RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
PENA DE MULTA
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
ERRO DE JULGAMENTO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
REENVIO DO PROCESSO
Sumário


I - Absolvido em 1.ª instância e condenado na Relação, em recurso, numa pena de multa, recorre o arguido para o STJ [art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21-12] alegando violação do princípio in dubio pro reo.
II - Suscita-se a questão prévia de saber se o tribunal da Relação poderia modificar a matéria de facto, dando como provados factos não provados em 1.ª instância por considerar que a alegação de erro notório na apreciação da prova [art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP] não dizia respeito «ao texto sentença em si mesmo, mas ao confronto desse texto com o teor da prova efetivamente produzida».
III - A possibilidade de a Relação modificar a matéria de facto só pode ocorrer nas condições impostas pelos arts. 426.º e 431.º do CPP, fora do âmbito do recurso de impugnação da matéria de facto, o tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto para remover um vício que impeça a decisão de direito «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do art. 431.º do CPP], nelas não se incluindo as declarações gravadas.
IV - A impugnação da decisão em matéria de facto obedece a exigentes requisitos, impondo ao recorrente o ónus de impugnação especificada, que delimita os poderes de cognição do tribunal de recurso (art. 412.º, n.º 3, do CPP).
V - Ao apreciar e decidir sobre a impugnação da matéria de facto, sem satisfação do ónus de especificação imposto pelo n.º 3 do art. 412.º do CPP, e ao não apreciar o alegado vício de erro notório na apreciação da prova, o acórdão da Relação está ferido de nulidade por excesso e por omissão de pronúncia [arts. 379.º, n.º 1, al. c), e 425.º, n.º 4, do CPP], devendo ser substituído por outro que, em conhecimento do recurso da assistente, aprecie da verificação e das possibilidades de suprimento do alegado vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 426.º do CPP, com reenvio para novo julgamento, se for caso disso.

Texto Integral


Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Por sentença de 21.02.2024 proferida pelo Juízo Local Criminal de ... – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi decidido:

«A) Quanto à parte criminal:

1. Absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal.

(…)

B) Quanto à parte cível

1. Julgar o pedido de indemnização civil deduzido por BB contra AA, improcedente por não provado.

(…)»

2. Inconformada, recorreu a assistente BB para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por acórdão de 25.09.2024, concedendo provimento ao recurso, decidiu:

«(…) considerar provados os factos (não considerados provados na sentença recorrida) constantes do despacho de pronúncia e, consequentemente, condenar o arguido, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de sessenta (60) dias de multa, à taxa diária de oito (8) euros, o que perfaz a multa global de quatrocentos e oitenta (480) euros, e condená-lo a pagar à assistente e demandante a quantia de setecentos (700) euros a título de indemnização de danos não patrimoniais decorrentes da prática desse crime.).»

3. Discordando do decidido pelo Tribunal da Relação, recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça apresentando motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«D - Das conclusões:

42. Nos presentes autos foi proferida decisão de absolvição do arguido AA.

43. A recorrente apresentou recurso desta decisão de absolvição, alegando violação do princípio da livre apreciação da prova, erro notório na apreciação da prova/impugnação da decisão da matéria de facto.

44. O recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto mereceu provimento.

45. O arguido vem recorrer do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, nos termos e para os efeitos dos artigos 434.º, 432.º, n.º 1, alínea a) e 410.º, ns. 1 e 2, todos do Código de Processo Penal.

46. O Supremo Tribunal de Justiça conhece de matéria de direito, sem prejuízo de poder e dever conhecer dos vícios da decisão previstos nas alíneas a) a c) do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal – é dentro desta premissa que se apresentam estas alegações de recurso.

47. O Tribunal da Relação do Porto faz decair algumas das pretensões da assistente em sede de recurso e não retira desse decaimento as inerentes consequências legais.

48. O acórdão condenatório de que se recorre analisa a credibilidade das testemunhas e das suas declarações, designadamente da assistente e o seu marido, fazendo um novo julgamento, que lhe está vedado.

49. Sem prova testemunhal ou pericial concludente de que as lesões da assistente foram causadas pelo arguido, no acórdão recorrido defende-se que não se vislumbra que outra causa, além da agressão do arguido, possa ter originado tais lesões, afastando a automutilação por parte da assistente.

50. Na falta de prova, o Tribunal da Relação do Porto lança uma presunção de autoria ao arguido.

51. O relatório, documentos médicos e fotografia junto aos autos foram considerados em toda a sua extensão no acórdão recorrido, apesar de o seu teor probatório ser altamente questionável, considerando as distintas versões que a assistente apresenta, desde logo, ao longo do atendimento no serviço hospital no dia 04/04/2021 - às 11:08 na admissão uma versão, às 12:53 nova versão, às 13:19 ainda uma outra – e na audiência de julgamento, uma versão diferente das demais, corroborada pelo depoimento “ensaiado” do seu marido CC.

52. O Tribunal de Primeira Instância desmontou o logro e engodo perpetrado pela assistente, em grande parte graças ao princípio da oralidade e da mediação da audiência de julgamento, a que o Tribunal da Relação do Porto não teve acesso em toda a sua extensão.

53. Ainda sobre o relatório, documentos médicos e fotografia trata-se de prova pericial que deve ser escrutinada pelo julgador que não pode, nem deve ser acrítico face às informações que recebe.

54. Apenas está subtraída à livre apreciação da prova pelo tribunal o juízo técnico ou científico que exija especiais conhecimentos de que o juiz não disponha.

55. A prova pericial foi conjugada pelo Tribunal de Primeira Instância com critérios lógicos, objetivos e assentes nas regras da experiência comum.

56. O Tribunal de Primeira Instância absolveu o arguido porque ponderado o conjunto da prova produzida nada permitiu ajuizar com o mínimo de rigor que os factos julgados não provados tivessem tido existência real.

57. Não existiu violação do princípio da livre apreciação da prova por parte do Tribunal de Primeira Instância.

58. A valoração da prova, incluindo a pericial, pelo Tribunal de Primeira Instância, seguiu critérios lógicos e objetivos, racionais, objetiváveis e motiváveis com recurso às regras de experiência de vida comum e da normalidade.

59. Privilegie-se o princípio da imediação e da oralidade como um princípio estruturante do processo penal na fase de julgamento e afaste-se o Tribunal da Relação do Porto do escrutínio da prova doutamente produzida e valorada em Primeira Instância.

60. Não foi produzida prova suficiente e idónea de que o arguido, aqui recorrente, praticou o crime de ofensas à integridade física porque vem condenado pelo Tribunal da Relação do Porto.

61. Não há erro na apreciação da prova.

62. Não existe na lei penal qualquer presunção de autoria, ilicitude, culpabilidade ou punibilidade.

63. O Tribunal da Relação do Porto violou o princípio da presunção de inocência in dúbio pro reo ao condenar o arguido sem prova fundada do cometimento dos factos.

64. Pugna-se para que o Venerando Supremo Tribunal de Justiça declare que a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância que absolveu o arguido não merece censura ou reparo.

Por tudo o exposto,

Deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente por provado e, nessa medida, ser revogado o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, absolvendo-se o arguido em conformidade.»

4. Respondeu o Ministério Público pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto na Relação, dizendo, a finalizar:

«Avaliado o processado afigura-se-nos que falece a razão ao arguido recorrente e que o Tribunal da Relação fez escorreito uso dos dispositivos e princípios gerais existentes, revogando a decisão da 1ª instância que culminara com decisão de absolvição do arguido substituindo-a por outra, considerando a condenação do mesmo.

O que se questiona nos autos e que contraria a decisão da 1ª Instância é a questão das lesões observadas na assistente que o acórdão recorrido considera provadas, bem como considera provado que resultam de uma conduta do arguido.

A cogitação que o TR alcançou resulta da conjugação de um juízo pericial com a demais prova produzida, fazendo-o de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, em sentido diferente do da sentença recorrida, independentemente da maior ou menor credibilidade que seja dada às declarações da assistente, do arguido e de qualquer das testemunhas.

