1. O processo de inventário compreende diversas fases processuais, designadamente, a fase de saneamento (art.ºs 1109º a 1117º do CPC) e a fase da partilha (art.ºs 1120º a 1125º do CPC).
2. É aplicável ao processo de inventário notarial (aprovado em anexo à Lei n.º 117/2019, de 13.9) o regime estabelecido no título XVI do livro V do Código de Processo Civil (normas da tramitação prevista para o processo judicial), com as necessárias adaptações.
3. A Relação poderá reapreciar o decidido em sede notarial, em regra, se anteriormente impugnado perante a 1ª instância, conforme o disposto no art.º 4º, do regime jurídico do inventário notarial conjugado com o preceituado no art.º 1123º do CPC.
4. A decisão notarial (interlocutória) enquadrável nas “decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha”/fase do «saneamento do processo e conferência de interessados» (art.ºs 1110 a 1117º do CPC), é impugnável mediante a interposição de recurso autónomo para o Tribunal de Comarca, e não juntamente com o recurso que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha - cf. art.ºs 2º, n.º 4 e 4º, n.ºs 2, alínea c) e 3 do RIN e 1123º, n.º 2, alínea b), do CPC.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Luís Cravo
Vítor Amaral
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. O presente inventário, para partilha dos bens subsequente a divórcio, foi instaurado[1], no Cartório Notarial ..., pelo interessado AA (cabeça de casal) contra BB.
Foi apresentada a Relação de Bens, efetuada a avaliação dos bens[2], realizada a conferência de interessados, proferido despacho determinativo de forma à partilha e elaborado o mapa da partilha, notificando-se depois os interessados nos termos dos art.ºs 1120º e 1121º, n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC).
O mapa da partilha continha a identificação das verbas do ativo (duas) e do passivo (uma), bem como do valor das meações e da adjudicação.
Nos termos do art.º 5º do Regime do Inventário Notarial/RIN (aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13.9), o processo foi remetido ao tribunal recorrido.
Em 19.11.2024, foi proferida sentença homologatória da partilha (art.º 1122º, n.º 1 do CPC).
Dizendo-se inconformado, o requerente/cabeça de casal apelou da sentença, apresentando as seguintes “conclusões”:
1ª - O recorrente interpõe recurso por não se conformar com o teor da decisão proferida pelo Exmo. Notário a 10.4.2024 por entender que o requerimento apresentado a 20.3.2024 foi extemporâneo.
2ª - Tendo sido arrematado pela requerida os dois imóveis que compunham os únicos bens do ativo, o requerente veio requerer o uso do mecanismo previsto no art.º 1116º do CPC.
3ª - Tal requerimento, datado de 20.3.2024 foi apresentado em fase ainda processualmente relevante, uns dias após a conferência de interessados.
4ª - Não houve entre a própria conferência de interessados e a data de apresentação do requerimento pelo cabeça de casal nenhuma diligência, ato ou despacho que pudesse interferir na decisão a proferir pelo Exmo. Notário.
5ª - O Exmo. Notário ao decidir pela extemporaneidade tomou uma decisão sem fundamento legal ou, no mínimo, efetuou uma interpretação errada da norma prevista no art.º 1116º do CPC imprimindo-lhe um alcance que, claramente, o legislador não quis definir (ao contrário do que fez prever, de forma taxativa, no art.º 1115º).
6ª - Não transparece da redação do art.º 1116º do CPC, a obrigação do requerente apresentar tal pedido apenas na própria conferência de interessados.
7ª - Ao contrário do que é previsto, por exemplo, no artigo anterior.
8ª - Pelo que seria de concluir que o requerimento de oposição de excesso de licitação foi oportunamente submetido aos autos, pelo que não violou nenhum direito dos interessados, no caso concreto da requerida.
