1. A ´exceptio` (art.º 428º do CC) não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral.
2. Por isso ela vigora, não só quando a outra parte não efetua a sua prestação porque ´não quer`, mas também quando ela a não realiza ou a não oferece porque ´não pode`.
3. Estando o credor/exequente obrigado para com o devedor a uma contraprestação a efetuar simultaneamente (ou antes da do devedor), incumbe-lhe provar que a efetuou ou ofereceu (art.º 715º, n.ºs 1 a 4 do CPC), sob pena de não poder promover a execução.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Luís Cravo
Fernando Monteiro
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 17.5.2022, AA deduziu os presentes embargos à execução para pagamento de quantia certa que lhe é movida por BB e CC, pedindo: “1. (...) devem todas as exceções invocadas serem julgadas procedentes e consequentemente ser declarada extinta a presente execução. / 2. Caso assim não se entenda, (...) a presente oposição ser julgada procedente, por provada, e consequentemente ser declarada extinta a presente execução, ou absolvido da instância o Oponente (...). / 3. Deve ainda ser reconhecido o abuso de direito por parte dos Exequentes, bem como deverão estes ser condenados como litigantes de má fé (...).”
Alegou, em resumo: celebrou com o exequente um contrato de trespasse de estabelecimento comercial, mediante o qual este se obrigou a entregar-lhe o alvará de
restauração e bebidas no dia 01.01.2021, o que não sucedeu, daí a inexigibilidade da obrigação do executado pagar a quantia de € 30 000; ao celebrar o dito contrato, o exequente sabia que não tinha na sua posse o mencionado alvará e, mesmo assim, comprometeu-se a entregá-lo, levando o executado a entregar-lhe os cheques e apresentando os mesmos a pagamento.
Os exequentes contestaram dizendo manter o alegado no requerimento executivo, inclusive quanto à natureza do contrato celebrado entre as partes (compra e venda de bens móveis). Concluem pela improcedência da oposição e pedem a condenação do executado como litigante de má fé.
Foi proferido despacho saneador que julgou a exequente parte ilegítima, afirmou a validade do título executivo[1], firmou o objeto do litígio e enunciou o tema da prova.
Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 06.11.2024, julgou os embargos procedentes, com a consequente extinção da execução, e absolveu as partes do pedido de condenação como litigante de má fé reciprocamente formulado.
Dizendo-se inconformado, o exequente apelou formulando as seguintes conclusões:[2]
1ª - No despacho saneador, a Mm.ª Juíza decidiu, entre outras questões, a falta de título executivo.
2ª - E indicou como ponto único dos temas da prova, “Se o exequente vendeu ao executado o recheio de estabelecimento comercial pelo preço de € 60 000, sendo a segunda tranche de € 30 000 a pagar até ao dia 30 de setembro de 2021…”
3ª - O Exequente interpôs recurso por considerar que o título executivo enquanto título cambiário não se encontrava prescrito, recurso que não chegou a subir, uma vez que o Tribunal “a quo” procedeu à retificação, conforme despacho de 12.4.2024.
4ª - O título executivo que serve de base à presente execução é um cheque.
5ª - Apesar de o cheque envolver essencialmente uma ordem de pagamento dirigida a um banqueiro, por força da sua subscrição, o titular da conta está a reconhecer uma obrigação pecuniária em relação, ao portador, das quantias nele mencionadas.
6ª - Do disposto do art.º 458º do Código Civil (CC) resulta uma presunção de causa (presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial) e a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental.
7ª - Incumbe ao devedor provar a falta de causa da obrigação inscrita no título.
8ª - O recorrido não fez qualquer prova da falta da causa da obrigação.
9ª - Pelo contrário, até assumiu em sede de audiência de julgamento, que tinha comprado todos os bens que estavam descritos na declaração, documento junto à Execução.
10ª - Pelo que tem a Sentença recorrida de ser revogada, com todas as consequências legais daí resultantes.
11ª - Foi junto à execução o documento transcrito 3 dos factos dados como provados, que prova o tema de prova.
12ª - Declaração que não foi impugnada e as respetivas assinaturas foram reconhecidas.
13ª - O conteúdo do referido documento foi corroborado pelo Exequente e pelas testemunhas arroladas por este.
14ª - Provado está que o exequente vendeu ao executado, pelo valor de € 60 000 o recheio do estabelecimento comercial, sito na rua ..., ....
15ª - Resultou, também provado, em sede de Audiência de julgamento, que em causa não está um contrato de trespasse, nomeadamente pela Inquirição da Testemunha DD, antigo senhorio do Exequente e atual senhorio do executado.
16ª - Este referiu em tribunal que, celebrou um contrato de arrendamento do referido espaço comercial com o executado.
17ª - Considera a sentença recorrida que o Exequente não cumpriu a sua parte do acordo uma vez que não entregou o alvará de restauração e bebidas.
18ª - O Exequente entregou ao Executado toda a documentação que tinha em sua posse, nomeadamente a licença de casa de pasto, a única que tinha, e que era do perfeito conhecimento do Executado, e que permitia a utilização do espaço para o fim que o Executado pretendia.
19ª - No contrato de arrendamento assinado entre o senhorio e executado, que se encontra junto aos autos, é bem claro a não existência de Alvará de Restauração e Bebidas, mas sim a licença de casa de pasto.
20ª - Não pode a Sentença recorrida considerar que não existiu entrega de Alvará por parte do Exequente, pois, o Executado, desde da celebração do negócio que explora um restaurante no local.
21ª - Nunca, antes da entrada da Execução, o Executado se insurgiu com o facto de não ter sido entregue Alvará de restauração e bebidas.
22ª - Sempre exerceu no local a atividade de restauração e nunca foi prejudicado ou sancionado por qualquer autoridade pública pelo suposto facto de não ter alvará de restauração e bebidas.
23ª - Isto porque, tal como ficou provado em sede de Audiência de Julgamento, nomeadamente pelas declarações de parte, a licença existente para aquele local e que foi entregue ao Executado, é apta ao desenvolvimento da área de restauração.
24ª - O Executado sempre teve em funcionamento um restaurante, de nome “...”, beneficiando de todo o composto, recebendo clientes, e os lucros inerentes a esse facto.
25ª - Nunca o Executado deixou de beneficiar pelo facto de o Exequente não ter entregue o “alvará de restauração e bebidas”, ademais, termo relativamente recente que substitui a antiga “licença”.
26ª - Foi entregue ao Executado toda a documentação necessária para este poder, legalmente, abrir um restaurante - desde janeiro de 2021 até aos dias de hoje, o executado mantém o seu estabelecimento de restauração aberto e a funcionar plenamente, sendo que no estabelecimento se servem refeições.
27ª - Basta atentar ao seu depoimento para se considerar tal facto provado; releva ainda a informação prestada pela Câmara Municipal ..., a solicitação do Tribunal “a quo”.
28ª - Concluindo-se assim que o referido estabelecimento tem licenciamento apto para o exercício da actividade de restauração e bebidas, tal como foi atestado pelo Município.
29ª - O estabelecimento não possui o “atual” alvará de restauração e bebidas imposto pela legislação recente e aplicável à abertura de novos estabelecimentos de restauração e bebidas, após a entrada em vigor da referida legislação.
30ª - O que não é o caso no estabelecimento em causa nos presentes autos.
31ª - Dúvidas não existem que, o estabelecimento detém alvará compatível para o exercício da actividade de restauração, não havendo qualquer incumprimento por parte do Exequente.
32ª - O Executado serve diariamente no estabelecimento refeições em travessas a dezenas de clientes, que comem à mesa de faca e garfo.
33ª - Atendendo à natureza dos estabelecimentos em causa, “casa de pasto” e “restaurante”, estamos perante atividades iguais, porque assentam na confeção de refeições e consumo das mesmas no estabelecimento, não há diferença entre um e outro.
34ª - Basta analisar a legislação que regula a instalação, licenciamento e funcionamento dos estabelecimentos similares de hotelaria, ou mais concretamente, de restauração e bebidas, acima examinado, para se perceber que este diploma teve como objetivo responder às necessidades de regular o sector da restauração e bebidas, que se apresentava com serviços variados e diferenciados do sector turístico.
35ª - O art.º 1º deste diploma, nos n.ºs 1 a 4, conjugado com os art.ºs 23 e 24, define as características dos estabelecimentos de restauração e bebidas; no seu n.º 5, remete para regulamento próprio os requisitos de instalação, classificação e funcionamento de cada um dos tipos de estabelecimentos referenciados.
36ª - De acordo com este normativo foi publicado o Decreto Regulamentar 38/97, de 29.9, que veio a ser alterado pelo Decreto Regulamentar 4/99, de 01.4.
37ª - De acordo com estes dois diplomas, foram definidas as regras mínimas de instalação e funcionamento, de acordo com os tipos de estabelecimento, mas em que foi exigido um padrão de qualidade mínimo que os atinge de forma transversal.
38ª - Estes diplomas aplicam-se a todos os estabelecimentos de restauração e bebidas existentes à data da sua entrada em vigor, como resulta da leitura do art.º 38º, que diz o seguinte “1- Os estabelecimentos existentes que à data da entrada em vigor do presente diploma estejam classificados como restaurantes de 1ª, 2ª, e 3ª categorias e casas de pasto ou como estabelecimentos de bebidas de 1ª, 2ª, e 3ª categorias e tabernas deixam de ter essas classificações, sendo apenas qualificados no tipo de estabelecimento que corresponder ao serviço que neles é prestado, nos termos do disposto do DL n.º 168/97 de 4 de julho, e do presente diploma”.
39ª - E no art.º 39 vem referenciado que “As entidades exploradoras dos estabelecimentos referidos no artigo 37 e 38 devem, no prazo de seis meses a contar da data da entrada em vigor do presente diploma, alterar a respetiva placa identificativa, bem como a documentação utilizada em toda a actividade externa, designadamente na publicidade e correspondência”. E este diploma, Decreto Regulamentar 38/97 de 25.9 entrou em vigor a 26 desse mês – art.º 40.
40ª - Em face desta nova legislação, e a partir de 26.9.1997, o estabelecimento em causa, passou a ser qualificado como de restauração, e a poder denominar-se como restaurante.
41ª - E isto, porque a licença de “casa de pasto” é abrangida pelo disposto no artigo 38 daquele Decreto Regulamentar que o qualifica como estabelecimento de restauração.
42ª - O que quer dizer que as licenças anteriores que autorizam a abertura dos estabelecimentos de restauração continuam válidas, até serem substituídas por alvará de licença ou autorização de utilização para serviços de restauração, no caso de haver obras de ampliação, reconstrução ou alteração.
43ª - Na sentença não se procedeu a uma correta interpretação dos elementos constantes dos autos, bem como se efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto, pelo que deverá ser revogada.
44ª - Sofrendo a Sentença, na parte de que se recorre, de nulidade por violação do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art.º 668º do Código de Processo Civil (CPC) - a Mm.ª Juíza não fundamentou de facto e de direito a sua decisão e não apreciou a totalidade das questões como o deveria ter feito, deixando de se pronunciar sobre algumas questões que são essenciais à boa decisão da causa, nomeadamente as acima expostas.
45ª - A decisão recorrida viola o disposto nos art.ºs 202º, 204º e 205º da C. R. P. e 729º do CPC; viola os princípios consignados na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente consignados nos artigos 13º e 20º.
46ª - O Tribunal, com na Sentença, não assegurou a defesa dos direitos do alegante, em não fundamentar exaustivamente a sua decisão, e nem se quer aplicar as normas legais aplicáveis ao caso em concreto; a Mm.ª Juíza limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista” - cometeu pois uma nulidade.
47ª - Deve, portanto, o Tribunal ad quem considerar as razões de facto e de direito vertidas no presente recurso, e concluir pela procedência do mesmo considerando o cheque válido como título de crédito, revogando a Sentença recorrida.
O executado respondeu concluindo pela improcedência do recurso.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso, importa apreciar e decidir, sobretudo: a) nulidade da sentença; b) matéria de facto; c) decisão de mérito - se o executado deve ao exequente a quantia exequenda/exequibilidade do título.
1) Nos autos principais, o exequente pede a cobrança coerciva da quantia de € 30 483,29, sendo € 30 000 a título de capital e € 483,29 a título de juros vencidos até 23.02.2022.
2) A execução referida em 1) foi intentada com base no cheque, à ordem do exequente e subscrito pelo executado, emitido em 30.9.2021, no montante de € 30 000, devolvido na compensação.[3]
3) Em 10.11.2020, exequente e executado subscreveram o documento do seguinte teor, intitulado “declaração”:
“O abaixo assinado, AA (...), declara que adquiriu a BB e esposa CC (...), o montante de 60 000,00€ (sessenta mil euros), resultante da compra que lhes fez do recheio do estabelecimento comercial (...) sito na rua ..., ... ..., comprometendo-se a liquidar a totalidade do referido montante de sessenta mil euros, até ao dia trinta de setembro de 2021.
Nesta data, o declarante emitiu e entregou a favor do credor BB, o cheque n.º ...04 no valor de 6 000,00€ (seis mil euros) e o cheque n.º ...05 no valor de 24 000,00€ (vinte e quatro mil euros). Emitiu e entregou também o cheque n.º ...07, no indicado valor de 30 000,00€ (trinta mil euros), sacado sob o Banco 1..., datado de 30/09/2021.
O credor compromete-se a entregar a chave do referido estabelecimento na rua ..., ... ... no dia 01/01/2021, com toda a respetiva documentação legal e necessária para o normal funcionamento do mesmo, incluindo o alvará de restauração e bebidas.
Nota: A falha na entrega da respetiva documentação e chave na data acima referida (01/01/2021) anulará todo este processo, tendo o credor de devolver todos os valores entregues até essa data (30 000,00€), inclusive o cheque n.º ...07 no valor de 30 000,00€, sacado sob o Banco 1..., datado de 30/09/2021. Totalizando o valor de 60 000,00€ (sessenta mil euros)”.
4) Os cheques n.º ...04, no valor de € 6 000, e n.º ...05, no valor de € 24 000, foram pagos.
2. E deu como não provado:
a) O exequente entregou ao executado o alvará de restauração e bebidas do
estabelecimento.
3. Cumpre apreciar e decidir.
O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão (art.º 639º, n.º 1, do CPC[4]), ou seja, ao ónus de alegar acresce o ónus de concluir, indicando quais os fundamentos do recurso – as razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação; hão de ser, depois, enunciados e resumidos, sob a forma de conclusões, importando que a alegação feche pela indicação resumida das razões por que se pede o provimento do recurso (a alteração ou a anulação da decisão).
Ora, o tribunal superior tem de guiar-se pelas conclusões da alegação para determinar, com precisão, o objeto do recurso; só deve conhecer, pois, das questões ou pontos compreendidos nas conclusões, pouco importando a extensão objetiva que haja sido dada ao recurso, no corpo da alegação[5], sendo que tudo o que conste das conclusões sem corresponder a matéria explanada nas alegações propriamente ditas, não pode ser considerado e não é possível tomar conhecimento de qualquer questão que não esteja contida nas conclusões das alegações, ainda que versada no respetivo corpo.[6]
As conclusões servem assim para delimitar o objeto do recurso (art.º 635º), devendo corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo, constando normalmente, na sua parte final, se se pretende obter a revogação, a anulação ou a modificação da decisão recorrida.
4. O exequente/recorrente não cumpriu as exigências indicadas no ponto anterior: reproduziu os articulados dos embargos, algumas das decisões proferidas e a matéria de facto (provada e não provada); não torna claro se e em que medida impugna a decisão sobre a matéria de facto e não observa os ónus da impugnação da decisão de facto enunciados no art.º 640º (ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto); acaba por invocar a esmo, inconsequente e inconsistentemente, nulidades da sentença e inconstitucionalidades...
5. O presente caso, ao contrário de outros, não exige sequer um esforço de decifração no sentido de uma melhor configuração da realidade fática.
O desfecho do litígio envolve sobretudo a interpretação da factualidade descrita em II. 1. e 2., supra, que não se vê enjeitada.
Será de admitir que o relacionamento das partes e sua razão de ser não terá sido cabalmente esclarecido nos autos, o que, de resto, sucederá em muitas das situações do mundo jurídico-empresarial trazidas ao sistema judicial.
Mas importa conhecer do recurso!
6. O recorrente invocou diversas nulidades da sentença, ainda que aludindo a normas do CPC de 1961.
A Mm.ª Juíza do Tribunal a quo pronunciou-se (art.º 641º, n.º 1) e respondeu com acerto, assim:
«O exequente invocou a nulidade da sentença, (...) [afirmando] que o Tribunal não fundamentou de facto e de direito a sua decisão, nem apreciou a totalidade das questões.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 615º, n.º 1, do CPC que “é nula a sentença quando: b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
No presente caso, salvo o devido respeito por entendimento contrário, consideramos que não se verificam as nulidades em apreço.
Em primeiro lugar, não se verifica qualquer nulidade na sentença recorrida por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que a justificam porque, efetivamente, a decisão recorrida aponta os factos que considerou provados e a razão pela qual o Tribunal se convenceu quanto à verificação dos mesmos. Com efeito, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos não estar em causa qualquer falta de fundamentação da decisão, mas sim a discordância do exequente quanto à mesma.
No que tange à nulidade prevista na alínea c), o que resulta da análise da decisão proferida e do recurso apresentado, é que aquela encontra-se claramente motivada e fundamentada e que o recorrente a compreendeu, embora com ela não concorde. Nestes termos, não vislumbramos que a sentença padeça de alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível, mas simplesmente que o recorrente não concorda com os argumentos que na mesma foram expendidos.
Relativamente à alínea d), consideramos, de igual modo, que o Tribunal apreciou a questão que lhe competia conhecer, embora não a tenha decidido de acordo com a pretensão do recorrente. Com efeito, resulta da motivação da decisão que os elementos que o recorrente pretende colocar em crise foram devidamente ponderados e sopesados pelo Tribunal, tanto a nível documental como testemunhal.
Face ao exposto, consideramos que não se verificam as nulidades a que alude o art.º 615º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC, pelo que nada há a suprir.»
Esta apreciação não merece censura.
O que se expenderá, de seguida, confirma-o.
7. O exequente/recorrente não impugna a decisão sobre a matéria de facto.
Não obstante, e perante a “leitura” que pretende dar à realidade do presente caso, invoca parte da prova pessoal produzida em audiência de julgamento e, principalmente, o teor da informação prestada pela Câmara Municipal ... através de ofício datado de 31.7.2024 (junto a fls. 96 e seguintes).
Salvo o devido respeito por entendimento contrário, afigura-se que apenas se poderá/deverá verificar o conteúdo da mencionada informação - até pela importância que lhe foi atribuída em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto -, porquanto nada se concretizou a respeito dos restantes meios de prova, nem foram minimamente observados os ónus indicados no art.º 640º.
8. a) Partindo da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto apresentada pela Mm.ª Juíza do Tribunal a quo, destacamos os seguintes excertos:
«(...) Quanto ao ponto 3), tomou-se em consideração o documento junto a fls. 4 v dos autos de execução. / (...) / Quanto ao facto não provado, relativamente ao mesmo não foi produzida qualquer prova. Assim, do ofício do Município ... de fls. 96 resulta inequivocamente que o estabelecimento em causa não possui alvará para restauração e bebidas[7], pelo que nunca o mesmo poderia ter sido entregue ao executado pelo exequente. Não obstante as várias versões apresentadas pelas partes e testemunhas em sede de audiência quanto ao facto de o estabelecimento possuir ou não licença e, na afirmativa, que tipo de licença, a posse de alvará para restauração e bebidas constitui facto que apenas pode ser demonstrado através de documento. Como tal, na falta de apresentação do referido alvará e face à informação prestada pelo Município ..., o Tribunal não ficou com qualquer dúvida quanto à inexistência de tal alvará. / Por esta razão, o facto em apreço necessariamente resultou não provado. / Consigna-se que não foi considerada a alegação do exequente em como o último parágrafo do documento referido no ponto 3) foi acrescentado pelo executado de má fé (tendo o exequente assinado o mesmo sem se aperceber), na medida em que a mesma não consta dos articulados, tendo apenas sido suscitada em sede de julgamento, nomeadamente em sede de alegações. Assim, ao abrigo do princípio da preclusão, não pode ser atendida factualidade que devia ter sido alegada nos articulados e apenas o foi posteriormente, ademais quando a mesma se reporta a documento junto pelo próprio exequente no requerimento executivo.»
b) Da aludida documentação proveniente da C. M. ... consta a seguinte informação: «Do teor das informações prestadas pelo gabinete jurídico e setor de fiscalização, (...) o estabelecimento em causa não possui alvará para restauração e bebidas, é detentor do alvará de licença de ocupação para comércio n.º 144/1987, do pedido n.º ...32/2023 relativo à instalação de estabelecimento/acesso à atividade em nome de A... - Unipessoal, Lda., para estabelecimento de restauração do tipo tradicional (CAE 56101) e que por fim o exercício da atividade de restauração e bebidas é compatível com o uso genérico de comércio fixado no referido alvará não dispensando o cumprimento dos requisitos previstos pelo DL n.º 10/2015, de 16 de janeiro, na redação atual.»
- No parecer anexo elaborado pelo Técnico Superior/Jurista mencionaram-se alguns dos sucessivos diplomas legais sobre a matéria, explicitando-se ainda: «(...) Com a entrada em vigor do DL 234/2007 de 19 de junho (revogado pelo DL nº 48/2011, de um de Abril e cujas disposições relativas ao regime de instalação, modificação e encerramento de estabelecimentos veio a ser revogado e ora tutelado pelo DL 10/2015 de 16 de Janeiro), todos os edifícios ou frações onde se pretendiam instalar a atividade de restauração e/ou bebidas, deveriam dispor de licença/autorização de utilização para comércio (licenciadas até 19/7/2007), serviços, restauração ou bebidas, abrindo várias possibilidades de utilização. / O Alvará que a requerente detém atualmente é o de “ocupação – comércio” que parece ter sobrevivido incólume ao longo destes anos, ao contrário dos alvarás sanitários que, aliás, vieram a caducar nos termos propostos pela informação n.º 398/DAF-GJ/2024 (cf. n.º 2 do art.º 24º do diploma citado. / Não tem o requerente assim alvarás sanitários válidos, detendo um alvará de utilização para comércio que, no ano de 2014, através do Processo de Autorização de Utilização n.º ...14, em nome de BB, a que corresponde o Auto de Vistoria n.º ...5, ficamos a saber que “Efetuada a vistoria, requerida para os efeitos de concessão de autorização de utilização para estabelecimento de restauração e bebidas, a comissão verificou que as obras efetuadas não foram executadas de acordo com o projeto aprovado nesta Câmara Municipal. (...) a comissão é de parecer unânime que o estabelecimento em causa não reúne os requisitos legais para poder ser concedido o alvará de autorização de utilização para estabelecimento de restauração e bebidas (...).” / Não obstante o referido, existindo alvará para “ocupação”, termo genérico em uso nesta Casa por vários anos, que servia praticamente para tudo que não fosse habitação (aliás, o estabelecimento detinha alvará com a designação “Casa de Pasto” destinada à confeção de refeições ligeiras, já se antevendo potencial aptidão para restauração e bebidas) tendo em conta a abertura dada pelo defunto DL n.º 234/2007 de 19 de junho, o estabelecimento de restauração e bebidas é compatível, desde que detenha os requisitos específicos para este tipo de atividade preconizados pelos DL 10/2015 de 16 de Janeiro, designadamente, os artigos 122º a 136º. (...)»
c) É assim evidente que a Mm.ª Juíza do Tribunal a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto de harmonia com aqueles elementos (cujo teor integral consta de fls. 96 a 110).
De resto, o exequente/recorrente omitiu, na alegação de recurso, o segmento fundamental do aludido parecer, bem sabendo dos procedimentos levados a cabo nos anos de 2014 e 2015 e da situação do estabelecimento comercial em causa no tocante à concreta questão que ora se problematiza.
Daí, pese embora tudo quanto se deixa exposto, a factualidade relevante ficou devidamente configurada na 1ª instância, atentas as posições que as partes decidiram trazer a juízo (na ação executiva e subsequente oposição).
9. Pronunciando-se sobre o mérito dos embargos, expendeu a Mm.ª Juíza: «(...) importa verificar se, no caso dos autos, ocorre a exceção de não cumprimento do executado relativamente à dívida exequenda. / A este propósito, entende o executado que não tem de pagar tal valor ao exequente porquanto este não lhe entregou o alvará para restauração e bebidas, conforme havia sido convencionado. / (...) - exequente e executado acordaram que aquele vendia a este o recheio do estabelecimento comercial e obrigava-se a entregar-lhe toda a documentação legal e necessária para o seu normal funcionamento (incluindo o alvará para restauração e bebidas) e a chave até ao dia 01.01.2021; - em contrapartida, o executado tinha de pagar ao exequente o montante de € 60 000, sendo € 30 000 na data de subscrição da declaração referida no ponto 3) e € 30 000 em 30.9.2021; - mais acordaram que a falha na entrega da documentação e chave até essa data anularia todo o processo, tendo o exequente de devolver ao executado todos os valores recebidos. / (...) Dispõe o art.º 428º, n.º 1, do Código Civil que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”. / Consiste, pois, a assinalada exceção na faculdade atribuída a qualquer das partes de um contrato bilateral, em que não haja prazos diferentes para a realização das prestações, de recusar a prestação a que se acha adstrita, enquanto a contraparte não efetuar a que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. / (...) o que verdadeiramente importa é que o excecionante não se encontre obrigado a cumprir antes da contraparte. / “(...) a ´exceptio` não funciona como uma sanção, mas apenas como um processo lógico de assegurar, mediante o cumprimento simultâneo, o equilíbrio em que assenta o esquema do contrato bilateral. Por isso ela vigora, não só quando a outra parte não efetua a sua prestação porque ´não quer`, mas também quando ela a não realiza ou a não oferece porque ´não pode` (…)”.[8] / Ora, no presente caso, verifica-se que o exequente nunca entregou ao executado o alvará para restauração e bebidas, conforme se havia comprometido, sendo que as partes haviam ainda convencionado que a falta de entrega desse documento anularia todo o processo, tendo o exequente de devolver ao executado todos os valores recebidos. Para além disso, nos termos contratados, o exequente tinha de proceder à entrega do alvará em data muito anterior àquela em que o executado se obrigou a pagar o valor remanescente de € 30 000, ora em execução. / Nestes termos, conclui-se que, no âmbito de um contrato bilateral, perante a não realização pelo exequente da prestação a que estava adstrito (entrega do alvará), pode o executado opor-se à realização da contraprestação, uma vez que tal conduta se insere no domínio da proporcionalidade que deve pautar o cumprimento dos contratos e não é contrária à boa fé. / Assim sendo, o executado pode legitimamente recusar a realização da sua prestação – o pagamento do remanescente do preço – perante a realização defeituosa, pelo exequente, da sua prestação, razão pela qual não há que condená-lo no pagamento de qualquer montante, quer a título de capital, quer a título de juros de mora. (...) / Nesta conformidade, os embargos devem ser julgados procedentes e a execução extinta.»
10. Não vemos razão para dissentir!
As obrigações assinaladas em II. 1. 3), supra, eram correspetivas ou correlativas, uma era o sinalagma da outra.
