Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- a fixação dos contornos do direito atribuído pelo acordo que regula a utilização da casa de morada de família, em divórcio, constitui problema de interpretação, dependente das concretas circunstâncias do acordo.
- sendo os ex-cônjuges comproprietários do imóvel onde estava instalada a casa de morada de família, a expressão «a fracção autónoma (...) propriedade do requerente e requerida, em regime de compropriedade, fica entregue à requerida» não é bastante, à luz dos critérios de interpretação e das circunstâncias presentes, para sustentar a existência de vontade de criação de um direito real de habitação.
I. AA intentou contra BB acção de divisão de coisa comum, pedindo que se proceda à adjudicação da fracção autónoma a um dos comproprietários, caso consigam chegar a acordo, ou, quando assim não aconteça, se proceda à sua venda, com a consequente repartição do produto da mesma.
Alegou para tanto, no essencial, que:
- foi casado com a requerida no regime da separação de bens.
- durante o casamento compraram a fracção que identifica, a qual foi casa de morada de família e nela habitam actualmente a requerida e dois filhos comuns.
- o requerente não tem condições para suportar o pagamento de uma renda e a sua parte na amortização da fracção objecto da presente acção.
- pretende pôr termo à indivisão, sendo a fracção indivisível.
Após a declaração da incompetência absoluta do tribunal onde foi instaurada a acção, foi esta remetida para o tribunal competente.
A requerida contestou, alegando, em síntese, que:
- existe ofensa de caso julgado porquanto nos termos de acordo complementar ao divórcio a fracção, enquanto casa de morada da família, ficou entregue à requerida, tendo querido as partes estabelecer um direito de uso e habitação, acordo que foi homologado por decisão do Conservador do Registo Civil e decisão que não pode ser contrariada.
- verifica-se a incompetência absoluta do tribunal pois o processo de divisão de coisa comum não é ajustado para alterações de acordos e a competência caberia aos tribunais de família.
- as partes quiseram estabelecer, no acordo firmado, o direito de uso e habitação exclusivo da R., e mais que isso, quiseram estabelecer a inexistência de qualquer limite temporal para tal direito, sem qualquer condição resolutiva (excepção peremptória).
- seria necessário promover a intervenção da entidade credora.
Notificado, o requerente pronunciou-se sobre as excepções, pugnando pela sua improcedência. Em particular:
- negou a intenção de atribuição à requerida de um direito real de habitação periódica.
- afirmou que a fracção não era um bem alheio mas próprio da requerida, existindo assim uma desnecessidade originária que obsta à válida constituição do direito real de habitação.
- sustentou que aquele direito, a existir, não impede a venda.
Foi proferido despacho que considerou não haver lugar, na fase presente, ao chamamento do credor hipotecário e promoveu a realização de tentativa de conciliação, a qual, realizada, se frustrou.
Foi depois proferida decisão que:
- julgou improcedente a excepção dilatória de incompetência [material] absoluta do tribunal e a excepção dilatória de caso julgado.
- desatendeu a invocada excepção peremptória assente na existência de um direito real de habitação, direito que não reconheceu.
- concluiu pela indivisibilidade do bem em causa.
- fixou as quotas das partes.
- e, havendo o processo que prosseguir, determinou a citação do credor hipotecário.
Desta decisão interpôs a requerida recurso, formulando as seguintes conclusões:
A) Foi proferido Despacho pelo Mto.º Juiz a quo, que pondo fim à fase declarativa da forma especial de processo da acção de divisão de coisa comum, põe, nessa parte, termo à causa, pelo que constitui uma real e verdadeira sentença, que é aqui posta em crise.
B) Entendeu a decisão de que ora se recorre que deveria ser julgada improdecente, a excepção peremptória invocada em sede de contestação, de que o acordo quanto ao destino da casa de morada de família instituiu um verdadeiro direito de habitação vitalício e exclusivo a favor da aqui Recorrente.
C) Haverá que apurar, antes de mais, e tendo em conta os factos carreados para os autos, que “coisa comum” existe para ser objecto da acção especial de divisão, e que concreto direito detêm as partes sobre tal coisa.