Considerou o T. da Relação que logo após a discussão que opôs o arguido à assistente, esta deslocou-se ao hospital e nessa altura, de acordo com os registos clínicos existentes posteriormente corroborados por exame médico-legal, a assistente apresentava traumatismo no braço esquerdo, o que recorrendo aos demais elementos de prova havidos, como as fotos que documentam as lesões, ao quadro circunstancial existente no local e momento da ocorrência delituosa e usando de juízos lógico racionais, das regras de experiência e normalidade da vida, aceita-se o recurso à presunção que a lesão terá resultado de actividade do arguido, tal como de empurrão do arguido contra uma parede, como consta do despacho de pronúncia.

Tal como expresso no acórdão em avaliação as lesões são corroboradas por documentos médicos e não se vislumbra que outra causa, para além da aludida agressão do arguido, possa ter originado tais lesões (não o foi certamente alguma forma de auto-mutilação). “Na versão da assistente e da testemunha CC, seu marido, essas lesões terão sido provocadas pelo “roçar” do braço numa parede areada, com o consequente sangramento. … nem a assistente, nem essa testemunha, negam que tenha havido um empurrão e que as lesões tenham resultado do mesmo.

Em suma, afigura-se-nos que os documentos médicos, o relatório pericial e as fotografias juntas aos autos, em conjugação com os depoimentos da assistente e da testemunha CC cujas declarações devem ser consideradas credíveis na estrita medida em que se coadunam com tais documentos e relatório, permitem concluir pela prova dos factos constantes do despacho de pronúncia, que a sentença recorrida considerou não provados”.

O acórdão recorrido não violou qualquer dispositivo legal e fez uso correcto do princípio in dúbio pro reo, o qual só pode ser utilizado aquando da existência de uma dúvida inultrapassável, dúvida que não existe nos autos, conjugados que foram de forma lógica e racional todos os elementos de prova que vieram a alicerçar a condenação.

O acórdão recorrido deve ser mantido.»

5. Respondeu também a assistente BB, retomando argumentos do recurso para a Relação, concluindo:

«1 – Cumpre dizer que a decisão de fls., proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, está bem fundamentada de facto e de direito.

2 - O douto Acórdão não padece de qualquer vício e não merece qualquer censura ou reparo, pois encontra-se escrupulosamente fundamentado a razão pela qual deu como provado os factos (não considerados provados na sentença recorrida ) constantes do despacho de pronúncia.

3 – Bem andou o TRP condenando o arguido no crime de ofensa à integridade física simples.

4 - A douta sentença do Tribunal de primeira instância merece censura ou reparo pois não se encontrava devidamente fundamentada e sem a devida análise e valoração das provas no seu conjunto e sem uma prudente convicção do julgador.

5 - Aliás, teve por base critérios arbitrários, irracionais ou ilógicos os quais não foram assentes nas regras da experiência comum, sendo incompreensíveis para o próprio julgador e para terceiros, como aliás a assistente e a Sr. Procuradora sempre concluíram.

6 - O TRP analisou o recurso interposto pela assistente e todas as questões objecto de recurso bem como as contra-alegações interpostas pelo arguido e face a todos os elementos que possuía (pericial, fotografias, registo clínicos e demais elementos de prova) proferiu decisão no sentido da condenação do arguido, decisão que se encontra devidamente analisada/motivada retirando as devidas conclusões.

7 - Como é natural nos recursos nem todas as questões/pretensões têm provimento, mas in casu quer umas quer outras o douto Acórdão proferido pelo TRP tira sempre as inerentes consequências legais.

8 - O Tribunal da Relação tem o poder de alterar as decisões proferidas pela 1ª instância. Dito isto,

9 - O que o recorrente parece pretender agora no seu recurso é que o STJ analise a prova testemunhal produzida em 1ª instância.

10 - O recorrente engana e quer enganar ou não leu devidamente o douto Acórdão pois o TRP é claro no seu raciocínio, isto é, não analisa a credibilidade das testemunhas e suas declarações, nomeadamente da assistente e do seu marido nem faz um novo julgamento.

11 –O que o TRP diz: o juízo pericial em causa, e a presunção que dele deriva, diz respeito às características das lesões observadas e a sentença recorrida não questiona essas características.

12 - O que a sentença recorrida questiona (e considera não provado) é que tais lesões resultem de uma qualquer conduta do arguido. Este facto não depende de um juízo pericial por si só, mas da conjugação desse juízo com a demais prova produzida. Mas é, precisamente, essa conjugação que pode levar-nos a concluir, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, em sentido diferente do da sentença recorrida, independentemente da maior ou menor credibilidade que seja dada às declarações da assistente, do arguido e de qualquer das testemunhas (o que, como vimos, depende de fatores ligados à imediação, de que nesta sede estamos privados).

13 – Mais diz: Estamos, neste aspeto, perante alguns dados objetivos ou que não foram questionados: logo após a discussão que a opôs ao arguido, a assistente dirigiu-se ao hospital e nessa altura, de acordo com os registos clínicos, posteriormente corroborados por exame médico-legal, apresentava traumatismo no braço esquerdo, o que poderá ter resultado de empurrão do arguido contra uma parede, como consta do despacho de pronúncia. Fotografias juntas aos autos também revelam tais lesões de forma muito evidente. É certo que a assistente aludiu a outras agressões e lesões (pontapés que a atingiram no abdómen e na zona do baixo ventre) que não foram corroborados por documentos médicos e não constam, por isso, do despacho de pronúncia. Mas tal não implica que não se considerem provadas as lesões corroboradas por documentos médicos a que se reporta o despacho de pronúncia. Não se vislumbra que outra causa, para além da aludida agressão do arguido, possa ter originado tais lesões (não o foi certamente alguma forma de auto-mutilação).

14– A assistente/ofendida dirigiu-se, no próprio dia, ao Hospital onde indicou como agressor o arguido AA e foi observada às lesões no membro superior esquerdo tendo referido que as mesmas foram provocadas pelo irmão. Tais lesões foram fotografadas e constam de fls. 6 dos autos.

15 – Existem meios de prova credíveis e sustentados nos autos, documental (otografia de fls. 6, registo clínicos de fls. 7-8 e 100-101 e relatório médico-legal de fls. 48-51, etc.) conjugado com o depoimento da assistente e testemunhal (CC ) concludente e que atestam/reforçam o nexo de causalidade da conduta do arguido e as lesões da assistente.

16 – Aliás, ao contrário do que o recorrente pretende fazer crer, a assistente apresentou, nesta parte, sempre a mesma versão sobre agressão imputada ao arguido AA – o arguido empurrou-a contra a parede da casa, causando-lhe ferimentos (escoriações) no membro superior esquerdo e a testemunha CC confirmou a versão da assistente – o arguido empurrou a assistente contra a parede da habitação, causando-lhe alguns ferimentos, inexistindo versões distintas sobre as agressões.

17 – O Tribunal de Primeira Instância não analisou devidamente o caso conjugando todas as provas e devia ter dado como provado pois foi feito prova em audiência de julgamento que o arguido ofendeu a integridade física da recorrida.

Sem prescindir,

18 - No dia da agressão (04/04/2021) a recorrida deslocou-se ao Hospital ... para receber tratamento às lesões sofridas com o ataque. Nesse Hospital, quem a atendeu perguntou-lhe o que se tinha passado, altura em que a recorrida disse que tinha sido agredida pelo seu irmão AA.

19 - Na queixa crime apresentada contra o arguido refere “de imediato o denunciado avançou em direção à denunciante empurrando-a contra a parede da casa, causando-lhe ferimentos (escoriações no membro superior esquerdo) (braço, antebraço e segundo dedo da mão).”

20 - A prova documental junta aos autos corrobora de facto lesões na face lateral do braço esquerdo da assistente descritas na acusação pública.

21 - Por um lado, a fotografia junta a fls. 6 retrata lesões (escoriações) na face lateral do braço esquerdo da denunciante.

22 - Por outro lado, dos registos clínicos juntos a fls. 7- 8 e 100 – 101 consta equimoses na face lateral do braço esquerdo (mais propriamente 1/3 proximal do antebraço) e escoriações no segundo dedo da mão.

Ver fls. 51 dos autos:

Discussão

1. os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano físico.

2. A cura das lesões é fixável em 09/04/2021, tendo em conta: o tipo de lesões resultantes e o tipo de tratamentos efetuados.

Conclusões

- A data da cura das lesões é fixável em 09/04/2021

- As lesões atrás referidas terão resultado de traumatismo de natureza contundente o que é compatível com a informação.