9ª - Pois foi apresentado após a conferência de interessados mas numa etapa quando ainda estava por decidir e aprovar o passivo e simultaneamente corria prazo para que a requerida se pronunciasse ou recorresse da decisão do Exmo. Notário que tinha sido tomada na referida conferência, quanto à continuidade da mesma (cf. se extrai da leitura da ata da conferência de interessados de 11.3.2024).
10ª - Estando em causa os dois imóveis constantes do ativo, sendo que a requerida reside num deles e o requerente reside no outro, desde a data da sua separação, deve ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso por poder afetar o direito à habitação do requerente, pelo registo da adjudicação e eventual venda imediata por parte da requerida.
11ª - Tal decisão de indeferimento do requerimento apresentado pelo requerente, por parte do Exmo. Notário, pelos motivos invocados, influi diretamente sobre o mapa e a forma a dar à partilha
12ª - O despacho recorrido, viola o disposto nos art.ºs 1116º e 1120º do CPC.
Rematou pedindo a revogação da decisão recorrida, alterando-se por outra que admita o requerimento apresentado a 20.3.2024.
Não houve resposta.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[3], importa apreciar e decidir, sobretudo, da tempestividade/legalidade da impugnação daquele despacho notarial de 10.4.2024.
a) As verbas n.ºs 1 e 2 (únicas verbas do ativo) foram avaliadas nos autos, atribuindo-se-lhe os valores de € 146 600 e € 126 000, respetivamente.
b) Na conferência de interessados, na falta de acordo, as ditas verbas foram licitadas pela requerida pelos valores de € 153 000 e € 127 000, respetivamente.[5]
c) Ulteriormente, dizendo que “o valor das licitações ultrapassa, no seu conjunto, o valor necessário para preenchimento do (...) quinhão” da requerida, o requerente, invocando o disposto no art.º 1116º do CPC, veio opor-se ao excesso da licitação e concluiu pedindo que “para um justo preenchimento do seu quinhão (...) lhe seja adjudicada pelo valor da licitação, a Verba Dois”.
d) A requerida apôs-se, aduzindo, nomeadamente: o referido preceito está inserido na “Secção IV” que tem como epígrafe “Saneamento do Processo e Conferência de Interessados”; a dita oposição deve ser exercida na própria conferência de interessados; o art.º 1116º do CPC não visa proteger o interessado que, no momento das licitações tomou uma decisão (a de preferir preencher o seu quinhão em dinheiro, no montante de € 140 000), da qual, posteriormente, se veio a arrepender...
e) Por despacho de 10.4.2024, o Senhor Notário não atendeu o requerido em c), por considerar que “a fase da adjudicação dos bens terminou com o encerramento da Conferência de Interessados, não sendo agora possível socorrer-se do mecanismo previsto no art.º 1116º por extemporâneo”.
f) O Mapa da Partilha foi elaborado em 07.8.2024; “nos termos do artigo 1120º do CPC”, os interessados foram notificados “para, querendo, em 10 dias, se pronunciarem”.
g) Por despacho de 20.9.2024 consignou-se que “devidamente notificados do mapa da partilha nenhum dos interessados se manifestou em relação ao mesmo”; e, “nos termos do artigo 1121º, n.º 1 do CPC”, ordenou-se a notificação do requerente/cabeça de casal “para, querendo, reclamar o pagamento das tornas a que tem direito (...)”.
h) O cabeça de casal nada disse, determinando-se a remessa do processo “para homologação do Mapa da Partilha”.
i) Na sentença homologatória expendeu-se e decidiu-se: «(...) Nos termos do art.º 5º do RIN - a partilha constante do mapa e das operações de sorteio é submetida ao juiz para efeitos de homologação, o processo foi remetido a este juízo. / Nos termos e para os efeitos do art.º 1122º, n.º 1 do CPC, não subsistindo questões, de facto ou de Direito, a resolver e que impeçam o normal prosseguimento dos autos, proceder-se-á à prolação da sentença homologatória da partilha do presente inventário. / Pelo exposto, homologo por sentença a partilha constante do Mapa de Partilha de 07-08-2024, do presente inventário para partilha dos bens comuns em sequência de divórcio a correr termos no Cartório Notarial ..., processo n.º ...3; adjudicando as verbas 1 e 2 do ativo à interessada BB, com direito a pagamento de tornas a prestar ao cabeça de casal AA, e com aprovação e pagamento do passivo pela interessada BB. (...) / Registe e notifique. / Após, devolva os autos ao Cartório Notarial ....»
