1. - No âmbito do contrato de arrendamento rural, a transmissão por morte do arrendatário, ao abrigo do disposto no DLei n.º 385/88, de 25-10, depende da verificação dos pressupostos a que aludem os art.ºs 23.º e 24.º desse diploma legal:
a) Transmissão, designadamente, para o cônjuge sobrevivo, desde que não divorciado ou separado judicialmente ou de facto, e para algum dos filhos, contanto que com o mesmo vivessem habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo;
b) Comunicação ao senhorio, pela forma escrita, pelo titular do direito à transmissão, da sua vontade de o exercer, no prazo de 180 dias após a morte do arrendatário, sob pena de caducidade.
2. - Em ação de reivindicação, invocando os autores que o réu ocupa ilicitamente o prédio reivindicado, e defendendo-se o demandado mediante a alegação de que é o atual arrendatário, por transmissão por morte do primitivo arrendatário, seu pai, para a esposa, sua mãe, e desta para tal réu, razão pela qual defende que não houve caducidade do arrendamento rural, e que, assim, se encontra licitamente no prédio, com direito a ali continuar, cabe ao réu, reconhecido o direito de propriedade dos reivindicantes, o ónus de alegação e prova de todos aqueles pressupostos legais.
3. - Não tendo o réu alegado – nem se mostrando, por isso, provado – a obrigatória comunicação ao senhorio aludida em 1.-, b), ocorre a caducidade do contrato de arrendamento, com a respetiva extinção, procedendo a ação de reivindicação.
4. - O conhecimento pela Relação da impugnação da decisão de facto só se justifica, de acordo com o princípio da limitação dos atos (art.º 130.º do NCPCiv.), se tiver utilidade para a decisão do recurso, não devendo tal conhecimento ocorrer, por inútil, se em nada influenciar o respetivo desfecho, como no caso de ficar prejudicado pela decisão prévia de questões de ordem jurídica definidoras do mérito
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
AA, BB, CC, DD, EE, FF, todos com os sinais dos autos,
intentaram ([1]) ação declarativa condenatória, com processo comum, contra
GG, também com os sinais dos autos,
pedindo nos seguintes termos:
«a) Ser o R. condenado a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio misto, situado em ..., Freguesia ..., ... e ..., concelho ..., composto de terra de semeadura, vinha, oliveiras, outras árvores de fruto e mato e casa de habitação, cómodos e logradouro, com a área total de 43080 m2, incluindo a parte urbana com a área coberta 142 m2 e descoberta de 120 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ...77, Freguesia ... (...), e inscrito na matriz, na parte urbana sob o artº ...22 da Freguesia ..., ... e ... (teve origem no artº ...02-U da Freguesia ... (...)) e na parte rústica sob o artº ...5, secção V da Freguesia ..., ... e ...;
b) Ser o R. condenado a desocupar o imóvel, restituindo-o aos seus proprietários livre e devoluto de pessoas e bens;
c) Ser o Réu condenado no pagamento de uma quantia diária de €100,00 (cem euros), a título de indemnização aos AA. pela ocupação indevida do prédio, desde 7 de Maio de 2021 (data da sua interpelação judicial) e até à sua restituição integral, livre e devoluta de pessoas e bens, quantias estas às quais deverão, naturalmente, acrescer juros legais vencidos e vincendos desde a citação e até integral e efectivo cumprimento» (destaques subtraídos).
Para tanto, alegaram, em síntese, que, sendo os demandantes proprietários do imóvel aludido, âmbito em que beneficiam da presunção registral (por inscrição de aquisição a seu favor), encontra-se o R. ilegitimamente a ocupá-lo, sendo que, notificado já para o abandonar, não o fez, assim causando prejuízos aos AA. (danos patrimoniais e não patrimoniais), a deverem ser objeto de indemnização no âmbito do disposto no art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil (doravante, CCiv.).
O R. contestou, concluindo pela improcedência da ação e afirmando, para tanto e em síntese, que:
- dispõe de título legítimo para a ocupação do prédio, por o ter o seu pai recebido em arrendamento e, por morte dele, tal arrendamento ter passado para a sua mãe (esposa daquele) e, após, por morte desta, passado para o R.;
- tem o R. amanhado o prédio, o que faz desde há dezenas de anos, ainda no tempo em que os pais eram rendeiros, com os quais sempre ali viveu;
- pagou rendas até 2004, após o que deixou de o fazer, por não saber a favor de quem as depositar, uma vez falecidos os anteriores representantes e ninguém ter comunicado que tivesse poderes para receber as rendas;
- porém, está disponível para pagar as rendas posteriores a 2004;
- a morte do rendeiro não faz caducar o contrato, que se transmite (a posição contratual de arrendatário) ao cônjuge sobrevivo ou aos parentes ou afins na linha reta – no caso, primeiro transmitiu-se à viúva, HH, e depois ao filho, o ora R., que sempre residiu com os pais até ao óbito destes e sendo o atual rendeiro, com o reconhecimento dos anteriores proprietária do imóvel, tendo sido emitidos alguns recibos a favor dele;
- assim, inexiste qualquer lesão de direitos ou invocado prejuízo.
Os AA., pronunciando-se, alegaram que o R. nunca foi rendeiro do imóvel em causa, nem como tal foi reconhecido, nem lhes tentou pagar qualquer renda nessa qualidade.