D) Recorrente e Recorrido, em 2013, outorgaram de livre e esclarecida vontade, um acordo relativo ao imóvel objecto dos autos que era casa de morada de família, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória do Registo Civil de Local 1, mediante o qual esse imóvel foi atribuído à, à data, cônjuge mulher aqui Recorrente, de forma gratuita, e sem qualquer restrição temporal ou limite, não pode deixar de se entender este acto como uma real constituição de um direito de uso e habitação a favor da Recorrente, que consequentemente determina que o Recorrido detenha, no presente momento, apenas e tão só, a nua propriedade sobre a fracção autónoma objecto dos autos.
E) Pelo que, e salvo melhor entendimento, será exclusivamente a nua propriedade de que o Recorrido será titular, e que constitui a “coisa a dividir” nos presentes autos.
F) O acordo em causa, consistiu numa atribuição de direitos (v.g. uso e gozo) duradoura e prolongada no tempo - que poderia ter sido restringida e limitada, note-se, pela própria vontade das partes, mas que o não foi.
G) O que tem especial relevância em caso de existência de património comum que deva ser partilhado e cuja atribuição seja temporalmente limitada, enquanto necessária e essencial - que embora não assuma carácter definitivo (v.g. a atribuição da casa de morada de família não pode ser vista como a atribuição de um direito de propriedade), pode consubstanciar uma imperativa e pesada restrição deste direito, em particular, quanto à sua livre transmissibilidade.
H) Importará igualmente sublinhar que o acordo celebrado entre Recorrente e Recorrido relativo ao destino da casa de morada de família, que voluntariamente lhe atribuíram carácter definitivo, não tendo sido imposto qualquer limite temporal para tal atribuição, estabeleceu legítimas expectativas que foram criadas deste a data da sua homologação (2014).
I) Há uma obrigação de preservar a segurança jurídica que advém dos actos praticados e que produz efeitos na esfera jurídica das pessoas, e a decisão do apesar de tudo Douto Tribunal a quo, não deixando claro que o que o Recorrido teria direito a dividir seria apenas a nua propriedade da fracção autónoma objecto dos autos, faz tábua rasa de um dos valores primordiais do Estado de Direito.
J) O Tribunal a quo veio a colocar termo à parte declarativa do processo da acção especial de divisão de coisa comum decidindo no sentido de fixar as quotas dos consortes em dois quinhões equitativos de ½ para cada um – quando deveria ter decidido que, estando o direito maior (de propriedade) onerado pelo direito de uso e habitação, cada um dos consortes teria uma quota ideal de ½ da nua propriedade do bem objecto dos autos, sendo a Recorrente a única e exclusiva detentora do direito de uso e habitação da referida fracção autónoma.
K) Com efeito, tal decisão, e não despiciendo o raciocínio e análise da matéria de facto e, bem assim, da fundamentação de direito, não vem conforme aos termos legais, constituindo, por um lado, um atropelo àquilo que foi a vontade esclarecida e consentânea das partes, como atenta contra o direito estabelecido e os legais interesses protegidos emergentes dos acordos para ambas as partes, em particular, afectando negativamente a aqui Recorrente.
L) O acordo relativo ao destino da casa de morada de família não é passível de alteração por circunstâncias supervenientes, salvo em casos verdadeiramente excepcionais e que assim o imponham.
M) O que não sendo de todo o caso presente nos autos, não foi tão pouco objecto de pedido de alteração por parte do Recorrido, que em teoria, teria pelo menos direito a fazer tal pedido de alteração.
N) Nada obstava a que o Recorrido, tivesse proposto uma acção – e tivesse feito prova da alteração substancial das circunstâncias, tal como teria que provar que a sua situação financeira não era substancialmente superior e mais favorável que a situação financeira da Recorrente, o que não conseguiria provar, porque não é verdade - que se destinasse a alterar o acordo firmado, não o tendo feito, reitera-se, pertencerá ao Recorrido apenas e tão somente, o direito à nua propriedade do imóvel, e é isso que que o Douto Tribunal a quo deveria ter decidido.
O) Recorrente e Recorrido firmaram o acordo de atribuição da casa de morada de família nos termos em que o fizeram, atribuindo-a em exclusivo, de forma definitiva e sem qualquer limitação temporal, à Recorrente, sendo certo que tal bem integraria a herança que ambos deixariam aos quatro filhos do casal.
P) A expressão consagrada no acordo “fica entregue à Requerida”, não carece de interpretação – ou o Recorrido também teria avançado com uma acção judicial com esse fim, o que não fez – e também não poderia ter sido alvo de um escrutínio e interpretação liberal do Tribunal a quo, como se sucedeu, nem pode ser cunhada de excessivamente genérica ou vaga - que não é.
Q) Até porque Recorrente e Recorrido estiveram acompanhados de advogada aquando da divórcio por mútuo consentimento, que neste caso foi a própria mandatária do Recorrido, sua irmã e à data cunhada da Recorrente - que redigiu toda a documentação do divórcio por mútuo consentimento, e reuniu com Recorrente e Recorrido para esclarecer o exacto teor e efeitos de tais acordos, v.g. o acordo relativo ao destino da casa de morada de família, pelo que se tivessem existido dúvidas teriam nessa altura sido dissipadas, e se as partes não quisessem dizer o que efectivamente disseram no acordo, certamente teriam adoptado uma muito diferente formulação desse acordo.
R) E mesmo que a redacção dos acordos não tivesse tido o acompanhamento de mandatária, sempre se diria que ambos, Recorrente e Recorrido, sabiam, entendiam e queriam dizer exactamente o que ficou dito nos referidos acordos.
S) O acordo em causa nos autos, que é um encontro consensual de vontades, livres e esclarecidas, não sendo lícito, nem legítimo, a nenhuma das partes vir agora, após mais de uma década, alegar ou determinar que não conheceu o sentido e alcance dos acordos que firmou e subscreveu.
T) Tanto assim o Recorrido o entendeu e compreendeu, que apenas doze anos volvidos desde a dissolução do matrimónio, veio propor a presente acção, sem nunca ter questionado, ou se ter oposto ou contestado o direito de uso e gozo e consequente habitação da casa morada de família por parte da Recorrente.
U) Nada obsta, que a casa morada de família seja atribuída a um dos cônjuges mediante um contrato de comodato, assumindo carácter gratuito, ou até assumindo a natureza onde o cônjuge beneficiado assume algumas contrapartidas dessa atribuição, como seja responsabilizar-se pelo pagamento de encargos advenientes, como sejam o caso do IMI, condomínio, empréstimo bancário – tudo fica na disponibilidade das partes.
V) E nada obsta, também, a que a atribuição seja feita por tempo indeterminado – o que veio a suceder no presente caso.
W) Nada se impõe na lei, seja nas normas substantivas ou adjectivas relativas à atribuição da casa morada de família, que a contrapartida da atribuição seja, portanto, o arrendamento – essa é uma solução preconizada na falta de acordo entre as partes, acordo este que deve ser privilegiado, por respeitar a direitos e interesses dos próprios cônjuges relativos ao património comum ou detido em compropriedade.
X) Entende igualmente a Recorrente que o Douto Tribunal a quo, conforme fundamentação vertida, não pode fazer a desassociação da qualidade de ex-cônjuge face à qualidade de comproprietário, especialmente tendo conhecimento dos efeitos (externos) daquele acordo e das suas legais determinações.
Y) E poderia até ter analisado o acordo, não à luz de um potencial arrendamento, mas sim à luz de um potencial comodato, figura jurídica mais próxima e que, curiosamente, equivale à expressão e vontade exarada no acordo relativo à casa de morada de família.
Z) Termos em que o contrato apenas cessaria por decurso do prazo (não aplicável), por morte do comodatário (não aplicável) ou por esgotamento/preenchimento do fim visado (também não aplicável), não se verificando nenhuma causa legítima de restituição do bem ou de caducidade do contrato.
AA) Tendo em conta o fim habitacional e as pessoas visadas – neste momento, a Recorrente e um filho maior, dependente -, e em mero raciocínio académico, sem conceder, apenas se aceitaria que uma acção desta índole, como foi proposta pelo Recorrido, apenas se revestiria de legitimidade numa situação onde o filho já não carecesse de habitação e onde o Recorrido fizesse prova sagaz e definitiva da necessidade de proceder à venda daquele bem, prevalecendo essa necessidade à própria necessidade de habitação da Recorrente.
BB) Atentos o princípio da certeza e segurança jurídicas, a fundamentação de direito estipulada e firmada pelo Tribunal a quo esbarra naquilo que deve ser a protecção das expectativas e legítimos interesses e direitos de, pelo menos, o filho maior que reside com a Recorrente, e esta própria, uma vez que se dá primazia à vontade unilateral de vender um bem imóvel – porque outro fim não resulta patente da argumentação do Recorrido – face à necessidade imperiosa da Recorrente ter um sítio onde viver.
CC) Não se entendendo que da atribuição da casa morada de família, e dos termos do acordo firmado entre Recorrente e Recorrida, se extrapole um verdadeiro comodato, é inequívoco, e aqui em tom extremamente dissonante do Tribunal a quo, que há, pelo menos, um direito de uso e habitação.
DD) Direito de habitação esse que tem de prevalecer, até por razões de ordem constitucional, sobre todos e quaisquer interesses que o Recorrido veio carrear ao processo no âmbito da divisão de coisa comum
EE) Certo é que o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça vai precisamente na esteira de se considerar que a atribuição da casa de morada de família nos moldes em que foi feito nos presentes autos, configura ao cônjuge beneficiado um verdadeiro direito real de habitação.
FF) Da atribuição da casa morada de família deriva e nasce um verdadeiro direito de habitação para o comproprietário (no caso, a Recorrente), o que implica necessariamente que o outro comproprietário perca a faculdade de uso e gozo do imóvel – porque assim o quis.
GG) A faculdade de uso e gozo por parte do outro consorte fica compelida e restringida pela habitação do contra consorte, que passa a deter o uso e gozo exclusivo daquele bem.
HH) O interesse real, efectivo e actual, de necessidade de dispor de uma habitação, na falta de alternativas possíveis, da Recorrente, apenas poderá ser concretizado e salvaguardado perante terceiros com um direito real de habitação, onerando e restringindo o direito maior de (com)propriedade; de outro modo, essa necessidade habitacional ficará sempre comprometida, disponha a Recorrente do uso e gozo do imóvel ou não, que assume eficácia meramente obrigacional.
II) Neste sentido, deverá prevalecer a letra e espírito da lei, no sentido aposto no artigo 1484º do Código Civil: com efeito, e não obstante a qualidade de comproprietária, e de já ter o uso e gozo da sua correspondente metade, a prossecução e satisfação da necessidade premente (habitação) apenas pode ser acautelada com o efectivo gozo da outra metade que lhe é alheia, sendo que o direito do comproprietário deverá estar competentemente submisso ao direito (necessidade) comprovada de habitação do cônjuge comproprietário carecido.
JJ) Do acordo constante dos autos e relativo à matéria, resulta expressa e inequívoca a vontade das partes em dotar a atribuição de gratuitidade (não foram estipuladas contrapartidas, e poderiam ter sido) e por tempo indeterminado (poderia ter sido aposto um prazo ou momento temporal, e não o foi), tempo indeterminado esse que se deverá reger pela necessidade actual e comprovada da Recorrente, o que naturalmente o Tribunal a quo não pôde, nem quis, aferir.
KK) Em momento algum da decisão colocada em crise, e atenta a discussão de um direito fundamental constitucionalmente consagrado e protegido (art.º 65.º da Constituição da República Portuguesa - direito à habitação), já jurisprudencialmente relevado na matéria da atribuição da casa de morada de família e com previsão legal (artigos 1484º e seguintes do CC), o predito foi discutido e muito menos provado, e entende-se que assumiam importância fulcral para aferir da bondade e procedência da presente acção.
LL) Sem a sua aferição, está-se, portanto, perante uma decisão judicial, que menospreza a necessidade e direito habitacional da Recorrente, dando prevalência a um interesse “menor”, focalizado na vontade de não querer permanecer na indivisão (vender o imóvel), por um lado, e perante uma decisão que faz tábua rasa de um acordo que as partes quiseram firmar, de forma livre e esclarecida, em circunstâncias que não se vieram a alterar de forma a que pudesse estar sujeito a uma alteração superveniente que pudesse relevar.
MM) Pelo que se conclui no sentido de que deveria o Douto Tribunal a quo ter decidido que em face do acordo celebrado pelas partes relativo ao destino da casa de morada de família, apenas poderia ser objecto da presente acção de divisão de coisa comum, a nua propriedade, que é o único direito que permanece, de facto, em compropriedade.
NN) Foram violados os princípios e normas jurídicas acima assinalados.
OO) Termos em que deverá ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que acolha o entendimento supra exposto.
O recorrido respondeu, sustentando a manutenção da decisão impugnada.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa avaliar se foi constituído um direito real de habitação a favor da recorrente, devendo o processo atender apenas à compropriedade da nua propriedade da fracção autónoma em causa (em síntese, a conclusão MM).
III. Foram considerados provados os seguintes factos [1]:
1) No dia .../.../1994, Requerente e Requerida contraíram matrimónio, com estipulação de regime de separação de bens.
2) Em 30/05/2005, Requerente e Requerida registaram a seu favor, a aquisição da fracção autónoma, correspondente à fracção “G”, 4.º andar direito do prédio constituído em propriedade horizontal e sito na Avenida ..., n.º 107, em Local 1, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 3907 da União das Freguesias de Local 1 e descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob o n.º 532, onde estabelecerem a sua morada de família.
3) Sobre tal imóvel foi constituída hipoteca voluntária, para garantia das obrigações inerentes à aquisição de tal imóvel, sendo beneficiário actual da mesma o Banco BCP, S.A.
4) Em .../.../2014, o referido matrimónio foi dissolvido em processo de divórcio por mútuo consentimento n.º ...22/2013, homologado por decisão, na referida data, do conservador da Conservatória do Registo Civil.
5) Entre os acordos homologados na sequência do divórcio, está o referente ao destino da casa de morada de família, formulado nos termos seguintes:
“em instâncias de divórcio por mútuo consentimento, acordam:
Que a fracção autónoma do prédio urbano em regime de propriedade horizontal constituído pelo 4.º andar Direito, sito na Avenida ..., n.º 107, em Local 1, propriedade do requerente e requerida, em regime de compropriedade, fica entregue à requerida.”
6) No acto, foi igualmente acordada a regulação das responsabilidades parentais relativamente a três filhos menores do extinto casal, no qual se estipulou, entre o mais, que “os menores ficam à guarda e aos cuidados da mãe, que será a sua encarregada de educação, e residirão habitualmente com esta na presente morada.”
IV.1. Como condição de admissibilidade do divórcio por mútuo consentimento, devem, em regra, as partes acordar, nomeadamente, no destino da casa de família (art. 1775º n.º1 al. c) do CC, em formulação reproduzida no art. 272º n.º1 al. d) do CRegCivil).
Como notam Rita Lobo Xavier e Nuno Salter Cid [2], bem como a decisão recorrida, as formulações legais (mormente a decorrente das citadas normas), por amplas e descomprometidas, não estabelecem parâmetros fixos para tal acordo, pelo que o seu conteúdo pode, dentro dos limites marcados por normas imperativas, ser livremente fixado pelas partes [3]. Assim, o problema que se coloca, na determinação dos contornos do direito emergente daquele acordo fixado entre as partes, é essencialmente um problema de interpretação, e, dessa forma, também um problema único, inerente às específicas circunstâncias da situação em análise. Sendo que, como nota M. Raquel Rei, «as regras de interpretação dos negócios jurídicos pretendem potenciar o carácter único de cada negócio jurídico» [4].
Nesta interpretação vale em primeira linha o regime do art. 236º do CC, o qual, determinando, no seu n.º1, que se atenda ao comportamento declarativo e não à vontade do declarante como objecto da interpretação, consagra um sentido objectivo da interpretação pois aquele comportamento constitui algo externo à vontade do emissor. Esta vontade constitui apenas eventual limite a tal interpretação objectiva, através de desvios ou correcções subjectivas, consentidas pela parte final do n.º1 e pelo n.º2 do citado art. 236º. Deverá atender-se, assim e como regra, em caso de disputa na fixação do sentido declarativo do comportamento do declarante, a um declaratário normal, na posição do real declaratário, e ao sentido que do comportamento declarativo do declarante aquele declaratário possa deduzir [com o limite decorrente de tal sentido não valer se não poder ser razoavelmente antecipado pelo declarante, e sem prejuízo de a vontade real do declarante poder valer por si se conhecida pela parte contrária (n.º2)]. Quanto ao padrão definidor do declaratário normal, atende-se a um declaratário mediano, comum, normalmente diligente, informado e sagaz (critério normativo). Este critério médio é integrado, contudo, pelos elementos contextuais concretos que o declaratário conhecia ou devia conhecer, na medida em que se atende ao declaratário normal mas colocado na posição do real declaratário (posição real e não abstracta, e integrada assim por todos os condicionalismos da concreta situação).
Por estar em causa acto formal, aqueles critérios interpretativos têm que partir da declaração tal como expressa no texto formal (são mediados por este texto), não podendo, em princípio, a vontade da parte valer se não tiver no texto do documento um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º n.º1 do CC), com a ressalva do n.º2 do mesmo art. 238º. Tal não significa, contudo, que tal interpretação se cinja aos elementos da declaração tal como documentada, devendo atender-se a elementos externos à declaração que contribuam para esclarecer o seu sentido. A atendibilidade destes elementos externos à declaração deriva da referida necessária contextualização da declaração negocial (dada a atendibilidade da posição concreta do declaratário), sendo que o facto de a lei não indicar quais as circunstâncias atendíveis apenas significa que podem ser atendidas todas as circunstâncias que se mostrem relevantes, salvo onde ocorram obstáculos legais.
No caso, acresce a circunstância adicional de a declaração negocial ser conjunta, no sentido de ser simultaneamente imputada a ambas as partes, de certo modo sendo ambas autoras e destinatárias da declaração negocial, o que, embora suscite divergências, se entende não dever excluir a aplicação dos critérios gerais.
2. Assim, atendendo aos factos provados, os elementos disponíveis com relevo na interpretação do acordo são os seguintes:
- a fracção autónoma pertencia em compropriedade a ambas as partes.
- está em causa a atribuição da casa de morada da família e assim está subjacente ao acordo uma ideia de residência (também manifestada no acordo quanto às responsabilidades parentais).
- o acordo foi extremamente parco em elementos caracterizadores, tendo sido usada uma única expressão literal muito limitada e circunscrita, e é omisso sobre aspectos regulativos, do que deriva que não foi fixado lapso temporal ou retribuição.
Inexistem outros elementos circunstanciais mobilizáveis (por nada ter, nesse sentido, sido alegado em articulados, mormente na contestação - assim, por exemplo, quanto às circunstâncias económicas de que a recorrente fala em sede de recurso, ou quanto à intervenção de advogado, não oportunamente alegadas [5]).
Sem embargo, e face ao exposto supra, daqui deriva já que, não estando efectivamente demonstrada a vontade real das partes, esta se torna irrelevante, importando apenas o sentido que um declaratário normal, no quadro da situação concreta em causa, alcançaria.
3. Importa, deste modo, procurar fixar o sentido declarativo do acordo, à luz da valoração destes elementos enquanto pontos de apoio na fixação da impressão do declaratário.
Assim:
- a finalidade do acordo (regular a habitação) é-lhe inerente (o acordo é imposto para regular a residência familiar) e por isso dessa finalidade não se retira qualquer contributo quanto aos contornos dessa atribuição, nada dizendo ela sobre o meio concretamente pretendido usar. Aliás, a lei admite que o acordo vigore apenas para a vigência do processo de divórcio e não estabelece, em caso de consenso, regras especiais de duração ou consistência, mormente em função da existência de filhos, sendo por isso aquela finalidade conforme com soluções habitacionais com maior ou menor precariedade.
- a falta de estipulação de coordenadas temporais ou de retribuição é essencialmente ambígua, sendo compatível com formas negociais diversas, não constituindo realmente índice de forma real ou obrigacional (qualquer uma delas convive regularmente com aquelas omissões ou, se se quiser, com a gratuitidade ou falta de fixação da duração).
- a expressão usada, analisada essencialmente numa ideia de entrega do bem, aponta, num sentido comum (mas também jurídico), para uma ideia meramente material ou factual, de entrega do uso, ou seja, de mera atribuição material da coisa, em si, sem previsões ou intenções que ultrapassem tal ideia.
- a compropriedade importa que cada comunheiro possa usar a coisa integralmente [6] e, nesse sentido, já satisfazia a necessidade habitacional da família (a partir da posição da recorrente). O elemento perturbador era o direito de uso concorrente do recorrido (pois nenhum comunheiro pode ser privado do uso da coisa comum). O acordo, neste contexto, nada mais parece alcançar que a regulação destes usos concorrentes através da atribuição do uso exclusivo a um dos comunheiros. Donde a menção à entrega, como forma de dar a coisa (ou seja, o uso) à recorrente. Surge, assim, apenas como um acordo de utilização. Ao invés, a situação e a expressão mal se articula com uma intenção de criação ex novo de um direito real, com uma intervenção que iria modelar ex novo a titularidade real do bem, a qual vai muito além da mera manifestação de vontade de entrega do bem.
- o facto de a previsão da entrega da casa de morada de família surgir, nos termos literais do acordo, logo após à (re)afirmação da compropriedade dos interessados sobre ela, tende a apontar no sentido de que as partes não quiseram alterar o estatuto real, mas apenas as condições de fruição que aquele estatuto já autorizava.
- a criação de um novo direito real, pela sua intensidade e duração, constitui acto mais sério, gravoso e desigual, que exige maior segurança declarativa para revelar a sua criação [7]. O facto de a lei não contemplar esse direito real como solução legal em caso de desacordo entre os ex-cônjuges será ainda expressão do carácter marginal e excepcional da solução. Ora, a expressão usada mostra-se muito distante de uma formulação minimamente consistente quanto à intenção de criação de um direito real de habitação e quanto à revelação dessa intenção. É demasiado exígua, ou na expressão da decisão recorrida, demasiado frugal para tal, encontrando-se antes marcada por uma orientação mais fenomenológica que jurídica, ou mais possessória que real.
- é certo que a configuração real ou obrigacional do direito envolve uma diferente intensidade do direito conferido e por isso um diferente grau de tutela do beneficiário. Mas isso, só por si, nada nos diz sobre qual a concreta vontade das partes no caso, mormente se se direccionaram para uma tutela absoluta e vitalícia (que vai além da casa de morada da família, no sentido de que com a autonomização dos filhos tende a subsistir apenas a casa do ex-cônjuge) ou para uma situação menos permanente mas suficiente, à data, para garantir os interesses em causa.
- a própria circunstância de o direito nunca ter sido levado ao registo (e o registo até seria obrigatório: art. 2º n.º1 al. a) e 8º-A n.º1 al. a) do CRPredial) parece sugerir que a qualificação real não se tornou patente para as próprias partes [8] - nem para o Conservador do Registo Civil, entidade a quem caberia promover o registo (art. 8º-B n.º1 do CRPredial).
4. Por isso que se não descortine na expressão usada um sentido que um declaratário normalmente diligente (ou, numa palavra, um declaratário mediano), nas condições do caso, entendesse como uma vontade clara de modificação da situação real do bem, criando um direito real de habitação.