2. Cumpre apreciar e decidir.
O regime do inventário notarial/RIN (aprovado em anexo à Lei n.º 117/2019, de 13.9[6] – art.º 2º) estabelece, nomeadamente:
- É aplicável ao processo de inventário que possa decorrer perante o cartório notarial[7] o regime estabelecido no título XVI do livro V do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações (art.º 2º, n.º 1) - ou seja, as normas da tramitação prevista para o processo judicial, com as devidas adaptações. Ao notário compete realizar todas as diligências do processo, sem prejuízo dos casos em que os interessados devam ser remetidos para os meios judiciais (n.º 3). Compete ao tribunal de comarca da circunscrição judicial da área do cartório notarial praticar os atos que caibam ao juiz, bem como apreciar os recursos interpostos de decisões do notário (n.º 4).
- O notário deve determinar, mesmo oficiosamente, mediante despacho fundamentado, a suspensão do processo: a) Se estiver pendente causa em que se aprecie questão com relevância para a admissibilidade do processo ou para a definição de direitos de interessados diretos na partilha; b) Se, na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos dos interessados diretos na partilha, remetendo os interessados para os meios judiciais, logo que se mostrem relacionados os bens (art.º 3º, n.º 1). Se, na pendência do inventário, se suscitar questão que, não respeitando à admissibilidade do processo ou à definição de quotas hereditárias dos interessados, envolva a resolução de um litígio entre os interessados relativo, nomeadamente, à definição dos bens ou dívidas que integram o património a partilhar, deve o notário, ouvidas as partes e em despacho fundamentado: a) Abster-se de decidir, remetendo os interessados para os meios judiciais, quando a natureza da matéria litigiosa ou a sua complexidade, quer de facto, quer de direito, tornar inconveniente a sua apreciação por órgão não jurisdicional; b) Decidir, nos demais casos, a matéria em litígio, sendo a decisão imediatamente impugnável perante o tribunal competente (n.º 2).
- A decisão do notário que, nos termos do artigo anterior, não decretar a suspensão do processo e não remeter os interessados para os meios judiciais pode ser impugnada por qualquer dos interessados diretos na partilha, mediante recurso interposto para o tribunal competente (art.º 4º, n.º 1, sob a epígrafe “recursos”). O regime dos recursos é o seguinte: a) O recurso previsto no número anterior sobe imediatamente e tem efeito suspensivo da marcha do processo; b) O recurso previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior sobe imediatamente e em separado dos autos de inventário, sem efeito suspensivo da marcha do processo; c) Aos recursos interpostos das restantes decisões proferidas pelo notário no decurso do processo é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime previsto no artigo 1123º do Código de Processo Civil (n.º 2). Os recursos das decisões proferidas pelo notário são interpostos no prazo de 15 dias a contar da notificação da decisão, devendo o requerimento de interposição do recurso incluir a alegação do recorrente (n.º 3). A decisão do notário de remessa dos interessados para os meios judiciais não pode ser posta em causa pelo juiz (n.º 4).
- A partilha constante do mapa e das operações de sorteio é submetida ao juiz para efeitos de homologação (art.º 5º).
3. De entre as normas aplicáveis ao processo de inventário notarial previstas no título XVI do livro V do Código de Processo Civil, destacamos as seguintes:
- Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar; b) Ordena a notificação dos interessados e do Ministério Público que tenha intervenção principal para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha (art.º 1110º, n.º 1). Findo o prazo estabelecido no número anterior, o juiz: a) Profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados; b) Designa o dia para a realização da conferência de interessados (n.º 2).[8]
- Na conferência, o juiz deve incentivar os interessados a procurar uma solução amigável para a partilha, ainda que parcial, dos bens, sensibilizando-os para as vantagens de uma autocomposição dos seus interesses (art.º 1111º, n.º 1).