No prosseguimento dos autos foi realizada audiência prévia, após o que (em 16/06/2023) foi proferido despacho saneador, com definição do objeto do litígio e conhecimento parcial do mérito da causa, âmbito em que foi decidido:
a) «Condena-se o Réu (…) a reconhecer o direito de propriedade dos Autores (…) sobre o prédio misto, situado em ..., Freguesia ..., ... e ..., concelho ..., composto de terra de semeadura, vinha, oliveiras, outras árvores de fruto e mato e casa de habitação, cómodos e logradouro, com a área total de 43080 m2, incluindo a parte urbana com a área coberta 142 m2 e descoberta de 120 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ...77, Freguesia ... (...), e inscrito na matriz, na parte urbana sob o artº ...22 da Freguesia ..., ... e ... (teve origem no artº ...02-U da Freguesia ... (...)) e na parte rústica sob o artº ...5, secção V da Freguesia ..., ... e ....»;
b) «Prosseguem os autos os demais termos para apreciação dos demais pedidos formulados».
Logo foram enunciados os temas da prova e admitidos os requerimentos probatórios.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença (datada de 18/09/2024), julgando a ação improcedente, com a consequente absolvição do R., quanto aos pedidos ainda subsistentes.
De tal sentença vieram os AA., inconformados, interpor o presente recurso, apresentando alegação e as seguintes
Conclusões ([2]):
«1.ª - Nos presentes autos a douta sentença recorrida termina julgando “improcedente a presente acção (para lá da procedência já decidida em sede de saneador/sentença) e absolve o Apelado GG dos seguintes pedidos formulados pelos Apelantes na sua petição:
- Ser o R. condenado a desocupar o imóvel, restituindo-o aos seus proprietários livre e devoluto de pessoas e bens;
- Ser o Réu condenado no pagamento de uma quantia diária de €100,00 (cem euros), a título de indemnização aos AA. pela ocupação indevida do prédio, desde 7 de Maio de 2021 (data da sua interpelação judicial) e até à sua restituição integral, livre e devoluta de pessoas e bens, quantias estas às quais deverão, naturalmente, acrescer juros legais vencidos e vincendos desde a citação e até integral e efectivo cumprimento;
2.ª - Entendem os ora Apelantes que a presente acção foi julgada incorrectamente quanto a determinada matéria de facto, pois a realidade plasmada na douta sentença recorrida está em oposição com a que resulta do depoimento da testemunha II, quando conjugado com toda a prova documental e pericial junta aos autos.
3. Pretendem também a reapreciação da questão de direito, na medida em que a douta sentença recorrida, ao contrário do peticionado, não condenou o Apelado a desocupar e a restituir o imóvel aos Apelantes livre e devoluto de pessoas e bens e também não condenou o Apelado a pagar aos Apelantes a quantia diária de €100,00 desde 07-05-2021 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, como deveria ter feito, pois assim o impunham os factos provados (o que ainda mais se justifica à luz da alteração da matéria de facto suscitada no presente recurso).
4.ª Os Apelantes pretendem a alteração da matéria de facto nos seguintes termos: devido a um erro na apreciação da prova, ao invés do que decorre dos depoimentos das testemunhas II e JJ (cuja transcrição é feita no corpo das presentes alegações), quando conjugado com a prova documental e a prova pericial produzida, constam na douta decisão recorrida como provados os factos constantes nos pontos 8, 9, 10 e 11 da Motivação da douta sentença, os quais, ao invés, deveriam ter sido considerados como não provados. CONCRETAMENTE,
5.ª - Deverá ser alterada a douta decisão recorrida na parte em que considerou como provado que após o falecimento da indicada em 8, o R. continuou a amanhar o prédio acima aludido e substituída por outra que considere como não provada tal factualidade.
6.ª - Mais deverá tal alteração repercutir-se no julgamento da questão de direito.
7.ª - Deverá ser alterada a douta decisão recorrida na parte em que considerou como provado que o R. habita casa existente no mesmo prédio aí tendo os seus haveres, e substituída por outra decisão que considere como não provada tal factualidade.
8.ª - Mais deverá tal alteração repercutir-se no julgamento da questão de direito.
9. ª - Deverá ser alterada a douta decisão recorrida na parte em que considerou como provado que o R. sempre viveu desde o nascimento, quer com os seus pais, quer com a sua mulher e filhos no prédio indicado em 1, ajudando os pais a cultivá-lo quando eram vivos e passando a fazê-lo sozinho depois deles falecerem e ter falecido a sua esposa, bem assim após saída dos filhos de casa e substituída por outra que considere como não provada tal factualidade.
10.ª - Mais deverá tal alteração repercutir-se no julgamento da questão de direito.
11.ª - Deverá ser alterada a douta decisão recorrida na parte em que considerou como provado que em data não concretizada (s.n.) o R. apresentando-se como “arrendatário”, depositou na Banco 1... a “renda” relativa ao prédio a que se tem vindo a fazer referência no montante de €51,00, dizendo nesse documento, que assinou, e na parte referente ao motivo “porque os herdeiros de DD se recusaram a receber as rendas” e substituída por outra que considere como provado que “em 03-11-2004 o R. depositou na Banco 1... a “renda” relativa ao ano de 2004 referente ao prédio a que se tem vindo a fazer referência no montante de € 51,00, dizendo nesse documento, que assinou, e na parte referente ao motivo “porque os herdeiros de DD se recusaram a receber as rendas”.
