LETRA EM BRANCO
QUIROGRAFO
ALEGAÇÃO DA RELAÇÃO SUBJACENTE
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

Para os efeitos do art. 703º, nº 1, c), do NCPC, uma letra em branco, prescrita é um título de crédito, ainda que mero quirógrafo, e se os factos constitutivos da relação subjacente foram alegados no requerimento executivo, é um título executivo.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

I – Relatório

1. AA, residente em ..., intentou contra BB, residente em ..., e CC, residente em ..., execução para pagamento da quantia de 30.053,74 €, com base em livrança.

Alegou em suma, que exequente e executados realizaram entre si diversos negócios relacionados com a atividade de construção civil a que estavam ligados. Os executados enquanto representantes legais das empresas A... e B..., LDA., eram devedores de serviços prestados pelo exequente enquanto técnico de arquitetura e engenharia. Acresce ainda que o exequente vendeu aos executados as instalações e equipamentos onde laborava a empresa C..., Lda., sendo que por conta dessa venda ficaram valores por saldar. Posteriormente o exequente transmitiu a quota da aludida empresa aos executados. Como ainda dos valores referentes do imposto referente ao pagamento integral de máquinas de cortar pedra, assim como de uma viatura que haviam sido adquiridas através de empréstimo bancário (leasing). A totalidade de tais débitos ascendia, no que tange aos negócios respeitantes a tais empresas a mais de 100.000 €, sendo que os executados para garantia do pagamento de parte da dívida aceitaram a livrança, no valor de 25.000 €, emitida em 21 de Agosto de 2003 e vencimento a 21 de Novembro de 2003, correspondente ao título executivo. Porém tal livrança não foi apresentada a pagamento, a pedido dos executados e fruto das boas relações entretantos existentes. Decorrido o tempo, os executados nunca procederam ao pagamento do valor constante do titulo executivo, não obstante as interpelações efetuadas pelo exequente. Os executados através do aceite de livrança demonstram expressamente o reconhecimento da sua dívida, traduzindo o título em causa um acto de reconhecimento de um débito ou de promessa unilateral de prestação. A livrança é título executivo nos termos do art. 703º, nº 1, al c), do NCPC, e apesar de se encontrar prescrita, pode ser usada como quirógrafo da relação causal subjacente à sua emissão e beneficia da presunção de causa consagrada no nº 1, do art. 458º do Código Civil. São devidos 25.000 €, aos quais acrescem juros de mora vencidos calculados à taxa de juro civil contados desde os últimos cinco anos até à presente data, nos termos do art. 310º, al c), do CC, no valor de 5.002,74 €, o que perfaz a quantia exequenda global de 30.002,74 €. Acresce ainda juros vincendos até integral pagamento.

Os executados deduziram embargos, alegando, em suma, a falta de título executivo, porque a letra dada à execução não obedece aos requisitos formais, uma vez que não contém o nome do sacado, o nome da pessoa a quem deve ser paga e a assinatura do sacador, além de ter um NIF e um IBAN que são da C..., Lda, da qual os executados são gerentes, o que significa que actuaram em representação da mesma e não como devedores pessoais. No demais impugnaram a factualidade alegada pelo exequente. Também invocaram a prescrição ordinária e dos juros anteriores aos últimos 5 anos e pediram a condenação do exequente como litigante de má fé.

O exequente/embargado contestou, considerando que a letra era título executivo, enquanto mero quirógrafo, tendo alegado a relação subjacente no requerimento executivo. Que os executados assinaram a título pessoal e não como gerentes da dita empresa, não tendo sido aposto nenhum carimbo. Que inexiste prescrição. Alega o relacionamento comercial com os embargantes. Pede, igualmente, a condenação por litigância de má fé dos mesmos.

Os embargantes responderam, dizendo não haver má fé deles.

*

Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou procedente a falta de título executivo e, consequentemente, julgou extinta a execução.

