele, iria ficar de imediato cativo pelo banco, sendo que, anuiu.
Explicou que nessa noite, pelas 23h00, o marido lhe pediu com alguma insistência que transferisse os 5.000,00 € para a conta do alegado proprietário (BB), indicando-lhe um NIB e a referência como sendo a empresa “...”, o que fez a solicitação do marido.
Só após o dia ........2020, após o despedimento da ... é que se apercebeu que a tal conta era titulada pela empresa ..., cujo único sócio era o marido.
A sua versão, afigura-se-nos verosímil, desde logo porque, dos autos não decorre que a arguida tenha tido melhoria das suas condições de vida ou que a mesma tenha beneficiado, efectivamente, das quantias em causa.
Ademais, não resultam dos autos indícios que nos permitam não dar credibilidade à versão que asseverou uma vez que, em nenhum outro momento se vislumbra a participação da arguida nos factos praticados pelo arguido EE e cuja acusação infra se deduzirá nem que a mesma tenha sinais exteriores de riqueza.
Na verdade, a eventual intervenção de CC documentada foi efectivamente o recebimento dos 5.000,00 € na sua conta, que foi explicado e supra referenciado que em tudo não nos suscita hesitações uma vez que até àquela data (........2020), a arguida não tinha motivos para suspeitar da legalidade dos negócios do marido cuja actuação naquele ramo de actividade, nunca tinha tido qualquer incidente, tendo efectuado a transferência para uma conta indicada pelo mesmo, nesse mesmo dia.
Pese embora o recebimento da quantia numa conta por si titulada, não resultam dos autos elementos que nos permitam afirmar que a arguida sabia de que o motivo daquela transferência assentava num esquema de burlas orquestrado pelo seu marido, quantia esta que a arguida nunca veio a beneficiar nem tinha conhecimento que seria em prejuízo de terceiros, julgando que se tratavam de transferências que tinham por base pagamentos/transações de veículos perfeitamente legitimas, porque integradas na actividade profissional do seu marido.
Não existem mais elementos de prova que nos permitam colocar em causa as declarações da arguida que nos parecem lógicas, coerentes e assertivas, designadamente quanto à data do conhecimento dos factos (........2020) e também porque não se afigura que a mesma beneficiou das aludidas quantias, que, segundo sabe, apenas serviram para alimentar o vício do jogo do arguido EE, tanto mais que a arguida refere inclusivamente que, pese embora seja enfermeira e aufira cerca de 1.000,00€, uma vez que tem três filhos, beneficia de apoio familiar para o pagamento de despesas correntes.
Assim, aqui chegados, cumpre concluir que, pese embora o recebimento daquela quantia na sua conta, não resulta dos autos que a arguida tivesse conhecimento do esquema ardiloso que o arguido criou para obter de terceiros quantias monetárias, tendo em vista o prejuízo patrimonial de terceiros, nomeadamente da sociedade DD.
Por outro lado, também não foi possível juntar aos autos elementos de prova que nos permitam concluir que a arguida ao indicar o seu NIB para o recebimento daquela quantia, tivesse intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento que sabia ser ilegítimo, tanto que, como a própria disse, achava que se tratava de um negócio perfeitamente legítimo e o motivo apresentado pelo marido se mostrava também aceitável.
Quanto ao ofendido AA o ofendido, quando inquirido, confirmou o teor da queixa por si apresentada, mais concretamente relativamente às quantias que tinha entregado ao arguido para pagamento das despesas hospitalares da filha menor de ambos, que uma ocasião, recorda-se que se encontrou com a arguida CC, tendo desejado rápidas melhoras à filha e esta, anuiu, agradeceu, ainda que envergonhada e comprometida, dizendo que a filha estava melhor.