12.ª - Mais deverá tal alteração repercutir-se no julgamento da questão de direito.
13.ª - Deverá, ainda, ser alterada a douta decisão recorrida na parte em que não considerou como provado que os aqui AA. notificaram judicialmente o Réu em 07-05-2021 para lhes restituir de imediato o aludido prédio - e substituída por outra que considere como provada tal factualidade.
14. ª - A segunda questão que os ora Apelantes pretendem seja analisada em sede de recurso reconduz-se ao facto da douta decisão recorrida, para além dos apontados erros da decisão relativa à matéria de facto, também enfermar de vários erros de julgamento de direito.
15. ª - Na decisão do Mmº Juíz a quo de 16-06-2023, com a referência Citius 104116298, transitada em julgado, foi o Apelado condenado a reconhecer o direito de propriedade dos Apelantes sobre o imóvel reivindicado.
16.ª - O direito de propriedade só admite restrições impostas por lei (cfr. artº 1305º do Código Civil) e nas acções de reivindicação definidas no artº 1311º do Código Civil, reconhecido o direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (nº 2 da disposição).
17.ª - No caso em apreço o Apelado invocou na sua contestação ser arrendatário rural do imóvel dos Apelantes e tal qualidade foi reconhecida pela douta decisão recorrida, todavia, os Apelantes consideram que os respectivos pressupostos de facto e de direito não estão verificados, mesmo que improcedessem os erros de julgamento de facto atrás apontados.
18.ª – Desde logo porque ocorreu a caducidade do contrato de arrendamento existente em nome da mãe do Apelado, KK, na sequência da morte desta verificada em 08-06-2005.
19.ª – Ao contrário do que foi decidido na douta sentença recorrida, não é possível concluir, por um lado, que o Apelado tivesse direito à transmissão do arrendamento por morte da sua mãe e, por outro lado, também não é possível concluir que ocorreu a transmissão do arrendamento da mãe do Apelado para este.
20.ª - Dispõe o nº 1 do já citado artº 23º do referido decreto-lei nº 385/88 de 25 de Outubro, na parte que interessa ao caso em apreço que “o arrendamento rural não caduca por morte do arrendatário, transmitindo-se (...) a parentes ou afins, na linha recta, que com o mesmo viviam habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo” (s.n.).
21.ª - Passando a analisar a factualidade alegada pelo Apelado na sua contestação e, principalmente, a factualidade considerada como provada na Motivação, em nenhuma parte consta que o Apelado vivesse “habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo”.
22.ª - O Apelado limita-se a afirmar na sua 1ª contestação que nasceu em 1953 na parte habitacional do prédio em causa (artºs 7º e 8º da 1ª contestação), que “sempre residiu com os pais até ao óbito de cada um deles” (artº 26º da 1ª contestação) e “habitando a parte urbana” do prédio (cfr. artº 29º da 1ª contestação).
23.ª - Também dos factos provados não se pode minimamente concluir que o Apelado tivesse vivido habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo com a sua falecida mãe.
24.ª - Assim, não tendo sido alegado pelo Apelado, nem considerado como provado que o mesmo vivesse habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo, não assiste ao Apelado direito à transmissão do arrendamento ao abrigo do artº 23º do decreto-lei nº 385/88 de 25-10.
25.ª - A tudo o atrás exposto acresce ainda que a douta decisão recorrida enferma de erro de julgamento de direito, ao não ter considerado o disposto no nº 2 do artº 24º do já citado decreto-lei nº 385/88 de 25-10.
26.ª - Não foi alegado pelo Apelado na sua contestação, nem tão pouco foi considerado como provado na douta decisão recorrida, que aquele tenha comunicado, ou tentado comunicar, por escrito, aos aqui Apelantes, que pretendia exercer o direito à transmissão do arrendamento.
27.ª - Como foi decidido doutamente no Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, de 01-02-2022, relatado pelo Ex.mº Senhor Desembargador Fonte Ramos (in DGSI, https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/b4eecd9ef1214fa1802587f300493879?OpenDocument):
“I – O contrato de arrendamento rural caduca por morte do arrendatário se, no prazo de 180 dias após a morte deste, os titulares do direito à transmissão do arrendamento não comunicarem por escrito ao senhorio a sua vontade de continuar como arrendatários.
II – O facto de, após a morte do arrendatário, os titulares do direito à transmissão do arrendamento, se manterem no gozo do prédio não tem por efeito a renovação do contrato nem a formação de um novo”.
28.ª - Assim, o MMº Juiz a quo deveria ter decidido na douta sentença recorrida que, por aplicação do n.º 2 do art.º 24º do DL 385/88 (LAR), o direito à transmissão do arrendamento rural existente em nome da mãe do Apelado (direito à transmissão que os Apelantes consideram que não existe pelos motivos atrás expostos) caducou no dia posterior ao termo do prazo de 180 dias a contar da sua morte ocorrida em 08-06-2055, visto não ter sido alegado nem demonstrado que o Apelado comunicou a sua vontade de continuar como arrendatário.
