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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPARCIALIDADE DO JUIZ
PRECONCEITOS
VALORAÇÃO DA PROVA
Sumário
I - Os juízes, enquanto estiverem a lidar com um caso (nomeadamente ouvindo, na audiência de discussão e julgamento, a assistente e/ou as testemunhas), não podem fazer comentários e “observações” que, razoavelmente, deixem sugerido algum grau de pré-julgamento na resolução final do processo, tendo de desempenhar as suas funções sem preconceitos (reais ou aparentes). II - Os preconceitos (“bias”, “prejudice”), os comentários e juízos de valor constantes das questões colocadas pelo Exº Juiz à ofendida/assistente e às testemunhas, no caso dos autos, comprometeram a avaliação probatória, levada a cabo pelo julgador, da prova por declarações e testemunhal produzida. III - Nos casos de violência doméstica, o julgador não pode “projetar-se” na vítima, exigindo-lhe ou esperando dela um comportamento que acha que deveria tomar ou que ele próprio naquela situação tomaria, ou que seria de esperar que tomasse. IV - A violência doméstica “incapacita” as vítimas, pelo que os comportamentos correspondentes à normalidade da vida não podem servir de critério para nelas acreditar. É preciso estudar e perceber o fenómeno da violência doméstica, para que se possa analisar todos os factos e não descredibilizar o relato, ab initio, porque não encaixa na normalidade da vida que o intérprete/julgador conhece. V - No caso, encontramo-nos perante erro de julgamento suscetível de fundamentar a impugnação da matéria de facto nos termos em que foi realizada pela assistente, e também perante um erro notório na apreciação da prova, já que as regras da experiência e da normalidade da vida invocadas pelo tribunal a quo para apreciar a prova não conduzem ao resultado que obteve, verificando-se, além disso, uma dualidade de critérios na análise e valoração que realizou (a assistente mereceu credibilidade para que se considerassem provados certos factos, e não outros, sem que se apresentasse qualquer motivo/justificação).
Texto Integral
I – RELATÓRIO
1 – Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo Local Criminal de Santarém, juiz 1, correu termos, procedeu-se a julgamento e proferiu-se sentença no processo acima identificado, vindo o arguido, B, a ser absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Inconformada com esta decisão a assistente D interpôs recurso no qual terminou as suas motivações com as conclusões que se seguem: I. O Tribunal "A Quo" errou na apreciação da matéria de facto e na valoração da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, ao absolver o arguido B da prática de um crime de violência doméstica. II. A decisão recorrida não considerou adequadamente os factos provados que, por si só, são suficientes para a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica, nomeadamente os comportamentos controladores e agressivos do arguido, que causaram danos psíquicos e emocionais à assistente. III. O Tribunal "A Quo" desvalorizou indevidamente os depoimentos das testemunhas arroladas pela assistente, que corroboraram as suas declarações sobre os comportamentos abusivos do arguido. IV. A prova testemunhal produzida em julgamento, nomeadamente os depoimentos de H, J, A e M, demonstrou de forma clara e coerente a existência de violência psicológica e emocional exercida pelo arguido sobre a assistente. V. A jurisprudência citada nos autos, nomeadamente os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, Porto, Coimbra e Lisboa, confirmam que os comportamentos descritos nos factos dados como provados (factos 5, 6, 7, 9) são por si só suficientes para a condenação pelo crime de violência doméstica, abrangendo maus tratos psíquicos e emocionais. VI. O Tribunal "A Quo" não fundamentou adequadamente a sua decisão de absolvição, omitindo a consideração de elementos cruciais da prova produzida e desvalorizando indevidamente os depoimentos das testemunhas. VII. A decisão recorrida vai contra a jurisprudência vigente, que reconhece a violência psicológica e emocional como formas de violência doméstica, protegidas pelo artigo 152.º do Código Penal. De facto, parece que o Tribunal a “QUO” considera que violência doméstica é meramente violência física, violência esta que apenas o é se for de deixar marcas e de levar a Assistente ao hospital. VIII. A sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido B pela prática de um crime de violência doméstica, nos termos do despacho de acusação e pedido de indemnização cível. IX. Deve ser dado provimento ao presente recurso, condenando-se o arguido nos termos da acusação e do pedido de indemnização cível, reconhecendo-se a existência de violência doméstica na vertente psicológica e emocional. X. O Tribunal "A Quo" deu como provados factos que demonstram claramente a prática de violência psicológica e emocional pelo arguido, nomeadamente os comportamentos controladores e insultos dirigidos à assistente. XI. A prova testemunhal foi coerente e consistente, corroborando as declarações da assistente sobre os comportamentos abusivos do arguido. XII. A testemunha H relatou um episódio em que a assistente, em pânico, pediu ajuda por temer pela sua segurança devido ao comportamento do arguido. XIII. A testemunha J, psicóloga da assistente, confirmou que a assistente apresentava sintomas de medo e ansiedade devido aos comportamentos agressivos e controladores do arguido. XIV. A testemunha A relatou que a assistente lhe confidenciou que o arguido era agressivo e controlador, impedindo-a de se vestir como queria e de se relacionar com outras pessoas. XV. A testemunha M descreveu a mudança de comportamento da assistente após o início da relação com o arguido, tornando-se mais contida e ansiosa. XVI. A jurisprudência citada nos autos demonstra que comportamentos de controlo, insultos e intimidação são suficientes para a condenação pelo crime de violência doméstica. XVII. O Tribunal "A Quo" não considerou adequadamente a prova testemunhal que corroborava as declarações da assistente, desvalorizando indevidamente os depoimentos das testemunhas. XVIII. A decisão recorrida não fundamentou adequadamente a desconsideração dos depoimentos das testemunhas, omitindo elementos cruciais da prova produzida, sendo certo que a ser devidamente valorada, deveria o tribunal a “QUO” ter dado como provado os factos 1, 2, 4, 9, 12 e 13 dos factos dados como não provados. XIX. A violência psicológica e emocional exercida pelo arguido sobre a assistente é evidente nos factos provados e no depoimento da Assistente e depoimentos das testemunhas que foram totalmente desconsideradas pelo Tribunal “a Quo”. XX. O Tribunal "A Quo" errou ao não considerar a violência psicológica e emocional como formas de violência doméstica, conforme previsto no artigo 152.º do Código Penal. XXI. A decisão recorrida vai contra a jurisprudência que reconhece a violência psicológica e emocional como formas de violência doméstica, protegidas pelo artigo 152.º do Código Penal. XXII. A sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, nos termos do despacho de acusação e pedido de indemnização cível. XXIII. A prova produzida nos autos demonstra claramente que o arguido exercia controlo e pressão sobre a assistente, causando-lhe danos psíquicos e emocionais. XXX. Deve ser dado provimento ao presente recurso, condenando-se o arguido nos termos da acusação e do pedido de indemnização cível, reconhecendo-se a existência de violência doméstica na vertente psicológica e emocional. Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exa., doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser admitido, e em consequência ser a douta sentença ora recorrida, substituída por uma outra, na qual: 1. Seja o Arguido condenado pela prática do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e nas penas acessórias previstas no artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal. 2. Ser julgado provado e procedente o pedido de indemnização cível formulado e, em consequência, ser o Arguido condenado a pagar à Assistente a quantia de 2.000,00€ (dois mil euros) a título de compensação por danos não patrimoniais causados, acrescida de juros legais desde a notificação até integral e efetivo pagamento. Nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii, pelo que não há aqui lugar ao pagamento prévio de taxa de justiça.
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Recebido o recurso respondeu o Ministério Público concluindo que: 1ª – A assistente interpôs recurso da sentença proferido nos autos, que absolveu o arguido B da prática como autor material (artigo 26.º do Código Penal), dolosamente (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal) e na sua forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punível, pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e nas penas acessórias previstas no artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal, pois, no seu entender, considera que a matéria de facto dada como provada (pontos 5, 6, 7 e9)era suficiente para a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, bem como, por ter desvalorizado indevidamente os depoimentos das testemunhas por si arroladas, que corroboraram as suas declarações sobre os comportamentos abusivos do arguido. 2ª – Entendemos, contudo, que em qualquer das matérias não lhe assiste razão. 3ª - Os bens jurídicos protegidos com a incriminação do crime de violência doméstica são a integridade física e psíquica, bem como, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, a honra e inclusive o património. 4ª – O crime de violência doméstica exige um comportamento violento que pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação seja de molde a provocar danos na saúde física ou psíquica da vítima. Ou seja, respeita a situações de gravidade maior de lesões corporais ou psíquicas da vítima, e que contendam com a sua dignidade. 5ª - Na nossa perspetiva, é exigido que o ato ou atos ofendam a vítima de modo especialmente desvalioso e particularmente censurável, não se bastando com qualquer ofensa à saúde física e psíquica da vítima (entre outros, v, acórdão do TRL, de 24-09-2019, in colectaneadejurisprudencia.com). 6ª - Ao analisarmos os factos n.º 5, 6, 7 e 9 do segmento da matéria de facto dada como provada, ao contrário do sustentado pela assistente, consideramos que os mesmos, por si só, não integram a prática do crime de violência doméstica, sendo certo que não ficou demonstrado que a sintomatologia mencionada no ponto 9 tivesse sido consequência direita das condutas do arguido. 7ª - É que não basta uma correlação, é necessário demostrar a existência de um nexo causal, o que, consideramos, não se verificou no caso. 8ª - Se atentarmos à fundamentação de direito constante do segmento da decisão recorrida respeitante ao Enquadramento Jurídico Penal, não vislumbramos que, face à matéria de facto dada como provada, tenham sido violadas as normas jurídicas indicadas pela assistente, por incorreta aplicação. 9ª - No referido segmento, o Tribunal recorrido fez, na nossa perspetiva, uma correta interpretação e aplicação do art.º 152º, do Código Penal, aos factos dados como provados, pois, considerou que estes não se enquadravam no tipo legal do crime de violência doméstica, sendo certo que para o efeito citou ainda vária jurisprudência. 10ª – O Tribunal de recurso só pode alterar a matéria de facto fixada em 1ª instância, quando as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impuserem manifestamente uma decisão diversa da decisão recorrida. 11ª – O mecanismo previsto no art.º 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP, destina-se tão só a corrigir aquilo que se verifica serem erros manifestos de julgamento e que resultam ostensivos da leitura do registo da prova, mas sem nunca fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do princípio da livre convicção (v. Ac. do TRL de 18-02-2014 – processo n.º 1426/12.2GLSNT.L1). 12ª - Só é possível controlar a convicção do julgador quando ela se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e, em determinadas situações, dos conhecimentos científicos, dado que, a livre apreciação da prova não exclui, antes exige, que sejam observadas as regras da experiência e critérios de lógica. 13ª - Lendo o teor do segmento da decisão recorrida respeitante à Motivação da decisão de facto, constata-se que o Tribunal a quo formou a sua convicção, além do mais, com base nas declarações da assistente, que as não considerou coerentes e credíveis, pelo que, não as atendeu. Explicou depois porque razão as não considerou credíveis. 14ª - Teve ainda em consideração, entre outras, as declarações prestadas pelas testemunhas M, A e H, que no essencial não presenciaram qualquer ato de agressão, inclusive a testemunha H (cunhado da assistente), afirmou que em data que não recordava, mas quando o casal, constituído pelo arguido e assistente residiam na zona de Abrantes, recebeu uma chamada telefónica da assistente a dizer que o arguido lhe tinha batido e para ir buscá-la, ao que tal acedeu. Contudo, em audiência de discussão e julgamento, disse que não viu quaisquer marcas e/ou sinais de agressões na assistente. 15ª - Por isso, o Tribunal a quo não deu como não provados tais factos (cf. 2.2.6º da decisão recorrida). 16ª - No que respeita às demais testemunhas arroladas pela assistente, o Tribunal considerou que as mesmas pouco ou nada acrescentaram à restante prova produzida. 17ª - Teve ainda em consideração e analisou a prova documental e relatório de acompanhamento psicológico. 18ª - Por isso mesmo, o Tribunal a quo, fazendo uso do princípio do in dubio pro reo, e tendo apreciado a prova segundo as regras da experiência e livre convicção do julgador, conforme resulta do disposto no art.º 127º, do CPP, não conseguiu convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, pelo que, considerou que não era possível imputar ao arguido a prática dos factos considerados como não provados. 19ª – Assim, não alcançamos que o Tribunal tenha apreciado a prova e formado a sua convicção de forma contrária às regras da experiência, da lógica e da razão. 20ª - Nessa medida, inexiste qualquer erro manifesto de julgamento e que resulte do registo da prova. 21ª - Tendo em conta tais regras da experiência comum, consideramos que a decisão recorrida se mostra manifestamente plausível. 22ª - Assim, estamos em crer, que o que se verifica no caso, é tão só uma apreciação divergente dos factos e da prova por parte da assistente, tentando a mesma valorizar de forma diferente os depoimentos prestados pelas testemunhas que arrolou. 23ª - Só que não pode pretender substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, pois se o fizesse, por via de uma apreciação divergente dos factos e prova, sem estar em causa um erro manifesto de julgamento, conforme entendemos ser o caso, então estaria a usurpar a competência do julgador. 24ª – Donde, não tendo as provas indicadas pela assistente, por si só ou conjugadas com as demais, a virtualidade de imporem uma decisão diversa, o Tribunal de recurso não poderá alterar a matéria de facto que foi fixada. 25ª – O recurso da matéria de facto é tão só um remédio para reparar eventual erro cometido na definição dos fatos provados e não provados e que tenham relevância para a boa decisão, não sendo assim um novo julgamento. 26ª - Daí que, tendo o Tribunal fundamentado a matéria de facto provada e não provada nos termos que o fez, a decisão da matéria de facto será inatacável, não podendo a assistente, só porque faz da prova produzida uma leitura diferente, opor a sua convicção e sustentar que o Tribunal de recurso deve optar por ela. Por tudo o que vai exposto, entendemos que a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pela assistente. Deve, pois, o recurso interposto ser julgado improcedente, e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida. Contudo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA.
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O arguido respondeu igualmente ao recurso, pugnando pela manutenção do decidido, tendo concluído a sua resposta nos termos que se seguem: I. O arguido/Recorrido foi julgado pela prática dolosa de um crime de violência doméstica contra cônjuge p. e p. pelo art. 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), do Código Penal (CP). II. Não obstante a acusação pública, à qual a Recorrente aderiu, imputar ao arguido factos situados temporalmente em momento anterior ao do matrimónio da ofendida e do arguido/Recorrido, este sempre teria de ser absolvido dos mesmos, porquanto não qualificados juridicamente e, consequentemente, não abrangidos pelo objeto do processo. III. Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram provados e não provados os factos dados como tal. IV. Da matéria de facto provada e não provada não resulta a prática, pelo Recorrido, do crime de violência de doméstica, inexistindo, consequentemente, na decisão recorrida, qualquer erro de direito. V. O tribunal recorrido não incorreu em erro na valoração da prova, a qual, assente na imediação e na oralidade, considera-se cumprida quando a convicção formada se mostra, como foi, objeto de um procedimento lógico e coerente sem qualquer indício de arbítrio. VI. Nada impede o tribunal de conferir maior credibilidade a um determinado meio de prova em detrimento de outro(s). VI. A convicção do juiz é formada pela conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, certezas, lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem. VIII. Na decisão de factos incertos, impõe-se ao tribunal que absolva o arguido, nisto consistindo o princípio in dubio pro reo a que o tribunal a quo fez apelo. IX. A douta sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, nela constando os motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, de entre as possíveis soluções que, no caso, poderiam caber, e que, no entendimento do Recorrido sempre conduziriam à sua absolvição. X. De facto, da conjugação da prova produzida em audiência de julgamento, em particular, do depoimento da assistente prestado na sessão de julgamento que teve lugar no dia 12 de setembro [10:50 – 12:36], na passagem com início em 1:43:44 e fim em 1:44:16, com a demais prova documental junta aos autos, evidencia-se, com o devido respeito, a instrumentalização do processo crime, em virtude de um eventual ressentimento afetivo extrapolado pelo estado depressivo em que a Recorrente se encontra, ou a deturpação, pela mesma, dos factos e/ou a sua apresentação como aquela imagina poderem os mesmos ser penalmente relevantes, insistindo, erradamente, em fazer crer que o estado de saúde em que se encontra foi resultado do comportamento do arguido. XI. Da conjugação dos factos provados e não provados sempre se afigura não resultar o preenchimento, pelo arguido/Recorrido, dos elementos objetivos e subjetivo do tipo de ilícito. XII. Efetivamente, o crime de violência doméstica exige a prática de actos que, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciam em maus tratos, isto é, que revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente, o que não resultou demonstrado. XIII. A decisão recorrida não merece censura. Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser julgado improcedente, por não provado, o recurso da Recorrente, mantendo-se a decisão recorrida na ordem jurídica. Fazendo, assim, V. Exas. a costumada Justiça!
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Recebidos os autos neste TRE foram os mesmos continuados com Vista à Sr.ª PGA, nos termos já apreciados no despacho em que se designou o julgamento do recurso em Conferência.
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Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão.
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II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Questões a decidir:
(i) Se a decisão de facto enferma de erro de julgamento;
(ii) Erro na subsunção dos factos ao direito.
(iii) Pedido de indemnização civil.
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III.