- Tais lesões determinaram em condições normais, 5 dias para cura: sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

- Do evento não resultaram quaisquer consequências físicas permanentes.

23 - Por sua vez, da prova pericial podemos concluir que as lesões apresentadas no membro superior esquerdo terão resultado de um traumatismo de natureza contundente (isto é, foram causadas por um empurrão contra uma parede tal como relatado pela assistente e pela testemunha CC ).

24 - Pelo que inexiste versões distintas sobre as agressões imputadas ao arguido das que referiu em julgamento.

25- O relato feito pela assistente e pela testemunha CC e o relatório pericial e demais documentos hospitalares e fotos são concordantes foram causadas por um empurrão contra uma parede levado a cabo pelo arguido.

26 – Aliás citamos o douto Acórdão: “Mas pode dizer-se, sem mais, que resultam de um empurrão e nem a assistente, nem essa testemunha, negam que tenha havido um empurrão e que as lesões tenham resultado do empurrão.”

27 – O depoimento da assistente e da testemunha CC foram considerados credíveis pela que a Srª Procuradora junto da primeira instância, que com toda a sua independência, pugnou pela condenação do arguido pois existia prova, posição reiterada pela Srª Procurador da República Adjunto junto do Tribunal da Relação do Porto.

28 - As testemunhas do arguido, mentiram despudoradamente em sede de inquérito e depois em audiência de julgamento, coladas na versão ensaiada pelo arguido, mas não conseguiram negar que houve uma discussão, a presença da testemunha CC no local na altura dos factos, a presença do arguido no local junto à porta, onde a assistente/ofendida afirmou ter sido agredida e ter ido, no mesmo dia, ao Hospital.

Dito isto,

29 - O Tribunal da Relação do Porto não se deixa impressionar pela fotografia ou outros elementos de prova juntos aos autos. Pelo contrário analisa as provas como um todo, como fez, responde e fundamenta todas as questões e profere decisão.

30 – Fê-lo não em suposições, mas com base nas provas, isto é, com base nos documentos médicos, relatório pericial, fotografias juntas aos autos, em conjugação com os depoimentos da assistente e da testemunha CC na estrita medida em que se coadunam com tais documentos e relatório, permitem concluir pela prova dos factos constantes do despacho de pronúncia, que a sentença recorrida considerou não provados.

31 - Tivesse o julgador de recurso beneficiado da presença nas sessões de julgamento para concluir no mesmo sentido na condenação do arguido.

32 - A assistente foi vítima de agressão por parte do arguido recorrente e tem lutado para que se faça justiça.

33 - Face ao atrás exposto entende a ofendida/recorrida, que o arguido com a sua conduta agiu com dolo pois ao empurrar a ofendida BB contra a parede areada sabia bem que lhe ia causar dor e sofrimento, como causou e não se absteve de o fazer.

34 - O arguido recorrente não beneficia da presunção do princípio “in dubio pro reo” pois o arguido foi condenando com base em todo os elementos de provas constantes dos autos.

35 -- O acórdão recorrido não violou qualquer dispositivo legal e fez uso correto do princípio in dúbio pro reo, o qual só pode ser utilizado aquando da existência de uma dúvida inultrapassável, dúvida que não existe nos autos, conjugados que foram de forma lógica e racional todos os elementos de prova que vieram a alicerçar a condenação.

36 - A decisão do TRP não merece censura, encontra-se bem fundamentada de facto e de direito e com base nas regras da experiência comum, pelo que bem andou ao condenar a arguido/recorrente.

37 - A linha de argumentos do recorrente falece por completo.

38 - Não há má aplicação do direito que justifique a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça.

39 – A decisão recorrida não padece de quaisquer vícios nomeadamente os previstos nas alienas a) a c) do Artigo 410º nº 2 do CPP.

Termos em que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.»

6. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, emitido parecer nos seguintes termos:

«(…)

7 – Não se suscitam quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso interposto, atenta a actual redacção do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do C.P.P., em vigor desde 21-03-2022, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, devendo o mesmo ser julgado em conferência, nos termos do disposto no artigo 419.º, n.º 3, alínea c), do C.P.P.

8 – A tónica do recurso em presença assenta, fundamentalmente, na violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo em que, na perspectiva do recorrente, o Tribunal a quo teria incorrido ao condená-lo (…) sem prova fundada do cometimento dos factos, em razão do que reclama a sua absolvição, único aspecto que enforma a sua pretensão recursória.

Convindo lembrar que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, tal como preceituado pelo artigo 434.º do C.P.P., e ainda que o caso em apreço não se compreende em qualquer das situações a que se referem as alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, está, por conseguinte, afastada a possibilidade de discussão da matéria de facto, havendo, como tal, que considerar estabilizado o acervo fáctico tido por assente pelo Tribunal a quo, o qual traduz efectivamente a prática pelo recorrente do ilícito penal por que resultou condenado.

Não significa isto que não se possa apreciar a arguida violação daqueles princípios de direito, estruturantes e constitucionalmente protegidos do processo penal em ordem ao cumprimento da Constituição.

Como se sumaria no acórdão de 21.10.2020 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 1551/19.9T9PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.: (…)

“XI - O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, assumindo, como tal e como qualquer outro princípio jurídico, a natureza de uma questão de direito de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, deve conhecer” (destaques meus).

Daí que, tendo o recorrente invocado a violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, tal matéria pode e deve ser conhecida neste Supremo Tribunal.

Considere-se, então, a tal respeito, o que decorre desse mesmo acórdão de 21.10.2020, do S.T.J., em que se refere:

“XII - Devendo o princípio in dubio pro reo ser configurado como princípio de direito, como princípio jurídico atinente à avaliação e valoração da prova, certo é também que, como tem sido reconhecido, ele tem uma íntima correlação com a matéria de facto, em cujo domínio ele é verdadeiramente operativo, aí assumindo toda a relevância prática.

XIII - Nesta perspectiva, como o STJ já entendeu, «a violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 4 10.º, n.º 2, do CPP, só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.» (sublinhado meu).

XIV - Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, sendo que tal juízo factual não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355º nº 1 do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório, conforme artº 32º nº 1 da Constituição da República”.

Assim, “no plano em que o princípio in dúbio pro reo se reflecte sobre o julgamento da matéria de facto levado nas instâncias, o STJ (enquanto tribunal de revista) só pode censurar o julgado (i) quando, a partir do texto da decisão (por si ou em conjugação com as regras da experiência comum), seguindo o iter decisório no cotejo da motivação da convicção (art. 374.º, n.º 2, do CPP), conclua que, diante de um estado de dúvida (aquém da razoável) sobre a culpabilidade do arguido, o Tribunal recorrido decidiu em desfavor deste, ou (ii) quando a conclusão probatória levada pelo Tribunal recorrido se materializa numa decisão contra o arguido, insuficientemente suportada (de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido) pelos elementos probatórios em que (explicita e pontualmente) assentou a convicção.”

Ora, percorrida a decisão recorrida, nela não se encontra o menor assomo de dúvida que pudesse ter grassado pelo espírito dos julgadores, sendo muito claro o processo que esteve subjacente à formação da sua convicção, assente em prova atendível, toda ela, valorada por si, e em conjugação com as regras da experiência comum, como bem se evidencia no seu exame crítico.

A dúvida que não pode ser resolvida contra o recorrente, não é aquela que ele tem ou que ele entende que o acórdão recorrido, não tendo, deveria ter tido; é, isso sim, aquela dúvida que se coloca ao Tribunal no processo de formação da sua convicção.

É manifesto, reitere-se, pela análise do acórdão recorrido, que o Tribunal a quo não se quedou numa situação de dúvida, inultrapassável, relativamente aos factos imputados ao recorrente que teve por assentes.

Não se verifica, por conseguinte, violação do princípio in dúbio pro reo.

E consequentemente não ocorre qualquer violação do princípio da presunção de inocência.

9 – Assim, secundando a compreensão do Ministério Público no Tribunal da Relação do Porto e da assistente, na respectiva resposta ao recurso, entendendo-se ser de manter a decisão recorrida, por não merecer censura, emite-se parecer no sentido de dever ser julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.»

7. Notificados, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, responderam o arguido e o assistente, reafirmando as posições anteriormente assumidas.

8. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Apreciando e decidindo.