29.ª - Pelo que tendo o prazo de 180 dias, a contar da morte da mãe do Apelado, terminado em 6-12-2005, o eventual direito do Apelado à transmissão do arrendamento caducou no dia 07-12-2005, o que significa que não assiste ao Apelado direito à transmissão do arrendamento ao abrigo do artº 23º do decreto-lei nº 385/88 de 25-10.
30.ª - Finalmente, refira-se que os contratos de arrendamento rural, mesmo quando celebrados antes de 1988, estão sujeitos a redução a escrito desde 01-07-1989 (cfr. artº 3º do decreto-lei nº 385/88, de 25-10), sob pena de nulidade, já que, segundo o nº3 da referida disposição legal, “qualquer das partes tem a faculdade de exigir, mediante notificação à outra parte, a redução a escrito do contrato”, acrescentando o seu n.º4 que “a nulidade do contrato não pode ser invocada pela parte que, após notificação, tenha recusado a sua redução a escrito”.
31.ª - Nunca o Apelado foi arrendatário/rendeiro do imóvel e, consequentemente, também nunca foi reconhecido como tal, pelo que a nulidade seria sempre a sanção para uma tal realidade, nos termos do artº 220º do CC.
ASSIM,
32.ª - Considerando os factos provados pelo MMº Juíz a quo na douta sentença recorrida, impunha-se, por um lado, a condenação do Apelado a desocupar e a restituir o imóvel aos Apelantes livre e devoluto de pessoas e bens e, por outro lado, a condenação do Apelado no pagamento aos Apelantes da quantia diária de €100,00 desde 07-05-2021, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
33.ª - Em suma, decidindo de modo contrário a todo o exposto, a douta decisão recorrida, ao não julgar a matéria de facto nos moldes supra indicados e ao não condenar o Apelado a desocupar e a restituir o imóvel aos Apelantes livre e devoluto de pessoas e bens e, no pagamento aos Apelantes da quantia diária de €100,00 desde 07-05-2021, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como nos juros de mora peticionados, erra por violação de lei, ao não ter considerado a legislação vigente, entre o plano das normas e princípios constitucionais e o da aplicação concreta, violando, entre outras do douto suprimento desse Tribunal da Relação, as normas contidas nos artºs 62º da CRP, 220º, 483º, 496º, 559º, 562º, 564º, 566º, 804º, 805º, 806º, 1305º, 1311º, do CC; e 3º, 23º, 24º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25-10.
TERMOS EM QUE, e demais de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, concomitantemente, ser a douta decisão recorrida revogada e substituída por outra que:
a) Julgue não provados os factos constantes nos pontos 8, 9, 10 e 11 (este último apenas na parte inicial e com a rectificação apontada no corpo da presente alegação) da douta sentença e ;
b) Julgue provado que os Apelantes notificaram judicialmente o Réu em 07-05-2021 para lhes restituir de imediato o aludido prédio; e
c) Julgue totalmente procedente os pedidos deduzidos pelos ora Apelantes contra o Apelado para condenação deste a desocupar e a restituir o imóvel aos Apelantes livre e devoluto de pessoas e bens e, ainda, no pagamento aos Apelantes da quantia diária de €100,00 desde 07-05-2021, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como nos juros de mora peticionados, assim se fazendo JUSTIÇA.».
Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, cabe saber ([4]):
a) Se, desde logo, não foi alegado pelo R./Apelado na sua contestação, nem foi considerado como provado, que aquele tenha comunicado, ou tentado comunicar, por escrito, ao senhorio, que pretendia exercer o direito à transmissão do arrendamento, determinando, sem mais, a caducidade do contrato de arrendamento;
b) Se ocorre erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, obrigando à alteração do decidido, no âmbito impugnado;
c) Se, por força de tal alteração e/ou por razões de direito, deve revogar-se a sentença recorrida nos moldes pretendidos pelos AA./Apelantes.
A) Da Matéria de facto da sentença
1. - É a seguinte a factualidade provada que foi considerada para a decisão:
«Factos Provados em anterior saneador/sentença que decidiu parcialmente do mérito:
1- O Prédio misto, situado em ..., Freguesia ..., ... e ..., concelho ..., composto de terra de semeadura, vinha, oliveiras, outras árvores de fruto e mato e casa de habitação, cómodos e logradouro, com a área total de 43080 m2, incluindo a parte urbana com a área coberta 142 m2 e descoberta de 120 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ...77, Freguesia ... (...), e inscrito na matriz, na parte urbana sob o artº ...22 da Freguesia ..., ... e ... (teve origem no artº ...02-U da Freguesia ... (...)) e na parte rústica sob o artº ...5, secção V da Freguesia ..., ... e ....
2- A actual descrição deste prédio (descrição nº...77) teve origem na descrição nº ...97 do Livro de Descrições nº ...09 da C.R. Predial ....
3- O referido prédio mostra-se inscrito a favor dos Autores pela Ap ... de 1995/01/06.
Factos Provados em relação à restante matéria em discussão nos autos:
4- O R. consta registado como filho de LL e de KK, tendo nascido em 1953.
5- KK, faleceu em ../../2005 no estado de viúva de LL, o qual faleceu em data não concretizada.