*

2. O exequente AA recorreu, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Ao contrário da decisão recorrida, o Recorrente entende que em sede de contestação aos embargos, a letra dada à execução constitui título executivo, enquanto quirógrafo;

2.ª Tal letra, apesar de não ter sido apresentada a pagamento, continua a valer como título executivo enquanto quirógrafo, desde que seja alegada, pelo exequente, a sua relação subjacente no articulado do requerimento executivo, tal qual assim dispõe o artigo 703º n.º 1 al. c) do CPC, o que efetivamente sucedeu, ou seja no seu Requerimento Executivo, o Recorrente expôs a génese da emissão da letra dada à execução como título, o que implicou a demonstração da origem da dívida;

3.ª Pelo que a letra, para poder valer como quirógrafo da obrigação, o credor, não podendo escudar-se na abstração do título, fica obrigado a alegar e a comprovar a relação jurídica subjacente à entrega desse título (obrigação causal), ou seja, tem de alegar factos concretos que permitam determinar, com objetividade, o tipo de relação jurídica que foi estabelecida entre as partes e que esteve na base da emissão desse título

4.ª Por conseguinte, não reunindo o título de crédito os requisitos previstos na lei ou estando o mesmo prescrito, este só pode valer como título executivo, enquanto quirógrafo da obrigação, desde que tenha sido emitido pelo executado em consequência de qualquer negócio (relação fundamental) por ele celebrado com o exequente, isto é, desde que tenha subjacente um relacionamento tendo como sujeitos o credor originário e o devedor originário, para execução da relação fundamental.

5ª. A atribuição de força executiva aos títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos da obrigação, justifica-se por razões de segurança do tráfego jurídico e de se favorecer a sua utilização como meios de pagamento nas transações comerciais, o que significa que, a relação fundamental, designadamente a sua relação subjacente, deve ser sempre mencionada sob pena de a letra não poder revestir a natureza de quirógrafo e não pode valer enquanto título executivo.

6.ª Que foi o que sucedeu nos autos: o Recorrente apresentou a relação subjacente ao cheque dado

como título executivo, demonstrando que a sua existência deriva da celebração entre as partes de uma assunção de dívida, devida, entre outros factos – referidos no requerimento inicial - pela venda de equipamentos e instalações;

7.ª Pelo que não restam dúvidas que o título executivo é válido por se encontrar demonstrada a sua relação subjacente e, por via disso, mantém-se válida a instância executiva, falecendo, assim, a exceção da falta de título;

8.ª O facto de não conter o nome é irrelevante – não obstante estar assinada pelos Embargados, que invocaram até que tal assinatura não tinha sido feita pelo seu punho -, pois como o Recorrente expôs no seu requerimento executivo inicial, bem como na contestação aos embargos, ficou demonstrada toda a relação material subjacente à emissão da letra, o que por si só se torna suficiente para que a mesma valha como título executivo, enquanto quirógrafo;

9.ª Ou seja, não obstante não ter sido efetuado o pacto de preenchimento, não há dúvidas que a divida invocada era dos executados;

10.ª Se assim não fosse, bastaria a letra cair nas mãos erradas e, desde que mesma fosse preenchida por um estranho seria valida enquanto título executivo.

11.ª Neste sentido, a jurisprudência se tem manifestado em posição favorável ao Recorrente, como seja o Acórdão da Relação de Guimarães 15.03.2018, sob o processo n.º 554/15.7T8CHV-A.G1, ,in www.dgsi.pt:

12.ª No mesmo sentido, vejam-se os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 26.11.2020, sob o processo n.º 7891/19.0T8VNF-A.G1, de 10.07.2018, sob o processo n.º 5245/16.9T8GMR-C.G1,, ou ainda, da Relação do Porto, de 02.12.2021, de 993/19.4T8MAI.A.P1, todos in www.dgsi.pt

13.ª A sentença não poderá, pois, manter-se, tendo violado ou feito errada interpretação dos artigos, 607.º, n.º 4 e 662.º do Código de Processo Civil.

Termos em que na procedência do recurso, deve ser revogada a sentença e, por conseguinte, ser ordenada a prossecução dos autos, assim se fazendo JUSTIÇA!!

3. Os executados contra-alegaram, concluindo que:

1.ª- A alínea c) do art.º 703º n.º 1 do C.P.C., estabelece que são títulos executivos “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;”;

2.ª- Para verificação do disposto na referida alínea c) é necessário tratar-se de um título de crédito.