Conclui-se, assim, não ser possível reconhecer no caso a criação de um direito real de habitação a favor da recorrida, o que exclui a sua pretensão.
5. A recorrida, no recurso, suscita ainda, embora em termos hipotéticos (como algo que o tribunal poderia ter equacionado), a possibilidade de estar em causa um direito de comodato. Trata-se de questão que não foi colocada perante o tribunal recorrido, o que poderia suscitar dificuldades de avaliação, atento a natureza do recurso. Sem embargo, não se trata realmente de qualificação que a recorrente sustente (nem literalmente, atenta a conclusão Y, nem finalisticamente, pois esta qualificação não conduz ao resultado pretendido, que seria restringir a comunhão à nua propriedade) nem, na verdade, se trata de qualificação relevante. Pois, ao contrário do que a recorrente sugere, nesta acção não está em causa a restituição do bem nem a caducidade de nenhum direito obrigacional (conclusão Z) mas apenas pôr termo à compropriedade. E o direito obrigacional eventualmente criado não interfere com a situação subjacente à pretensão do recorrido (divisão de coisa comum assente em compropriedade) nem com o seu direito a pedir a divisão da coisa comum (aliás, a recorrente nunca tal referiu, sequer) pois, além de estes prevalecerem (dada a natureza real da compropriedade e o facto do direito a pedir a divisão constituir manifestação daquele direito real), eles também se colocam em planos diferentes e nem sequer necessariamente incompatíveis: um visa, pondo termo à compropriedade, definir a titularidade exclusiva do bem; outro respeita ao direito de crédito a continuar a usar o bem. O mero exercício do direito a pôr termo à comunhão não contende com o segundo. O resultado da acção é que poderá afectar o direito da recorrente mas essa é questão futura, atinente ao cumprimento ou incumprimento futuro do acordado ou, em outra perspectiva, à manutenção, ou não, do uso da coisa pela recorrente, com base em tal direito obrigacional. Essa é, pois, questão que por ora não se coloca e que aqui também se não discute.
6. Decaindo, suporta a recorrente as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).
V. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela recorrente.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
Relator:
António Fernando Marques da Silva
Adjuntos:
Ana Pessoa
Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto
_________________________________________________
1. Em reprodução literal.↩︎
2. In Do direito constituído por acordo sobre o destino da casa de morada da família – a propósito de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Lex Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, n.º 38, 2022, pág. 40.↩︎
3. Aparentemente mais restritiva, parecendo tender a recusar que o direito de habitação conferido ao ex-cônjuge possa ser qualificado como direito real de habitação, Marta Sá Rebelo, in Comentário ao CC, Direito das Coisas, UCEditora 2021, pág. 635/636, embora, a final (pág. 636), também chame a atenção para o facto de o acordo em causa dever ser sujeito a interpretação e não ser objecto de uma qualificação automática.↩︎
4. In Os Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência e a interpretação do negócio jurídico (a propósito dos AUJ 4/2022, de 22.03.2022 e 9/2022, de 24.11.2023), Revista de Direito Civil, 2023, n.º 2, pág. 445. Razão porque, aliás, os Acs. de Tribunais superiores conhecidos (todos elencados na bem elaborada sentença recorrida), não devem ser vistos como paradigmas da solução mas aplicações válidas para os casos que avaliaram (e, aliás, diferentes do vertente).↩︎
5. Embora não deixe de se notar que tais circunstâncias poderiam não ter o sentido que a recorrente lhes atribui.↩︎
6. Embora, segundo outros, apenas na proporção da sua quota (solução esta que, contudo, não parece decorrer do art. 1406º n.º1 do CC).↩︎
7. Também por isso que, com Rita Lobo Xavier e Nuno Salter Cid, se deva exigir uma vontade negocial inequívoca nesse sentido (ob. cit., pág. 439.↩︎
8. Embora, pelas razões do texto, se aceite que dificilmente o Conservador reconheceria no acordo em causa efeitos reais.↩︎