6- Entre os abaixo referidos foi outorgado o designado “contrato de arrendamento ao cultivador directo” tendo por objecto o prédio indicado em 1, com as seguintes cláusulas e condições:
7- Após o falecimento do MM, a sua mulher KK, manteve-se a explorar o prédio acima aludido tal qual o fazia o marido, nele vivendo em casa existente dentro do mesmo, e pagando a respectiva contraprestação.
8- Após o falecimento da indicada em 8, o R. continuou a amanhar o prédio acima aludido, nele tendo animais, como sejam, patos e ovelhas, os quais pastam no solo desse prédio, e aí vivem.
9- O R. habita casa existente no mesmo prédio aí tendo os seus haveres.
10- O R. sempre viveu desde o nascimento, quer com os seus pais, quer com a sua mulher e filhos no prédio indicado em 1, ajudando os pais a cultivá-lo quando eram vivos e passando a fazê-lo sozinho depois deles falecerem e ter falecido a sua esposa, bem assim após saída dos filhos de casa.
11- Em data não concretizada o R. apresentando-se como “arrendatário”, depositou na Banco 1... a “renda” relativa ao prédio a que se tem vindo a fazer referência no montante de € 51,00, dizendo nesse documento, que assinou, e na parte referente ao motivo “porque os herdeiros de DD se recusaram a receber as rendas”.
12- Após aquela data nenhum outro valor foi pago aos AA. a qualquer título pela exploração do prédio a que se tem vindo fazer referência.
13- O prédio dos AA. tem um valor patrimonial actual e potencial de € 478.700,00.
14- Os AA. não têm usado e fruído o prédio acima aludido.
15- Em 14 de Janeiro de 2021 os AA. apresentaram notificação judicial avulsa pedindo a KK que restituísse aos mesmos o prédio indicado em 1.
16- Na sequência do pedido indicado em 15 o Agente de Execução elaborou o seguinte expediente:
».
2. - E resulta julgado não provado na sentença:
«a) Os AA. estão impedidos de vender o prédio referido no artigo 1º da petição inicial.
b) O R. impediu os AA. de ceder parte do prédio à Câmara Municipal ... para criação de infraestruturas e equipamentos sociais.
c) O referido em 14 e em a) e b) causa prejuízo diário aos AA. em montante concretamente não apurado.
d) O referido em 12 aconteceu por o R. desconhecer quem representava as heranças proprietárias do imóvel.».
Entendem os AA./Recorrentes que não foi alegado na contestação, nem considerado como provado na sentença, que o R./Recorrido tenha comunicado, ou tentado comunicar, por escrito, aos aqui Apelantes (senhorio), que pretendia exercer o direito à transmissão do arrendamento (cfr. conclusão 26.ª).
Defendem que tal determina, desde logo, e sem mais, a extinção do contrato por caducidade, ao contrário do que o R. alegou na contestação, onde invocou que inexistiu caducidade do contrato por morte do primitivo arrendatário (o seu pai), posto a posição contratual respetiva se ter transmitido para a sua mãe (esposa daquele inicial arrendatário) e desta, aquando do seu subsequente óbito, para o filho, o aqui demandado.
Na contra-alegação de recurso, o R./Apelado não se pronunciou – podendo fazê-lo – sobre este argumento dos Recorrentes: o da não alegação e prova da comunicação de pretender exercer o direito à transmissão do arrendamento e sua relevância para a decisão do recurso.
Tendo em conta que esta linha de argumentação dos Apelantes, em caso de procedência, pode deixar prejudicadas outras matérias recursivas – desde logo, a impugnação da decisão de facto, visto o delimitado âmbito desta –, será por ela que se iniciará a sindicância do Tribunal ad quem.
Na sentença, em matéria de direito – depois de se ter qualificado o contrato celebrado entre os anteriores proprietários do imóvel em questão e o pai do R. como “contrato de arrendamento ao cultivador directo” –, expendeu-se assim:
«Tal contrato regia-se pelo decreto-Lei n.º 201/75 de 15 de Abril que no seu artigo 1º dizia que:
1. O arrendamento de prédios rústicos, no todo ou em parte, para fins de exploração agrícola, pecuária ou florestal, nas condições de uma regular utilização, denomina-se arrendamento rural.
2. Considera-se arrendamento ao cultivador directo aquele que tem por objecto um ou mais prédios que o rendeiro explore exclusiva ou predominantemente com o seu próprio trabalho executivo ou o das pessoas do seu agregado familiar.
3. Para os efeitos do número anterior entende-se por agregado familiar o conjunto de pessoas, ligadas entre si por qualquer grau de parentesco, que vivam habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum com o rendeiro.
4. Se o arrendamento recair sobre o prédio rústico e do contrato e respectivas circunstâncias não resultar o destino atribuído ao prédio, presume-se rural; […]”
Assente a existência de um contrato de arrendamento rural na modalidade de arrendamento ao cultivador directo, temos que de acordo com o artigo 21º do mesmo diploma legal:
1. O arrendamento rural não caduca por morte do senhorio, nem pela transmissão do prédio, nem quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado.
2. O arrendamento rural também não caduca por morte do rendeiro e transmite-se ao cônjuge sobrevivo não separado de pessoas e bens ou de facto, parentes ou afins até ao 4.º grau que com o mesmo vivam habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum.
3. A transmissão a que se refere o artigo anterior defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo;
b) Aos parentes ou afins de linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau mais afastado;
[…].
4. A transmissão a favor dos parentes ou afins, dentro dos limites e segundo a ordem estabelecidos nos números anteriores, também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.
5. O arrendamento, todavia, caducará quando o direito à sua transmissão, conferido neste artigo, não for exercido nos três meses seguintes à morte do rendeiro, ou do cônjuge não separado de pessoas e bens ou de facto, mediante comunicação escrita ao senhorio, mas a restituição do prédio nunca poderá ser exigida antes do fim do ano agrícola em curso no termo daquele prazo.”
Ao diploma acima referido seguiu-se a lei nº 76/77 de 29 de Setembro alterado pela lei nº 76/79 de 03 de Dezembro, seguidamente o decreto/lei nº 385/88 de 25 de Outubro, alterado pelo decreto/lei nº 524/1999 de 13 de Outubro e por fim aquele que está em vigor, decreto/lei nº 294/2009 de 13 de Outubro.
Ora na data do falecimento da mãe do R., ou seja, em 2005 estava em vigor o decreto/lei nº 385/88 de 25 de Outubro que no seu artigo 23º referia:
“1 - O arrendamento rural não caduca por morte do arrendatário, transmitindo-se ao cônjuge sobrevivo, desde que não divorciado ou separado judicialmente ou de facto, àquele que no momento da sua morte vivia com ele há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges e a parentes ou afins, na linha recta, que com o mesmo viviam habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo.
2 - A transmissão a que se refere o número anterior defere-se pela ordem seguinte:
a) Ao cônjuge sobrevivo;
b) Aos parentes ou afins da linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau mais remoto;
c) À pessoa que vivia com o arrendatário há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges.
3 - A transmissão a favor dos parentes ou afins do primitivo arrendatário, segundo a ordem constante do número anterior, também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento.
4 - Pode haver duas transmissões mortis causa nos termos do número anterior ou apenas uma quando a primeira transmissão se operar a favor das pessoas referidas nas alíneas b) e c) do n.º 2.”
Pois bem, descendo ao caso dos autos e levando em conta os factos provados, por morte do progenitor do R. houve transmissão do arrendamento para a mãe de tal R. e mulher do defunto rendeiro.
E por morte da mãe do R. houve transmissão para o R. a qual era admitida pelo nº2 a nº4 do artigo 23º do decreto/lei nº 385/88 de 25 de Outubro, já que o R. tendo vivido com os pais, continuou a usar o prédio nele tendo os seus animais que aí pastam e vivendo dentro de casa lá existente onde tem os seus haveres.
Pelo que, sendo titular de contrato de arrendamento rural, tem título legítimo para se manter no prédio não podendo proceder o pedido de restituição formulado pelos AA.» (destaques retirados, mas negrito e sublinhado agora aditados).
Efetivamente, o R., na sua contestação, invocou a dita transmissão (para si) do arrendamento, de molde a afastar a ilicitude que os AA. lhe assacavam e a obstar à ação de reivindicação que lhe foi movida.
Invocando tal transmissão do arrendamento, o R. bateu-se, explicitamente, pela inexistência de caducidade, considerando-se, por isso, possuidor lícito, enquanto arrendatário, de molde a afastar a dita ilicitude e a obstar à procedência dos pedidos da ação.
Invocam, todavia, os Apelantes que na sentença não efetuou o Tribunal recorrido a adequada aplicação/ponderação do direito, antes tendo incorrido em erro de julgamento de direito, em matéria de transmissão do direito por morte do arrendatário (ou caducidade).
Fundam-se os Recorrentes no disposto no art.º 24.º, n.º 2, do DLei n.º 385/88, de 25-10, preceito a que a sentença não aludiu e que, por isso, não aplicou ao caso.
Ora, apreciando, dispõe aquele art.º 24.º (sob a epígrafe “Desistência do direito à transmissão”):
«1 - Os titulares do direito à transmissão conferida nos termos do artigo anterior que não queiram exercer esse direito comunicarão a sua vontade, por escrito, ao senhorio, no prazo de 90 dias após a morte do arrendatário, ficando responsáveis pelos prejuízos que causarem se não o fizerem.
2 - Sob pena de caducidade, os titulares que queiram exercer aquele direito comunicarão a sua vontade, por escrito, ao senhorio, no prazo de 180 dias após a morte do arrendatário.» (destaques aditados).
Como já entendido, perante este quadro legal, nesta Relação e Secção:
«I- O contrato de arrendamento rural caduca por morte do arrendatário se, no prazo de 180 dias após a morte deste, os titulares do direito à transmissão do arrendamento não comunicarem por escrito ao senhorio a sua vontade de continuar como arrendatários.
II- O facto de, após a morte do arrendatário, os titulares do direito à transmissão do arrendamento, se manterem no gozo do prédio não tem por efeito a renovação do contrato nem a formação de um novo.» ([5]).
No caso dos presentes autos, cabia ao R., para o efeito de obter a transmissão do direito por morte da arrendatária sua mãe, passando ele a ingressar na posição de arrendatário no quadro da relação contratual, e de modo a que esta (e o respetivo vínculo) não se extinguisse, comunicar a sua vontade, por escrito, ao respetivo senhorio, no prazo de 180 dias após a morte da sua mãe, falecida esta em 08/06/2005 (cfr. facto 5).
Doutro modo – na falta de tal comunicação escrita –, o contrato de arrendamento extinguir-se-ia por caducidade.
Na economia desta ação de reivindicação – que os AA., como proprietários, podiam intentar, com fundamento, como invocado, em ilícita detenção/ocupação pelo R. ([6]) –, destinada a obter o reconhecimento do seu direito de propriedade (o que já conseguiram, em sede de saneador) e a restituição/entrega do prédio (o que não lhes foi concedido), cabia aos demandantes alegar – e provar – os factos tendentes a demonstrar a (sua) aquisição do direito dominial e, bem assim, a violação do seu direito de propriedade, através da ocupação/detenção ilícita (sem título/autorização e contra a vontade dos donos) e recusa de restituição.
Ao R./contestante cabia, como fez, invocar a vigência do contrato de arrendamento e ser ele o atual arrendatário, por transmissão por morte do (anterior) arrendatário (cfr. aludido art.º 23.º do DLei n.º 385/88).
Para tanto, impendia sobre si o ónus de alegação – como alegou, na sua contestação – e prova de que, enquanto parente, na linha reta, com o arrendatário falecido vivia habitualmente em comunhão de mesa e habitação ou em economia comum há mais de um ano consecutivo.
Mas teria de alegar também – era seu o ónus na economia daquela ação de reivindicação – que exerceu o direito à transmissão, mediante comunicação dessa sua vontade, por escrito, ao senhorio, no prazo de 180 dias após a morte do arrendatário (no caso, a sua mãe). Ou, pelo menos, a impossibilidade, por motivo imputável ao senhorio, de lhe fazer chegar essa comunicação.
Doutro modo, não alegando nem provando essa comunicação, no prazo legal, sujeitar-se-ia à dita “pena de caducidade”, caso em que a relação locatícia teria de ser considerada extinta, vingando, então, a pretensão reivindicatória dos AA./Recorrentes.
Na verdade, mesmo que se entendesse haver dúvidas sobre quem recaía o ónus de alegação e prova em matéria de caducidade, por existência ou inexistência de tal comunicação, o certo é que se trata de factos impeditivos do direito invocado pelos AA.. Daí que tenha sido o R., em sua defesa, a invocar a subsistência/vigência do contrato de arrendamento, por via da transmissão para si da posição contratual, uma vez que não é parte outorgante do celebrado contrato de arrendamento. Nesse âmbito, não hesitou o R. em invocar, expressamente, não haver caducidade do contrato, por considerar válida/operante a dita transmissão.
Daí que, nos termos do art.º 342.º, n.º 2, do CCiv., a prova dos factos tendentes a demonstrar essa transmissão e decorrente posição de atual arrendatário, para obstar à pretensão reivindicatória, na dimensão de entrega/restituição, coubesse ao R., e não aos AA. (quanto ao facto inverso).
É certo dispor o n.º 3 do mesmo art.º 342.º que, em caso de dúvida, “os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”, no caso, o invocado direito ao arrendamento.
Aliás, os factos referentes à transmissão aproveitam inequivocamente ao R., visando obstar à pretensão de entrega/restituição, sendo a este, por isso – que deles aproveita e os intentou alegar –, o sujeito processual onerado com a respetiva prova ([7]).
Ente os factos essenciais referentes à transmissão – por imposição legal – conta-se a (obrigatória) comunicação, em prazo, a que alude o dito art.º 24.º, n.º 2: o R. tinha de alegar – para poder provar – a comunicação da sua vontade, por escrito, ao senhorio, no prazo de 180 dias após a morte da sua mãe.
Doutro modo, confrontar-se-ia com a dita caducidade, causa de extinção do contrato de arrendamento, abrindo as portas ao triunfo da cabal pretensão reivindicatória (agora na vertente da entrega/restituição).
Ora, o R. – percorrida a sua contestação – não alegou ter efetuado a dita comunicação, muito menos no aludido prazo legal.
E, se não o alegou, tal também não consta, logicamente, dos factos provados da sentença, nem qualquer referência lhe é feita na fundamentação jurídica desta, embora ali se conclua pela operância da transmissão (considerou-se ser o R. “titular do contrato de arrendamento rural”, com “título legítimo para se manter no prédio”), motivo subjacente à improcedência ali decretada da ação (na parte ainda subsistente).
Todavia, a ausência da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar a dita comunicação implica, salvo o devido respeito, que haja de considerar-se não verificada a transmissão e, assim, caducada a relação contratual.
A respetiva extinção determina a ausência de título em favor do R., razão pela qual, como pretendem os AA./Recorrentes, a ocupação/detenção/posse por aquele tem de ser vista como ilícita, reconhecido já o direito de propriedade dos reivindicantes, não podendo obstar à ação de reivindicação, tal como previsto no art.º 1311.º, n.ºs 1 e 2, do CCiv..
Em suma, sem necessidade de maior aprofundamento decisório, a apelação tem de proceder nesta parte, devendo o R./Recorrido ser condenado na desocupação e entrega/restituição do imóvel aos AA., seus demonstrados proprietários.
Não assim, porém, quanto à pretensão indemnizatória, também julgada improcedente na sentença, parte em que se deve manter a absolvição do R..