- Na falta de acordo entre os interessados nos termos dos artigos anteriores, procede-se, na própria conferência de interessados, à abertura de licitação entre eles (art.º 1113º, n.º 1). Cada verba deve ser licitada separadamente, salvo se todos concordarem ou o juiz determinar a formação de lotes, com vista a possibilitar uma repartição tendencialmente igualitária do acervo hereditário (n.º 2).
- Até à abertura das licitações, qualquer interessado pode requerer a avaliação de bens, devendo indicar aqueles sobre os quais pretende que recaia a avaliação e as razões da não aceitação do valor que lhes é atribuído (art.º 1114º, n.º 1). O deferimento da avaliação suspende as licitações até à fixação definitiva do valor dos bens (n.º 2).
- Se estiverem relacionados bens indivisíveis de que algum dos interessados seja comproprietário de, pelo menos, metade do respetivo valor e se o seu direito se fundar em título que o exclua do inventário ou, se não houver herdeiros legitimários, em doação ou legado do autor da herança, pode esse interessado requerer que a parte relacionada lhe seja adjudicada (art.º 1115º, n.º 1). Qualquer interessado pode formular pedido de adjudicação relativamente a quaisquer bens fungíveis, títulos de crédito ou valores mobiliários e demais instrumentos financeiros, na proporção da sua quota, salvo se a divisão em espécie puder acarretar prejuízo considerável (n.º 2). Os pedidos de adjudicação a que se referem os números anteriores são deduzidos na conferência de interessados (n.º 3). Os restantes interessados presentes são ouvidos sobre as questões da indivisibilidade ou do eventual prejuízo causado pela divisão, podendo qualquer dos interessados requerer que se proceda à avaliação, devendo fazê-lo até à abertura das licitações (n.º 4).
- Se algum dos interessados licitar numa pluralidade de verbas ou lotes cujo valor, no seu conjunto, ultrapasse o necessário para o preenchimento da sua quota, pode qualquer dos outros interessados opor-se ao excesso, requerendo que as verbas em excesso ou algumas delas lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão (art.º 1116º, n.º 1). Cabe ao licitante escolher, de entre todas as verbas ou lotes em que licitou, as suficientes para o preenchimento da quota que lhe cabe no património hereditário (n.º 2). Se o requerimento for feito por mais de um interessado e se não houver acordo entre eles sobre a adjudicação, o juiz decide, por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo abrir licitações entre esses interessados ou mandar proceder a sorteio (n.º 3).
- Na falta de acordo sobre a composição dos quinhões dos interessados não conferentes ou não licitantes, o juiz determina a formação de lotes que assegurem, quanto possível, que a todos os interessados são atribuídos bens da mesma espécie e natureza dos doados e licitados, procedendo-se depois ao sorteio entre os co-herdeiros (art.º 1117º, n.º 1).