A - É do seguinte teor a decisão de facto impugnada: 2. Fundamentação 2.1. Matéria de facto provada Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido B viveu em comunhão de leito, mesa e habitação com a ora assistente, D a partir do ano de 2016. 2. O arguido casou com D no dia 08 de agosto de 2018 e fixaram residência na Rua (…..). 3. O arguido B e D divorciaram-se no dia 02 de novembro de 2022. 4. Por vezes, o arguido ia a reuniões da empresa de D, de nome «…..», e deslocava-se aos locais dos eventos que a mesma organizava, transportando o material para o interior desses locais, sendo que, o arguido encontrava-se desempregado e não era trabalhador da empresa «………». 5. Em data não concretamente determinada, quando se deslocavam de carro para uma clínica veterinária para assistir à eutanásia da gata de D e do seu ex-marido, onde este também iria estar, B dirigiu à mesma as seguintes expressões: «e tu agora vais estar sozinha numa sala com aquele gajo, vão lá estar os dois a fazer o quê, os dois fechados?», tendo em seguida começado a realizar uma condução errática. 6. Em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a D, num tom de voz grave, «isso não é roupa para o teu tamanho», «isso não é roupa para a tua idade» e «mulher minha não se veste assim», pois este não queria que a mesma vestisse determinadas roupas, o que ocorreu um número indeterminado de vezes. 7. Em datas não concretamente apuradas, o arguido dirigiu a D as seguintes expressões: «não estás boa da cabeça, estás doente, precisas de te tratar» e «mulher minha não se comporta assim», o que ocorreu um número indeterminado de vezes. 8. Era a ora assistente, D, quem, em resultado da atividade comercial por si desenvolvida, provia pelo sustento de B e do filho do mesmo, G. 9. A determinada altura, a assistente D apresentou sintomatologia enquadrada como alteração de humor marcada presente num quadro depressivo e de ansiedade elevada com ataques de pânico, sendo ainda sugestivo de enquadramento com as perturbações relacionadas com trauma e fatores de stress. 10. O arguido sabia que se encontrava casado com D, bem sabendo que lhe devia respeito e consideração. 11. Em tudo o arguido, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente. Mais se apurou que: 12. No período do processo judicial em apreço (entre os anos 2016 e 2020), o arguido B e a assistente viveram maritalmente, sensivelmente, dois anos, até contraírem matrimónio, em 08/08/2018. O agregado integrou o filho do arguido, em períodos quinzenais. O então casal residiu na zona de (….), numa casa adquirida em comunhão. A subsistência foi assegurada, sobretudo, com os proventos da empresa de criação e organização de eventos que constituiu com a ofendida, em 15/05/2018 (………, Lda.). Importa salientar que a empresa supra foi constituída com dois CAE: um que integra a sua profissão (animadora) e outro com o intuito de incluir a atividade de B no setor imobiliário. Aquando da separação, em data não concretamente apurada, B e o seu filho abandonaram a habitação. A união conjugal com a ofendida foi dissolvida judicialmente, em 02/11/2022. O arguido B não voltou a promover contactos e/ou tentativas de aproximação à ofendida. O arguido B está a viver em (….), na morada assinalada no início do presente relatório, enquadramento que mantém desde 02/09/2023. O seu agregado inclui o filho (13 anos), a atual companheira (40 anos) e os dois enteados (13 e 08 anos). Trata-se de uma habitação arrendada, cujo contrato se encontra em nome da sua companheira. O ambiente familiar é retratado como harmonioso e afetivo, com especial assento na amizade, apoio e compreensão que vivencia na atual relação amorosa, assumida há um ano, bem como na interação gratificante e afetiva com o descendente e ambos os enteados. Ainda sobre a dinâmica familiar, a companheira de B descreve um ambiente saudável, salientando que, para além do registo carinhoso e respeitoso no plano amoroso, o arguido é uma referência educativa e cuidadora dos menores. No campo académico assinala-se que B não concluiu o 12.º ano de escolaridade. Em termos laborais, B está ativo no setor do imobiliário/construção, a título individual, sendo que, as atividades que tem em curso respeitam à construção de imóveis em materiais específicos [aço], nomeadamente, a gestão de uma obra que iniciou no presente ano – factos. Em termos económicos, B apresenta uma perceção positiva da sua condição económica, ainda que os seus rendimentos não sejam estáveis. Ainda no domínio económico, como principais despesas do agregado a renda da habitação (400 euros), consumíveis domésticos (300 euros), telecomunicações (200 euros), alimentação (500 a 700 euros), saúde e atividades desportivas do filho (250 euros, sendo 80 euros quinzenais nas despesas de saúde do filho e do enteado), escola e atl´s (100 euros) e crédito pessoal (100 euros). A sua companheira trabalha como gerente numa loja de vestuário, auferindo o vencimento na ordem dos 1.500 euros mensais. No percurso de desenvolvimento e socialização destaca-se que B é o primogénito de dois descendentes dos progenitores. Em consenso com os pais, viveu maioritariamente com os avós maternos, as suas figuras de referência afetivo-educacional. O arguido não conviveu com dinâmicas de conflito familiar impactantes na estruturação da sua personalidade. A trajetória profissional de B foi pautada por alguma volatilidade, sendo referenciados quatro anos de exercício de atividade por conta outrem (e.g. colaborador na criação do SIGLIC – Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia, agente de imobiliário na RE/MAX) e as demais experiências por conta própria (e.g. empresa com atividade no ramo da informática, motas de água, construção civil). No domínio das relações de intimidade assinala-se que o filho de B nasceu no contexto de uma relação marital que perdurou oito anos. Segundo a ex-companheira e mãe do descendente, o relacionamento amoroso não foi cunhado por contendas violentas e/ou ofensas compagináveis com os factos que enformam a acusação em apreço. O arguido B não tem antecedentes criminais registados contra si. O arguido é tido como uma pessoa pacífica e de bom trato; é, igualmente, tido como um bom filho. 13. No período em que com o arguido conviveu, a assistente/demandante civil sofreu uma perda gestacional e, por outro lado, assistiu à agonia e ao falecimento da sua progenitora.
2.2. Factos não provados Para além dos que ficaram descritos não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente, não se provou que: 1. Durante a relação que manteve com a ora assistente, o arguido B acompanhasse a mesma para todo o lado, inclusive, para o seu trabalho e/ou que não permitisse que esta convivesse com outras pessoas, para além da sua família e do próprio arguido. 2. O arguido tivesse praticado os factos descritos em 2.1.4º supra para ver com quem a assistente ficava e com quem estava nesses eventos e/ou impusesse a sua presença e/ou que tal o fizesse na concretização do intuito de controlar fisicamente os movimentos de D, assim como as pessoas com quem a mesma se relacionava e/ou que em tal agisse motivado por ciúmes. 3. Em data não concretamente apurada, no interior do ginásio «…..» dos Olivais, motivado por ciúmes, o arguido se tivesse dirigido à assistente as seguintes expressões, num tom de voz grave: «tu achas que eu não te vi a olhar para aquele gajo de uma ponta à outra?» e/ou que tal tivesse causado medo e inquietação na assistente. 4. Em data não concretamente apurada, em novembro de 2017, no interior da habitação em que residiam nesse momento, sita em Mafra, no decorrer de uma discussão, o arguido tivesse empurrado a assistente D contra a parede do corredor da casa e/ou que a tivesse imobilizado, utilizando força física e/ou que tivesse colocado o seu antebraço sobre o peito da mesma e/ou que lhe tivesse causado dores e sofrimento. 5. Em data não concretamente apurada, em 2017, no interior do parque de estacionamento do ginásio que frequentavam, o arguido tivesse dito à assistente D, num tom de voz grave, «eu quero saber com que pessoas é que tu estiveste desde que começaste a namorar» e/ou que tivesse obrigado a mesma a dizer as pessoas com quem tinha tido relações sexuais anteriormente. 6. Em data não concretamente apurada, em 2020, no interior da habitação em que residiam nesse momento, sita na Rua (…..), no decorrer de uma discussão, o arguido B tivesse agarrado o braço de D com força e/ou que a tivesse impedido de se deslocar para o exterior da casa e/ou que, após, tivesse abanado o corpo de D e/ou que a tivesse agarrado pelos dois braços e/ou que a tivesse empurrado com força, tendo a mesma caído em cima do sofá e/ou que lhe tivesse causado dores e sofrimento. 7. Na ocasião referenciada em 2.1.5º supra, o arguido tivesse conduzido o seu veículo automóvel em velocidade excessiva para os limites da via e/ou que tivesse conduzido o mesmo encostando-se aos carros da frente e/ou que apertasse as curvas e/ou que tivesse provocado medo e inquietação na assistente e/ou que esta tivesse aberto a porta e/ou que a mesma tivesse saído com o carro em andamento. 8. Durante as discussões que o arguido tinha com D, o mesmo tivesse desferido murros com força nas paredes da casa, chegando a ficar com sangue nas mãos e/ou que tal tivesse causado medo e inquietação na assistente. 9. A assistente tivesse atuado pela forma descrita em 2.1.8º supra por recear comportamentos futuros do arguido B que atingissem a sua integridade física e/ou psíquica. 10. O vertido em 2.1.9º supra tivesse sido em consequência direta das condutas do arguido. 11. O arguido tivesse agido com o propósito concretizado de molestar o corpo e prejudicar a saúde psíquica e emocional da assistente D. 12. O arguido ao agir da forma descrita em 2.1 supra, o tivesse feito com o propósito concretizado de coartar a liberdade de movimentos e incutir receio à assistente e/ou que a tivesse amedrontado e/ou que a tivesse perturbado no seu dia-a-dia e/ou que lhe tivesse causado receio de que pudesse efetivamente atentar contra a sua integridade física e/ou que a tivesse afetado na sua dignidade enquanto pessoa humana, no seu equilíbrio social e psicoemocional e no seu bem-estar físico e/ou que tivesse criado um ambiente de medo e/ou que lhe tivesse provocado dores, angústia e sofrimento permanente e/ou que o arguido soubesse que tal conduta – descrita em 2.1 – era proibida e punida por lei penal. 13. Todas as condutas cometidas pelo arguido contra a assistente/demandante civil e descritas em 2.1. supra tivessem gerado, na mesma, sentimentos de insegurança e temor e/ou que fizesse com que a mesma vivesse a sua vida em sobressaltada, perturbada e receosa que o demandado civil pudesse vir a fazer contra a sua pessoa e/ou que a mesma temesse pela sua vida e/ou integridade física. 14. O arguido/demandado civil tivesse agido com o propósito concretizado de maltratar corporal e psicologicamente a demandante civil, na altura sua mulher e/ou que a tivesse humilhado e/ou ameaçado e/ou a tivesse perseguido e/ou que a tivesse levado a suportar agressões físicas e psicológicas e/ou que lhe tivesse provocado um profundo receio pela sua segurança e integridade física e/ou que a tivesse tratado de forma incompatível com a dignidade humana. 15. A referida atuação do arguido – melhor descrita em 2.1 supra – tivesse deixado a assistente/demandante civil num estado físico e emocional especialmente frágil, vivendo em permanente sobressalto, e com dificuldade em confiar em terceiros e, especialmente, em se envolver novamente com alguém e/ou que tal atuação do arguido tivesse deixado a demandante civil deprimida e entristecida e fortemente estigmatizada e perturbada no seu equilíbrio social, psíquico e emocional.
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Os factos não compreendidos em 2.1. (factos provados) e em 2.2. (factos não provados) ou são conclusivos, e/ou mostram-se prejudicados pelos ali expendidos e/ou não revelam qualquer interesse para a boa decisão da causa cível ou criminal.
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2.3. Motivação da decisão de facto 2.3.1. Quanto ao apuramento da matéria fáctica supra vertida o Tribunal formou a sua convicção: - uma vez que em audiência de discussão e julgamento o arguido, B optou por não prestar declarações relativamente aos factos que nestes autos lhe eram imputados, para aferir sobre a sua atual situação socioeconómica e familiar, o Tribunal considerou o teor do relatório social elaborado pela respetiva equipa da DGRSP junto aos autos cotejado que foi com o teor da cópia atualizada do certificado de registo criminal do arguido junta aos autos e da qual nada consta contra o mesmo (conf. 2.1.12º supra). Finalmente, o Tribunal considerou os depoimentos das testemunhas indicadas pelo arguido, as quais depuseram, essencialmente, sobre o comportamento social do mesmo. Assim, os depoimentos das testemunhas L (com 37 anos de idade, agente imobiliário da Remax e compadre do aqui arguido) e F (com 60 anos de idade, reformada e mãe do arguido) – conf. o que se deixou apurado em 2.1.12º supra, in fine. - Por outro lado, as declarações prestadas pela assistente, D apenas relevaram para apurar o que se deixou vertido em 2.1.supra, sendo que, quanto ao mais, tal depoimento não se nos afigurou coerente, credível e/ou mesmo verosímil, pelo que, não foi atendido. Com efeito, nessa parte, tais declarações não foram corroboradas por qualquer outro meio de prova (pericial, documental ou testemunhal) e por desconformes com as regras da experiência comum, da lógica e das demais circunstâncias do caso, aquelas não permitiram ultrapassar o crivo do in dubio pro reo infra melhor referenciado (vide, 2.3.2 infra). Acrescente-se, ainda, no que tange às alegadas agressões físicas pela assistente ditas sofridas às mãos do arguido, o pela mesma, igualmente, afirmado, que não necessitou de receber qualquer assistência médica e/ou hospitalar e que eventuais sinais e/ou marcas daquelas não foram por ninguém detetadas (conf. o depoimento prestado em julgamento por H (cunhado da assistente), infra melhor analisado. Por outro lado, à semelhança do pela assistente alegado em audiência de discussão e julgamento (mas não comprovado) saliente-se que as declarações por aquela prestadas careceram para este Tribunal de actos/factos que exteriorizassem a alegada conduta do arguido que in casu não se evidenciaram. Assim, os depoimentos das testemunhas: - M (com 47 anos de idade, empresário e amigo da assistente há cerca de 20 anos) afirmou que nunca presenciou qualquer agressão física ou verbal dirigida pelo arguido à ora assistente, mas disse que havia violência psicológica do mesmo sobre aquela e convidado a dar exemplos da alegada violência psicológica não soube concretizar os mesmos; - A (com 41 anos de idade, psicóloga clínica e amiga da assistente desde 2015 tendo trabalhado com aquela na empresa de eventos pela mesmo detida), a qual afirmou do que assisti o relacionamento entre eles (arguido e assistente) parecia pacifico e sem problemas, mais afirmou que não presenciou qualquer acto de agressão (física ou verbal) do arguido para com a assistente, sendo que, o que mais sabe do relacionamento entre ambos foi-lhe contado pela a assistente; - H (cunhado da assistente), o qual afirmou que em data que não recorda, mas quando o casal, constituído pelo arguido e assistente residiam na zona de Abrantes, recebeu uma chamada telefónica da sua cunhada (ora assistente) a dizer que o arguido lhe tinha batido e para ir buscá-la, ao que tal testemunha acedeu. Contudo, em audiência de discussão e julgamento referiu que não viu quaisquer marcas e/ou sinais de agressões na pessoa da assistente, razão pela qual o Tribunal deu como não provados os aludidos factos (conf. 2.2.6º supra). Relativamente às restantes testemunhas pela assistente indicadas e ouvidas nos autos, importa dizer que tais testemunhos pouco ou nada acrescentaram à restante prova produzida, sendo que, tais depoimentos foram valorados, sobretudo, para aferir do estado anímico e psicológica pela assistente evidenciado cotejados que foram com a prova documental produzida a tal propósito e infra melhor analisada. Finalmente, o Tribunal considerou a prova documental aos autos junta, nomeadamente, o teor do assento de casamento, de fls. 13; o relatório de acompanhamento psicológico, de fls. 152-153; a acta de tentativa de conciliação, de fls. 159-162 dos autos; o teor da certidão permanente comercial (……..), LDA., NIPC (………); o teor das faturas emitidas pela sociedade comercial supramencionada por serviços prestados pelo arguido à sociedade SOLD FAST - MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA LDA. (REMAX LATINA II) e o teor das mensagens WhatsApp, juntas com a contestação, qual, por si só, também não permitiu assegurar conclusão diversa da que supra se deixou expendida.
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2.3.2. Os factos não provados assim foram considerados por, na convicção do Tribunal, a prova produzida não ter conduzido a diversa qualificação dos mesmos, evitando-se aqui repetir o por nós atrás expendido, a tal propósito. Quanto a tudo (factos não provados), importa não esquecer que “em Direito Penal, a prova para condenação deve ser plena, do mesmo passo que a dúvida determina a absolvição, sendo este o efeito necessário da presunção da inocência” – vd. Acórdão da Relação de Évora de 18/10/1988, BMJ, 380º-558. Com efeito, a primeira grande incidência do princípio da presunção de inocência do arguido (entre outras de menor alcance) que cumpre destacar é na matéria da prova em processo penal, decorrendo daquele princípio, fundamentalmente: a inexistência de um ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem que provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo (expressão cunhada por Stubel); e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele. Na verdade e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido (consagrado constitucionalmente no nº 2 do artº 32º da CRP (e ainda nos termos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem)) isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual aparece imposta (ou ficcionada) pela lei; o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação – neste sentido, vd. Rui Patrício “O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português”, AAFDL, Lisboa, 2000, pág. 93. A tal acresce que no que concerne à apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento (os factos dados como não provados em 2.2. supra), o Tribunal, em corolário do supra expendido, fez uso do princípio in dubio pro reo, o qual estabelece que: “ (...) na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido. É um princípio de prova que vigora em geral (...)” – vd. Acórdão do STJ de 10/05/1995, Proc. nº 47764, cit. no CPP Anotado por Simas Santos, Leal Henriques e Borges de Pinho, I Vol., 1996, pág. 550. Com efeito, “não pode condenar-se um arguido em simples presunções, que não são meios de prova, mas simples meios lógicos ou mentais. As presunções da culpa têm de haver-se como banidas em processo penal, face ao disposto no artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa” (vd. Acórdão do STJ, de 07/11/1990, Proc. nº 41294, 3ª secção, ob. cit., pág. 542) e, por outro lado, “ a livre convicção ou apreciação não poderá nunca confundir-se com a apreciação arbitrária da prova produzida nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova” – vd. Figueiredo Dias, ob. cit. e Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Coimbra, 1988, pág. 228 – não esquecendo, como se deixou dito, que “em processo penal, no domínio da prova, a dúvida sobre os elementos constitutivos da infracção resolve-se a favor do réu, funcionando o princípio in dubio pro reo” (vd. Acórdão do STJ de 19/12/1962, BMJ 122º-464). Sobre este tema, vide, ainda, Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1986, págs. 257 e ss., Eduardo Correia, “Le preuves en droit penal portugais”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XV, 1967, págs. 1 a 52 e Acórdão nº 1124/96 do tribunal Constitucional de 19/11/96, publicado no D.R., II série, nº 31, de 06/02/1997, pág. 1566. Aqui chegados importa, igualmente, dizer que segundo o art.º 127º do Código de Processo Penal (principio da livre apreciação da prova) “salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” ou seja, o Tribunal é livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção. Não obstante tal, essa apreciação não pode ser arbitrária. É que, como escreve o Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202 e 203, “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e de controlo”. Prossegue o citado autor, afirmando que “a livre ou íntima convicção do juiz, de que se fala a este propósito não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” Uma tal convicção existirá só e quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, o que, in casu, não sucedeu quanto ao imputar ao arguido B a prática dos factos considerados como não provados.