Com efeito, era dos AA. o ónus da prova dos factos tendentes a demonstrar, para além da ilicitude, os danos invocados e seu montante (art.ºs 342.º, n.º 1, e 483.º, n.º 1, ambos do CCiv.).
Ora, vem julgado não provado – sem impugnação da decisão de facto nesta parte – que:
a) Os AA. estão impedidos de vender o prédio;
b) O R. impediu os AA. de ceder parte do prédio à Câmara Municipal ... para criação de infraestruturas e equipamentos sociais; e
c) O referido em 14 – não usarem e fruírem os AA. o prédio em causa – e em a) e b) causa prejuízo diário aos AA. em montante concretamente não apurado.
Ou seja, sem impugnação, reitera-se, da decisão de facto neste particular – motivo pelo qual esta factualidade julgada não provada assumiu foros de definitividade –, não lograram os AA./Apelantes demonstrar os danos invocados, que não se presumem, seja enquanto danos patrimoniais, seja não patrimoniais (invocados transtornos psíquicos, desgosto, enorme frustração, tristeza, revolta, desgaste, tudo agravado pela postura agressiva do R.).
Por isso, não demonstrado o dano, tem de improceder o pedido indemnizatório, formulado à luz do mencionado preceito do art.º 483.º, n.º 1, do CCiv..
Termos em que a apelação deve proceder apenas em parte – condenação na desocupação e restituição do imóvel –, improcedendo no mais (pedido indemnizatório).
Assim encontrado, desde logo, o desfecho do recurso, prejudicadas ficam as demais matérias/questões suscitadas, desde logo a sindicância da impugnação da decisão da matéria de facto, cujo âmbito em nada interfere com a decisão do recurso, pelo que a respetiva apreciação se tornaria inútil, o mesmo ocorrendo quanto a remanescentes questões de direito (cfr. art.º 130.º do NCPCiv.).
As custas da ação – sem prejuízo do já decidido, definitivamente, no despacho saneador – e da apelação devem caber aos AA./Recorrentes e ao R./Recorrido na proporção de metade, por se considerar ser essa a medida do respetivo decaimento (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.), sem prejuízo do pedido de apoio judiciário formulado pelo R..
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IV – Sumário (nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…)..
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência em parte da apelação, em:
a) Revogar a sentença absolutória impugnada quanto ao pedido de desocupação e restituição do imóvel em causa, propriedade dos AA./Recorrentes;
b) Julgar, nesta parte, em substituição do Tribunal recorrido, na procedência da apelação, procedente a ação, com condenação do R./Apelado a desocupar o imóvel, restituindo-o aos AA., seus proprietários, livre e devoluto de pessoas e bens;
c) Manter no mais a sentença apelada.
Custas da ação – sem prejuízo do já decidido, definitivamente, no despacho saneador – e da apelação por AA./Recorrentes e R./Recorrido na proporção de metade, por ser essa a medida do respetivo decaimento, sem prejuízo do pedido de apoio judiciário formulado pelo R..
Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.
Coimbra, 08/04/2025
Vítor Amaral (relator)
Carlos Moreira
Fonte Ramos
([1]) Em 21/12/2021.
([2]) Cujo teor se deixa reproduzido (com destaques retirados).
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras ou se quede inútil.
([5]) Cfr. Ac. TRC de 01/02/2022, Proc. 3249/19.9T8CBR.C2, relatado pelo aqui 2.º Adj. (e em que foi 2.º Adj. o aqui relator), disponível em www.dgsi.pt.
([6]) Não procede, salvo o devido respeito, o argumento do R./Recorrido, com invocação do disposto no art.º 1311.º, n.º 2, do CCiv., no sentido de, havendo contrato de arrendamento celebrado por escrito por seu pai em 1975, estarem os AA. obrigados a intentar uma ação de despejo, sendo, por isso, o meio processual adotado (ação de reivindicação) inidóneo. Para além de o preceito legal invocado em nada impedir a ação de reivindicação – dele apenas consta que, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição somente poderá ser recusada nos casos previstos na lei (por exemplo, pelo arrendatário, na vigência do contrato, contra o senhorio, sabido até que assiste ao locatário o poder de usar, mesmo contra o locador, dos meios legais de defesa da posse, como resulta dos art.ºs 1037.º, n.º 2, e 1276.º e segs., todos do CCiv.) –, os AA. sempre teriam, na lógica do R., a dupla posição de proprietários e senhorios. Se pretendessem pôr fim à relação locatícia e obter a entrega do locado, poderiam ter ao seu dispor a dita “ação de despejo”. Mas, como proprietários, entendendo que o R. detinha ilicitamente o prédio e se recusava a restituí-lo, não lhes estava vedado usar – como usaram – da ação de reivindicação (art.º 1311.º, n.º 1, do CCiv.), caso em que, a demonstrar-se a vigência do contrato, a pretensão dos reivindicantes improcederia, por razões de mérito (e não por inidoneidade do meio processual adotado ou erro na forma de processo).
([7]) Nesta senda, não era, pois, aos AA. que cabia demonstrar que não houve transmissão, mas ao R., que a alegou e dela pretendia beneficiar, que a transmissão se verificou, mediante o preenchimento dos respetivos requisitos legais.