II. Fundamentação

O acórdão recorrido – factos provados

9. Na síntese do acórdão recorrido, «as questões que importa[va] decidir [eram], de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, ou se prova produzida impõe decisão diferente da que nessa sentença foi tomada, devendo o arguido AA ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p, e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, por que vinha pronunciado e se, consequentemente, deverá ele ser condenado no pedido de indemnização civil contra ele formulado pela assistente e recorrente.»

10. A decisão da 1.ª instância em matéria de facto:

10.1. A 1.ª instância havia dado como provado que:

«1. AA e BB são irmãos e encontram-se desavindos.

2. BB sofreu traumatismo no braço esquerdo, o que lhe determinou cinco dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho profissional ou geral.

3. O arguido não tem antecedente criminais.

4. O arguido foi professor e desde 2022 que é formador, auferindo mensalmente em média o vencimento de 1100€. Vive com mulher e a sua sogra, em casa própria. A sua mulher trabalha numa loja, auferindo o vencimento mensal líquido de 900€. Licenciou-se em matemática e tem pós graduação na mesma área.

(Do pedido de indemnização civil)

5. A assistente é professora séria, honesta, e de boa educação.»

10.2. E havia dado como não provado que:

«i.) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1. dos factos provados, o arguido empurrou BB contra uma parede.

ii.) As lesões descritas no ponto 2. dos factos provados foram resultado da conduta do arguido.

iii.) Agindo da forma descrita, AA tinha a vontade livre e consciência de estar a agredir a sua irmã, BB, provocando-lhe lesões corporais, sendo sua efetiva intenção fazê-lo, como o conseguiu.

iv.) O arguido sabia ser punível e proibida a sua conduta.»

11. Conhecendo e decidindo do recurso em matéria de facto, o tribunal da Relação considerou «provados os factos (não considerados provados na sentença recorrida) constantes do despacho de pronúncia e, consequentemente, condenar o arguido, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de sessenta (60) dias de multa, à taxa diária de oito (8) euros, o que perfaz a multa global de quatrocentos e oitenta (480) euros, e condená-lo a pagar à assistente e demandante a quantia de setecentos (700) euros a título de indemnização de danos não patrimoniais decorrentes da prática desse crime.»

12. A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

«Vem a assistente e recorrente alegar que a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, e também que prova produzida impõe decisão diferente da que nessa sentença foi tomada, devendo o arguido AA ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, p, e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, por que vinha pronunciado e, consequentemente, deverá este ser condenado no pedido de indemnização civil por ela contra ele formulado..

Alega a assistente e recorrente que a sentença recorrida viola as mais elementares regras da experiência comum e padece, por isso, de erro notória na apreciação da prova. Alega que essas regras levam a considerar que a reação normal do arguido, depois de receber uma ordem de expulsão da casa da irmã com quem está desavindo e onde entrara para ver o pai gravemente doente será a de “perder as estribeiras” e agredi-la, tal como ela relata.

Alega, por outro lado, a assistente e recorrente que o Tribunal recorrido deveria ter dado crédito às suas próprias declarações e às declarações da testemunha CC, seu marido (sendo que a descrição dessas declarações que consta da fundamentação da sentença recorrida não corresponderá ao que por elas foi dito, como resultará das transcrições que constam da motivação do recurso). Alega que as declarações desta testemunha (a única que presenciou inteiramente os factos em apreço) foram assertivas, espontâneas e isentas, ao contrário do que se afirma nessa fundamentação.

Alega também a assistente e recorrente que as testemunhas por si indicadas são inteiramente credíveis, ao contrário do que sucede com as testemunhas indicadas pelo arguido, que estão comprometidas e em conflito com ela, designadamente a testemunha DD, que contra ela intentou uma ação no Tribunal de Trabalho.

Alega ainda a assistente e recorrente que a sentença recorrida contrariou a juízo que consta do relatório pericial junto aos autos, violando, assim, o disposto no artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, onde se consagra a presunção de que esse tipo de juízo está subtraído à livre apreciação do julgador, podendo ser contrariado apenas por outro juízo pericial.

(…)

O vício de erro notório na apreciação da prova a que se reporta o artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal deverá resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Constitui erro notório de apreciação da prova a violação de regras da lógica e da experiência comum que não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio (ver, neste sentido, entre muitos outros, o acórdão do S.T.J. de 9 de fevereiro de 2005, proc nº 04P4721, relatado por Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt).

Ora, na motivação do recurso em apreço a alegação de erro notório na apreciação da prova não é, em geral, relativa ao texto da sentença em si mesmo, mas ao confronto desse texto com o teor da prova efetivamente produzida. Estaremos, pois, perante a impugnação da decisão sobre a prova, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. Só não será assim no que se refere à alegação de que a reação normal do arguido, depois de receber uma ordem de expulsão da casa da irmã com quem está desavindo e onde entrara para ver o pai gravemente doente, será a de “perder as estribeiras” e agredi-la, tal como ela relata. No entanto, parece óbvio que o simples facto de não considerar provada a reação que seria a mais normal, provável ou verosímil, não constitui erro notório na apreciação da prova, pois nem sempre os factos se desenrolam de acordo com o que é mais normal, provável ou verosímil. (…)

o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.

Quando, no artigo 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Deste modo, não nos cabe, nesta sede, ao contrário do que pretende a assistente e recorrente, analisar a credibilidade das suas declarações, das declarações do arguido e das declarações de qualquer dessas testemunhas, com base na sua maior ou menos assertividade ou espontaneidade. Essa análise depende de fatores ligados à imediação, de que nesta sede estamos privados. Também não nos cabe, nesta sede, questionar o juízo de credibilidade formulado pelo tribunal de primeira instância quanto a qualquer das testemunhas inquiridas por terem, ou deixarem de ter, conflitos com a assistente. São fatores a ter em consideração nesse juízo, mas não os únicos, nele entram esses outros ligados à imediação de que nesta sede estamos privados.

Já quanto à prova pericial, há que considerar o seguinte:

Ao contrário do que alega a assistente e recorrente, a sentença recorrida não ilidiu a presunção que decorre do artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. O juízo pericial em causa, e a presunção que dele deriva, diz respeito às características das lesões observadas e a sentença recorrida não questiona essas características, O que a sentença recorrida questiona (e considera não provado) é que tais lesões resultem de uma qualquer conduta do arguido. Este facto não depende de um juízo pericial por si só, mas da conjugação desse juízo com a demais prova produzida.

Mas é, precisamente, essa conjugação que pode levar-nos a concluir, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, em sentido diferente do da sentença recorrida, independentemente da maior ou menor credibilidade que seja dada às declarações da assistente, do arguido e de qualquer das testemunhas (o que, como vimos, depende de fatores ligados à imediação, de que nesta sede estamos privados).

Estamos, neste aspeto, perante alguns dados objetivos ou que não foram questionados: logo após a discussão que a opôs ao arguido, a assistente dirigiu-se ao hospital e nessa altura, de acordo com os registos clínicos, posteriormente corroborados por exame médico-legal, apresentava traumatismo no braço esquerdo, o que poderá ter resultado de empurrão do arguido contra uma parede, como consta do despacho de pronúncia. Fotografias juntas aos autos também revelam tais lesões de forma muito evidente.

É certo que a assistente aludiu a outras agressões e lesões (pontapés que a atingiram no abdómen e na zona do baixo ventre) que não foram corroborados por documentos médicos e não constam, por isso, do despacho de pronúncia. Mas tal não implica que não se considerem provadas as lesões corroboradas por documentos médicos a que se reporta o despacho de pronúncia.

Não se vislumbra que outra causa, para além da aludida agressão do arguido, possa ter originado tais lesões (não o foi certamente alguma forma de auto-mutilação).

Na versão da assistente e da testemunha CC, seu marido, essas lesões terão sido provocadas pelo “roçar” do braço numa parede areada, com o consequente sangramento. Poderá dizer-se que os registos clínicos não apontam nesse sentido, da verificação de sangramento. Mas pode dizer-se, sem mais, que resultam de um empurrão e nem a assistente, nem essa testemunha, negam que tenha havido um empurrão e que as lesões tenham resultado do empurrão.