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Relativamente à fundamentação de facto entendemos que o que se deixa dito basta para dar cumprimento integral ao disposto no art.º 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, já que como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/1997, in, CJSTJ, tomo I, pág. 172 e segs. “o artº 372º do Código de Processo Penal não exige a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas serviram para formar a convicção do Tribunal, não impondo a lei a menção das inferências injuntivas levadas a cabo pelo Tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contra provas”, o que ainda assim foi feito por este Tribunal e quanto ao núcleo essencial dos factos em apreciação.
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Analisando e decidindo:
i) Do erro de Julgamento:
A assistente impugna o julgamento de facto realizado pelo tribunal a quo, defendendo a existência de erro de julgamento que afeta os factos julgados não provados descritos sob os números 1, 2, 4, 9, 12 e 13 que se transcrevem: 1. Durante a relação que manteve com a ora assistente, o arguido B acompanhasse a mesma para todo o lado, inclusive, para o seu trabalho e/ou que não permitisse que esta convivesse com outras pessoas, para além da sua família e do próprio arguido. 2. O arguido tivesse praticado os factos descritos em 2.1.4º supra para ver com quem a assistente ficava e com quem estava nesses eventos e/ou impusesse a sua presença e/ou que tal o fizesse na concretização do intuito de controlar fisicamente os movimentos de D, assim como as pessoas com quem a mesma se relacionava e/ou que em tal agisse motivado por ciúmes. 4. Em data não concretamente apurada, em novembro de 2017, no interior da habitação em que residiam nesse momento, sita em Mafra, no decorrer de uma discussão, o arguido tivesse empurrado a assistente D contra a parede do corredor da casa e/ou que a tivesse imobilizado, utilizando força física e/ou que tivesse colocado o seu antebraço sobre o peito da mesma e/ou que lhe tivesse causado dores e sofrimento. 9 A assistente tivesse atuado pela forma descrita em 2.1.8º supra por recear comportamentos futuros do arguido B que atingissem a sua integridade física e/ou psíquica. 12. O arguido ao agir da forma descrita em 2.1 supra, o tivesse feito com o propósito concretizado de coartar a liberdade de movimentos e incutir receio à assistente e/ou que ativesse amedrontado e/ou que ativesse perturbado no seu dia-a-dia e/ou que lhe tivesse causado receio de que pudesse efetivamente atentar contra a sua integridade física e/ou que a tivesse afetado na sua dignidade enquanto pessoa humana, no seu equilíbrio social e psicoemocional e no seu bem-estar físico e/ou que tivesse criado um ambiente de medo e/ou que lhe tivesse provocado dores, angústia e sofrimento permanente e/ou que o arguido soubesse que tal conduta – descrita em 2.1 – era proibida e punida por lei penal. 13. Todas as condutas cometidas pelo arguido contra a assistente/demandante civil e descritas em 2.1. supra tivessem gerado, na mesma, sentimentos de insegurança e temor e/ou que fizesse com que a mesma vivesse a sua vida em sobressaltada, perturbada e receosa que o demandado civil pudesse vir a fazer contra a sua pessoa e/ou que a mesma temesse pela sua vida e/ou integridade física.
Comecemos por esclarecer o âmbito e finalidade do recurso de impugnação da matéria de facto com recurso à prova produzida.
O recurso da matéria de facto não está previsto na lei como um direito ilimitado tendente à reapreciação do julgamento ou repetição do julgamento na segunda instância. Este recurso foi concebido e deve ser usado como remédio jurídico quando o julgamento realizado seja manifestamente erróneo. Deste modo, o tribunal de recurso apenas intervém de forma a corrigir erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, devendo proceder à sua correção se for caso disso. Não se trata, pois, de um novo julgamento da matéria de facto, antes sendo a forma de sanar os vícios de julgamento em primeira instância, como sejam, erro manifesto no julgamento no caso em que se dê como provado facto com base em depoimento de testemunha que não o afirmou, ou com base em depoimento de testemunha que declarar algo que apenas lhe foi relatado por terceiro, ou ainda com base em valoração de prova proibida, etc. Sobre o erro de julgamento, conceito e limites, o Ac. da Relação de Lisboa de 04-02-2016, Proc. n.º 23/14.2PCOER.L1-9, Relator Antero Luís[2], disponível in www.dgsi.pt.
Ou seja, visa-se reparar os erros de perceção da prova que se verificam quando o juiz justifica o julgamento de um facto com base num documento cujo conteúdo o não demonstra, ou julga não provado um facto existe nos autos prova pericial cujo valor taxativo não foi afastado, ou documento autêntico que o demonstre ou ainda quando indique como fonte da sua convicção o depoimento de uma testemunha que sobre tais factos não se pronunciou ou se pronunciou em sentido contrário ao julgado, ou ainda quando no próprio texto da decisão imputa a uma testemunha, e com base nessa imputação julga factos, afirmações que a mesma não prestou. São, pois, erros evidentes quando comparamos a prova produzida, por declarações, depoimentos, pericial, documental ou outra com a motivação do julgamento.
Por isso a jurisprudência e a doutrina unanimemente têm afirmado que o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, com consagração expressa no artigo 127º do C. Processo Penal, mas sim a reparar erros que antecedem esta mesma convicção nos termos expostos.
A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade e imediação com que decorre o julgamento em primeira instância. Aquela tem por limites as regras da experiência comum e a obediência à lógica, sendo que, se face à prova produzida, for possível mais do que uma conclusão, a decisão do Tribunal a quo que, devidamente fundamentada, se basear numa das possíveis, é válida.
Ora, o erro de julgamento pode suscitar dois tipos de recurso[3], embora com alcances diferentes e não confundíveis[4]:
- Um com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o artº 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido estrito);
- E outro que visa a reapreciação da prova produzida, ao abrigo do artº 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido lato).
A recorrente lança mão da impugnação em sentido lato, cf. art.º 412.º do CPP, já que indica para além dos factos que entende erradamente julgados, o sentido em que deveriam ter sido julgados e as provas que em seu entender foram mal apreciadas pelo tribunal a quo, o que faz indicando os minutos dos respetivos depoimentos em que as testemunhas afirmaram o que inclusivamente transcreve.
Dispõe o nº 3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, relativo à impugnação em sentido lato “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.
Da análise deste preceito legal resulta que o recorrente, quando impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412º do C.P.P, tem que especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como indicar as provas que, no seu entendimento, impunham decisão diversa da recorrida e aquelas que devem ser renovadas.
Por sua vez a norma indicada, dispõe no seu n.º 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens[5] em que se funda a impugnação.
Por sua vez, determina o 364.º, n.º 3 - Quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número anterior.
Como de forma exemplar se verteu no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/03/12, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18/04/12: «Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório. A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas. O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto. Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo».
Invocando a recorrente erro de julgamento incidente sobre os factos considerados não provados, o que procedendo leva ainda à alteração do seu julgamento e redação, o que apenas se verificará se a factualidade julgada provada e não provada não se mostre em consonância com a prova produzida, repita-se, ou seja, nas situações em que o Tribunal considere provado um facto sem que dele tivesse sido feita prova, facto que por isso deveria ter sido julgado não provado, ou quando considera não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido dado como provado.
Com a invocação de erro de julgamento o que se visa é a reapreciação da prova produzida, dentro dos limites indicados pelo recorrente, no que respeita aos factos impugnados, já que no que respeita às provas a ouvir e ou analisar (toda a prova reduzida a escrito: documentos e perícias) não se mostra o tribunal limitado às indicadas já que deve reapreciar as que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (art.º 412.º n.º 6 do CPP), não se limitando deste modo a atividade do juiz do tribunal de recurso à apreciação da correção intrínseca da decisão recorrida.
Não obstante, importa relembrar que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não visa a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, mas tão só a deteção e correção de pontuais e concretos erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.
Na verdade, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, processo 04P4324, relator Simas Santos, inwww.dgsi.pt: «1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribada em elementos subjectivos e não objectivos, é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso...».
No mesmo sentido, lê-se também no Ac. do STJ de 20/11/2008, relator por Santos Carvalho, inwww.dgsi.pt, processo 08P3269:
«1 - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a Iª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. ...».
Voltando ao caso em apreço e concretamente à factualidade posta em crise, verifica-se que a recorrente põe em causa a leitura e avaliação que o Tribunal a quo fez da prova produzida, afirmando que esta obrigava a decisão diferente da proferida.
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No caso, como se disse, a assistente cumpre os pressupostos da reapreciação como já se referiu supra. Procedeu-se à audição da prova indicada, depois de se ter analisado cuidadosamente as transcrições constantes da motivação de facto, as quais confirmámos na totalidade, tendo-se ainda avaliado toda a prova produzida, dentro e ao abrigo do já citado art.º 412.º, n.º 6 do CPP.
Da análise do interrogatório levado a cabo no decurso da audiência, por parte do julgador, verificámos que as perguntas que foram colocadas à assistente e às testemunhas e os comentários, observações e asserções às respostas que iam sendo dadas traduzem entendimentos, visões, crenças e estereótipos, tendo-se procedido à audição de toda a prova gravada, inclusivamente as declarações da assistente (art.º 412.º, n.º 6 CPP), violando inclusivamente o comando consagrado no art.º 138.º CPP.
Desta audição resulta evidente a existência de pré juízos, entendimentos, valorações, estereótipos e crenças[6] sobre a natureza e comportamento da mulher (mentirosa), valoração de comportamentos por parte da mulher e de empregados, justificadores do modo de agir do arguido, e inclusivamente desvalorização senão mesmo culpabilização da vítima do comportamento do arguido descrito pela ofendida/assistente porquanto tal comportamento já era do seu conhecimento antes do casamento.
Na verdade, da mera audição da prova gravada podemos constatar:
A assistente inicia as suas declarações afirmando que as cenas de ciúmes por parte do arguido começaram pouco depois de iniciarem o relacionamento; sendo que uma das cenas começou aquando da celebração do campeonato europeu de futebol, em que Portugal foi campeão, em que fez uma cena de ciúmes relacionada com o seu melhor amigo.
Ele ia e andava sempre com ela, que era raro conseguir sair de casa sozinha
Situou a primeira vez em que o mesmo foi agressivo fisicamente quando já estavam a viver juntos. Terá sido em 2017. Outono.
Descreveu a situação, revelando não esquecer o pânico que sentiu, embora não se lembrando com exatidão do que ele lhe dizia durante o acontecimento.
Mais afirmou que o arguido a insultava frequentemente, embora não utilizasse expressões ofensivas que lhe foram apresentadas, antes o fazia rebaixando-a, dizendo que ela não estava boa da cabeça e que precisava de se tratar.
Que ele ia e foi dizendo que não queria que ela estivesse com esta ou com aquela pessoa e ela foi-se isolando, além de não aprovar que a mesma usasse certas roupas.
Ao minuto11.30, o juiz pergunta à assistente: - Isso foi logo no início? Ainda assim a senhora casou com ele?
Esta observação determinou uma imediata justificação por parte da assistente, que tentou explicar porque aceitou e casou.
Minuto 14 – juiz e fez isso porquê?
A ofendida lá explicou porque razão aceitou afirmando de seguida que o arguido lhe pediu uma lista das pessoas com quem tinha estado.
Seguidamente o juiz referiu, ao minuto 20.08: A senhora fazia como fazem as mulheres mentia
Ofendida - Eu não costumo mentir.
Juiz Na altura não lhe pareceu uma hipótese?
Minuto 20.54 – tudo isso são factos são anteriores à data do vosso casamento …
Minuto 21.04 – Juiz: (…) porque é que a senhora casou com este individuo?
Minuto 21.09 – Ofendida: Porque estava apaixonada, o que é que quer que lhe diga?
Minuto 21.12 – Juiz (com alteração de voz) Ó minha senhora, a paixão não desculpa tudo! A senhora é um ser racional…. É um ser racional, Não custa nada tentar perceber se antes do casamento ele se comporta ele se porta assim, depois do casamento, ainda pra mais…
Ofendida - Eu estou aqui para dizer a verdade
Juiz - Deixe lá a verdade. A verdade é comigo. A verdade é comigo. Ainda nem sequer estamos no princípio. A verdade é comigo.
Ofendida - Ok
Minuto 21.24- Juiz: Eu quero saber porque é que a senhora… Decidiu, escolheu este individuo Juiz - Nada disto me faz sentido…
(…) e já agora divorciou-se porquê?
Minuto 49.10 - Ofendida - Volatilidade emocional dele, a forma como ele muito rapidamente fica furioso
Minuto 49.17 Juiz: - Mas ó minha senhora, isso já vinha do passado A volatilidade emocional dele já vinha do passado.
Ofendida – E é no passado que eu me posso para fundamentar para achar se aquela pessoa era ou não perigosa para mim.
Minuto 49.27 Juiz – já o era quando a senhora casou com ele
Minuto 49.38 – ofendida - E eu na altura acreditava que com amor podíamos ir lá e resolver a situação. O B era suposto ter acompanhamento psicológico, por causa de um acidente de viação
Minuto 58.36, Juiz: – Ó minha senhora, a senhora está a responder a instâncias do seu advogado Que está a trata-la, nem podia ser de outra forma, que eu não deixava Não precisa de estar com esses nervos todos, porque
Ofendida – é uma questão que mexe comigo. Juiz – Ó minha senhora, para que as suas declarações sejam válidas e entendidas a senhora tem que se acalmar…
(…)
Juiz - Ó minha senhora, isso que acabou de dizer não é verdade, porque não há ninguém que em que ele a criticasse, as duas coisas podem coincidir, a senhora não pode dizer que ele a criticava pela roupa e depois dizer que não se vestia assim.
Ofendida – e deixei de me vestir assim.
Juiz A senhora também disse que se foi afastando da sua família e isso também não é verdade. A senhora disse há pouco que o seu cunhado, a sua mãe foi viver para a sua casa.
(…)
Minuto -1.04.22 Juiz - O B não foi o seu 1.º relacionamento
Ofendida - Não.
Juiz - Não querendo ser, vou ter que lhe perguntar, anteriormente que outros relacionamentos amorosos é que tinha tido, não quero que me faça uma lista mas quero saber se na sua vida
(…)
Juiz (referindo-se ao primeiro casamento da assistente) - Quanto tempo é que durou o casamento?
Ofendida - Durou cerca de 8 anos.
Juiz- Porque é que terminou?
(…)
1.06.30 juiz - Esse relacionamento com o B foi o que mais durou…
(…)
Ofendida afirmou que a maior parte das despesas eram pagas por si, ao que o juiz retorquiu e depois perguntou:
1.20.18. juiz Atirava-lhe isso à cara
(…)
Ofendida - Peço desculpa. O que é que perguntou
(…)
Juiz - Nas discussões com o B se lhe atirava isso à cara?
(…) Concordava com esta situação
Ofendida refere que tentou que tentou que ele arranjasse trabalho.
Juiz - Não obstante isso falhava, falhou. Não obstante dizer que tentou …
(…)
Ofendida: Tinha muito medo do B, falava com ele com todas as meiguices e com todos os cuidados com medo do que é que as coisas iam despoletar, há que perceber isso….