3.ª- O documento dado à execução, do qual não consta a indicação do sacador, nem a respetiva assinatura, nem a indicação do sacado, não preenche os requisitos previstos no art.º 1 da LULL, pelo que não pode produzir efeitos como letra, não se tratando de um título de crédito.

4.ª- O documento dado à execução, não contendo os elementos supramencionados, não pode assumir-se como um reconhecimento ou constituição de uma obrigação pecuniária que possa ser complementada pela alegação da relação causal.

5.ª- Não estando assim, o Recorrente munido de um título de crédito nos termos expostos, não estão preenchidos os requisitos da alínea c) do art.º 703º n.º 1 do C.P.C., pelo que a ação executiva carece de título executivo.

6.ª- Ademais, e contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se consegue identificar a alegada relação subjacente ao alegado título, sendo impossível concretizar qual seria essa a relação subjacente.

7.ª- Assim, em face de tudo o supra exposto, está verificada a falta de título executivo, por força da inobservância de requisitos essenciais, sendo douta a decisão do tribunal a quo correta ao julgar procedente a arguida falta de título executivo, julgando assim extinta a execução.

O que nos leva a concluir que a sentença proferida deverá ser mantida nos seus precisos termos.

O que se requer!

II – Factos provados

Os factos provados são os que constam do Relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Falta de título executivo.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Os exequentes deram à execução uma letra, para valer como mero quirógrafo, verificando-se que a mesma não contém a indicação do sacador, nem a respetiva assinatura, nem a indicação do sacado.

Nos termos do artigo 1.º, da L.U.L.L., a letra contém, além do mais, o nome daquele que deve pagar (sacado) (n.º 3), o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga (n.º 6), a assinatura de quem passa a letra (sacador) (n.º 8).

Por sua vez, nos termos do artigo 2.º, do mesmo diploma, o escrito em que faltar algum dos requisitos indicados, não produzirá efeito como letra, pois que não estão contemplados em nenhuma das exceções ali previstas.

Como refere Carolina Cunha (Manual de Letras e Livranças, 2016, Almedina, p. 25 a 28), a letra e a livrança são «documentos escritos dotados de elevado grau de formalismo, que assumem enorme importância enquanto suportes físicos (quase) infungíveis de legitimação ativa e passiva» sendo geralmente apontadas como exemplos de títulos constitutivos, em que a sua emissão funciona como pressuposto da constituição do direito.

Ora, toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.

O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto, assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

O artigo 703.º, do mesmo diploma legal, contém a enumeração taxativa dos títulos executivos, referindo-se no n.º 1, al. c), que podem servir de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

Ora, volvendo ao caso dos autos, afigura-se que o documento dado à execução não pode ser considerado título de crédito, por não produzir efeitos como letra, assim se impondo considerá-lo ainda que na sua invocação como mero quirógrafo.

Na verdade, mesmo como documento particular, a “letra” dada à execução, não contém o nome daquele que deve pagar e o nome de a quem deve ser paga, nem mesmo se podendo falar do reconhecimento ou constituição de uma obrigação pecuniária que possa ser complementada pela alegação da relação causal.

Neste caso, não existe a extinção da reação cambiária por efeito da prescrição como tantas vezes sucede e como vem alegado em sede de contestação, permitindo aí sim a utilização destes títulos como meros quirógrafos. No caso dos presentes autos, nunca existiu relação cambiária, por força da inobservância dos respetivos requisitos essenciais.

Em face do que se deixou exposto, julgo procedente a arguida falta de título executivo e, consequentemente, julgo extinta a execução que constitui os autos principais.”.

O recorrente discorda pelos motivos que alinhavou nas suas conclusões de recurso. E cremos que com razão.

Como se viu o art. 703º, nº 1, c), do NCPC, dispõe que pode servir de base à execução um título de crédito, ainda que mero quirógrafo, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente sejam alegados no requerimento executivo.