Em suma, afigura-se-nos que os documentos médicos, o relatório pericial e as fotografias juntas aos autos, em conjugação com os depoimentos da assistente e da testemunha CC cujas declarações devem ser consideradas credíveis (independentemente de tudo o resto, que aqui não nos cabe apreciar) na estrita medida em que se coadunam com tais documentos e relatório, permitem concluir pela prova dos factos constantes do despacho de pronúncia, que a sentença recorrida considerou não provados.

Deve, pois, ser concedido provimento ao recurso.»

13. Pela sua relevância, importa verificar a fundamentação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto (transcrita na decisão recorrida), que, na parte que agora interessa, é do seguinte teor:

«Indicação, valoração e análise crítica da prova

A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma valoração de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável e com recurso às regras de experiência de vida e da normalidade.

§ 0. Indicação da prova

O Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:

» Declarações em audiência de julgamento do arguido e da assistente.

» Foram inquiridas as seguintes testemunhas: EE (reformado) FF (reformada); GG (gestor); HH (professora); II (arquiteto); JJ (bombeiro); CC (empregado de escritório, reformado); DD (desempregada); KK, (professora); LL (professor aposentado); MM (professora), NN (professor).

» Acareação entre as testemunhas CC e DD.

» Teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal referente à assistente, junto a folhas 48 a 51, sendo considerado o que decorre do artigo 163.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, nos termos do qual presume-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo de natureza técnica, científica ou artística, podendo o julgador divergir desse juízo desde que fundamente tal divergência e a sua convicção o suporte.

» A prova documental é a vertida nos autos, que infra se detalhará sempre que se justificar pelo seu relevo probatório relativamente a determinados factos, sendo os que contribuíram para a formação da convicção do Tribunal, umas vezes pela credibilidade que o próprio teor só por si revela e, outras, em conjugação com outros meios de prova, sendo que todos eles apresentam um teor que se afigura verídico e não foram postos em crise por qualquer outro meio de prova. Aqueles, cujo âmbito conceitual normativo é delimitado pelo artigo 363.º do Código Civil, implicam que se considerem provados os factos materiais deles constantes, enquanto a autenticidade dos documentos ou a veracidade do seu conteúdo não forem, fundadamente, postos em causa.

» Por fim, para além da prova direta dos factos, considerou-se, ainda, a prova indireta relativamente a parte da factualidade objeto de julgamento e que infra será expressamente mencionada. Sobre a prova indireta, entende Euclides Dâmaso Simões , que o uso da mesma implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência).

§ 1. Motivação dos factos provados e não provados.

Tendo sido da valoração crítica, conjugada e ponderada da globalidade do supra mencionado acervo probatório que o Tribunal logrou formar firme convicção da veracidade sobre os factos julgados, cumpre, agora, analisar criticamente, a prova produzida em detalhe nos seus aspetos essenciais, quer quanto à factualidade que resultou provada, quer também quanto aos factos não provados.

Foi com base nas declarações do arguido, que o tribunal deu como provada a factualidade vertida no ponto 1.

O teor do relatório médico-legal de fls. 48 a 51 fundou a convicção relativamente ao segmento fático vertido no ponto 2. dos factos provados.

A ausência de antecedentes criminais do arguido emerge do certificado do registo criminal junto aos autos.

Relativamente às condições económico-financeiras do arguido, o Tribunal atendeu às suas declarações, que a esse propósito, que se afiguraram credíveis e sinceras, sem que, em contrário, qualquer outra prova se haja produzido.

Com base nos depoimentos de KK e LL, que se afiguraram sinceros e credíveis, que o tribunal alcançou a veracidade do vertido no ponto 5.

A factualidade não provada foi como tal considerada uma vez que, no demais, o tribunal não logrou ultrapassar as dúvidas que se instalaram no confronto das versões (opostas) de arguido e assistente e, sobretudo, por terem surgido, alguns dados que atingiram a credibilidade e idoneidade no declarado pela assistente, dúvidas que não se conseguiram ultrapassar, nem face ao depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento.

Vejamos. O arguido, embora admitindo a existência de desentendimentos com a assistente negou tê-la agredido fisicamente nos moldes descritos na acusação ou por qualquer outra forma, explicando que no dia em causa, soube que o seu pai se tinha sentido mal e por isso se deslocou para a entrada da casa da sua irmã, mas nunca entrou, tendo ficado no passeio junto à porta de entrada. Explicou que nessa altura a assistente veio na sua direção, proibindo-o de entrar, e, logo após a sua mulher chegou ao pé de si, o que fez com que a assistente se enfurecesse com ela e ficaram por momentos os três junto da porta - o arguido entre as duas-, mas negou que lhe tivesse tocado. Acrescentou que, nessa altura, já ali estavam os bombeiros no interior do quarto a prestar assistência ao seu pai, bem como DD.

Urge salientar que nada obsta a que o tribunal alicerce a sua convicção no depoimento de uma única pessoa, desde que tais declarações se lhe afigurem pertinentes e credíveis, uma vez que há muito deixou de vigorar a velha regra do unus testis, testis nullius, ultrapassado que está o regime da prova legal ou tarifada, substituído pelo princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal). Já no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” - cf. Cód. Processo Civil Anotado, Vol. IV, 1981, pág. 357. Contudo, no caso dos autos, quanto à assistente foi manifesto que esta, para além de ter apresentado um discurso pouco assertivo e, muitas vezes, crispado.

Em concreto, a assistente referiu que logo que se apercebeu da presença do seu irmão dentro do quarto usado pelo pai na sua residência, mandou-o sair por várias vezes e que quando que este finalmente de acedeu a fazê-lo, ao passar por si, empurrou-a contra o vértice da porta de saída, após o que a agarrou na mão esquerda e por várias vezes puxou-lhe o braço, levantou e baixou o seu braço com força, causando-lhe dor. Referiu que a parede é areada e, por isso, o arguido, ao fazer aquele movimento de baixo para cima e de cima para baixo, raspou várias vezes com o braço naquele areado e foi o que lhe causou as lesões. Acrescentou que, no seu entender, as lesões que teve no braço não foram provocadas pelo embate na porta, mas pelo raspar na parede. Após, o arguido, deu-lhe joelhadas que a atingiram na zona genital e na barriga, causando-lhe dores. Referiu que a mulher do arguido, BB, veio ter com este, estando à sua esquerda, quando o arguido a estava a agredir, mais à sua direita e que tentou agredi-la, mas não teve capacidade para tal.

Mais acrescentou que nesse momento no quarto estavam dois bombeiros do INEM a prestar assistência ao seu pai, o seu marido, DD (junto do seu pai na cama) e EE na rua, em frente à porta, e que no seu entender todos assistiram a atuação do arguido sobre si. Acrescentou que teve muita vergonha e receio que os seus alunos pensassem que tinha sido o seu marido a agredi-la. Que se sentiu abalada, vexada, abalada na sua dignidade e que ainda sente vergonha do sucedido.

CC, num relato notoriamente “ensaiado” e concertado com o da assistente e esvaziado de qualquer espontaneidade, referiu que a sua mulher disse várias vezes ao arguido para ele sair do quarto, o que aquele não fez, tendo-a agarrado pelos braços, motivo pelo qual ela foi ao encontro do vértice da porta. Nessa altura, o arguido, agarrou com força no braço da assistente fazendo movimentos para baixo e para cima, para a frente e para trás, com força. Por causa disso, a sua mulher roçou o braço na parede da casa, e sendo a parede areada, ficou com o braço a sangrar; mais referiu que ao mesmo tempo o arguido a agrediu com pontapés na perna. Depois disso, esteve a limpar o sangue que ficou na parede e foram para o hospital .... Acrescentou que no quarto, para além de si e do seu sogro, estava a sua mulher e DD.

Para além do declarado pela assistente, confirmado nos termos vindos de descrever pelo depoimento do seu marido, a restante prova produzida nos autos ou contraria frontalmente a sua versão ou não a corrobora de forma suficiente.