1.23.29 – Quero que este exercício comigo, o vosso (…)
Ofendida - Ninguém se sente mais burra no final disto que eu
*
O modo de interrogar e confrontar é igualmente visível e patente no decurso dos interrogatórios das testemunhas, como podemos constatar da mera audição do depoimento da testemunha M, indicado pela recorrente, nomeada e concretamente quando o mesmo descreve um episódio em que um empregado de mesa pediu para ver a tatuagem que a assistente tem num dos braços, situação que terá desagradado ao arguido, tendo o interrogatório centrando-se na análise da adequação ou não da atuação do empregado de mesa, no que a testemunha achava desta atuação, ao invés de se tentar perceber que tipo de atos, em que termos (se em público, reações, etc. do arguido). Ouça-se a gravação do depoimento desta testemunha, mais exatamente no que a este particular concerne a partir do minuto 8. [00:07:11.93] - Testemunha Eu não tenho dúvidas, mas é só a minha impressão, é só a minha avaliação, uma pressão enorme por parte do B sobre a D, como é que ela há de comportar, o que é que ela há a dizer, o que é que é correto, o que é que não é correto, o que é que ele aceita, o que é que ele não aceita, portanto, um domínio muito grande, que eu acho, na minha impressão, isto é normal entre relações, há sempre talvez uma pessoa que é um bocadinho mais dominante, mas neste caso era muito mais do que a média das pessoas. [00:07:43.25] - Juiz Um exemplo? Que possa ajudar a concretizar isso? [00:07:47.76] - Testemunha Um episódio que ela me contou foi que um empregado de mesa pegou no braço da D para ver a tatuagem e que o B zangou-se e exigiu que eles fossem logo embora do restaurante. [00:08:01.36] - Juiz Um empregado de mesa pegou no braço de uma cliente para ver a tatuagem? [00:08:07.33] - Testemunha Perguntou à D se podia ver a tatuagem. A D disse que sim. E o B, isto foi o que a D me relatou, zangou-se e foram-se embora. Juiz E o senhor acha disso o quê? Testemunha O quê que eu acho disso? Bem, tudo aquilo que eu disse, que é uma forma de controle do domínio da outra pessoa, seja mais do que a média. [00:08:37.71] - Juiz Isso é mais do que a média? Um empregado de mesa pergunta a uma cliente se pode ver essa tatuagem e a cliente mostra ou está disposta a mostrar a tatuagem e a pessoa que está com ela reage mal e diz que se vamos embora daqui, o senhor acha isso mal? [00:08:55.35] - Testemunha Pronto, eu pessoalmente acho. Não era capaz de fazer isso alguém, nem aceitaria que me fizessem. [00:09:00.66] - Juiz Mas eu acho que é correto a atitude do empregado de mesa? [00:09:05.57] - Testemunha Não estou cá para... Só estava-lhe a relatar este tipo de episódio. [00:09:10.51] - Juiz Eu estou a perceber, mas eu preciso de apurar a sua sensibilidade. Se isso para si é diferente, é abstruso, etc. Eu entendo que abstruso é a atitude do empregado de mesa.
*
[00:09:24.61] - Testemunha Posso-lhe dar outro exemplo, se quiser, mas não vou estar aqui a dar 20 exemplos. Mas há um outro exemplo, que é a D veste-se, de facto, bem para um trabalho que ela tem, e ela depois vem-me relatar que o B foi-se a ferir-se com ela, que não deve vestir-se assim, nem para trabalhar, nem para deixar trabalhar. Este tipo de episódio. Juiz Mas isto… Nós já ouvimos a D… Mas eu só quero é perceber-me, para aferir o seu grau de sensibilidade. Do primeiro episódio que me relatou, se acha correta a atitude do empregado de mesa?
*
Este modo de inquirir, e a influência de bias, pré juízos, crenças e estereótipos, ressaltam igualmente no interrogatório da testemunha A, como aliás resulta da transcrição realizada pela assistente: [00:12:28.73] - Testemunha Sim, aparentava ser cuidadoso. Às vezes que nós estávamos juntos, era quase sempre em momentos de... Sim, quando estava a trabalhar com a D e que ele constantemente estava presente. Ia entregá-la, ia buscá-la e ela nunca tinha momento sozinha. [00:12:46.91] - Advogada Sabe-se esse ir levar a D e depois trazê-la, sabe-se se era à pedido da D? [00:12:54.00] - Testemunha Não, não era, tenho quase a certeza que não. [00:12:56.59] - Advogada Tem a certeza? [00:12:57.83] - Testemunha Desculpa, se calhar não tenho quase a certeza, como é óbvio, mas imagino que não.. [00:13:02.57] – Juiz - Porque que é que diz que imagina? [00:13:07.47] - Testemunha Porque a D sempre foi uma mulher muito independente e autónoma e ela fazia isso tudo sempre sozinha, por isso é que eu imagino. [00:13:12.98] – Juiz - Mas há uma vez se notou... [00:13:17.75] - Testemunha Ela não precisava, ela tinha o carro dela, não precisava da ajuda dele. [00:13:20.72] – Juiz - Mas pronto, mas eu não vi, não sei se as pessoas... se agora o excesso da amabilidade também fosse traduzido numa situação de controle. [00:13:29.29] - Testemunha Sim, se calhar pode-se. [00:13:30.53] – Juiz - Pois, mas é isso que a senhora está a pensar, não é? [00:13:31.62] - Testemunha Somando a outras coisas, sim. [00:13:35.97] – Juiz - Mas as outras coisas, tem que dizer quais? É que eu não tenho este momento (…). [00:13:39.47] Foi o que eu lhe disse, sr. Juiz. Foi o que eu lhe disse, o facto de controlar o que ela vestia, não a deixar falar com os amigos, com o ex-marido. [00:13:47.12] - Juiz Sim, eu isso eu já percebi. Já disse isso. Há pouco eu disse que ele estava constantemente, e fez um sinal de abrir aspas, constantemente a ir, estar com ela nas atividades da… Porque é que abriu aspas aí constantemente, porque é que fez essa expressão? Abriu aspas. [00:14:07.32] - Testemunha Só não estava quando estávamos as duas a trabalhar. Porque todos os outros momentos estava presente. Quando eu ia levar... Desde que eles casaram, principalmente, eu nunca mais tive com a D sozinha. Antigamente estava. Juiz - O que eu pergunto é que estranheza é que as pessoas notam nisso? Testemunha - Eu não estou aqui como psicóloga, mas há alguns traços de psicopatia que levam que as pessoas executem este tipo de atos. Mas não estou aqui como psicóloga, portanto tem que falar com os psicólogos ou com pessoas entendidas nesse sentido para compreender este comportamento. Juiz - Não está como psicóloga mas é a sua profissão. É a sua profissão. (…) Não posso ... Por isso é que eu estou a fazer esta pergunta assim. Porque isso pode ser uma forma de controlo? De ser agradável, de ser amável, pode esconder aparentemente uma capa de querer controlar o outro, dando-lhe aquilo que ele quer ou precisa ou necessita? [00:15:11.34] – Testemunha - Ou que ela acha que precisa. Ou que acha que esta é a forma de amar, o controle. Mas isso retira liberdade às pessoas. Mas não vamos estar aqui, se calhar, a ter uma discussão sobre psicopatologia, porque acho que cada macaco tem o seu galho. E este não é o meu papel aqui. [00:15:26.75] – Juiz - Há pessoas que também não querem a liberdade. [00:15:30.88] - Testemunha Não percebi. [00:15:31.12] – Juiz - Dizem que há pessoas que também não querem essa liberdade. [00:15:34.42] – Testemunha - Custa-me a crer, se não a D não se tinha separado. [00:15:36.45] – Juiz - Então ela separou-se porquê? [00:15:39.21] – Testemunha - Porque queria voltar a ter segurança e a liberdade e poder voltar a estar feliz.” (…) [00:19:03.77] – Juiz - Isso aí também parece que já temos… todos são unânimes. Eu sei que havia uma D antes e uma D após o relacionamento dela com o B. E a D após era uma pessoa mais apagada, mais cinzenta. Testemunha Nervosa… Juiz - Se a senhora consegue fazer causa e efeito direto de relacionamento com a D com o B, como outras pessoas aqui fizeram, ou se também se depende da soma das circunstâncias da vida, nomeadamente como o falecimento da mãe… [00:19:40.46] - Testemunha Antes do falecimento da mãe, a D já estava diferente na relação com o B. Já estava mais apagada. Sim, sim, sim. [00:19:57.79] - Juiz Pronto. E esse apagamento? Derivou do quê? [00:20:03.03] - Testemunha Desta relação. [00:20:03.83] – Juiz - Primeiro, sim, mas depois era uma opção dela. [00:20:08.47] - Testemunha Claro, mas as pessoas, quando escolhemos beber água, nunca sabemos se está lá vodka dentro, porque é transparente, não é? Portanto, ela pode ter ido ao engano. Foi decisão dela, na confiança dela, no amor que ela tinha por esta pessoa, que ao longo do tempo foi descobrindo que não era a pessoa que ela queria ao lado dela. E que foi constatando vários indícios que levaram a tomar esta decisão, esta coragem, de terminar a relação. [00:20:30.35] - Juiz Mas a senhora alguma vez a aconselhou a participar da violência doméstica, nomeadamente? Testemunha Não. [00:20:46.79] – Juiz Por que é que não o fez? Testemunha Não me ocorreu na altura... Não me ocorreu na altura. Disse-lhe só para eu ter cuidado e que para me ligar. Porque achei que, efetivamente, a forma como ela me estava a transmitir as coisas eram bastante perigosas.”
*
Da audição da prova, exemplificativamente transcrita para o tratamento desta questão, concluímos, como já adiantámos supra, que as perguntas, apartes, comentários[7] evidenciam bias, prejuízos, estereótipos e crenças sobre a mulher, relacionamento, paixão e racionalidade, entendimentos pessoais sobre o comportamento social, adequado e não adequado numa relação marcam não os interrogatórios e vêm depois a afetar a valoração da prova. Além disso, a circunstância de a ofendida ter conhecimento do feitio do arguido em data anterior ao casamento surge na inquirição da mesma como uma sugestão de aceitação da mesma dessa realidade senão mesmo uma culpabilização da mesma pelos factos que relatava.
Estas convicções pessoais afetam necessariamente o julgamento de facto realizado uma vez que inconscientemente enviesam a avaliação da prova, o entendimento do relato dos factos, e consequentemente a fixação da matéria provada e não provada. É a própria independência interna ou imparcialidade do juiz que está afetada[8][9]. Não são apenas as relações de família, amizade, decisão anterior que afetam ou são suscetíveis de afetar o julgamento, julgamento que é sabido deve e tem que ser realizado por pessoa independente e imparcial, a todos os níveis. Os princípios de vida, convicções pessoais, crenças, modus vivendi são suscetíveis de influenciar o olhar que temos do mundo e por conseguinte a nossa avalição do que nos rodeia. O juiz deve, tem de se libertar de tudo aquilo que possa afetar o seu olhar e avaliação da prova. Só um julgamento imparcial obedece ao imperativo axiológico de natureza imanente derivada da natureza e dignidade da pessoa humana subjacente ao direito a um processo justo e equitativo[10].
Como de forma sublime se mostra tratado no Acórdão desta Relação de Évora, de 01-27-2009, Proc. n.º 2909/08-1, O artigo 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Direito a um processo equitativo) estabelece garantias das quais ressalta a 'imparcialidade', enquanto elemento 'constitutivo e essencial' da noção de Tribunal. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a desenvolver jurisprudência concretizadora do conceito de 'tribunal imparcial' que assenta numa dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais[11], sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário. Numa perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima. Também o Tribunal Constitucional vem a reconhecer aquelas vertentes do conceito 'imparcialidade', na consagração constitucional do princípio do acusatório e do princípio do processo justo e equitativo. Na perspectiva objectiva importa fazer apelo a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao 'homem médio', desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto,
Estes pressupostos ou requisitos relativos à pessoa do juiz, seus pensamentos, convicções ou crenças afetam não apenas a imparcialidade do juiz, pois determinam necessariamente o julgamento de facto, colocam em causa o sistema judicial pela imagem de parcialidade que transmitem (TEDH, Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002).
Nem sempre os bias, preconceitos ou pré juízos são patentes e evidentes na avaliação da prova, não obstante enviesarem a avaliação da prova, ou seja, determinam que a prova seja valorada de forma enviesada porque determinada por preconceitos e prejuízos. No caso eles são evidentes no momento da produção de prova como são prova disto mesmo o tipo de perguntas, as afirmações e até a desvalorização ou desacreditação das respostas e explicações oferecidas, denotando desde logo, inclusivamente a (i)relevância que o que está a ser afirmado deverá merecer.
Várias decisões têm sido alvo análise pelo TEDH que concluiu como violadoras do direito a um processo justo e equitativo e do direito à não discriminação, decorrentes de julgamentos baseados/determinados por bias e preconceitos determinantes da decisão, patentes na valoração dos factos e sua qualificação jurídica. São exemplo os Acórdãos Salgueiro Mouta v. Portugal, 21/12/1999 e Carvalho Pinto de Sousa Morais v. Portugal, 25/10/2017.
Neste último, onde se conclui pela existência de discriminação fundada no género, afirma-se existe uma grande tentação de acreditar que todos estes estereótipos sociais milenares, ideias e práticas persistentes são hoje em dia apenas “águas passadas”, pelo menos na Europa. Infelizmente, não são. Mesmo na Europa do século XXI, podem surgir preconceitos antigos (tradução nossa).
E ainda que 54. Na opinião do Tribunal, estas considerações mostram os preconceitos que prevalecem entre o poder judicial em Portugal, como salientado no relatório de 29 de junho de 2015 do Relator Especial do Conselho dos Direitos Humanos da ONU sobre a Independência dos Juízes e Advogados (ver parágrafo 28 acima) e nas Observações Finais da CEDAW sobre a necessidade de o Estado requerido resolver o problema dos estereótipos discriminatórios baseados no género (ver parágrafo 26 acima). Confirmam também as observações e preocupações expressas pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa relativamente ao sexismo prevalecente nas instituições judiciais no seu relatório de Novembro de 2006 sobre a violência doméstica (ver parágrafo 29 acima) (tradução nossa).
Como podemos compreender e aprender no Manual de legislação europeia sobre o acesso à justiça, Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia e Conselho da Europa, 2016, página 44/45 O direito da UE seguiu consistentemente os princípios estabelecidos pela jurisprudência do TEDH em relação aos dois aspetos de imparcialidade exigidos: imparcialidade subjetiva e objetiva. A independência é considerada um requisito prévio de imparcialidade e são necessárias regras adequadas no que diz respeito à composição de uma instância e ao estatuto dos seus membros.100[12] O TJUE estabelece o teste de imparcialidade do seguinte modo: (i) o tribunal deve ser subjetivamente imparcial, isto é, nenhum dos seus membros deve manifestar ideias preconcebidas ou um juízo antecipado pessoal, presumindo-se a imparcialidade pessoal até prova em contrário; e (ii) o tribunal deve ser objetivamente imparcial, isto é, oferecer garantias suficientes para excluir a este respeito todas as dúvidas legítimas.
Os bias e prejudice ou preconceitos foram e são objeto de considerações e recomendações por parte do Conselho da Europa, como de forma expressa consta da Opinion no. 3 of the Consultative Council of European Judges (CCJE) to the attention of the Committee of Ministers of the Council of Europe on the principles and rules governing judges’ professional conduct, in particular ethics, incompatible behaviour and impartiality, do Consultative Council of European Judges (CCJE)[13]: a. Imparcialidade e conduta dos juízes no exercício das suas funções judiciais 22.º A confiança e o respeito do público pelo poder judicial são as garantias da eficácia do sistema judicial: a conduta dos juízes nas suas actividades profissionais é compreensivelmente vista pelos membros do público como essencial para a credibilidade dos tribunais. 23.º Os juízes devem, por isso, desempenhar as suas funções sem qualquer favoritismo, demonstração de preconceito ou parcialidade. Não devem tomar as suas decisões tendo em consideração nada que esteja fora da aplicação das regras do direito. Enquanto estiverem a lidar com um caso ou possam ser obrigados a fazê-lo, não devem fazer conscientemente quaisquer observações que possam razoavelmente sugerir algum grau de pré-julgamento na resolução do litígio ou que possam influenciar a justiça do processo. Deverão demonstrar a consideração devida a todas as pessoas (partes, testemunhas, advogados, por exemplo) sem qualquer distinção baseada em motivos ilícitos ou incompatíveis com o adequado desempenho das suas funções. Deverão ainda garantir que a sua competência profissional é evidente no desempenho das suas funções. 24.º Os juízes devem também desempenhar as suas funções com o devido respeito pelo princípio da igualdade de tratamento das partes, evitando qualquer preconceito e qualquer discriminação, mantendo um equilíbrio entre as partes e assegurando que cada uma receba um julgamento justo[14].
O que é reforçado nas conclusões constantes do 3°) Conclusões sobre as normas de conduta 49.º O CCJE entende que: (…) iv) devem desempenhar as suas funções sem favoritismo e sem preconceitos ou preconceitos reais ou aparentes, v) as suas decisões devem ser tomadas tendo em conta todas as considerações relevantes para a aplicação das normas jurídicas relevantes e excluindo da conta todas as considerações imateriais, vi) devem demonstrar a contrapartida devida a todas as pessoas que participam no processo judicial ou são afetadas por esse processo, vii) devem cumprir as suas funções com o devido respeito pela igualdade de tratamento das partes, evitando qualquer preconceito e qualquer discriminação, mantendo um equilíbrio entre as partes e garantindo a cada uma um julgamento justo,
Vertendo ao nosso caso, os comentários e juízos de valor constantes das questões colocadas à ofendida/assistente determinaram respostas reveladoras de culpabilização pelos factos que relatava, tendo-se apelidado de “estúpida” e que se “sentia burra”, perante comentários, como: mas isso foi antes do casamento, porque é que casou com ele… além de ter sido afirmado e depois colocado em jeito de questão mentiu como as mulheres fazem.
Os bias, prejudice e preconceitos marcam também o interrogatório das testemunhas, quer no modo como são interrogadas, quer o conteúdo do que é perguntado e bem assim, de forma evidente, nos apartes e opiniões que são transmitidas.