A versão apresentada pelo denunciante não é, contudo, corroborada por qualquer outra prova, quer documental quer testemunhal que nos permita concluir pela comparticipação ou, sequer, pelo conhecimento, dos negócios ou dos esquemas que o arguido EE engendrou com o fito de obter ilicitamente quantias de dinheiro do ofendido, bem sabendo que não lhe pertenciam.
Também não decorre dos autos, como se disse, que a arguida tenha beneficiado de quaisquer quantias monetárias originárias desses artifícios criados pelo marido.
Por sua vez, a arguida apresentou uma versão diametralmente oposta à do denunciante. Quando interrogada, negou de forma peremptória a prática dos factos que lhe são imputados. Mais esclareceu que nunca teve conhecimento do artifício que o seu marido criou, designadamente que teria pedido e logrado obter de AA as quantias de 3.000,00 € e 1.500,00 €, tendo-lhe dito que a filha de ambos tinha sido hospitalizada.
Referiu que, efectivamente, a filha nunca esteve hospitalizada.
E também só posteriormente teve conhecimento que o mesmo terá alegado a morte do pai para pedir empréstimos, facto este que também afirma não ser verdade.
Ademais, negou peremptoriamente que tenha confirmado ao ofendido AA como verdadeira a história do internamento, nem sequer se recordando deste alguma vez a ter abordado a este respeito.
Reiterou que apenas nas reuniões no escritório da advogada é que teve conhecimento desta situação, quando o ofendido mostrou as mensagens que EE lhe tinha enviado a este propósito, nomeadamente com a fotografia de uma menor hospitalizada, que não é a sua filha - que aliás nunca esteve hospitalizada.
Existe, pois, uma contradição insanável, porque insuperável, entre o depoimento do ofendido e as declarações da arguida.
Ademais, inexistem quaisquer outras testemunhas presenciais e com conhecimento directo dos factos que pudessem ser inquiridas e/ou outros elementos probatórios que cumprisse juntar.
As apontadas incoerências permitem fundar uma dúvida séria sobre a realidade dos factos que considerámos não estarem suficientemente indiciados.
Assim sendo, não tendo sido possível no inquérito dissipar a dúvida, e esclarecer se a arguida foi co-autora da prática dos aludidos factos ilícitos e a medida da sua participação, a dúvida terá de favorecer a arguida, pelo que, não poderemos considerar suficientemente indiciado que esta praticou os factos em investigação, tinha conhecimento dos mesmos, ou sequer beneficiou directa ou indirectamente da conduta do arguido EE.
Neste contexto, face à inexistência de indícios de prova válidos e relevantes, como se disse, não se conjectura uma probabilidade séria de obter a sua condenação pelos factos denunciados.
Em face do exposto, sem necessidade de mais considerandos, por não se terem recolhido indícios suficientes da verificação da prática por CC, não se poderá proferir um despacho de acusação, determinando-se assim o arquivamento dos presentes autos, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, (sublinhado nosso) sem prejuízo de posterior reabertura se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos supra mencionados, nos termos do disposto no artigo 279.º, do mesmo diploma legal”.
Revertendo agora ao caso concreto, constata-se, pois, que, não foi possível apurar se a situação denunciada efetivamente não ocorreu.
Com efeito, no âmbito do processo nº 208/20.2JDLSB resultou apenas uma contradição insanável perante as versões apresentadas, não tendo sido demonstrado que efetivamente os factos que ali foram denunciados não se verificaram e que os aqui arguidos tinham conhecimento disso, atuando com o propósito que fosse instaurado procedimento criminal.
Salienta-se que não se logrou apurar que os arguidos, conhecedores desses factos tivessem lançado mão de uma denúncia contra a aqui assistente, sabendo que esses factos não corresponderiam à verdade, sabendo e querendo a falsidade da imputação.
E assim sendo é manifesto que não se mostram indiciados factos suficientes para integrar o elemento subjetivo do crime de denúncia caluniosa.
Vejamos.
O crime de denúncia caluniosa encontra-se previsto no artigo 365º do Código Penal.
Tal disposição legal prescreve que, no seu n.º 1 que “quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Posto isto, importa aferir quais os elementos típicos deste crime.
São elementos objetivos do crime a existência de uma imputação a outrem da prática de um crime. E que tal imputação seja efetuada perante autoridade ou publicamente.
Trata-se de um crime de perigo concreto, importando, portanto, para o seu cometimento que em concreto tenha sido criado perigo de a pessoa ofendida enfrentar a instauração de um procedimento persecutório.
A consumação do ilícito ocorre, pois, quando, perante a idoneidade da denúncia ou suspeita, esta chega ao respetivo destinatário, o que faz surgir o perigo de a autoridade competente instaurar procedimento criminal.
É por isso necessário que a denúncia chegue ao seu destinatário, sem o que inexiste consumação do crime, mas, por outro lado, não é necessário, para a verificação do ilícito, por não fazer parte do tipo, a efetiva instauração do procedimento.
Como elementos subjetivos encontramos a consciência da falsidade da imputação e a intenção de que contra a outra pessoa se instaure procedimento criminal. Ou seja, do ponto de vista subjetivo, trata-se de um crime com dolo específico, dolo este que tem que ser direto, excluindo-se, pois, para que se considere praticado, o dolo eventual ou necessário (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado, 16ª ed., pág. 1015) – nosso negrito.
Compulsados os autos e os elementos probatórios aí constantes, resulta que do alegado no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente é de considerar indiciados os factos alegados nos seguintes artigos: 1.º, alíneas a) a d), j), k), o), x).
E por falta de prova suficiente conducente à sua verificação, considero não indiciados os factos alegados nos seguintes artigos: 1.º, alíneas e) a g), i), m), n, p) a t), u) 2ª parte, v), w), 10.º, 11.º, 13.º, 22.º, 27.º.
Não nos pronunciamos quanto aos restantes artigos por conterem matéria conclusiva ou de direito.
Ora, atenta a factualidade que resultou indiciada é manifesto que os arguidos não cometeram o crime de denúncia caluniosa que lhes é imputado pela assistente.
Efetivamente, não resultou suficientemente indiciado nos autos que os arguidos, tivessem apresentado a referida queixa contra a aqui assistente, com consciência da falsidade da imputação dos factos que lhe imputaram nessa sede, tendo querido lançar sobre a mesma a suspeita de um crime com intenção de que contra ela se instaurasse procedimento criminal.
Pelo que falece o elemento subjectivo do crime de denúncia caluniosa que é um crime exclusivamente doloso, não se mostrando, pois, preenchido o elemento subjectivo do tipo criminal em apreço.
Não se vislumbra que as dúvidas suscitadas nesta fase possam vir a ser dissipadas em fase de julgamento, atenta a insuficiência de elementos.
Deste modo e em conclusão, não existem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos arguidos em audiência de discussão e julgamento pela prática do crime de denúncia caluniosa, impondo-se a prolação de despacho de não pronúncia.
(…)»
*
2.3 Conhecendo do mérito do recurso
2.3.1 Da nulidade
Invoca a Assistente a nulidade da decisão instrutória; diz para tanto e em síntese que a decisão instrutória não especifica os factos suficientemente indiciados, ofendendo assim o preceituado pelo artº 283º, nº 1, alínea b), aplicável à decisão instrutória por força do artº 308º nº 2, ambos do Código de Processo Penal.
Cumpre apreciar.
Afigura-se-nos manifesto que a decisão recorrida não padece deste vício que lhe é apontado. Vejamos porquê.
Atente-se no teor do art.º 308º, nº 2 do Código de Processo Penal (todas as normas que doravante citarmos sem identificação do diploma a que se referem deverão ser reportados ao Código de Processo Penal): «é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior
E o que o nos diz o «nº 1 do artigo anterior» é o seguinte: «encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a ata, considerando-se notificado aos presentes, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução
Dos sublinhados que deixámos evidenciados resulta então que a decisão instrutória, seja ela de pronúncia ou de não pronúncia, pode fundamentar por remissão para as razões de facto enunciadas, entre o mais, no requerimento de abertura de instrução.
E foi isso que a Sra. Juíza de Instrução fez; convoquemos o que neste domínio importa destacar da decisão recorrida:
«Compulsados os autos e os elementos probatórios aí constantes, resulta que do alegado no requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente é de considerar indiciados os factos alegados nos seguintes artigos: 1.º, alíneas a) a d), j), k), o), x).
E por falta de prova suficiente conducente à sua verificação, considero não indiciados os factos alegados nos seguintes artigos: 1.º, alíneas e) a g), i), m), n), p) a t), u) 2ª parte, v), w), 10.º, 11.º, 13.º, 22.º, 27.º.
Não nos pronunciamos quanto aos restantes artigos por conterem matéria conclusiva ou de direito.»
Da leitura da decisão recorrida percebe-se então e de forma clara, ainda que por meio de remissão para o requerimento de abertura de instrução, como legalmente é possível fazer-se, quais os factos que a Sra. Juíza de Instrução considerava indiciados (e quais os que tinha por não indiciados).
Improcede em suma este segmento do recurso.
*
Aqui chegados, ocorre, porém, apreciar a fundamentação da decisão instrutória sob um outro ângulo, à luz do qual já nos parece que aquela padece de uma vulnerabilidade que assinalaremos. A que nos referimos?
Temos em vista o vício da falta ou insuficiência da fundamentação do despacho recorrido, na vertente da ausência de exame crítico da prova produzida.
Importa a este propósito começar por notar que as decisões judiciais (que não sejam de mero expediente) têm com efeito de ser fundamentadas, por força do preceituado pelo art.º 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e pelo art.º 97º, nºs 1, alínea b) e 5 do Código de Processo Penal; essa fundamentação constitui aliás uma componente importante do conceito de processo equitativo, presente no art.º 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e no art.º 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Cabe aos tribunais expor os fundamentos das decisões que dirimam os litígios que lhes sejam submetidos. E embora a extensão desse dever de fundamentação possa variar em função da natureza da decisão e das circunstâncias do caso, e embora, ainda, se não exija uma resposta detalhada e exaustiva a todos e cada um dos argumentos expostos pelas partes, impõe-se que haja uma apreciação explícita em relação àqueles que se prefigurem como decisivos para o desfecho dos autos (cfr. Acs. do TEDH Moreira Ferreira v. Portugal (nº 2) [GC], nº 19867/12, § 84, de 11/07/2017, Boldea v. Romania, nº 19997/02, § 30, de 15/02/2007, Lobzhanidze and Peradze v. Georgia, nºs 21447/11 e 35839/11, § 66, de 27/02/2020, in https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]} ).
Como já tem sido dito, a fundamentação das decisões judiciais cumpre vários propósitos (vide sobre esta matéria o Ac. do STJ de 21/03/2007, relatado por Henriques Gaspar, e Emanuel Alcides Romão Pinto, in Do dever de fundamentação das decisões judiciais como garantia constitucional: em especial a sentença penal, file:///C:/Users/mj01969/Downloads/9218-Artigo-15418-1-10-20200701.pdf):
- por um lado, constitui «uma garantia de racionalidade, de imparcialidade e de ponderação da própria decisão judicial, como um elemento imprescindível de autocontrolo judicial, mormente quanto à apreciação dos argumentos (…), da livre convicção do juiz em matéria probatória, bem como da interpretação e aplicação do direito; e visa também assegurar o direito ao recurso, o que só é possível mediante a exteriorização dos fundamentos da decisão adotada, tornando explícito (…) qual foi o seu concreto juízo decisório, possibilitando, desse modo, o controlo impugnativo» (José Tomé de Carvalho, “Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão penal final no ordenamento jurídico português”, in Julgar, n.º 21, 2013, Coimbra Editora, p. 81);
- por outro lado, permite «um controlo externo sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, de modo a garantir a transparência do processo e da decisão (…), o que possibilitará um controlo difuso sobre o exercício da jurisdição» (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 2.ª edição, Coimbra: Almedina Editora, 1998, p. 621).
Não havendo ou sendo insuficiente a fundamentação, não é verdadeiramente possível aos destinatários da decisão e à comunidade em geral conhecer por inteiro as suas razões, o que leva a que os interessados não possam verdadeiramente reagir à substância de tais razões; e do mesmo passo, fica o tribunal de recurso impedido de exercer na sua plenitude o seu papel de escrutínio sobre aquela mesma substância.
O que vimos de dizer não significa que sejamos avessos a uma tendencial simplificação das decisões judiciais. Desde logo por razões de economia processual, de clareza e boa comunicação das decisões judiciais e de reforço da legitimação dos tribunais como órgãos de administração da justiça em nome do povo, somos sensíveis à conveniência e até necessidade de simplificar o texto de tais decisões, evitando o desfilar de considerações que na realidade nada acrescentam de útil à concretização de um processo equitativo e à boa compreensão do que se decide.
Ora, se há nos autos prova que, pelo menos a uma primeira análise, concorre num sentido díspar daquele que vem a ser acolhido pela decisão judicial, importa que esta explicite, ainda que concisamente, porque seguiu esse outro caminho, isto é, porque desconsiderou ou teve por irrelevante ou impertinente essa prova. Não o dizendo, a decisão fica destituída da possibilidade de, sequer em tese, persuadir os seus destinatários e a comunidade em geral, ficando desse ponto de vista deslegitimada.
Uma decisão não fundamentada ou não suficientemente fundamentada quanto à análise da prova não é necessariamente nula, contudo. Recorde-se que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei» e que «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular» (art.º 118º, nºs 1 e 2).
Assim é que uma decisão judicial que omita o exame crítico da prova é irregular, a menos que exista norma que consagre a nulidade. Essa norma existe em relação à sentença [art.º 379º, nº 1, alínea a), por referência ao art.º 374º, nº 2], mas não existe a propósito da fundamentação de decisões instrutórias de não pronúncia.
Pela gravidade do vício e pelo impacto negativo que pode ter numa equitativa, clara e persuasiva administração da justiça no contexto de um Estado de Direito Democrático, não seria desrazoável que o legislador, fora do mero expediente, cominasse com a nulidade todas as decisões judiciais não fundamentadas – essa abordagem terá aliás chegado a ser equacionada, mas foi afastada (cfr. acta nº 6, de 9/04/1991, Actas CPP/Figueiredo Dias – Actas da comissão encarregada de proceder à revisão do CPP constituída pelo despacho ministerial nº 32/91, in DR, II Série, de 8/04/1991).
Não tendo sido essa a orientação seguida pelo legislador, um despacho de não pronúncia que não esteja suficientemente fundamentado no que toca à análise da prova padece de irregularidade e não propriamente de nulidade (Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 2ª edição, tomo III, Almedina, pg. 1337; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, 2011, pg. 805).
Significa isso que o sujeito processual interessado no reconhecimento do vício tem à partida de o invocar nos três dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado (art.º 123º, nº 1).
No caso concreto, a decisão instrutória foi notificada, por cartas expedidas a 3 de outubro de 2024, à Assistente e à sua Ilustre Mandatária (referências eletrónicas nº 153279775 e 153271966), bem assim como por email a esta última (referência eletrónica nº 153272062).
O prazo normal de arguição da irregularidade esgotou-se no dia 10 de outubro de 2024 ou, considerando o eventual acréscimo dos três dias suplementares de prazo com pagamento de multa, no dia 15 de outubro de 2024 (arts. 113º, nº 2 e 107º-A).
Ora, entretanto, a Assistente não invocou o vício perante o Tribunal de 1ª Instância e apenas interpôs o recurso no dia 30 de outubro de 2024 (referência eletrónica nº 26634975).
Vale o exposto por dizer que a Assistente não chegou a arguir a irregularidade, pelo modo e no tempo próprios.
Em todo o caso, há que notar que, pese embora se trate de uma irregularidade, não estamos impedidos de dela conhecer, mesmo oficiosamente, ao abrigo do preceituado pelo art.º 123º, nº 2.
Como atrás se disse, a decisão instrutória não pode deixar de discutir suficientemente a prova produzida e os indícios existentes e tomar sobre eles posição: só desse modo os seus destinatários poderão compreender o que fica decidido e a tanto reagir, e só desse modo poderá o Tribunal da Relação exercer o seu papel de escrutínio num real e efetivo e não meramente teórico ou ilusório segundo grau de jurisdição.
Estando nós diante uma decisão instrutória que tem por efeito o arquivamento dos autos, naturalmente sem possibilidade jurídica de reabertura ou de novo processo pelos mesmos factos por força do caso julgado e da proibição do ne bis in idem, a falta ou insuficiência de fundamentação retira à decisão o seu valor como ato processual, posto que impede o exercício efetivo do direito de recurso e impede ainda o tribunal de recurso de uma efetiva apreciação do decidido – daí o conhecimento oficioso da irregularidade permitido pelo art.º 123º, nº 2 (vide entre outros os Acs. da Relação de Coimbra de 22/11/2023 e da Relação de Lisboa de 9/11/2023 e de 24/10/2024 relatados respetivamente por Cândida Martinho, Amélia Carolina Teixeira e Ana Marisa Arnêdo, in www.dgsi.pt).
O que se espera da fundamentação, em matéria de análise da prova e dos factos que dela podem ou não retirar-se como indiciados, é que a 1ª Instância exponha as linhas essenciais do raciocínio seguido na abordagem das questões em debate, e que a decisão tenha o mérito de, pelo menos em tese, ser convincente em face dos seus destinatários e da comunidade em geral.
Dito isto, olhemos a decisão instrutória.
O que dela consta, em traço largo, é o seguinte:
i. descreve o requerimento de abertura de instrução (pg. 1);
ii. descreve a natureza da fase de instrução e o grau de exigência geral de análise da prova (pg. 2);
iii. descreve a denúncia feita pela Assistente (pgs. 3-4);
iv. refere que nestes autos foi solicitada cópia do despacho de arquivamento proferido, quanto à Assistente, no Inquérito nº 208/20.2JDLSB e transcreve parte do mesmo (pgs. 4-9);
v. afirma em seguida o seguinte: «Revertendo agora ao caso concreto, constata-se pois, que não foi possível apurar se a situação denunciada efetivamente não ocorreu. Com efeito, no âmbito do processo nº 208/20.2JDLSB resultou apenas uma contradição insanável perante as versões apresentadas, não tendo sido demonstrado que efetivamente os factos que ali foram denunciados não se verificarem e que os aqui arguidos tinham conhecimento disso, atuando com o propósito que fosse instaurado procedimento criminal. Salienta-se que não se logrou apurar que os arguidos conhecedores desses factos tivessem lançado mão de uma denúncia contra a aqui assistente, sabendo que esses factos não corresponderiam à verdade, sabendo e querendo a falsidade da imputação. E assim sendo é manifesto que não se mostram indiciados fastos suficientes para integrar o elemento subjetivo do crime de denúncia caluniosa.» (pg. 9);
vi. descreve o tipo legal de crime de denúncia caluniosa (pgs. 9-10);
vii. consigna, por remissão, os factos que tem por indiciados e não indiciados (pg. 10);
viii. e depois avança e conclui nos seguintes termos: «Ora, atenta a factualidade que resultou indiciada é manifesto que os arguidos não cometeram o crime de denúncia caluniosa que lhes é imputado pela assistente. Efetivamente, não resultou suficientemente indiciado nos autos que os arguidos tivessem apresentado a referida queixa contra a aqui assistente, com consciência da falsidade da imputação dos factos que lhe imputaram nessa sede, tendo querido lançar sobre a mesma a suspeita de um crime com intenção de que contra ela se instaurasse procedimento criminal. Pelo que falece o elemento subjectivo do crime de denúncia caluniosa que é um crime exclusivamente doloso, não se mostrando, pois, preenchido o elemento subjectivo do tipo criminal em apreço. Não se vislumbra que as dúvidas suscitadas nesta fase possam vir a ser dissipadas em fase de julgamento, atenta a insuficiência de elementos. Deste modo e em conclusão, não existem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena aos arguidos em audiência de discussão e julgamento pela prática do crime de denúncia caluniosa, impondo-se a prolação de despacho de não pronúncia.» (pgs. 10-11).
Ora, não cremos que a decisão proferida observe suficientemente o dever de fundamentação, na vertente do exame crítico da prova.
Na verdade, e desde logo, há com efeito que registar que nestes autos foram ouvidas em 6 de fevereiro de 2024, ainda na fase de inquérito, duas testemunhas (em 6/02/2024): FF e GG.
Uma e outra, com maior ou menor conhecimento, com maior ou menor distanciamento, de forma mais ou menos direta, prestaram depoimentos sobre a matéria em discussão nos autos e ambas no sentido propugnado pela Assistente.
Não se vê na decisão instrutória nenhuma referência a tais depoimentos. Até pode a Sra. Juíza de Instrução, na sua íntima convicção, ter tido as melhores razões para não olhar esses depoimentos como relevantes para a sustentação da tese defendida no requerimento de abertura de instrução; mas impor-se-lhe-ia que dissesse porquê.
Não são valoráveis? Não são credíveis? Porque não são tais depoimentos bastantes para considerar suficientemente indiciados os factos em discussão?
Ficámos sem conhecer a posição da 1ª Instância. E ficando sem a conhecer, como pode a Assistente, neste vazio, afastar as pretensas e não invocadas razões para a não atendibilidade dos depoimentos?
E ainda que se conceda que sempre poderia a Assistente apelar à existência e valia desses depoimentos, como poderia o Tribunal da Relação exercer o seu papel de escrutínio do decidido? Repare-se que o não reconhecimento desta fragilidade da decisão instrutória implicaria que fosse o Tribunal da Relação a apreciar, em primeira mão, como se estivesse na 1ª Instância e com isso suprimindo um grau de jurisdição, se aqueles depoimentos eram ou não valoráveis, credíveis e suficientes para a demonstração indiciária dos factos.
Mais: a Assistente prestou também, ela própria, declarações nos autos: num primeiro momento na fase de inquérito, em 6 de fevereiro de 2024, e num segundo momento já em sede de Instrução, no dia 23 de setembro de 2024.
Por que motivo não se debruçou a decisão instrutória sobre essas declarações? Fica a perceção de que apenas atentou ao conteúdo da denúncia, o que não é exatamente o mesmo.
Aliás, nos presentes autos nem sequer pode dizer-se, em bom rigor, que exista prova por depoimentos ou declarações que contradiga a posição da Assistente, já que os Arguidos exerceram o seu direito ao silêncio quando ouvidos nessa qualidade a 8 e 9 de fevereiro de 2024, posição essa que é probatoriamente neutra, ao invés da que deriva das declarações da Assistente, que apontam positivamente num sentido.
Percebe-se, é certo, que a Sra. Juíza de Instrução teve em conta o processado no Inquérito nº 208/20.2JDLSB e conferiu importância à situação de dúvida aí expressa no despacho de arquivamento quanto a saber se a aqui Assistente conhecia as práticas do seu ex-marido e se nelas interviera e em que grau e medida. Mas essa abordagem não basta – esses autos foram o que foram e é nestes de que agora cuidamos que a problemática se põe.
Não havendo efeito de caso julgado que decorra nesta matéria do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público no âmbito daquele outro Inquérito (nem um tal efeito é convocado no despacho recorrido), Inquérito esse cujo objeto, ainda que próximo, era distinto, o que aqui está neste momento em discussão, grosso modo, é se há ou não indícios suficientes de que os aqui Arguidos, ao terem apresentado as queixas/denúncias que deram origem àquele Inquérito, sabiam que estavam a fazer falsas imputações à Assistente.
Ora, a prolação de uma decisão nesta matéria não pode dispensar não só a ponderação da prova efetivamente produzida nestes autos, como ainda a exteriorização no texto decisório de uma tal ponderação, em ordem a que se perceba em concreto, ainda que de forma concisa, porque é que, desde logo, os relatos da Assistente e das duas testemunhas ouvidas nestes autos não são suficientes, na ótica do Tribunal recorrido, para densificar indícios com o peso adequado de que os Arguidos – os quais, insista-se, não prestaram declarações - tinham consciência da falsidade das imputações que faziam à primeira; e considerando-se, de resto, como se lê na decisão recorrida, de que «para a pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado».
Decerto que, ponderada efetivamente toda essa prova, se o Tribunal recorrido ainda assim persistir numa situação de dúvida razoável quanto à suficiência dos indícios, o princípio in dubio pro reo será um recurso possível para solucionar a problemática a decidir, não pronunciando os Arguidos ou algum deles.
Isto sem prejuízo de o Tribunal recorrido, ante a natureza e seriedade das dúvidas com que possa sentir-se confrontado em face das concretas provas analisadas, equacionar a necessidade de feitura de diligências suplementares para o seu esclarecimento, como por exemplo diligenciar pela incorporação nos autos de cópia das próprias queixas feitas pelos aqui Arguidos e das declarações ou depoimentos que os mesmos tenham prestado enquanto ofendidos no âmbito do Inquérito nº 208/20.2JDLSB (que não constam destes autos); e ainda, eventualmente, ouvir o ex-marido da Assistente, em ordem a que possa nomeadamente esclarecer se, como defende a Assistente, os Arguidos nenhuma razão tinham para crer no envolvimento daquela nas práticas investigadas naquele Inquérito.
Diligências suplementares estas a fazer como ato preparatório do suprimento da irregularidade assinalada, no contexto de uma possível reabertura do debate instrutório.
Em suma, não podemos deixar de reconhecer a existência da vulnerabilidade apontada à decisão recorrida e determinar o regresso dos autos à 1ª Instância para o seu suprimento.
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Face ao sentido do decidido, fica prejudicada a apreciação da parte remanescente do recurso.
3. DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em:
3.1 Julgar a decisão instrutória irregular, por falta de suficiente exame crítico da prova produzida nestes autos, e nomeadamente das declarações da Assistente e dos depoimentos das testemunhas FF e GG;
3.2 Determinar o regresso dos autos à 1ª Instância, a fim de aí ser proferida nova decisão instrutória que supra a apontada irregularidade, sem prejuízo de, se o Tribunal Recorrido o entender necessário, ordenar a reabertura do debate instrutório, como ato preparatório do suprimento da irregularidade, e nesse âmbito ordenar as diligências que tiver por pertinentes em ordem ao apuramento da verdade material.
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Não são devidas custas (art.º 513.º, n.º 1, parte final, e 514º, nº 1, a contrario sensu, do CPP).
Registe e notifique.
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Lisboa, 24 de abril de 2025
(processado pelo Relator e por todos revisto)
Jorge Rosas de Castro
Ana Paula Guedes
Isabel Maria Trocado Monteiro