Vejamos.

i.) Compulsados os documentos clínicos e o teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal juntos autos, verifica-se que a assistente apresentou versões distintas sobre as agressões imputadas ao arguido das que referiu em julgamento:

No dia 04.04.2021 (data dos factos), aquando da sua admissão na urgência, pelas 11:18:07, a assistente disse que tinha sido vítima de agressão por um familiar (irmão) há cerca de duas horas antes. Referiu que tinha sido (...) agredida com as mãos (…) e com pontapés na área genital (cf. registos clínicos de fls. 7-8 e 100);

Nesse mesmo dia, pelas 12:53:57, aquando da avaliação clínica de Ginecologia/Obstetrícia, orientada pelo Serviço de Urgência por suposta agressão sexual, que não se confirmou, afirmou ter sido vítima de agressão física com pontapés no abdómen e hipogastro, negando perda hemática genital ou outras queixas ginecológicas (cf. registos clínicos de fls. 7-8 e 100);

Nesse mesmo dia, pelas 13.19.57, quando regressou à avaliação clínica em Cirurgia Geral, a assistente afirmou que “não sofreu pontapés no abdómen” e confirmou que foi vítima da agressão “nomeadamente nas partes baixas" (sic), (joelhada) (cf. registos clínicos de fls. 7-8 e 100);

Em 05-07-2021, quando realizou o exame médico de perícia médico-legal, a assistente referiu ter sofrido agressão com apertão e puxão com as mãos, unhadas, seguido de joelhadas na região genital (…), que terá sido infligida por familiares - irmão e cunhada (cf. relatório de fls. 48 a 51).

ii.) Da prova pericial resulta que as lesões apresentadas no membro superior esquerdo terão resultado de um traumatismo de natureza contundente, o que contraria frontalmente a versão apresentada pela assistente e pelo seu marido de que as lesões foram provocadas pelo “raspar” do braço – com consequente sangramento do mesmo - na parede areada da casa.

iii.) Não obstante já não constituir objeto destes autos, mas que é relevante para aferir da sua credibilidade, a versão apresentada pela assistente em julgamento de que foi agredida pelo arguido em outras zonas do seu corpo – com diversos pontapés no abdómen e várias joelhadas na barriga e baixo ventre –, bem como o tipo de zonas do corpo que disse terem sido atingidas não é compatível com o facto de a assistente não apresentar quaisquer lesões nessas zonas corporais (cf. registos clínicos do próprio dia da alegada agressão e exame médico-legal).

iv.) As demais testemunhas que a assistente confirmou que se encontravam no local DD e EE confirmaram a versão apresentada pelo arguido, nomeadamente que este não chegou a entrar em casa da assistente e que não a empurrou contra a parede.

v.) A testemunha JJ, que a assistente afirmou ter assistido às agressões, disse que não a presenciou.

Ainda se acrescenta no que concerne à demais prova testemunhal, que se suscitaram dúvidas sobre o que a testemunha FF terá assistido, pelo que o tribunal não valorou o seu depoimento, e quanto às demais testemunhas nenhuma assistiu à prática do facto em causa.

Em síntese, a factualidade dada como não provada foi assim considerada por, em decorrência do vindo de dizer, e para além das declarações do arguido, que não a assumiu, não ter sido produzida prova ou prova suficiente e/ou idónea para conduzir no imputado sentido.

Em conclusão, sempre se dirá que, ponderando o conjunto da prova produzida, nada permite ajuizar com o mínimo de rigor que os factos julgados não provados tiveram existência real. (…)»

14. No recurso para a Relação, a assistente apresentou uma longa motivação que finalizou com 116 conclusões (cfr. acórdão recorrido), que, em síntese, se estruturam e desenvolvem nos seguintes termos:

- Começa por dizer que «o recurso tem por objeto a violação do princípio da livre apreciação da prova, erro notório na apreciação da prova/impugnação da decisão da matéria de facto» (conclusão 2), que «como procurará demonstrar através de todos os elementos que os autos trazem (queixa, depoimentos, acareação, exames hospitalares e relatórios, foto e demais documentos juntos pela recorrente)» que a sentença «desde logo não realizou justiça em termos de decisão da matéria de facto e de direito, data vénia, padece de sucessivos erros graves de apreciação da prova, por isso surgindo desfasada da prova efetivamente produzida» (conclusão 3) e que o recurso «visará a impugnação da decisão de facto e de direito, a um tempo porque, face à prova produzida, a recorrente está verdadeiramente inconformada (como não?!) com a decisão proferida pela circunstância de o Tribunal recorrido não ter feito corretamente a subsunção dos factos ao direito – tudo a impor decisão diversa da decidida quanto à matéria de facto e de direito» (conclusão 4).

- Seguidamente, depois de enumerar os factos provados e não provados (conclusão 5) e de fazer referência às circunstâncias e desenvolvimento do processo (conclusões 6 a 12), declara que «mais uma vez vem a recorrente clamar justiça (…) da decisão do Tribunal Judicial de Matosinhos, que absolveu o arguido, pois entende que não foi feito um julgamento justo, correto e adequado em face da prova produzida» (conclusões13 e 14), e que é sua «profunda convicção que a decisão judicial em questão não concretiza a Justiça» (conclusão 15), entra na análise «do caso», dizendo que a sentença que absolveu o arguido «segue uma linha de pensamento frágil, não é uma convicção possível e explicável pelas regras de experiência comum e, como tal, não deve ser acolhida a opção do julgador, violando o princípio da livre apreciação da prova» (conclusão 17), que a livre convicção do julgador, que «só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso quando afronte de forma manifesta as regras da experiência comum» (conclusão 18), impõe «que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência» (conclusão 19), o que, em seu entender «não aconteceu» (conclusão 20) (tema que recupera nas conclusões 28 a 30).

- Invoca a violação do artigo 127.º do CPP, que dispõe sobre a livre apreciação da prova (conclusão 21 a 25), afirmando que «após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, era forçoso ao tribunal “a quo” concluir que subsistem outras perspectivas probatórias mais verosímeis e razoáveis havendo então que decidir em sentido diverso, o que não aconteceu» (conclusão 26) e que, «tendo em consideração, o processo de formação da convicção do tribunal explicitado na douta sentença, a partir dos meios de prova aí indicados, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais, só pode o recorrente concluir que houve erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a al. c) do artigo 410º do CPP, já que a apreciação que faz dos pontos i., ii., iii e iv. dos factos dados como não provados, é manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios (ver ponto 2 dos factos provados) e o disposto no art. 32º da Constituição da República Portuguesa, pelo que, deveria, salvo o devido respeito, ter sido dado como provados» (conclusão 27).

- Passando a concretizar o que afirma, percorre os vários factos, fazendo a sua própria apreciação relativamente a cada um deles e às provas produzidas, criticando a apreciação do tribunal e manifestando as razões da sua discordante avaliação, com indicação das gravações de declarações prestadas em audiência, fazendo as respetivas transcrições, concluindo, a cada passo, que houve «erro na valoração da prova», que «aponta necessariamente em sentido diferente daquele que foi a decisão» (conclusão 38), que «a motivação está em desacordo com o que foi dito pela ofendida e, como tal, existe um erro na apreciação da prova» (conclusão 44), que «a dinâmica dos factos relatados pela Meritíssima Juiz “a quo” na sentença de fls. padece de erro quanto à sequência dos factos, pelo que a motivação está em desacordo com o que foi dito pela ofendida» (conclusão 47), que «quanto à dinâmica da agressão está em desacordo com o depoimento prestado pela ofendida, nem é um raciocínio possível» (conclusão 50), que «temos outros meios de prova credíveis e sustentados que reforçam, nesta parte, a credibilidade da assistente e da referida testemunha, conjugados com os depoimentos das demais testemunhas» (conclusão 64),

- Centrando-se na análise e crítica pelo tribunal a quo dos documentos clínicos e teor do relatório pericial de avaliação do dano corporal (conclusão 67), convoca o artigo 163.º, n.º 2, do CPP, para de seguida afirmar que esta prova foi erradamente apreciada em conjugação com as declarações da ofendida (conclusões 68 a 88), concluindo que «o depoimento da assistente, em conjunto com os meios de prova referidos (testemunha CC e testemunhas KK e LL, acareação, fotografia de fls. 6, registo clínicos de fls. 7-8 e 100-101 e relatório médico legal de fls. 48-51 e à luz das regras de experiência comum, é acto para atestar a existência de prova suficiente para aplicação de uma pena ao arguido AA – considerando-se assim, nesta parte, preenchido o tipo legal do crime de ofensa à integridade física simples» (conclusão 89) e que «a Meritíssima Juiz, violou salvo o devido respeito, prova testemunhal e documental que resultaria a condenação em julgamento do arguido AA numa pena, pelos factos ilícitos que lhe são imputados, in casu, pela assistente» (conclusão 90)

- Sem prescindir do anteriormente afirmado e alegado, contesta a credibilidade de duas testemunhas colegas de profissão da assistente e ofendida (conclusões 91 a 108), questiona a valoração da versão da assistente quanto a «factos que não constituem objeto do processo» (conclusão 109), concluindo que os «factos ilícitos praticados pelo arguido, conjugados com as declarações da assistente, da prova testemunhal de CC, da prova testemunhal dos seus colegas de escola, acareação, da prova pericial e demais exames devem ser conjugados como um todo e de acordo com as regras da experiência pois existe nexo de causalidade entre o facto e o dano» e que «os factos constantes das alíneas i., ii., iii. e iv. dos factos não provados devem ser dados como provados, com base em erro de julgamento e na violação do princípio da livre apreciação da prova, por incorretamente julgados e modificados de acordo com as concretas provas acima identificadas que impõem decisão diversa da recorrida» (conclusões 110 a 113).

- Reafirmando a final: «Há erro notório na apreciação da prova e se o Tribunal conclui pela existência de factos assentes numa regra que não é da experiência comum e apenas corresponde ao seu convencimento subjetivo do Juiz sem suporte objectivo e racional.» (conclusão 115).

Objeto e âmbito do recurso

15. O recurso tem por objeto um acórdão do tribunal da Relação que, revogando um acórdão absolutório proferido pelo tribunal da 1.ª instância, condenou o arguido numa pena de multa, admissível para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro).

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sendo limitado ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do mesmo diploma), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

16. O recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não é um segundo recurso da decisão da 1.ª instância, mas um recurso do acórdão da Relação que conheceu do recurso daquela decisão1.

Como se tem afirmado (por todos, o acórdão de 13.04.2023, Proc. n.º 270/19.0SFLSB-J.L1.S1, em www.dgsi.pt), os recursos judiciais não servem para conhecer de novo da causa; constituem meio processual («remédio processual»2) destinado a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente3. O que significa que, verificados que se mostrem os fundamentos para recorrer (pressupostos da admissibilidade do recurso), o objeto do conhecimento do recurso se delimita pelas questões identificadas pelo recorrente que digam respeito a questões que tenham sido conhecidas pelo tribunal recorrido ou que devessem sê-lo, com as necessárias consequências ao nível da validade da própria decisão, assim se circunscrevendo os poderes do tribunal de recurso, sem prejuízo do exercício, neste âmbito, dos poderes de conhecimento oficioso necessários e legalmente conferidos em vista da justa decisão do recurso.

17. Nas conclusões de recurso, alega o arguido, em síntese, que a Relação faz «um novo julgamento, que lhe está vedado», «sem prova testemunhal ou pericial concludente de que as lesões da assistente foram causadas pelo arguido, (…) defende (...) que não se vislumbra que outra causa, além da agressão do arguido, possa ter originado tais lesões, afastando a automutilação por parte da assistente», que «na falta de prova, (…) lança uma presunção de autoria ao arguido», que «não foi produzida prova suficiente e idónea de que o arguido (…) praticou o crime de ofensas à integridade física porque vem condenado pelo Tribunal da Relação do Porto», pelo que «pugna» por que seja declarado que a sentença absolutória da 1.ª instância «não merece censura ou reparo».

Questão prévia: da modificabilidade da matéria de facto pelo Tribunal da Relação

18. Tendo em conta as conclusões da motivação, o objeto do recurso suscita a questão prévia de saber se o Tribunal da Relação poderia ter modificado a matéria de facto nos termos em que o fez (supra, 9 a 12), por considerar que a alegação da assistente de erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP]– «houve erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a al. c) do artigo 410º do CPP, já que a apreciação que faz dos pontos i., ii., iii e iv. dos factos dados como não provados, é manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios (ver ponto 2 dos factos provados) (…), pelo que, deveria, salvo o devido respeito, ter sido dado como provados», disse a recorrente perante o Tribunal da Relação (supra, 14) – não dizia respeito «ao texto sentença em si mesmo, mas ao confronto desse texto com o teor da prova efetivamente produzida», pelo que tratou essa alegação e a apreciou como um recurso com impugnação da decisão em matéria de facto (artigo 412.º, n.º 3, do CPP), dizendo: «Estaremos, pois, perante a impugnação da decisão sobre a prova, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.».

19. Dispõe o artigo 410.º, n.º 1, do CPP, que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. Estabelecendo o n.º 2 que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, «desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.

Pretendendo impugnar a decisão em matéria de facto, questionando erro de julgamento dos factos e das provas, deve o recorrente, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do mesmo diploma, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas, estabelecendo o n.º 6 que o tribunal procede à audição ou visualização das passagens das gravações indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

20. O conhecimento dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, entre os quais se inclui o de erro notório na apreciação da prova – o qual, sendo manifesto, ostensivo e evidente à observação do leitor, se traduz num vício de lógica da decisão resultante do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, que não se confunde com o erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência – limita-se pelo texto da decisão recorrida, não sendo admissível o apelo a elementos exteriores que não constem desse texto (como uniformemente se tem afirmado, citando-se, por todos, o acórdão de 16.10.2024, Proc. n.º 253/21.0T9FND.C1.S1, em www.dgsi.pt, que a partir de agora se segue de perto).

Citando de entre muitos outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 08.07.2020 (Raul Borges), Proc. 142/15.8PKSNT.L1.S1, em www.dgsi.pt, refletindo jurisprudência sólida e reiterada: «XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma. XIV – O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. XV – Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo suscetível de apreciação. XVI – Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, (…). XVII – Enquanto a valoração da prova (…) obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova. XVIII – Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialético das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. XIX – A primeira relaciona-se com a atividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto. XX – O erro vício será algo detetável, necessariamente a jusante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização. (…) XXII – Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova».

21. É assim que, em harmonia com estas disposições, o artigo 431.º do CPP impõe exigentes requisitos e restrições aos poderes das relações para modificação, em recurso, das decisões proferidas em matéria de facto, ao dispor que:

“Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.”

A Relação não está, assim, impedida de, se necessário, embora com fortes restrições, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, mesmo que não seja interposto recurso da decisão em matéria de facto, por alegado erro de julgamento [caso previsto na al. b)]. Porém, como se consignou nos acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, proferidos nos processos 215/18.5JAFAR.E1.S1 e 1066/16.7T9CLD.C3.S1, em www.dgsi.pt, que se seguem de perto, esta possibilidade só pode ocorrer por via e na sequência da verificação e declaração de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito.

Estabelece o n.º 1 do artigo 426.º que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio». O que obriga o tribunal da relação a uma dupla decisão ou a uma decisão em dois momentos: em primeiro lugar, à deteção e aferição (determinação e concretização) do vício e, em segundo lugar, à verificação e avaliação das possibilidades de sanação do vício e, sendo caso disso, a respetiva sanação, com base num juízo sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade, que são as provas existentes no processo que serviram de base à decisão [al. a) do artigo 431.º do CPP].

Fora do âmbito do recurso em matéria de facto ou dos casos de renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido [artigos 412.º, n.ºs 1 e 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP] –, o tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que for identificado e que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP] 4.

22. Como se afirmou nos mencionados acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, havendo arguição de (ou detetado) vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o tribunal da Relação deve verificar se «é possível decidir da causa» (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os «elementos de prova que constam do processo», excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência, a qual, sublinha-se, apenas pode servir de base à modificação da decisão em matéria de facto «se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º»5

Se assim não fosse, perderia sentido a autonomização das alíneas a) e b) do artigo 431.º, pois que a previsão da al. a) absorveria a da al. b), conferindo à apreciação dos vícios em matéria de facto um âmbito e uma dimensão idêntica à da impugnação da matéria de facto, a que é imposto o ónus de especificação do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, ou mesmo mais alargada na ausência de tal ónus. Assim se devendo considerar que a eliminação da expressão «havendo documentação da prova» constante da al. b), pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, não introduziu qualquer elemento de novidade na sua previsão, que se define pela conjugação com o n.º 4 do artigo 412.º, que se refere à gravação (documentação) das provas.