Estes preconceitos e bias comprometeram a avaliação probatória da prova testemunhal produzida o que, não apenas resulta, como já demonstramos da gravação referida, audível e confirmável através do sistema Citius, mas também no próprio texto da decisão no segmento respeitante às declarações assistente: - Por outro lado, as declarações prestadas pela assistente, D, apenas relevaram para apurar o que se deixou vertido em 2.1.supra, sendo que, quanto ao mais, tal depoimento não se nos afigurou coerente, credível e/ou mesmo verosímil[15], pelo que, não foi atendido. Com efeito, nessa parte, tais declarações não foram corroboradas por qualquer outro meio de prova (pericial, documental ou testemunhal) e por desconformes com as regras da experiência comum, da lógica e das demais circunstâncias do caso, aquelas não permitiram ultrapassar o crivo do in dubio pro reo infra melhor referenciado (vide, 2.3.2 infra). Acrescente-se, ainda, no que tange às alegadas agressões físicas pela assistente ditas sofridas às mãos do arguido, o pela mesma, igualmente, afirmado, que não necessitou de receber qualquer assistência médica e/ou hospitalar e que eventuais sinais e/ou marcas daquelas não foram por ninguém detectadas (conf. o depoimento prestado em julgamento por H (cunhado da assistente), infra melhor analisado. Por outro lado, à semelhança do pela assistente alegado em audiência de discussão e julgamento (mas não comprovado) saliente-se que as declarações por aquela prestadas careceram para este Tribunal de actos/factos que exteriorizassem a alegada conduta do arguido que in casu não se evidenciaram.
Ora, como se vê da leitura atenta da fundamentação de facto transcrita é afirmado que depoimento não se nos afigurou coerente, credível e/ou mesmo verosímil, sem que se explique porquê, e relativamente a que factos concretos relatados pela assistente, o que tendo em conta o modo como o interrogatório foi dirigido e as respostas que foram sendo dadas pela assistente, nos convenceu que esta conclusão se deve aos enviesamentos patentes nas perguntas, apartes e comentários.
Perante isto cumpre tomar posição sobre a consequência jurídica de um julgamento enviesado por bias, pre conceitos, pre juízos, convicções pessoais e estereótipos. Anulação da audiência julgamento com repetição da prova ou julgamento de facto com base na prova gravada e demais elementos probatórios existentes nos autos?
Ouvida toda a prova, ao abrigo do que dispõe o art.º 412.º, n.º 6 do CPP, resulta claro que os apartes e comentários não afetaram as declarações e depoimentos, já que muitos deles são efetuados na sequência das respostas às questões colocadas, questões que não obstante determinadas por esse bias, pre conceitos, pre juízos, convicções pessoais e estereótipos não afetaram as respostas, as quais se apresentam até reforçadas, como é de resto audível e percetível pelo tom de voz usado pela assistente e testemunhas.
O tribunal conclui que não existe qualquer prova que o arguido tenha agredido física ou psicologicamente a assistente, o que até se compreende tendo em conta o tipo de inquirição que realizou à assistente demonstrativos dos bias e preconceitos que determinaram de forma direta e necessária, erro de perceção por parte do tribunal patente na desvalorização do que foi é relatado e suportado de forma implícita é certo pelo relatado pelas restantes testemunhas, avaliadas de acordo com as regras e conhecimento científico já referidos.
É preciso ter em mente que “uma grande parte das vítimas não recorre a instituições públicas de ajuda, mas sim de forma mais regular aos amigos, familiares e líderes religiosos (Walker, 1986)[16]”.
Por outro lado como é evidente nem todas as agressões físicas deixam marcas físicas nem exigem tratamento hospitalar, sendo igualmente um dado irrefutável que a assistente referiu que as agressões, que nem qualifica como tal, se limitaram a encontrões contra a parede e imobilização da mesma contra parede tendo o arguido usado um dos seus braços para o efeito.
Acresce que é sabido que a maioria das vítimas de violência doméstica apontam a vergonha como inibidor para procurarem ajuda, para saírem de casa e até para irem ao hospital, sendo certo ainda que quando a este último recorrem avançam, a maioria das vezes, com justificações diversas[17] como quedas, etc., para as lesões que apresentam, o que, a não ser que as marcas sejam incompatíveis com as causas avançadas pode camuflar e esconder o problema[18].
Pelo exposto, a sentença recorrida, para além de enfermar de erro de julgamento da matéria de facto solucionável através do mecanismo de que a recorrente lançou mão, previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, enferma também do erro notório na apreciação da prova, incidente deste logo na apreciação realizada sobre a credibilidade que lhe não mereceram a assistente e testemunhas da acusação e pedido cível, quando nem tão pouco existiu qualquer prova produzida pelo arguido que determinasse avaliar uma outra versão dos factos.
Na base deste erro é patente a desvalorização do fenómeno da violência doméstica, pelo menos de certo modo de a praticar, e bem assim a conceção da vítima e do modo de agir da pessoa da vítima, especialmente quando não corresponde a modelos ditos normais ou racionais, aliado ao facto de uma certa crença segundo a qual, como já sabia como o/a companheiro/marido era antes do casamento/vida em comum ou não é verdade ou então aceitou e gosta (tendo sido inclusivamente afirmado em audiência pelo julgador que “há pessoas que não querem liberdade”).
O crime de violência doméstica, objeto de muitos estudos sociológicos, psicológicos, clínicos, comportamentais, e ainda psiquiátricos, pode dizer-se que se traduz e desenvolve-se num ciclo composto por três fases:
1. aumento de tensão: as tensões acumuladas no quotidiano, as injúrias e as ameaças tecidas pelo agressor, criam, na vítima, uma sensação de perigo eminente.
2. ataque violento: o agressor maltrata física e psicologicamente a vítima; estes maus-tratos tendem a escalar na sua frequência e intensidade.
3. lua-de-mel: o agressor envolve agora a vítima de carinho e atenções, desculpando-se pelas agressões e prometendo mudar (nunca mais voltará a exercer violência).
As fases 1 e 2 são geralmente desenvolvidas e levadas a cabo no recato do lar, embora possam ter episódios públicos, gera sentimentos dúbios na pessoa das vítimas e seus familiares, a ponto de ser considerado um crime que lesa a própria dignidade humana, provocando muitas vezes nas vítimas sentimentos de culpa e geralmente uma diminuição da autoestima, provocando sentimentos de insegurança quer a nível pessoal quer profissional o que determina sentimentos de desejabilidade social[19].
O conhecimento sobre o fenómeno da Violência Doméstica apresenta-se necessário, senão mesmo essencial, prévio à realização de qualquer julgamento sobre a respetiva temática, quer para a perceção dos estados de hesitação da vítima, relato dos factos quer sobre a pessoa do agressor, pessoa geralmente bem falante, envolvente, sedutor e com boa imagem social, pese embora se caracterize por uma personalidade narcísica, insegura e com dificuldades de aceitação do que considera os seus ideais de vida.
Não é possível, em nosso entender, analisar e decidir a impugnação realizada com fundamento no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 sem nos socorrermos das regras da experiência, da lógica e da normalidade da vida. Assim, se alguns factos podem considerar-se provados, como pugnado pela recorrente, após análise e valoração da prova que indica nos termos exigidos pela citada norma legal, outros têm que ser sujeitos autonomamente à valoração das regras da experiência e da lógica desde logo porque não está em causa o que a testemunha ou declarante afirmou mas sim se deve considerar-se demonstrado com fundamento em tais afirmações avaliadas de acordo com as regras da experiência e a prova produzida no seu conjunto.
Aliás, dito de outro modo, e adiantando, a decisão enferma de ambos; o erro de julgamento, de perceção decorrente dos bias e preconceitos subjacentes ao modo como realizou a produção de prova e que determinou que se fizesse constar e se atribuísse na sentença à prova produzida conteúdo mais limitado do que o que resulta da audição dos depoimentos indicados no recurso, do mesmo modo que determinou que afirmações fossem retiradas do contexto em que foram produzidas, provocando uma perceção errada e viciando a análise crítica da prova, a par de uma avaliação e valoração da prova que a nosso ver se mostra em total oposição às regras da experiência, da razão, da lógica e do conhecimento científico.
Face a todo o exposto, apurado o erro de julgamento, determinado por bias e preconceitos que enviesaram a análise da prova, julga-se verificada a existência de erro de julgamento.
Em obediência ao que se dispõe no art.º 426.º do CPP, que claramente acolhe o princípio da economia processual e ainda previne a contaminação de posterior produção de prova, por repetição, após ter sido conhecida uma decisão sobre a mesma, e porque é claro e evidente que a produção da prova por declarações e testemunhal não se mostra afetada, apenas o sua avaliação, sendo possível a realização de julgamento de factos afetados pelo erro detetado, decide-se não determinar o reenvio para novo julgamento e JULGAM-SE PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:
1. O arguido B viveu em comunhão de leito, mesa e habitação com a ora assistente, D a partir do ano de 2016.
2. O arguido casou com D no dia 08 de agosto de 2018 e fixaram residência na Rua (…..).
3. O arguido B e D divorciaram-se no dia 02 de novembro de 2022.
4. Durante a relação que manteve com a ora assistente, o arguido B acompanhava a mesma para todo o lado, inclusive, para o seu trabalho que não permitisse que esta convivesse com outras pessoas, para além da sua família e do próprio arguido.
5. Por vezes, o arguido ia a reuniões da empresa de D, de nome «….», e deslocava-se aos locais dos eventos que a mesma organizava, transportando o material para o interior desses locais, sendo que, o arguido encontrava-se desempregado e não era trabalhador da empresa «…..».
6. O arguido aproveitava estas deslocações e ajudas que participações que apresentava como ajuda para ver com quem a assistente falava, convivia com o objetivo e intuito de controlar fisicamente os movimentos de D, assim como as pessoas com quem a mesma se relacionava, agindo motivado por ciúmes.
7. Em data não concretamente apurada, no interior do ginásio «….» dos Olivais, motivado por ciúmes, o arguido se tivesse dirigido à assistente as seguintes expressões, num tom de voz grave: «tu achas que eu não te vi a olhar para aquele gajo de uma ponta à outra?» e/ou que tal tivesse causado medo e inquietação na assistente.
8. Em data não concretamente determinada, quando se deslocavam de carro para uma clínica veterinária para assistir à eutanásia da gata de D e do seu ex-marido, onde este também iria estar, B dirigiu à mesma as seguintes expressões: «e tu agora vais estar sozinha numa sala com aquele gajo, vão lá estar os dois a fazer o quê, os dois fechados?», tendo em seguida começado a realizar uma condução errática.
9. Em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a D, num tom de voz grave, «isso não é roupa para o teu tamanho», «isso não é roupa para a tua idade» e «mulher minha não se veste assim», pois este não queria que a mesma vestisse determinadas roupas, o que ocorreu um número indeterminado de vezes.
10. Em datas não concretamente apuradas, o arguido dirigiu a D as seguintes expressões: «não estás boa da cabeça, estás doente, precisas de te tratar» e «mulher minha não se comporta assim», o que ocorreu um número indeterminado de vezes.
11. Era a ora assistente, D, quem, em resultado da atividade comercial por si desenvolvida, provia pelo sustento de B e do filho do mesmo, G.
12. Em data não concretamente apurada, em novembro de 2017, no interior da habitação em que residiam nesse momento, sita em Mafra, no decorrer de uma discussão, o arguido empurrou a assistente D contra a parede do corredor da casa imobilizando-a, utilizando força física, colocando o seu antebraço sobre o peito da mesma, causando dores e sofrimento.
13. Em data não concretamente apurada, em 2017, no interior do parque de estacionamento do ginásio que frequentavam, o arguido disse à assistente D, num tom de voz grave, «eu quero saber com que pessoas é que tu estiveste desde que começaste a namorar» e/ou que tivesse obrigado a mesma a dizer as pessoas com quem tinha tido relações sexuais anteriormente.
14. Em data não concretamente apurada, em 2020, no interior da habitação em que residiam nesse momento, sita na Rua (….), no decorrer de uma discussão, o arguido B agarrou o braço de D com força causando-lhe dores e sofrimento.
15. Pelo menos durante uma discussão que o arguido teve com D, o mesmo desferiu murros com força nas paredes da casa, chegando a ficar com sangue nas mãos, causando medo e inquietação na assistente.
16. A determinada altura, a assistente D apresentou sintomatologia enquadrada como alteração de humor marcada presente num quadro depressivo e de ansiedade elevada com ataques de pânico, sendo ainda sugestivo de enquadramento com as perturbações relacionadas com trauma e fatores de stress.
17. O referido no facto anterior resultou diretamente das condutas do arguido, tendo-se agravado com a morte da mãe da assistente
18. O arguido sabia que se encontrava casado com D, bem sabendo que lhe devia respeito e consideração.
19. Em tudo o arguido, o arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente.
20. O arguido tivesse agido com o propósito concretizado de molestar o corpo e prejudicar a saúde psíquica e emocional da assistente D.
21. O arguido ao agir da forma descrita, fê-lo com o propósito concretizado de coartar a liberdade de movimentos e incutir receio à assistente, amedrontando-a, perturbando o seu dia-a-dia, causando receio de que pudesse efetivamente atentar contra a sua integridade física, afetando a sua dignidade enquanto pessoa humana, no seu equilíbrio social e psico-emocional e no seu bem-estar físico, criando um ambiente de medo, tendo-lhe, ainda, provocado dores, angústia e sofrimento permanente, sabendo que o seu modo de atuar causava tais efeitos na pessoa da assistente, era proibida e punida por lei penal.
22. As apuradas condutas pelo arguido contra a assistente/demandante civil, acima descritas, geraram na mesma sentimentos de insegurança e temor, fazendo com que a mesma vivesse a sua vida em sobressaltada, perturbada e receosa que o demandado civil pudesse vir a fazer contra a sua pessoa, temendo pelo menos pela sua integridade física.
23. O arguido/demandado civil agiu com o propósito concretizado de maltratar corporal e psicologicamente a demandante civil, na altura sua mulher, humilhando-a, fazendo que suportasse agressões físicas e psicológicas, o que lhe provocou um profundo receio pela sua segurança e integridade física.
24. A referida atuação do arguido deixou a assistente/demandante civil num estado físico e emocional especialmente frágil, vivendo em permanente sobressalto, deixando a demandante civil deprimida e entristecida e perturbada no seu equilíbrio social, psíquico e emocional.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Que o arguido tivesse conduzido o seu veículo automóvel em velocidade excessiva para os limites da via e/ou que tivesse conduzido o mesmo encostando-se aos carros da frente e/ou que apertasse as curvas e/ou que tivesse provocado medo e inquietação na assistente e/ou que esta tivesse aberto a porta e/ou que a mesma tivesse saído com o carro em andamento.
Que a assistente tivesse suportado o arguido e o filho deste por recear comportamentos futuros do arguido B que atingissem a sua integridade física e/ou psíquica.
- Do facto descrito em 14, que o arguido tivesse impedido de a assistente se deslocar para o exterior da casa e/ou que, após, tivesse abanado o corpo de D e/ou que a tivesse agarrado pelos dois braços e/ou que a tivesse empurrado com força, tendo a mesma caído em cima do sofá e/ou
- Durante todas as discussões que o arguido tinha com D.
- Que a assistente temeu pela sua vida.
- Que o arguido tivesse ameaçado e/ou a tivesse perseguido e/ou que a tivesse levado.
Que a assistente tenha ficado com dificuldade em confiar em terceiros e, especialmente, em se envolver novamente com alguém
E que tenha ficado/sido fortemente estigmatizada
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Fundamentação da decisão de facto:
Os factos acima julgados provados colhem a sua demonstração:
- Nas declarações da assistente que de forma clara descreveu o modo de atuar do arguido, descreveu situações ocorridas, embora não as conseguisse situar no dia e mês em que aconteceram, recorreu a vivências que lhe permitiram localizá-los no ano em que ocorreram nomeadamente, a data do casamento, o período da pandemia e ainda recordando onde aconteceram, já que viveu em 3 locais diferentes com o arguido, um dos quais o espaço onde desenvolvia a sua atividade profissional.
Embora o interrogatório não tivesse decorrido da forma adequada a uma vítima de violência doméstica, a verdade é que anda assim a assistente conseguiu ir respondendo ao que lhe era perguntado, denotando sentimentos de culpabilização e arrependimento, sentimentos tão típicos de situações de violência familiar como nos demonstra a literatura sobre estas vivências e traumas.
Além de se terem analisado e avaliado as declarações prestadas em audiência, procedeu-se igualmente à audição e valoração das declarações para memória futura.
Da comparação destes dois momentos probatórios[20] concluímos pela consistência interna dos mesmos, já que é patente a existência de coerência entre ambos, verificando-se a descrição dos eventos de forma homogénea, embora não igual, aqui e ali com mais ou menos pormenores, o que só reforça que a assistente ao depor recordava eventos que vivenciou. Na verdade, é hoje sabido, através dos estudos científicos sobre a memória, que esta não é estática em fotográfica nem tão pouco imune a contaminação[21]. Diz-nos a ciência que cada vez que recordamos um facto acrescentamos pormenores, deixamos cair outros, mas sempre que a memória for real existe uma linha comum entre os diversos relatos incidentes sobre o mesmo evento.
Além disto, as testemunhas ouvidas demonstraram ter conhecimento de alguns dos factos descritos pela assistente, conhecimento que, não obstante terem adquirido através daquele não impede, ao contrário do que se refere na decisão recorrida, a sua valoração.
Sabemos que os factos ocorridos no seio da família, especialmente em casa, dificilmente existem testemunhas diretas, a não ser os que no evento intervieram. É doutrina e jurisprudência assente que esta circunstância não determina por si só a desvalorização da prova. O que impõe é que o julgador ao avaliar a prova produzida indague a existência de outros factos, vivenciados diretamente pela testemunha, que de interpretados de acordo com as regras da experiência e da lógica só façam sentido se o declarado pela vítima efetivamente tiver acontecido.