- Concluídas as diligências reguladas nas secções anteriores, procede-se à notificação dos interessados e do Ministério Público, quando este tenha intervenção principal, para, no prazo de 20 dias, apresentarem proposta de mapa da partilha, da qual constem os direitos de cada interessado e o preenchimento dos seus quinhões, de acordo com o despacho determinativo da partilha e os elementos resultantes da conferência de interessados (art.º 1120º, n.º 1, sob a epígrafe “Mapa da partilha”). Decorridos os prazos para a apresentação das propostas de mapa de partilha, o juiz profere despacho a solucionar as divergências que existam entre as várias propostas de mapa de partilha e determina a elaboração do mapa de partilha pela secretaria, em conformidade com o decidido (n.º 2). Para a formação do mapa determina-se, em primeiro lugar, a importância total do ativo, somando-se os valores de cada espécie de bens conforme as avaliações e licitações efetuadas e deduzindo-se as dívidas, legados e encargos que devam ser abatidos, após o que se determina o montante da quota de cada interessado e a parte que lhe cabe em cada espécie de bens, e por fim faz-se o preenchimento de cada quota com referência às verbas ou lotes dos bens relacionados (n.º 3). No preenchimento dos quinhões observam-se as seguintes regras: a) Os bens licitados são adjudicados ao respetivo licitante e os bens doados ou legados são adjudicados ao respetivo donatário ou legatário; b) A quota dos não conferentes ou não licitantes é integrada de acordo com o disposto no artigo 1117º (n.º 4). Os interessados são notificados do mapa de partilha elaborado, podendo apresentar reclamações contra o mesmo (n.º 5).[9]
- Os interessados a quem hajam de caber tornas são notificados para requerer a composição dos seus quinhões por bens que não se mostrem adjudicados ou reclamar o pagamento das tornas (art.º 1121º, n.º 1). Se for reclamado o pagamento das tornas, é notificado o interessado que tenha de as pagar, para as depositar (n.º 2). Havendo pluralidade de requerentes, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 3 do artigo 1116º (n.º 3).
- Depois de decididas todas as questões, o juiz profere sentença homologatória da partilha constante do mapa (art.º 1122º, n.º 1). Depois do trânsito em julgado da sentença homologatória e se houver direito a tornas, os requerentes podem pedir que se proceda, no processo, à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o seu pagamento (n.º 2).
- Aplicam-se ao processo de inventário as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos (art.º 1123º, n.º 1, sob a epígrafe “Regime dos recursos”). Cabe ainda apelação autónoma: a) Da decisão sobre a competência, a nomeação ou a remoção do cabeça de casal; b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha; c) Da sentença homologatória da partilha (n.º 2). O juiz pode atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto nos termos da alínea b) do número anterior, se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados (n.º 3). São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea b) do n.º 2 os recursos em que se pretendam impugnar decisões proferidas até esse momento, subindo todas elas em conjunto ao tribunal superior, em separado dos autos principais (n.º 4). São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea c) do n.º 2 os recursos em que se impugnem despachos posteriores à decisão de saneamento do processo (n.º 5).
4. Decorre do regime jurídico instituído pela Lei n.º 117/2019, de 13.9, que o legislador, porventura ciente das divergências suscitadas na aplicação prática do texto anexo à lei 23/2013, de 05.3, não deixou de tomar posição clara, consagrando a solução no sentido de caber ao Tribunal de Comarca a competência para apreciar os recursos interpostos de decisões do notário. Por isso, só das decisões que, assim, venham a ser proferidas pelo Tribunal de Comarca (decisões judiciais) caberá recurso para a Relação e não, per saltum, das decisões notariais (não jurisdicionais).[10]
Assim, designadamente, cabe recurso autónomo das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha (al. b) do n.º 2 do art.º 1123º do CPC) proferidas nos processos que correm termos nos cartórios notariais - o recurso sobe imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, conferindo-se ao juiz o poder de lhe atribuir o efeito suspensivo se a questão a ser apreciada afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados (art.ºs 1123º, n.º 3, 645º, n.º 2 e 647º, n.º 1, do CPC).[11]
5. No caso em análise, o requerente pretendeu opor-se ao “excesso de licitação” por parte da requerida (art.º 1116º do CPC[12]), depois de realizada a conferência de interessados e antes dos demais atos que culminaram na elaboração do mapa da partilha.
O Senhor Notário indeferiu aquele pedido do requerente/cabeça de casal, por considerar que devia ter sido deduzido/formulado na conferência de interessados, sendo, assim, intempestivo.
O requerente/cabeça de casal/recorrente não impugnou de imediato, com a interposição de recurso autónomo daquele despacho notarial, e só o veio a fazer depois de notificado da sentença homologatória da partilha, constituindo, de resto, o único fundamento do recurso de apelação.