Com efeito, como se extrai da história do artigo 431.º do CPP, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, este preceito veio suprir uma lacuna do regime processual do direito ao recurso em matéria de facto (cfr., a este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93 e respetivos votos de vencido), inspirando-se no artigo 712.º («Modificabilidade da decisão de facto»), n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil de 1961, então vigente, segundo a qual, «[a] decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida».

23. Extrai-se da fundamentação do acórdão recorrido (supra, 9 a 12), que o Tribunal da Relação, oficiosamente, por sua iniciativa, em vez de conhecer do alegado vício de erro notório na apreciação da prova, decidiu considerar a alegação desse vício como correspondendo a uma impugnação da decisão em matéria de facto nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, sem, todavia, nessa conformidade, conhecer especificadamente dos fundamentos do recurso relativamente a cada facto contestado pela recorrente com referência às provas que esta indicada, as quais, na sua alegação poderiam conduzir a conclusão diversa e, consequentemente, à formulação de um juízo de condenação.

Sucede, porém, que como já se mencionou, a impugnação da decisão em matéria de facto obedece a exigentes requisitos impostos ao recorrente – ónus de impugnação especificada, que delimita os poderes de cognição do tribunal de recurso (assim: acórdão de 02.12.2021, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1; cfr. ainda o acórdão de 27.10.2010, Proc. 70/07.0JBLSB.L1.S16) –, que, no caso, não estão observados.

24. Com efeito, estabelece o n.º 3 do artigo 412.º do CPP que:

«3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

Com a alteração ao CPP de 2007 (cfr. os trabalhos preparatórios da Lei n.º 48/2007), o regime vigente de impugnação da matéria de facto sofreu alterações significativas com dois objetivos: (a) tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa e (b) pôr fim ao dever de transcrição das declarações gravadas em audiência.

Embora não esteja impedida a transcrição, ela não substitui a especificação nem o dever de o tribunal proceder à audição das gravações indicadas nem de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa7 (n.º 6 do artigo 412.º do CPP).

A especificação dos «concretos pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados satisfaz-se com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida; a especificação das «concretas provas» satisfaz-se com a indicação do conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa.

Essencial é a demonstração da razão pela qual, na alegação do recorrente, essa ou essas provas «impõem» decisão diversa8. Não basta, como se tem entendido, que da consideração dessas provas no sentido pretendido possibilite ou permita uma decisão diversa.

25. Atendendo ao discurso argumentativo que fundamenta a decisão recorrida, na avaliação da Relação, os erros indicados pela recorrente correspondem a erros de julgamento, identificados na decorrência de apreciação e valoração das provas em divergência da decisão da 1.ª instância – sem que haja notícia da audição das provas gravadas –, ou seja à formação de uma nova convicção sobre o objeto do processo, em resultado de reapreciação parcial parcelar das provas, e em oposição à decisão recorrida, sem que a recorrente tivesse dados satisfação adequada ao ónus de impugnação especificada imposto pelo n.º 3 do artigo 412.º do CPP e sem que o próprio Tribunal da Relação tenha concluído que as provas que considerou «impõem» decisão diversa.

Nota-se, a este propósito, que o acórdão recorrido afirma que a «conjugação» do «juízo pericial» «com a demais prova produzida» «pode levar-nos a concluir, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, em sentido diferente do da sentença recorrida» e que «afigura-se-nos que os documentos médicos, o relatório pericial e as fotografias juntas aos autos, em conjugação com os depoimentos da assistente e da testemunha CC cujas declarações devem ser consideradas credíveis (independentemente de tudo o resto, que aqui não nos cabe apreciar) na estrita medida em que se coadunam com tais documentos e relatório, permitem concluir pela prova dos factos constantes do despacho de pronúncia, que a sentença recorrida considerou não provados».

26. Sobre este tema, consignou-se no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2012 (DR, Série I, de 18.04.2012), refletindo e sintetizando jurisprudência consolidada:

“A impugnação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, constitui a área por excelência, a hipótese única, em que se verifica o duplo grau de jurisdição em matéria de facto. A consagração desta garantia (...) implica a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação. Nestes casos de impugnação da matéria de facto, a apreciação pelo tribunal superior – Relação – não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal. Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorretamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida (...). A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância (...). O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (...) justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância (...). O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento (...) tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros. (...) E como se pode ver dos acórdãos do Tribunal Constitucional (...) o sentido é o mesmo (...). A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção «cirúrgica», no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objetivos do recurso (...). O que está em causa é no fundo a delimitação objetiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objetivos a que se propõe o recorrente, com um especial ónus a seu cargo, impondo-se-lhe o dever de tomar posição clara nas conclusões sobre o que é objeto do recurso, especificando o que no âmbito factual pretende ver reponderado (...).

27. Para além disso, não contendo o processo todas as provas que serviram de base à decisão – pois que aqui não se poderiam incluir as provas por declarações, gravadas – não poderia o Tribunal da Relação, verificado o vício do artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, que não verificou, modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância, em suprimento desse vício, face ao disposto no artigo 431.º, al. a) e b), do CPP.

28. Assim sendo, ao apreciar e decidir sobre a impugnação da matéria de facto, sem satisfação, pela recorrente, do ónus de especificação imposto pelo n.º 3 do artigo 412.º do CPP, o acórdão do Tribunal da Relação pronunciou-se sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade, por excesso de pronúncia, prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), 2.ª parte, do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma, que este tribunal deve conhecer (n.º 2 do artigo 379.º do CPP, supra, 15).

Ao não pronunciar-se, como se impunha, sobre o alegado vício de erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPOP], o acórdão recorrido encontra-se também ferido de nulidade, que também deve ser conhecida em recurso (idem, n.º 2 do artigo 379.º), por omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, e do mesmo artigo 425.º, n.º 4, do CPP.

Devendo, em consequência, a decisão recorrida ser substituída por outra que, em conhecimento do recurso da assistente, aprecie da verificação e das possibilidades de suprimento do alegado vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 426.º do CPP, com reenvio para novo julgamento, se for caso disso.

29. A verificação destas nulidades impede o conhecimento do objeto do recurso, nomeadamente da questão da violação do princípio da presunção de inocência (in dubio pro reo) (conclusão 63 da motivação – supra, 3).

III. Decisão.

30. Nestes termos e com estes fundamentos, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Declarar nulo o acórdão do Tribunal da Relação, o qual deve ser substituído por outro que conheça do alegado vício de erro notório na apreciação da prova, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, no recurso interposto pela assistente da decisão absolutória da 1.ª instância, com as demais consequências, nos termos expostos;

b) Não tomar conhecimento das questões suscitadas no recurso, que, assim, fica prejudicado.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de abril de 2025.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Carlos Campos Lobo

Jorge Raposo

_____________________________________________

1. Assim, refletindo jurisprudência reiterada, por todos, o acórdão de 02-10-2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, com abundante citação de jurisprudência.

2. Assim, o acórdão de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt e jurisprudência citada

3. Assim, Castanheira Neves, «A distinção entre a questão-de-facto e a questão-de-direito e a competência do Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de “revista”», in Digesta, Coimbra Editora, 1995, pp. 523ss, e acórdãos de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, e jurisprudência e doutrina neles citada, em www.dgsi.pt.

4. Neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed., Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384.

5. – sublinhando este ponto, Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 368, onde se lê: «Não havendo lugar a reenvio para novo julgamento [por existirem os vícios do n.º 2 do artigo 410.º], a decisão do tribunal da 1.ª instância em matéria de facto pode ser impugnada (art.º 431.º): a) Se do processo constarem todos os elementos de prova quer serviram de base á decisão; b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3; c) Se tiver havido renovação da prova. (…) Havendo documentação da prova, para que o tribunal possa modificar a decisão em matéria de facto, é necessário que esta tenha sido impugnada» (no mesmo sentido, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, Católica Editora, 2007, p. 1181).

6. Cfr. também os acórdãos de 21.04.2021, Proc. 522/18.7PBELV.E1.S1, e de 09.12.2021, Proc. 24/19.4PEAGH.L1.S1.

7. Cfr. acórdão de 21.04.2021, cit.

8. No sentido do que se expõe, cfr. Helena Morão/Pinto de Albuquerque, anotação ao artigo 412.º, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol II, UCP Editora, 5.ª ed., 2023.