Depoimentos:
Assim é no que ao depoimento do cunhado da assistente concerne, H, o qual durante a noite foi buscar a assistente a casa, tendo esta saído de casa com uns sacos em que transportava alguns pertences. A assistente descreve os factos que determinaram a intervenção do cunhado como uma daquelas em que o arguido a encostou e empurrou contra a parede. A testemunha declarou que soube que a assistente teria sido agredida pelo ofendido. Referiu ainda que não falavam sobre este assunto. Ora, estes factos conjugados levam-nos a criar a convicção de que o relatado pela assistente aconteceu, não apenas porque atribui sentido à intervenção do cunhado mas também porque efetivamente é das regras da experiência e da lógica que não se fale sobre violência no seio do casal a não ser com pessoas do ciclo muito restrito e com quem se tem muito à vontade.
Por outro lado a testemunha M que conhece muito bem a assistente e já com ela convivia muito antes da mesma se relacionar com o arguido, descreveu de forma bem elucidativa o modo de ser e de se apresentar (vestir e arranjar) da assistente e as mudanças que observou na mesma depois da mesma iniciar o seu relacionamento com o arguido. Esta mesma testemunha é igualmente altamente relevante e importante na medida em que descreve a pressão que o arguido exercia sobre a assistente, o que faz de forma que corresponde exatamente às regras da experiência e da lógica – são olhares, esgares, apartes, correções e a tensão que se sente sem que se consiga descrevê-la com uma simples palavra.
Este depoimento é ainda reforçado pela testemunha A amiga de longa data da assistente que igualmente descreve a amiga como uma pessoa independente que se viu coartada nos seus movimentos, já que o arguido a levava ao local de trabalho, ali permanecendo, a tudo assistindo e conduzia a assistente de volta a casa.
Todas estas testemunhas e as demais ouvidas em audiência indicadas pela assistente descreveram de forma clara o estado da assistente, sendo especialmente relevante o depoimento de J, psicóloga que, não obstante não acompanhar clinicamente a assistente durante os acontecimentos, acompanhava-a clinicamente à data em que prestou depoimento em audiência, revelando que a assistente ainda hoje revela trauma decorrente do relacionamento vivenciado com o arguido, de quem e relativamente a quem revela medo.
As testemunhas ouvidas em audiência, não obstante, como já se disse, não terem assistido a factos de qualquer violência física exercida pelo arguido sobre a assistente, a verdade é que testemunharam factos de pressão e controlo sobre a mesma.
As declarações da assistente, que foram valoradas pelo tribunal a quo e que suportaram e criaram a convicção sobre os factos que já vinham julgados como provados têm a mesma força do demais por ela relatado, não se compreendendo porque foram consideradas credíveis para julgamento de alguns factos e não credíveis para outros.
Por isso, trabalhoso e difícil, mas judiciariamente mais seguro é, em nosso entender, o julgamento dos factos de harmonia com a consistência interna e externa dos meios de prova produzidos sobre determinado facto, independentemente do meio de prova produzido, analisada e valorada segundo os critérios da experiência comum e da lógica já tantas vezes repetidos.
Deste modo, impunha-se que o tribunal avaliasse a coerência e consistência da prova de harmonia com as regras da experiência e do conhecimento científico sobre este tipo de criminalidade e os efeitos que provoca nas suas vítimas.
A violência psicológica é aquela que exige um olhar mais exigente e atento por parte do julgador, sendo a conjugação de todos os meios de prova essencialmente para a formação da convicção, já que é a que não deixa marcas visíveis a olho nu ao contrário de muitas das agressões físicas, e são geralmente levadas a cabo por pessoas com maior autocontrolo que os agressores físicos. Não obstante, uma investigação atenta sobre o modo de agir do arguido em conjugação com o que é descrito pela vítima e pelas testemunhas que com ela conviviam no dia a dia e já a conheciam em data anterior interpretadas e avaliadas de acordo com o conhecimento científico e as regras da experiência e modus operandi deste tipo de ilícito permitem a formação e fundamentação da convicção do julgador.
Recordando o que afirmou a testemunha, sentia-se controlo do arguido sobre a assistente, esta estava tensa na presença do arguido, são palavras, apartes, olhares que demonstram e criam tensão que sente mas que não se sabe muito bem descrever; Ora, é sabido que certas pessoas, sendo adequadas e educadas, conseguem com a sua linguagem não verbal, com o tom de voz que utilizam que os outros se sintam mal, diminuídos ou inferiorizados[22].
Não é preciso agredir fisicamente para que se diminua alguém. Não é preciso que se agredia com palavras feias alguém para que se faça sentir alguém mal. O tom de voz e a linguagem não verbal têm, quando usadas para esse efeito, capacidade de fazer sentir o destinatário diminuído e humilhado, como aliás consta do Guia de Boas Práticas já referido e identificado supra.
Quer a descrição realizada pela assistente quer a sua atuação são compreensíveis à luz das regras da experiência e da lógica, ademais, não obstante não ter que justificar porque decidiu casar com o arguido já conhecendo uma certa faceta sua, apresentou a sua razão, justificando-a no sentimento que por ele nutria, o amor, apesar de tal não ter merecido aceitação. Sabemos que a maior parte das vítimas não abandona o agressor por causa dos filhos, do mesmo modo que sabemos que o início das agressões, físicas ou emocionais, são inesperadas, obviamente, de outro modo evitavam-nas.
Especialmente nas situações de violência emocional/psicológica onde predomina o controlo este é o resultado de um certo modo de agir no e do qual a vítima apenas se dá conta em estado mais avançado da relação.
Se bem ouvirmos as declarações da assistente, as explicações que dá, verificamos que as mesmas são razoáveis, estão conformes aos relatos das vítimas de violência doméstica.
Porque razão se continua a entender que uma verdadeira vítima de violência doméstica tem que pedir ajuda, quando a realidade nos demonstra o contrário? Porque razão se entende que uma verdadeira vítima de violência doméstica foge do agressor, quando assistimos por todo o mundo à prática de violência sobre a família, família que se deixa estar com o agressor?
A resposta é infelizmente a desconsideração dos danos emocionais e psicológicos que a violência doméstica causa na pessoa das vítimas, independentemente do seu estatuto profissional, social ou mesmo grau de formação, que as impedem de pedir ajuda, que as tornam dependentes emocionalmente do agressor, que acreditam na mudança e que por isso cedem e se tornam parte do ciclo da violência, cedendo à fase de namoro, até que dentro da relação se fortalecem para colocar fim à mesma.
O destinatário deste tipo de relatos, nos casos judiciais o julgador, não pode projetar-se na vítima exigindo-lhe ou esperando dela um comportamento que acha que deveria tomar ou que ele próprio naquela situação tomaria, ou que seria de esperar que tomasse. A violência doméstica incapacita as vítimas, pelo que os comportamentos correspondentes à normalidade da vida não podem servir de critério para nelas acreditar. É preciso estudar e perceber o fenómeno para que se possa analisar todos os factos e não descredibilizar o relato ab initio porque não encaixa na normalidade da vida que o intérprete/julgador conhece.
Como tivemos oportunidade de começar por explicar quando estamos perante valoração da prova, mais concretamente sobre a valoração atribuída a um meio de prova, neste caso sem tão pouco implicar o detrimento de outro, entramos na formação da convicção do julgador que tem como ponto de partida e suporte a prova produzida e como limite a conformidade da análise dessa prova e conclusões delas retiradas às regras da experiência e da lógica. De modo que, sempre que seja possível, face à prova produzida, mais do que uma valoração, não é de erro de julgamento suscetível de ser reparado através da reavaliação de meios de prova, ainda que devidamente concretizados e sem que tal importe uma repetição do julgamento realizado, que estamos em face, mas sim através da verificação da conformidade da valoração da prova às regras da experiência comum, da lógica, razão e do conhecimento.
Ora, no nosso caso, encontramo-nos perante erro de julgamento suscetível de fundamentar a impugnação da matéria de facto nos termos em que foi realizado pela assistente, como aliás já se viu, e também perante um erro notório na apreciação da prova, já que as regras da experiência e da normalidade da vida invocadas pelo tribunal a quo para apreciar a prova não conduzem ao resultado que obteve, verificando-se além disso uma dualidade de critérios na análise e valoração que realizou – a assistente mereceu credibilidade para que se considerasse provados certos factos e não outros sem que se apresentasse qualquer motivo/justificação.
Esta conclusão retira-se da análise cuidada da decisão recorrida.
Se analisarmos o recurso é exatamente isto que se observa, o Tribunal a quo retira credibilidade aos depoimentos prestados baseando-se em conclusões que retira da prova produzida, mas que não têm correspondência com o que as testemunhas afirmaram e com as regras da experiência e do conhecimento.
Se olharmos aos factos julgados provados pela primeira instância, definitivamente assentes porque não impugnados, a sua base de sustentação, a assistente, não obstante não indicada mas apenas ela falou sobre os mesmos, o modo de agir do arguido, descrito por todas as testemunhas ouvidas, M, A e H, os factos relatados por estas testemunhas devidamente avaliados ajuda-nos a compreender e retirar ilações entre os factos conhecidos suportando e impondo que se considerem outros, que deles necessariamente resultam.
É que “…quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J.M Asencio Melado, Presunción de inocência y prueba indiciária “ , 1992 ), autores citados por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Rev . Julgar, n.º 2 , 2007 , pág. 205).
Por isso o indício, ou a prova indiciária, revela-se de extrema importância no processo penal, já que os factos nem sempre são suscetíveis de prova direta, que permita considerar praticada a conduta imputada. É necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico intelectual necessário antes que se gere impunidade (Prieto Castro y Fernandiz e Gutierrez de Cabiedes, Derecho Penal, II, pág. 252).
O recurso à prova indiciária, por dedução ou inferência, exige, em primeiro lugar, a presença de um requisito de ordem material, isto é, estarem os indícios completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar inter-relacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. Em segundo lugar, o juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida. E dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência (Ac. STJ de 11.07.2007, Procº 07P1416, Armindo Monteiro, in www.dgsi.pt).
«…ao contrário do que por vezes se pensa e se ouve a todo o tempo, a prova indiciária, devidamente valorada, permite fundamentar uma condenação (cfr., v.g., Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, reimp. Lisboa, 1981, págs. 288-295, Id., Curso de Processo Penal, 2º vol., Lisboa, 1986, págs. 207- 208, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa/ S. Paulo, 1993, vol. II, pág. 83 Sérgio Gonçalves Poças, Da Sentença Penal-Fundamentação de Facto, in Julgar, n.º3, Set-Dez. 2007, págs. 27-29 e 42-43, Acs. do S.T.J. de 8-1-1995, B.M.J. n.º 451, pág. 86 e de 12-9-2007, proc.º n.º 4588/07, rel. Cons.º Armindo Monteiro in www.dgsi.pt, Acs. da Rel. de Coimbra de 6-3-1996, Col. de Jur. ano XXI, tomo 2, pág. 44 e de de 9-2-2000, Col. de Jur. ano XXV, tomo 1, pág. 51, de 11-5-2005, proc.º n.º 1056/05, rel. Oliveira Mendes, de 9-7-2008, proc.º n.º 501/01.3TAAGD, rel. Ribeiro Martins, in www.dgsi.pt e os Acs da Rel. de Guimarães de 9-10-2006, proc.º n.º 2429/05-1, de 29-1-2007, proc.º n.º 2053/06-1, e de 25-6-2007, proc.º n.º 537/07-1, todos relatados por Cruz Bucho)…(…). Em muitos casos, nomeadamente no âmbito da criminalidade organizada, a prova indiciária, circunstancial ou indirecta é mesmo o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores (cfr, v.g., Eduardo Araújo da Silva, Crime Organizado - procedimento probatório, editora Atlas, São Paulo, 2003, págs. 154-157, Fábio Brumana, Autonomia do Crime de Lavagem e Prova Indiciária, in Revista CEJ, Brasília, Ano XII, n.º41, abri.-jun. 2008, págs. 11-14 e Euclides Dâmaso Simões, Prova Indiciária - contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo urgente, in Julgar, n.º2, 2007, págs. 203- 215) …» - Ac. Do TRG de 19/01/09, Cruz Bucho, in www.gdsi.pt). Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com géneses em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova. (Ac. STJ de 09.02.2012, Procº 233/08.1PBGDM.P3.S1, Santos Cabral, in www.dgsi.pt).
A noção de presunção (legal e judicial) encontra-se definida no art.º 359.º do C. Civil, no qual se estabelece que presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um outro desconhecido.
E, quanto à admissibilidade das presunções judiciais, estabelece-se no art.º 351.º do mesmo C. Civil que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
Conforme se refere no Ac. do STJ de 05.05.2005, in www.dgsi.pt, as presunções judiciais inspiram-se nas regras da experiência, nos juízos correntes de possibilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, traduzem-se em juízos de valor formulados perante os factos provados e reconduzem-se ao julgamento da matéria de facto.
Assim, perante factos objetivamente dados como provados, haverá que retirar dos mesmos as conclusões lógicas e racionais que se impõem e que se mostram ditadas pelas regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Ora, o arguido levava a assistente ao trabalho, mantinha-se no espaço laboral da mesma enquanto esta trabalhava, até se mostrava prestável, reconduzia-a a casa, após o dia de trabalho, manifestava à assistente que “mulher minha não se veste assim”, pratica e profere o que se mostra provados nos factos 5 a 7 que se relembram e que se transcrevem, 5. Em data não concretamente determinada, quando se deslocavam de carro para uma clínica veterinária para assistir à eutanásia da gata de D e do seu ex-marido, onde este também iria estar, B dirigiu à mesma as seguintes expressões: «e tu agora vais estar sozinha numa sala com aquele gajo, vão lá estar os dois a fazer o quê, os dois fechados?», tendo em seguida começado a realizar uma condução errática. 6. Em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a D, num tom de voz grave, «isso não é roupa para o teu tamanho», «isso não é roupa para a tua idade» e «mulher minha não se veste assim», pois este não queria que a mesma vestisse determinadas roupas, o que ocorreu um número indeterminado de vezes. 7. Em datas não concretamente apuradas, o arguido dirigiu a D as seguintes expressões: «não estás boa da cabeça, estás doente, precisas de te tratar» e «mulher minha não se comporta assim», o que ocorreu um número indeterminado de vezes.
A Assistente é descrita pelas testemunhas como uma pessoa alegre, descontraída, extrovertida, bem vestida, com cores alegres antes de iniciar o relacionamento com o arguido, muda totalmente o seu comportamento, modo de estar e vestir, calada, cabelo apanhado, vestindo cores discretas, e o mais descrito pela testemunha M, é óbvio que as regras da experiência e da lógica não apenas exigem que se atribua credibilidade ao relatado pela assistente, fixando-se os factos como acima descritos, como determinam que dos mesmos se infiram os factos que se mostrem compatíveis com o modo de agir descrito.
Nestes termos, na sequência do exposto, aliado à circunstância de o arguido não ter prestado declarações, circunstância que não o prejudica, é nossa convicção que os factos, descritos pela assistente, reforçados por declarações das testemunhas, como já analisado, aconteceram nos termos descritos.
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ii) Subsunção dos factos ao direito:
Vinha imputada ao arguido a prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e nas penas acessórias previstas no artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal
O tribunal a quo, após o julgamento dos factos provados e não provados, considerou que não se verificavam preenchidos os elementos constitutivos de tal ilícito criminal.
A assistente recorreu, impugnando o julgamento de facto e de direito o que determinou a alteração dos factos julgados provados razão pela qual há que subsumir os factos agora apurados de modo a averiguar da consumação ou não do crime pelo qual o arguido foi acusado.
Como é sabido o crime de violência doméstica encontra consagração no art.º 152º do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro.
No que importa para a decisão, tendo em conta a relação entre assistente e arguido, companheiro e companheira e, mais tarde, esposa e esposo, pratica o crime de violência doméstica, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais na pessoa do outro cônjuge ou ex-cônjuge[23], companheiro ou companheira (unido de facto), de acordo, aliás, com a definição consagrada no art.º 3º al. b)[24] da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011, aprovada pelo Governo português a 16 de Novembro de 2012, ratificada pela Assembleia da República a 21 de Janeiro de 2013 e entrou em vigor em Portugal a 1 de Agosto de 2014, conhecida por Convenção de Istambul.
Tendo em conta quer os contributos da doutrina quer da jurisprudência podemos afirmar que a única questão que ainda se mostra controvertida respeita ao bem jurídico protegido por esta incriminação.