Deduzindo oposição/embargos à execução, o executado/recorrido exerceu o seu direito de defesa perante o pedido do exequente/recorrente.
E estando o credor/exequente/recorrente obrigado para com o devedor a uma contraprestação a efetuar em 01.01.2021 (ou seja, antes da do devedor/executado, a realizar em 30.9.2021), verifica-se que não provou que a efetuou ou ofereceu (cf. art.º 715º, n.ºs 1 a 4), razão pela qual não podia promover a execução.
Daí, a procedência dos embargos à execução (art.ºs 728º, n.º 1 e 731º).[9]
11. Como decorre dos autos, o título de crédito dado à execução manteve-se no âmbito das relações imediatas.
O objeto dos embargos prendia-se com o conteúdo da relação subjacente ou causal - relação jurídica fundamental.
O executado/recorrido invocou a exceção de não cumprimento (art.º 428º do CC) e o exequente/recorrente não logrou provar que efetuou ou ofereceu a prestação devida; ademais, os elementos disponíveis não suscitam dúvidas quanto ao incumprimento, pelo menos, com relevância para a execução em análise.
Assim, não havendo alternativa à resposta em sede executiva, dir-se-á que o mais que possa contender com as posições das partes quanto à natureza, ao conteúdo e à razão de ser do negócio por elas celebrado [cf., v. g., II. 5. e 8. c), supra], extravasa o objeto da presente ação executiva.
Inexistindo as apontadas nulidades da sentença (cf. II. 6., supra), também não se vê em que possam ter sido ofendidos preceitos ou princípios da Lei Fundamental. 12. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.
Custas pelo exequente/apelante.
08.4.2025
[3] Alegou-se no requerimento executivo, nomeadamente:
«1 - Os Exequentes venderam ao Executado, pelo preço de € 60 000, o recheio do estabelecimento comercial a estes pertencente, os seguintes bens: • Hotte e motor de exaustão; • 1 Fogão;• 1 Máquina Kebab,• 1 Grelhador de frangos a gás,• 1 Máquina de lavar louça;• 1 Máquina de lavar chávenas de café;• 1 Fritadeira elétrica• 1 Fritadeira de Panados;• 1 Arca refrigeradora de 2m de cumprimento em inox;• 1 Arca frigorifica para bebidas de 1,20x 1,70m em inox;• 1 Máquina de café;• 1 Moinho de café;• 1 Saladeira refrigeradora;• Várias bancadas em inox;• 1 Tostadeira elétrica,• 1 Televisão;• 1 Aparelhagem de música;• Mesas e cadeiras interiores e exteriores;• 2 Arcas congeladoras.
2 - Foi acordado que, o pagamento seria efetuado em duas tranches. A primeira tranche, no valor de € 30 000 no ato da venda, e a segunda tranche, no valor de € 30 000 até ao dia 30.9.2021, conforme documento que se junta como doc. n.º 1.
3 - Para o efeito e garantia de pagamento, o Executado emitiu o cheque n.º ...07, da conta n.º ...20 do Banco 1..., de que este é titular, no valor de € 30 000, conforme documento que se junta como doc. n.º 2.
4 - Apresentado a pagamento, veio o referido cheque devolvido, por mandato do banco sacado - por motivo de falta de provisão (Doc. n.º 2). (...)»
[4] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[5] Vide, entre outros, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V (reimpressão), Coimbra Editora, 1984, págs. 308 e seguintes e 358 e seguintes; J. Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, CPC Anotado, Vol. 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 33 e os acórdãos do STJ de 21.10.1993 e 12.01.1995, in CJ-STJ, I, 3, 84 e III, 1, 19, respetivamente.
[6] Cf. o citado acórdão do STJ de 12.01.1995.
[7] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[8] Seguiu-se o entendimento da Doutrina, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 381; M. J. de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, 2016, pág. 362 a 365 e I. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, 1986, págs. 431 e seguinte.
[9] Vide, designadamente, J. Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 6ª edição, Coimbra Editora, 2014, págs. 109 e seguinte e 205 e seguintes e Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, págs. 365 e seguintes.