O argumento da decisão recorrida é a de que o documento dado à execução não pode ser considerado título de crédito, por não produzir efeitos como letra, dado não conter o nome daquele que deve pagar e o nome a quem deve ser paga. Por isso, conclui, que neste caso, não se pode falar do reconhecimento ou constituição de uma obrigação pecuniária que possa ser complementada pela alegação da relação causal, nem se pode falar em extinção da relação cambiária por efeito da prescrição como tantas vezes sucede e como vem alegado em sede de contestação, permitindo aí sim a utilização destes títulos como meros quirógrafos. 

Esta argumentação do tribunal a quo única e determinante para o desfecho dos autos não pode ser acolhida. Expliquemos brevitatis causa.

Efectivamente, temos um título de crédito. Uma letra em branco.

Dos requisitos essenciais da letra, previstos no art. 1º, da L.U.L.L., a letra aqui em análise, não contém, além do mais, o nome daquele que deve pagar – o sacado - (nº 3), o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga – o tomador - (nº 6) e a assinatura de quem passa a letra – sacador- (nº 8). Só contém, segundo a alegação do exequente, a assinatura dos executados, como aceitantes (no lugar próprio para isso). E aceitantes, como é sabido, são os sacados que aceitam a letra (art. 28º, 1º parágrafo, da LULL). A partir daí passaram a ser obrigados cambiários (vide Abel Delgado, LULL Anotada, 5ª Ed., nota 1. ao art. 21º, pág. 145 e nota 1 ao referido art. 28º, pág. 160).  

Por sua vez, nos termos do art. 2º, 1º parágrafo, do mesmo diploma, o escrito em que faltar algum dos requisitos indicados, não produzirá efeito como letra, pois que não estão contemplados em nenhuma das excepções ali previstas. Mas a disposição legal, não nega o valor probatório que, mesmo sem tais requisitos, o escrito possa ter como quirógrafo: Quirógrafo – título particular de dívida escrito e assinado só pelo devedor (vide ob. cit., nota 1 e nota de rodapé (1), ao art. 2º, pág. 36).

Prosseguindo.

Para haver uma letra em branco é necessário: a) que lhe falte algum requisito; que nela haja pelo menos uma assinatura, a qual tanto pode ser do sacador, como do aceitante, etc; c) que esta assinatura conste de um título que contenha a designação impressa e expressa de “letra”; d) que tal assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária (vide autor e ob. cit., notas 1. e 3., ao art. 10º, da citada Lei, pág. 81). Ora, as exigências constantes das ditas 4 alíneas verificam-se no nosso caso.

Embora o art. 2º afirme que o escrito a que falte algum dos requisitos indicados no art. 1º não produzirá efeitos como letra, como atrás vimos, tal facto não poderá significar senão que os requisitos do art. 1º são elementos – não de existência – mas sim de eficácia. Os aceitantes, ao aporem a sua assinatura na letra, constituem-se em uma obrigação cambiária, desde o início. A letra, mesmo antes de preenchida, circula, pois, como título cambiário, estando sujeita ao regime cambiário (vide, de novo, autor e ob. cit., nota 10., ao art. 10º, pág. 86).

Do exposto, resulta que existe um título de crédito, para os efeitos do mencionado art. 703º, nº 1, c), do NCPC.

O exequente tinha alegado no requerimento executivo que apesar de a letra se encontrar prescrita, o que abrange a letra em branco, pode ser usada como quirógrafo da relação causal subjacente à sua emissão, tendo alegado em tal requerimento a relação subjacente (o que voltou a repetir na contestação aos embargos). Afirmação que é correcta (vide, outra vez, o autor e ob. cit., notas 5. e 6. ao art. 2º, págs. 37 e 39 e notas 11. e 15. ao art. 10º, págs. 87 e 89).

Desta sorte, temos, para os efeitos do dito art. 703º, nº 1, c), do NCPC, um título de crédito, ainda que mero quirógrafo, em que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente foram alegados no requerimento executivo.

Ou seja, temos um título executivo, ao invés do que conclui o tribunal a quo. Por isso, a execução não podia ser extinta, antes havendo que prosseguir como aspira o exequente.     

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC): (…)

IV –Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando a decisão recorrida, ordenando-se, em consequência, o prosseguimento dos autos.

*

Custas pela parte vencida a final.

*

                                                                              Coimbra, 24.3.2025

Moreira do Carmo