Fazendo nossas as palavras de José Francisco Moreira das Neves[25], No que concerne ao bem jurídico tutelado pela incriminação o Comentário Conimbricense do Código Penal, pela pena de Taipa de Carvalho15, (se bem que respeitando à redacção do preceito anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) sustenta que é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental16. Parece-me, contudo, uma conclusão que ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que aquele tipo de ilícito visa tutelar. Aliás, se bem se vir, a própria descrição típica dimensiona um feixe de tutela de direitos que vai muito além do espartilho da inserção sistemática do tipo de ilícito em causa (o crime de violência doméstica está inserido no capítulo do Código Penal dedicado aos crimes contra a integridade física), bem assim como da dimensão mais ampla que possa ter a saúde individual. Abrange expressis verbis as limitações à liberdade e a liberdade sexual e tutela igualmente a reserva da vida privada e a honra, como veremos17. Os bens jurídicos são, como ensina Figueiredo Dias, uma combinação de valores fundamentais, por referência à axiologia constitucional. São os entes que visam o bom funcionamento da sociedade e as suas valorações éticas, sociais e culturais. Em registo de sintonia, para Roxin, os bens jurídicos são «realidades ou fins úteis para o desenvolvimento individual e para o livre desenvolvimento da sua personalidade, como parte de um sistema orientado para esse objectivo ou para o funcionamento do próprio sistema»18. Ora, a integridade pessoal e física das pessoas, mais que um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, constitui um valor umbilicalmente relacionado com a sua dignidade. O princípio da dignidade da pessoa humana constitui a base de todos os direitos constitucionalmente consagrados. «Os direitos fundamentais não têm sentido nem valem apenas pela vontade (...) que historicamente os impõe.»19 A integridade pessoal aparece assim erigida em bem jurídico autónomo, pluriofensivo, arrimado ao artigo 25.º da Constituição20. Será por isso redutor considerar que a criminalização do maltrato do cônjuge ou pessoa equiparada se reconduz, afinal, como acontece em França, a uma mera qualificação de outros ilícitos típicos que tutelam outros bens jurídicos, em razão da qualidade da vítima. Quer-me parecer, ao invés, que esta incriminação visará punir condutas violentas (de violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual), dirigidas a uma pessoa especialmente vulnerável em razão de uma dada relação (conjugal ou equiparada), que se manifestam num exercício ilegítimo de poder (de domínio) sobre a vida, a integridade física, a liberdade, a honra, etc. do outro, caracterizado as mais das vezes por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima (sendo esta bastas vezes reduzida a uma mera «coisa»)21. Assim, quando, por exemplo, o comportamento ilícito se quedar em «meras» injúrias, ainda que numa única injúria e, digamos, uma injúria «leve», mas que indubitavelmente afecte a honra (sem o que não haveria, sequer, crime), se a vítima for o cônjuge ou figura equiparada (als. b) e c) do n.º 1 do artigo 152.º) será ainda necessário aquilatar se a actuação ilícita o foi com tal intensidade ou em circunstâncias tais que permitem concluir ter sido atingido o núcleo da integridade pessoal do ofendido, a sua dignidade ou o livre desenvolvimento da sua personalidade. Nessa tarefa, o inciso vocabular inserto no n.º 1 do actual artigo 152.º «de modo reiterado ou não», reportando-se ao comportamento ilícito, mais do que turvar o intérprete, poderá servir de alerta para lembrar que a autonomia do crime de violência doméstica sobre o cônjuge (ou figura análoga) não se funda apenas na qualidade da vítima, mas na autonomia do bem jurídico tutelado. Como assim, haverá casos em que uma agressão física ou meramente verbal de um cônjuge (ou pessoa equiparada) ao outro não vá além do crime de ofensa à integridade física, do crime de ameaça ou do crime de injúria. Será sempre o conjunto das circunstâncias de facto que demonstrará, havendo ou não reiteração, se ocorreu ofensa à integridade pessoal, isto é, se os factos, apreciados à luz da especial relação entre agressor e vítima, colocam esta numa situação que se deva considerar incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal ou equiparado (presente ou passado). Ou, dizendo de outro modo, se se atingiu o âmago da dignidade da pessoa ou o livre desenvolvimento da sua personalidade, se com tal actuação o agressor procurou reduzir a vítima a uma mera «coisa».
Neste sentido veja-se também o que se decidiu no Acórdão desta Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, Relatora Cristina Almeida e Sousa, de 14-10-2020, Proc. 749/19.4PBSNT.L1-3: Com efeito, o bem jurídico protegido com a incriminação contida no art. 152º do CP é, em geral, a dignidade humana, enquanto bem jurídico plural e complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, no âmbito de específicas relações pessoais, ou seja, a dignidade da pessoa humana[26], em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação, ou de relação filial ou outra, de diferente natureza, mas que implique coabitação. «A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana» (Américo Taipa de Carvalho, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", vol. I, pág. 332), embora em contextos muito particulares de subordinação existencial, no âmbito duma relação de coabitação conjugal ou análoga, ou outra forma estreita de relação de vida, incluindo de namoro, protegendo «a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral» (Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305. No mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42; Augusto Silva Dias, Materiais Para o Estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110).
Segundo Margarida Santos e Rui do Carmo o bem jurídico protegido pelo art. 152.º do CP diz respeito diretamente à pessoa do/a ofendido/a, ocorrendo no contexto de determinadas relações de proximidade afetiva, de intimidade, de filiação ou análoga, ou de coabitação, sendo exatamente esta especial relação contemplada no tipo legal que, em regra, agrava a ilicitude e a culpa do agente, estando por isso em causa um crime específico, normalmente impróprio. Acompanhamos o entendimento que identifica a saúde do indivíduo como bem jurídico protegido neste crime, enquanto “bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental” e que “pode serafetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”19. Estamos perante uma compreensão ampla da saúde, considerada como o completo bem-estar físico, psíquico e social, na aceção da Organização Mundial de Saúde, que é mais do que a soma de diferentes bens jurídicos também afetados pelos comportamentos típicos, nomeadamente a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a honra20. Devendo ter-se ainda em consideração, em particular quando os comportamentos que integram o crime se dirigem a crianças, como quadros constitucionais de referência, a proteção do direito fundamental à integridade moral e física [art.º 25.º/1, a) CRP] e do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade (art.º 26.º/1 CRP)21[27].
Como se decidiu no Acórdão da R.E. de 09/01/2018, sumariado na C.J., Ano 2018, T. 1, pág. 317, no crime de violência doméstica, «A descrição típica esgota-se na inflição de maus tratos físicos ou psíquicos por agente que se encontre com a vítima numa das relações mencionadas no preceito legal, ainda que se reconheça que o fundamento da ilicitude ou da sua agravação, subjacente à incriminação, se encontra na afetação da dignidade humana, decorrente da conjugação dos atos típicos ali previstos com a especial situação em que, reciprocamente, se encontram a vítima e o agente.»
É ponto assente que para que se verifique o preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica não é necessário que a vitima se encontre numa posição de dependência ou subalternização, designadamente económica, do agente, como se explica no Acórdão da RE de 26/09/2017, proc. 518/14.8PCSTB.E1, disponível in www.dgsi.pt, Não é elemento do tipo legal de violência doméstica que a ofendida tenha uma posição de relação de “subordinação existencial” ou seja, uma posição de inferioridade e/ou dependência com o arguido, apesar de constituir uma realidade sociológica presente em muitas das situações de violência doméstica previstas no art. 152.º do C. Penal, isso não significa que as esgote ou que constitua elemento típico de cuja demonstração depende a responsabilidade penal do agente.
A dificuldade numa grande maioria de situações reside em delimitar quando é que a conduta do agente é subsumível ao crime de violência doméstica, ou quando apenas preenche os elementos do tipo de crime base praticado, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a difamação a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros. Como já se disse, a prática destes crimes só constitui violência doméstica se igualmente preencheram os demais elementos constitutivos deste tipo.
No Ac. do STJ de 30-10-2019, proc. 39/16.4TRGMR.S2, e sobre esta questão de saber quando é que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica ou preenche apenas outros tipos de crime, decidiu-se: Como se faz notar no Acórdão da R.P. de 13/06/2018, proferido no proc. 189/17.0GCOVR.P1, acessível no endereço www.dgsi.pt, a solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. Com interesse para o caso concreto, importa a atentar no conceito de «maus tratos psíquicos». Conforme se escreve Catarina Fernandes - O crime de Violência Doméstica, in Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Multidisciplinar, Centro de Estudos Judiciários, pág. 94, citando Teresa Magalhães, Violência e Abuso – Respostas Simples para Questões Complexas -: «Os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caraterizar, porque se pode traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à vitima, que atingem e prejudicam o seu bem-estar psicológico, nomeadamente ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desmoralizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, discriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vítima (…)» Os maus tratos psíquicos, abrangem, assim, uma multiplicidade de comportamentos, que podem consistir em humilhações, provocações, ameaças (mesmo, que – como defende Américo Taipa de Carvalho, in ob. cit., pág. 332 – «não configuradoras em si do crime de ameaça»), os insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, as perseguições, as esperas inopinadas e não consentidas, os telefonemas a desoras, etc. (cfr., entre outros, Ac. da R.E de 08/01/2013, proc. 113/10.0TAVV.E1 e Ac. da RL de 05/07/2016, proc. disponíveis no endereço www.dgsi.pt). Decisivo para que tais comportamentos possam integrar o conceito de maus tratos psíquicos passível de preencher o tipo objetivo do crime de violência doméstica é que revistam intensidade ou gravidade bastante para poder justificar «a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar” (Ac. da RG de 10/07/2014, proc. 591/11.0PBGMR, acessível no endereço www.dgsi.pt). Dito de outro nodo, o comportamento tem de assumir uma dimensão ou intensidade bastante para poder ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a sua dignidade pessoal, enquanto sujeito compreendido no elenco definido nas diversas alíneas do nº. 1 do artigo 152º. Na apreciação do(s) comportamento(s) assumido(s) pelo agente, em termos de se poder decidir se configura(m) «maus tratos psíquicos», haverá que ter em conta a imagem global do facto. (cf. Nuno Brandão, in ob. cit., pág. 19 e Ac. da RC de 12/04/2018, proc. 3/17.6GCIDN.C1, acessível em www.dgsi.pt). Quanto ao tipo subjetivo de ilícito, exige-se o dolo, em qualquer das suas formas (direto, necessário ou eventual).
Tendo presente os elementos constitutivos do tipo legal de crime em causa, e cientes da natureza do bem jurídico protegido, podemos desde já afirmar que, olhando para a matéria de facto apurada, o arguido, com a sua conduta praticou efetivamente o crime de violência doméstica pelo qual foi acusado, o qual foi praticado em casa onde a ofendida, aqui assistente e recorrente vivia com o mesmo.
Na verdade, está demonstrada a prática por parte de arguido de actos atentatórios da integridade física da assistente, tendo empurrado a assistente contra a parede, manietando-a com o seu braço contra a parede de casa, a par de palavras que lhe dirigia tendentes a manietar e controlar o seu modo de ser, de se manifestar em suma de Ser!
Estes factos são atentatórios da dignidade e integridade pessoal de qualquer pessoa e especialmente censuráveis quando praticados entre pessoas unidas por relação de facto, seja de união de facto ou de casamento como no caso, seja de outro tipo.
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Apurados que estão os factos e verificado o preenchimento dos elementos típicos do crime que vinha imputado ao Direito impõe-se que se fixem iii) As consequências jurídicas do crime - determinação da pena:
É sabido que o Direito Penal protege os bens jurídicos mais importantes na sociedade, punindo os comportamentos desconformes com o dever ser jurídico com maior ou menor severidade consoante a relevância ou importância do bem jurídico protegido pela norma e violado pelo comportamento ilícito, típico e culposo. Deste modo, as penas previstas para os diversos comportamentos típicos criminais visam proteger os bens jurídicos que se encontram na base da norma incriminadora, sem que, no entanto, o agente seja esquecido porquanto a culpa constitui sempre o limite da pena. Pretende a lei que a pena alcance estes dois objetivos: proteja a sociedade, através da proteção dos bens jurídicos essenciais, e (re)socialize o agente do crime (art.º 40.º do CP).
“A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena. A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40.º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado. Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368.º, e aquela prevista no artigo 369.º, com eventual apelo aos artigos 370.º e 371.º do CPP). (..) Jorge Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, ... Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40.º do Código Penal, os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais. No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição de 1998, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – AAFDL –, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial». Américo A. Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, no Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, ... Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção. Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa” (Raul Borges, Ac. do STJ de 12-07-2018, Proc. n.º 116/15.9JACBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, concluir que a prevenção geral tem de se traduzir em prevenção positiva, de integração, ressocializadora e de reforço da consciência jurídica comunitária, do seu sentimento de segurança e força da lei face à sua violação, e a prevenção especial, enquanto relacionada com o agente do crime, materializa-se e há-de ser adequada a exercer a sua função (re)socializadora.
O crime cometido pelo arguido é punido com pena de prisão de dois a cinco anos, cf. Art.º 152.º, n.º 2 do CP.
Definida, em abstrato, a moldura da pena aplicável será altura de lhe fixar a sua medida concreta, nos termos genericamente equacionados no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, ou seja, tendo em atenção a culpa dos agentes e as exigências de prevenção.
A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos oferece-se como uma moldura de prevenção, cujo máximo é o ponto mais alto consentido pela culpa e o mínimo resulta do quantum de pena imprescindível à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias (defesa da ordem jurídica).
Assim, para uma primeira limitação da moldura concreta da pena, há que ter em conta a prevenção geral positiva, ou seja, a medida da proteção dos bens jurídicos, conferida nas três vertentes referidas por Roxin (Claus Roxin, in Derecho Penal – Parte General, Tomo I, Ed. Civitas, pág. 91): a confiança no Direito e na sua aplicação pela máquina judicial, o efeito de aprendizagem e a tranquilização do conflito da sociedade com o agente, também designada por “prevenção integradora”.
Com a finalidade da prevenção geral positiva ou de integração do que se trata é de alcançar a tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, recuperando-se, assim, a confiança das expectativas de todos os cidadãos na validade das normas jurídicas e no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. A medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos é, assim, um “acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso.” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 228 e 241).
Dentro dessa moldura de prevenção, e a limitá-la – limite máximo –, surge, então, a culpa – cf. o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, que dispõe que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Entre estes limites, a medida exata da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade causando-lhe só o mal necessário” (Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª edição, 2007, Coimbra Editora, pág. 55).
Por sua vez, os concretos fatores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.
Determina o art.º 71.º do CP: 1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No caso concreto, tendo presente a matéria de facto provada, não temos dúvida que:
a) a ilicitude dos factos é mediana atendendo ao valor e natureza dos bens jurídicos violados - o bem-estar físico, psicológico e emocional da ofendida, e ainda ao modo de execução do facto.
b) A culpa é igualmente mediana, tendo o arguido agido com dolo direto.
Tendo em com conta o modo de execução do crime, traduzida nos factos apurados, durante a pendência de relação de união de facto e posteriormente de casamento, altura em que a maior parte dos factos ocorreu, quando se encontrava obrigado para com ela por deveres de respeito, assistência e colaboração decorrentes do laço matrimonial que os ligava.
c) As necessidades de prevenção geral mostram-se elevadas, tendo em atenção a enorme quantidade de crimes desta natureza que se praticam na sociedade e a falta de noção da gravidade da ofensa ao bem jurídico protegido com a incriminação.
Como é sabido foi a progressiva consciencialização acerca da gravidade da violência doméstica, crime com repercussões familiares, sociais, laborais e claro individuais, alarmantes, na maior parte das vezes dissimuladas, mas de consequências danosas incomensuráveis, que determinou a necessidade da sua criminalização.
O conhecimento sobre a violência doméstica consciencializa-nos que o lar acaba por ser um dos lugares mais “perigosos” das sociedades modernas (cf. José Francisco Moreira das Neves in Violência Doméstica, um problema sem fronteiras, acessível em verbojuridico.net, pág. 3, citando Nelson Lourenço), o que é uma contradição nos seus próprios termos. Com efeito, a casa, o lar, é o local onde o ser humano sonha crescer, construir uma vida familiar, constituindo por isso o pressuposto básico aliado à segurança em que uma família pode constituir-se, solidificar-se, e emocionalmente constituir as bases da felicidade. Seja qual for a idade seja qual for o género, a relação a dois passa ainda necessariamente por uma habitação que se transforme em lar, enquanto local de partilha, crescimento, bem-estar e gratificação. É, pois, um elemento fundamental para a formação da personalidade do ser humano enquanto ser social por excelência e essência, na qual a família constitui papel fundamental. Transformando-se este espaço, pelo ideário e pressuposto de qualquer gratificação e crescimentos familiar e pessoal, em local de agressão, mal-estar e sofrimento, a incompreensão, dor emocional e dificuldade em digerir assumem proporções inqualificáveis, passando necessariamente por um sentimento de falha na realização do projeto idealizado, necessário que é à própria construção do eu e do nós. É também por isso, pela surpresa, pela dificuldade em aceitar que a necessidade de realização não se satisfaz ali que impõe o silêncio e se lute, sem armas e sem sucesso, por uma relação que não pode existir. Inexistindo respeito não há amor, não há aceitação, não há construção familiar nem pessoal.
d) As exigências de prevenção medianas, uma vez que o arguido, pese embora não apresentasse antecedentes criminais à data da prática dos factos, o que deve ser apanágio de qualquer cidadão, não revelou qualquer juízo crítico sobre a sua atuação.
Como atenuantes, milita a favor do arguido a circunstância de se encontrar à data da audiência em primeira instância, familiar, social e profissionalmente inserido.
Tendo presentes todos os fatores enunciados, sem esquecer que a pena deve ter por limite a culpa do agente, consideramos adequada uma pena de 2 anos e 4 meses de prisão.
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iv) Da suspensão da execução da pena:
Estabelece o artigo 50.º n.º 1 do Código Penal que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
E, segundo o n.º 5 da mesma disposição legal, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
Perante este regime a pena de prisão aplicada ao arguido é suscetível de ser suspensa na sua execução.
É um facto que a suspensão da execução da pena de prisão tem subjacente um juízo de prognose favorável relativo ao comportamento do agente, atendendo à sua personalidade e às circunstâncias do facto.
Todavia, este não é o único especto a ponderar uma vez que como igualmente se refere no normativo transcrito há que atender às “finalidades da punição”, o que significa que a suspensão da execução da pena de prisão deve mostrar-se também adequada e suficiente à realização das finalidades da punição em termos de prevenção geral, ou seja, à defesa do ordenamento jurídico que o caso concreto requer. Sob pena se a norma violada perder eficácia e força na sua vertente preventiva!
O crime cometido assume gravidade. O crime de violência doméstica provoca grande alarme social pelos efeitos altamente nocivos para a vítima direta das agressões, para as vítimas indiretas, os filhos, a nível laboral e para a sociedade em geral, o que se reflete inclusivamente no sistema de saúde.
Como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de dezembro de 2007, integral em www.dqsi.pt "...Assim, se a admissibilidade da suspensão da execução da pena de prisão não está suficientemente justificada numa perspetiva de prevenção especial e colide com as exigências de prevenção geral, não é de suspender a execução da pena única de 5 anos de prisão imposta ao recorrente".