6. Salvo o devido respeito por opinião em contrário, afigura-se que a decisão notarial em causa era suscetível de recurso autónomo (no prazo legal) para o Tribunal de Comarca, e não, diretamente, a final, para esta Relação, porquanto proferida na fase de “saneamento do processo e conferência de interessados” cuja impugnação podia/devia ter lugar nos termos do disposto nos art.ºs 4º, n.ºs 2, alínea c) e 3 do RIN e 1123º, n.º 2, alínea b), do CPC.
A referida decisão notarial (interlocutória) integra-se nas “decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha”/fase do «saneamento do processo e conferência de interessados» (art.ºs 1110 a 1117º do CPC)[13], anterior à prolação do despacho determinativo da partilha e à elaboração do mapa da partilha (que pressupõe a conclusão das diligências reguladas nas secções anteriores - cf. art.º 1120º, n.º 1 do CPC) impugnável, pois, mediante a interposição de recurso autónomo para o Tribunal de Comarca, e não juntamente com o recurso que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha - cf. art.º 2º, n.º 4 do RIN e demais normativos atrás citados.[14]
Por conseguinte, como decorre da descrita tramitação (cf. pontos I. e II. 1., supra) e do disposto nos citados normativos, esta Relação não poderá reapreciar o decidido em sede notarial, pela simples razão de que não foi atempadamente impugnado e reapreciado em 1ª instância.
7. A questão suscitada em sede notarial foi decidida e não foi objeto de tempestiva e adequada impugnação, pelo que não poderá integrar a apelação da sentença homologatória da partilha.
8. A decisão era passível de recurso, mas o apelante não o interpôs, segundo a previsão legal, ficando prejudicada e/ou precludida a possibilidade de o vir a fazer.
9. Não havendo outras questões suscitadas e/ou que devam ser conhecidas por esta Relação, resta confirmar a sentença homologatória recorrida.
10. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.
Custas pelo requerente/apelante.
08.4.2025
[3] Admitido como «recurso, ordinário de Apelação, da sentença proferida nos autos, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 627º - espécie de recurso, 629º e 630º, a contrario, - recorribilidade; 631º - legitimidade, 637º e 639º - modo de interposição e conformidade do recurso; 638º - tempestividade; 645º, n.º 1 al. a) - modo de subida nos próprios autos; 647º, n.º 3 al b) – efeito suspensivo, e 1123º, n.º 2, al. c) – recorribilidade de sentença homologatória de partilha, todos do CPC».
[4] Atendeu-se, nomeadamente, ao teor do relatório pericial de 07.11.2023, aos requerimentos apresentados na sequência da realização da conferência de interessados e aos demais elementos documentados nos autos.
[5] Refere-se na alegação de recurso: “a requerida licitou os dois imóveis pelo valor mais alto, sendo-lhe adjudicado as duas únicas verbas que compunham o ativo dos bens do casal”.
[6] Diploma que, além do mais, alterou o Código de Processo Civil, em matéria de processo de inventário, revogando o regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05.3.
[7] Os interessados podem escolher, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 1083º do Código de Processo Civil, o cartório notarial em que pretendem instaurar o inventário, desde que exista uma conexão relevante com a partilha, estabelecida em função, nomeadamente, do local de abertura da sucessão, da situação da maior parte dos imóveis ou do estabelecimento comercial que integram a herança ou da residência da maioria dos interessados diretos na partilha (art.º 1º, n.º 2, do regime do inventário notarial).
[8] A SECÇÃO IV, sob a epígrafe «Saneamento do processo e conferência de interessados», compreende os artigos 1110 a 1117º.
[9] A SECÇÃO VI, sob a epígrafe «Mapa da partilha e sentença homologatória», compreende os artigos 1120 a 1125º.
[10] Cf. acórdão da RC de 08.10.2019-processo 64/16.5T8CNT-A.C1 [assim sumariado: «1. Cabendo recurso de decisão notarial (não jurisdicional) no âmbito de autos de inventário instaurados segundo o regime decorrente da Lei n.º 23/2013, de 05-03, a competência para a sua apreciação cabe ao Tribunal Judicial de Comarca e não ao Tribunal da Relação. 2. - À Relação apenas cabe conhecer dos recursos nesse âmbito instaurados de decisões judiciais (as do dito Tribunal de Comarca).»], publicado no “site” da dgsi.
[11] Vide, nomeadamente, Tomé d´Almeida Ramião, O regime dos recursos e as normas transitórias no novo regime do processo de inventário, CEJ/Formação Contínua, «inventário – o novo regime», págs. 51 e seguintes, Maio 2020 - https://cej.justica.gov.pt.
[12] Preceito em parte inovador mas que tem alguma correspondência nos n.ºs 2 a 4 do art.º 1377º do CPC de 1961.
Decorre do descrito regime jurídico que no caso de licitação por parte de algum dos interessados numa pluralidade de verbas ou lotes cujo valor, no seu conjunto, ultrapasse o necessário para o preenchimento da sua quota, qualquer dos outros interessados se pode opor ao excesso, requerendo que as verbas em excesso, ou algumas delas, lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação e até ao limite do seu quinhão, cabendo ao licitante escolher, de entre todas as verbas ou lotes em que licitou, as suficientes para o preenchimento da quota que lhe cabe no património hereditário (art.º 1116º, n.ºs 1 e 2, do CPC); desapareceu, contudo, a faculdade dos interessados a quem hajam de caber tornas de requerer a composição dos quinhões com as verbas licitadas em excesso até ao limite do quinhão do interessado a quem caibam tornas (art.º 1121º do CPC).
[13] Neste sentido, cremos, veja-se o acórdão da RP de 28.11.2022-processo 372/20.0T8PVZ.P1 [com o sumário: «I - No novo regime de inventário estatuiu-se um modelo procedimental de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que, determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte. II - Tais fases processuais compreendem uma fase de articulados (cf. artigos 1097º a 1108º do CPC), uma fase de saneamento, com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia (cf. artigo 1109º a 1117º do CPC), um procedimento específico para a verificação e redução de eventuais inoficiosidades (cf. artigos 1118º e 1119º do CPC) e a fase da partilha (cf. artigos 1120º a 1125º do CPC). III - A oposição ao excesso de licitações está sistematicamente integrada nas diligências compreendidas no âmbito da conferência de interessados, pelo que terá de ser deduzida, nessa conferência, na sequência de uma licitação excessiva por parte de algum interessado (e não subsequentemente à elaboração do mapa da partilha, nos termos do art.º 1377º, n.ºs 2 e 4 do anterior CPC). IV - Não tendo o interessado recorrente, introduzido nos autos requerimento para se opor ao excesso de licitação, nem se verificando a factie species do n.º 2 do artigo 573º, do CPC, ficou precludida a possibilidade de tal acto ser praticado, fora dessa fase processual, isto é, da conferência de interessados e, concretamente, no âmbito da notificação a que alude o artigo 1121º do CPC. (...)»], publicado no “site” da dgsi. (sublinhado nosso)
Alegou o recorrente no ponto 18. da fundamentação da alegação de recurso: “18. Pelo que o requerimento apresentado pelo cabeça de casal para o exercício deste direito não estava precludido pois teve lugar num momento processual relevante e adequado, inserido no perímetro da fase da conferência de interessados.» (sublinhado nosso)
[14] Não assim se em presença de decisão (interlocutória) proferida pelo notário após o momento de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha - sendo inaplicável a alínea c) do n.º 2 do art.º 1123º, já que compete ao juiz a prolação da sentença homologatória da partilha -, situação em que será de admitir a impugnação conjuntamente com o recurso que for interposto da sentença homologatória da partilha, competindo ao Tribunal da Relação conhecer do recurso dessas decisões interlocutórias (que não são recorríveis autonomamente) - vide, neste sentido, Tomé d´Almeida Ramião, estudo citado.