No caso, tendo em conta o tempo já decorrido e a circunstância de todos os factos sob julgamento terem ocorrido durante o casamento e não ter existido a prática de qualquer facto após a separação do arguido e assistente o período pós separação, não se justifica em termos de prevenção especial o cumprimento da pena aplicada.
Por outro lado, baseando-se esta decisão na ponderação das exigências de prevenção quer geral quer especial, devem estas ser determinantes a menos que o cumprimento da pena decorra das necessidades de prevenção geral o que não é o caso.
O instituto de suspensão da pena de prisão assenta na confiabilidade em como o cidadão que cometeu o crime, face à dimensão do delito cometido e às suas condições pessoais, satisfará o projeto da sua ressocialização. Para tal desiderato o juiz tem de ponderar as razões de prevenção geral, já analisadas, e as circunstâncias relativas à pessoa do agente e sua inserção familiar, laboral e social.
O arguido mostra-se inserido em termos familiares, laborais e familiares, não havendo notícia da prática de qualquer outro ilícito.
A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica é por força do disposto no art.º 34.º-B, n.º 1 da Lei 112/2009, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta.
Na verdade, é do seguinte teor da norma referida: 1 - A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, impostos separada ou cumulativamente, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio. (…)
Assim, tendo em obediência ao referido normativo legal, tendo-se considerado adequada e suficiente para assegurar as exigências de prevenção geral a suspensão da execução da pena, há que subordinar tal suspensão a regime de prova e ainda ao afastamento do condenado da vítima, da sua residência e local de trabalho e bem assim a proibição de contactos, por qualquer meio.
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Vem peticionada a aplicação das penas acessórias previstas no art.º 152.º, n.º 4 e 5 do CP, que prevê: 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
Uma vez que a suspensão da execução da pena de prisão ficou subordinada aos deveres e obrigações acima fixados, os quais consomem no caso as penas acessórias que seriam aplicáveis, julga-se prejudicada a aplicação destas sanções.
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v) Do pedido de indemnização civil
O recurso da assistente incide também sobre factos respeitantes ao pedido de indemnização civil que então deduziu, impugnando os factos que sobre esta questão foram julgados não provados na primeira instância, reafirmando o seu propósito de ser indenizada nos termos já vertidos no seu pedido cível.
Os factos relativos às agressões físicas e psicológicas de que a assistente foi vítima, perpetrados pelo arguido, foram considerados provados, nos termos e pelos fundamentos exarados supra, pelo que devem ser ponderados.
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Por força do disposto no art.º 129.º do CPP o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente será decidido tendo em conta o que se dispõe no CC, devendo apreciar-se o pedido civil ainda que a sentença penal seja absolutória (art.º 377.º, n.º 1, do CPP).
Dispõe o art.º 483.º, n.º 1, do CCivil que «aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legalmente destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado de todos os danos resultantes da violação».
Deste modo, exige a lei, para que nasça a obrigação de indemnizar, que se verifiquem os seguintes pressupostos:
- Facto voluntário e ilícito do agente;
- Nexo de imputação do facto ao agente;
- Danos;
- Nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Tendo presente a factualidade apurada resultou provado que o arguido agrediu a assistente empurrando-a contra a parede de casa, manietou-a contra a parede com o seu braço, controlava o que a mesma vestia, com quem se dava e até as suas deslocações.
Não temos dúvida que está, pois, preenchido o primeiro dos requisitos.
Tal como se encontra demonstrado o nexo de imputação do facto ao agente, já que, perante as circunstâncias concretas da situação em análise, o agente podia e devia ter agido que forma diversa, evitando como tal o resultado.
No âmbito da apreciação da responsabilidade civil por acto ilícito, tal conduta deve ser apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família – art.º 487.º, n.º 2, do CCivil; pelo que no caso concreto a imputação deve ser analisada tendo em conta não o concreto agente que praticou a ação ou omissão, mas por referência ao comportamento que, naquela concreta situação, teria um homem/mulher de particular sentido de responsabilidade, de apurado zelo, previdente, cuidadoso e preocupado. Ora, no caso concreto, um homem com as características enunciadas jamais teria agido nos termos apurados e acima vertidos nos factos provados.
No que respeita ao nexo causal entre o facto e o dano, que tem que se verificar para que alguém possa ser responsabilizado perante um terceiro pelos danos que este sofreu,igualmente se apurou, de forma evidente e sem dúvidas.
Como se sabe o nexo causal entre o facto e o dano encontra-se regulado no art.º 563.º do CC, não de forma naturalística, mas por recurso a um juízo de adequação, sendo hoje aceite que a teoria da causalidade adequada é a que melhor salvaguarda os interesses dos envolvidos.Segundo este juízo de adequação, “é necessário que o evento danoso seja causa provável desse efeito” – Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I pág. 579.
Na base desta doutrina está um juízo de prognose, segundo o qual, se um homem médio, colocado na posição do agente, com os seus concretos conhecimentos da situação, teria previsto ou poderia prever como causa provável da sua conduta o resultado verificado, deverá o mesmo ser responsabilizado pelos danos que provocou.
Ora, também este nexo se mostra apurado, como aliás resulta do que já acima dissemos, pois é para nós ponto assente que o arguido previu que a sua conduta teria resultados danosos para a assistente quer em termos físicos quer também em termos emocionais, pois é evidente que os factos praticados provocam dor e sofrimento.
Deste modo, o arguido sabia, pois não podia desconhecer até pela relação que tinha com a assistente e conhecimento da sua pessoa, que a sua conduta causaria necessariamente os prejuízos patrimoniais e emocionais à assistente.
Resta-nos apurar o montante dos danos não patrimoniais sofridos, que já demos por assente que os sofreu, e caso se verifiquem os restantes pressupostos fixar o respetivo valor indemnizatório.
Como dissemos já, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (doutrina da causalidade adequada, na sua formulação negativa), cf. Art.º 563.º do Código Civil, sendo a indemnização fixada em dinheiro, sempre que não seja possível a reconstituição natural (artigo 562.º e 566.º, n.2 1 do Código Civil), com vista à reparação de danos patrimoniais e danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito — art.º 496.º, n.º 1 e 4 do Código Civil.
Constitui entendimento doutrinário assente que a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos não reveste apenas e exclusivamente natureza ressarcitória, assumindo e desempenhando também uma função preventiva e uma função punitiva (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral|, 10.º edição, pp. 605 a 608, 906 e 934).
O valor indemnizatório deve ser fixado com recurso à equidade, ponderando-se, por exemplo, a culpa do agente, situação económica do agente e do lesado, nos termos prescritos nos art.ºs 494.º e 496.º, n.º 4 do CC).
“A indemnização por danos não patrimoniais, visa compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não ser meramente simbólico, para assim se intentar compensar a lesão sofrida, proporcionando ao ofendido os meios económicos capazes de fazer esquecer, ou pelo menos mitigar, o abalo moral suportado”. (Ac. STJ de 29-01-2008, Proc. 0744492).
Deste modo, temos que ponderar (i) a natureza e a gravidade dos danos não patrimoniais sofridos pela assistente, a capacidade económica do arguido (que para além da sua subsistência deve destinar-se a compensar o mal praticado), (ii) os valores habitualmente fixados pela jurisprudência em situações de violência doméstica, (iii) sem esquecer a particularidade da publicidade das últimas agressões, consubstanciadas nas declarações do arguido, (iv) e a necessidade de valorizar o sofrimentos das vítimas de violência doméstica, pela dimensão e complexidade dos danos que sofrem.
Na fixação da indemnização temos que ter em conta que o sofrimento experienciado pelas vítimas de violência doméstica, independentemente do tipo de agressão infligida e sofrida, determina sequelas graves, pois afetam de forma inexorável a dignidade da pessoa humana.
Não temos dúvida que as dores, sofrimento e tristeza da assistente merecem a tutela do direito e devem ser compensados.
Se pretendemos indemnizar de alguma forma, quem a par dos maus tratos sofridos no recato do lar, sentiu dor, medo, ambivalência e ansiedade temos que fixar um valor que seja minimamente adequado a alcançar tal desiderato.
É mediana a ilicitude, é um facto, e igualmente mediana a culpa, mas já os danos sofridos, não obstante apenas permaneçam os emocionais, igualmente sofreu dores
Assim, ponderando tudo quanto se disse, entendemos ser adequada a fixação do valor de € 1.500,00 pelos danos não patrimoniais sofridos.
A demandante requereu ainda a condenação do arguido/demandado no pagamento de juros legais.
Nos termos do disposto no art.º 805.º, n.º 3 do CC, tratando-se de responsabilidade civil por factos ilícitos são devidos juros desde a citação, no caso desde a notificação para contestar o PIC.
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IV - Decisão:
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora, em:
Julgar provido o recurso interposto pela Assistente D, e em consequência:
a) condena-se o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1 e 2 do CP na pena de 2 anos e 4 meses de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 anos e 4 meses, sujeita a regime de prova e ainda ao afastamento do condenado da vítima, da sua residência e local de trabalho e bem assim a proibição de contactos, por qualquer meio.
c) Julgar parcialmente provido o recurso relativo ao Pedido de Indemnização Civil formulado pela Assistente/demandante, e em consequência condena-se o arguido/demandado a pagar o valor de € 1.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos;
d) À quantia indemnizatória acrescem juros de mora à taxa legal desde a data da notificação para contestar o PIC;
e) Custas da parte criminal pelo arguido, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
f) Custas da parte cível por demandante e demandado na proporção do decaimento.
D. N.
*
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária (art.º 94º, nº 2 do CPP).
Évora, 08 de abril de 2025
Maria Perquilhas
Maria José Cortes
Fernando Pina
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[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.
[2] O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, às seguintes situações:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
II. A diferente valoração da prova não se confunde com o erro de julgamento ou com qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.
[3] O que a arguida bem refere no seu recurso.
[4] Como se esclareceu no Ac. STJ de 15/09/2010, proc. n.º 173/05.6GBSTC.E1.S1, Relator Fernando Fróis: O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então, o inverso e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova, constante do art. 127.º do CPP.
XII - Os vícios do nº 2 do art. 410.º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo – art. 127.º do CPP.
XIII - Não incidindo o recurso sobre prova documentada nem se estando perante prova legal ou tarifada, não se pode sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, esquecendo a citada regra. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
XIV - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
[5] Sublinhado nosso.
[6] O conceito de preconceito inconsciente baseia-se na ciência da cognição inconsciente. A ciência “sugere que os actores nem sempre têm controlo consciente e intencional sobre os processos de percepção, formação de impressões e julgamento que motivam as suas acções”. 5 Pelo contrário, são processos mentais que ultrapassam o nosso foco consciente – incluindo memórias, perceções, atitudes e estereótipos. Neste sentido, portanto, o termo preconceito não é pejorativo. Pelo contrário, é um deslocamento da neutralidade ao longo de um espectro de possíveis juízos, opiniões e avaliações. Os nossos preconceitos podem ser favoráveis ou desfavoráveis. Pacific Judicial Integrity Program Judicial Fraud & Anti-Corruption Workshop Port Moresby, Papua New Guinea Monday 28 November, 2022 Keynote address Chief Justice Gibbs Salika, Federal Court of Australia, in https://www.fedcourt.gov.au › assets › pdf_file
V. ainda Confirmation Bias in Criminal Cases, Moa Lidén, Uppsala University, SE-75120 Uppsala, Sweden, 2018, in https://www.diva-portal.org › get › FULLTEXT01;
The not-so-hidden biases lurking within the criminal justice system: issues of race and gender in the law olga m. Torres, in https://my.willamette.edu › site › pdf › 4.-torres.pdf
[7] Para que possamos provar o preconceito judicial é necessário que o mesmo se mostre documentado. O que se verifica no caso.
O preconceito pode manifestar-se de várias formas, podendo ou não ser evidente na decisão, o que se o for, constituirá prova de parcialidade. De acordo com a doutrina que tem estudado a influência dos bias e prejudice na tomada de decisão (Thinking, Fast and Slow, Daniel Kahneman, PENGUIN BOOKS LTD, maio de 2012, – versão portuguesa - Pensar, Depressa e Devagar
de Daniel Kahneman, Temas e Debates 2014) podemos elencar como indicadores comuns de preconceito judicial:
Comentários Inapropriados: Juízes a fazer comentários prejudiciais ou a expressar opiniões pessoais durante o processo.
Tratamento desigual: Tratar uma parte de forma mais justa ou severa do que a outra, sem motivos válidos.
Decisões Consistentes: Demonstrar um padrão de decisão consistente contra uma parte. Contudo, os litigantes devem estar cientes de que as decisões judiciais por si só quase nunca constituem uma base válida para provar parcialidade ou apoiar uma moção de recusa. Liteky v. Estados Unidos, 114 S.Ct. 1147 (1994).
Interrupções excessivas: Interromper ou advertir frequentemente uma das partes ou o seu advogado.
[8] 111. O artigo 6.º, n.º 1, da Convenção exige que um tribunal abrangido pelo seu âmbito de aplicação seja “imparcial”. A imparcialidade denota normalmente a ausência de preconceito ou bias e a sua existência ou não pode ser testada de várias formas (Kyprianou c. Chipre [GC], 2005, § 118; Micallef c. Malta [GC], 2009, § 93). – tradução livre de: 111. Article 6 § 1 of the Convention requires a tribunal falling within its scope to be “impartial”. Impartiality normally denotes the absence of prejudice or bias and its existence or otherwise can be tested in various ways (Kyprianou v. Cyprus [GC], 2005, § 118; Micallef v. Malta [GC], 2009, § 93). Guide on Article 6 of the European Convention, on Human Rights, Right to a fair trial (criminal limb), 2024, Council of Europe/European Court of Human Rights, 2024.
[9] The Rule against Bias: The impact of the Judicial Code of Conduct in England and the need for impartiality in European Court rulings, Zia Akhtar, Barrister and member of Grays Inn (England), specialises in public law and human rights.https://www.civilprocedurereview.com › download
[10] Em contraste, o Supremo Tribunal do Canadá descreveu o conceito de “imparcialidade” judicial como referindo-se a “um estado de espírito ou atitude do tribunal em relação às questões e às partes num caso particular”. 11 Esta visão também foi confirmada a nível internacional, onde, por exemplo, o Comité dos Direitos Humanos considerou que a noção de “imparcialidade” no artigo 14(1) “implica que os juízes não devem nutrir preconceitos sobre a questão que lhes é apresentada, e que não devem agir de forma que promova os interesses de uma das partes”. 12 Quanto ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, considera que a noção de imparcialidade contém um elemento subjetivo e um elemento objetivo: não só o tribunal deve ser imparcial, na medida em que “nenhum membro do tribunal deve ter qualquer preconceito ou preconceito pessoal”, mas também deve “ser imparcial de um ponto de vista objetivo”, na medida em que “deve oferecer garantias para excluir qualquer dúvida legítima a este respeito”. disponibilidade de garantias (tradução nossa) https://www.ohchr.org › Documents › Publications, Chapter 4 INDEPENDENCE AND IMPARTIALITY OF JUDGES, PROSECUTORS AND LAWYERS, pág. 8.
[11] Negrito e sublinhado nossos.
[12] Citação original n.º 100 a pág. 44 100 TJUE, C506/04, Graham J. Wilson contra Ordre des avocats du barreau de Luxembourg, de 19 de setembro de 2006, n.º 53.
[19] Sobre o fenómeno da Violência doméstica veja-se o e-book do CEJ, 1ª e 2ª Edição, Convenção de Istambul e Relatório Explicativo que pode ser acedido na página do CSM, Explanatory Report to the Council of Europe Convention on preventing and combating violence against women and domestic violence; Relatórios sobre a situação da Violência Doméstica e contra as Mulheres em Portugal da autoria do GREVIO. Violência doméstica: compreender para intervir; Guia de Boas Práticas para Profissionais de Saúde, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, Presidência do Conselho de Ministros, In https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/13450/1/VD4_GBP_PROFISSIONAIS_SAUDE.pdf
[20] Embora não se descortinando qualquer razão para a repetição em audiência atento o que se dispõe no art.º 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, aprovado pela lei, segundo o qual nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
[21] A memória guarda apenas os aspetos mais importantes ou marcantes, de modo que sempre que se recorda um facto passado é natural que se recorde cada vez mais pormenores, alguns deles aditados através do preenchimento dos espaços em branco existentes no cérebro, e dos quais se não tem consciência, através do recurso às próprias regras da normalidade o famoso filling the blanks. Sobre o tema da Memória, V. Albuquerque, Pedro B., e outro, Os (Des)arranjos da Memória no Testemunho, Natureza Reconstrutiva da Memória, in Psicologia do Testemunho, 2021, Pactor.
[22] Como se pode ler a pág. 16 e ss. https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/13450/1/VD4_GBP_PROFISSIONAIS_SAUDE.pdf “a violência pode ser exercida através da Intimidação, da coação e da ameaça, o que “consiste em manter a mulher vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e/ou contra os seus familiares (sobretudo filhos) e amigos, a animais de estimação ou bens. Para tal, o agressor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, gestos mais ou menos explícitos, mostrar ou mexer em objectos intimidatórios (e.g., limpar a espingarda, carregar o revólver, afiar uma faca, exibir um bastão, dormir com armas à cabeceira da cama, ter armas na mão quando aborda sexualmente a sua companheira). Pode ainda ameaçar causar lesões ou a morte à companheira/esposa, aos filhos ou a familiares daquela, pode ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone ou recorrer à utilização dos filhos”.
[23] 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
[24] Artigo 3º – Definições
Para os efeitos da presente Convenção:
(…)
b) “violência doméstica” designa todos os actos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infractor partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima;