I - O direito de retenção consiste na faculdade de o detentor de uma coisa não entregar a mesma a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir a obrigação a que está adstrito para com aquele.
II - São pressupostos desse direito:
i) a posse e obrigação de entrega duma coisa;
ii) a existência, a favor do devedor, dum crédito exigível sobre o credor;
iii) e a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa, ou seja, este crédito acha-se ligado à coisa, visando o pagamento de despesas que o detentor com ela efetuou ou a indemnização de prejuízos que em razão dela sofreu – “debitum cum re junctum”.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto – Juiz 4
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
1. Identificação das partes.
Autor:
A..., NIPC ..., clube desportivo sem fins lucrativos, com sede na Rua ..., ... Porto.
Réu:
AA, NIF ......, divorciado, residente na Rua ..., ... Porto
2. Objecto do litígio.
Por via da presente acção, o A. pretende obter a condenação do R. na importância de € 3.420,00, correspondente às mensalidades, de € 60,00 por mês, de parqueamento da embarcação ... na Marina ..., no período de Janeiro de 2017 a Setembro de 2021, bem como nas mensalidades que se vencerem posteriormente até à retirada da embarcação.
Por sua vez, o R. não reconhece que aquela quantia seja por si devida, uma vez que a embarcação permaneceu na marina, parqueada em área reservada à oficina, ao cuidado dos seus subconcessionários, a quem a entregou, para fazer a sua reparação.
Ainda que assim não fosse e aquela mensalidade fosse devida, sempre a retenção da embarcação na marina seria ilegal, uma vez que o A. não goza de direito de retenção.
Por outro lado, a embarcação sofreu por duas vezes actos de vandalismo por incumprimento do A. do seu dever de vigilância, pelo que é o mesmo responsável pelos danos patrimoniais e pelos danos não patrimoniais, que computa em € 2.000,00, que daí advieram para si.
3. Pedido:
- condenação do R. no pagamento da quantia de 3.420,00 Euros, acrescida de juros vencidos e vincendos, 30 dias após o vencimento de cada uma das mensalidades, bem como bem como nas mensalidades que se vencerem até à retirada da embarcação, à razão de 60 Euros/mês, salvo actualização das tarifas, acrescidas de juros vencidos e vincendos, 30 dias após o vencimento de cada uma das mensalidades.
Pedido reconvencional:
Condenação da Reconvinda:
a) na obrigação de restituição e entrega imediata da embarcação sob a designação “...”, de cor branca, com o Livrete nº..., com o motor de Marca ... nº ..., a gasolina, com o Casco nº ..., sita na Marina ..., Estrada Nacional ..., ... Porto a AA, seu legítimo proprietário;
b) no pagamento ao Reconvinte da quantia a apurar a título de danos patrimoniais;
c) no pagamento ao Reconvinte na quantia de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais;
d) dos juros legais vincendos desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Nos termos e com os fundamentos expostos, decido julgar:
1.- parcialmente procedente, por provada na mesma medida, a presente acção e, em consequência, condeno o R. a pagar à A. a quantia de 180 (cento e oitenta) euros, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, absolvendo o R. do demais peticionado.
2.- parcialmente procedente, por provada na mesma medida, a reconvenção e, em consequência, condeno o A./Reconvindo:
a)- a entregar imediatamente ao R. a embarcação sob a designação “...”, de cor branca, com o Livrete nº..., com o motor de Marca ... nº ..., a gasolina, com o Casco nº ..., sita na Marina ..., Estrada Nacional ..., ... Porto a AA, seu legítimo proprietário;
b)-a pagar ao R./ ao Reconvinte a quantia correspondente aos danos patrimoniais sofridos pelo R. em virtude da sua conduta, acrescidos dos juros vincendos peticionados, a determinar em sede de liquidação;
c)- absolver o A. do demais peticionado.
As custas da acção serão suportadas por A. e R. na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código Processo Civil).
As custas da reconvenção serão suportadas por A. e R. na proporção dos respectivos decaimentos, fixando-se provisoriamente tal proporção em 30% e 70% respectivamente.
Registe e notifique”.
Não se conformando o Autor com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
A) As declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
B) As diverências entre as declarações do R. e toda a demais prova produzida nos autos é tal que levou o Tribunal ad quo a considerar como não provados diversos factos que aquele relatou, como sejam, a título exemplificativo, os constantes de h) a l), q), u) ou z), “…não foi possível ao tribunal adquirir uma convicção segura de que os mesmos se verificaram (fls 23).
C) Atento o interesse pessoal, falta de objetividade, falta de corroboração pela demais prova produzida nos autos, não deveria ter sido atribuída pelo Tribunal ad quo a credibilidade mínima exigida à fixação de prova às declarações de parte do R.
SUPRA ARTIGOS 7º A 22
D) O depoimento da testemunha BB, além de incoerente e pejado de contradições com a demais prova produzida e até com as declarações do R., não merece a mais pequena credibilidade em face da preparação de que foi alvo e que pela própria testemunha foi reconhecida.
SUPRA ARTIGOS 23º A 37
E) Atento o depoimento da testemunha CC, responsável pela Marina desde pelo menos 2006 (vide ponto 22) dos factos provados) minutos 00:40:14 a 00:40:27, 00:40:32 a 00:41:18, 00:43:44 a 00:44:36 da gravação de 02.05.2023 e minutos 00:11:20 a 00:14:31 do depoimento de 06.06.2023 da gravação -, o depoimento da testemunha DD -minutos 00:54:29 a 00:55:14, 00:10:35 a 00:11:50, 00:12:11 a 00:12:19, 00:57:26 a 00:58:07, 00:59:07 a 00:59:45, 01:20:16 a 01:23:25, 01:23:35 a 01:25:17 da gravação, nada permite concluir que após a saída do DD, a oficina de reparação mecânica possuisse um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estão isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento.
F) Não existindo qualquer outra prova, designadamente documental, ocorreu erro na apreciação da prova levada à formulação dada ao ponto 18) da matéria de facto assente, devendo o mesmo ser corrigido para que dele passe a constar que:
18) A oficina de reparação mecânica possuía, até meados de 2015, um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estavam isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento.
SUPRA ARTIGOS 38º A 54
G) Dos autos resulta que o responsável da Marina explorada pelo A. solicitou, por SMS, ao R. o pagamento do valor referente ao aparcamento do ano de 2016 – doc 2 junto com a contestação – ao que acresce o depoimento da testemunha CC minutos 00:40:04 a 00:44:36 da gravação de 02.05.2023.
H) A matéria de facto fixada no ponto 29) encontra-se em direta contradição com a factualidade dada como não provada, em k), l) e z).
I) Deverão, pois os pontos 28), 29) e 42) dos factos provados serem dados como não provados,
SUPRA ARTIGOS 55º A 63
J) Compulsada a fundamentação da douta sentença, ao depoimento da testemunha CC foi atribuída credibilidade e idoneidade suficientes a fundamentar muita da factualidade dada como provada, independentemente de se tratarem de factos favoráveis ao A., ou não, e na mais das vezes desconsiderando as declarações do R.
K) Não se aferem, pois, razões para que relativamente aos factos constantes das alíneas a) e b) da matéria de facto não provada fosse diferente e haja desconsiderado o depoimento prestado pela testemunha CC.
L) Incorreu o Tribunal ad quo em manifesto erro de apreciação da prova, que se impõem corrigir, dando como provados os factos constantes das alíneas a) e b).
SUPRA ARTIGOS 64º A 75
M) O julgamento operado relativamente à alínea c) dos factos dados como não provados encontra-se em contradição com as alíneas 6) e 7) da matéria de facto assente, respeitantes à existência e afixação em local visível ao público dos “Regulamento de Exploração da Marina” e “Regulamento de tarifas”.
N) Do depoimento da testemunha CC, diretor da Marina, aos minutos 00:33:40 a 00:34:22 do depoimento de 02.05.2023, 00:03:24 a 00:03:36 da gravação de 03.11.2023, da testemunha BB – minutos 00:11:17 a 00:12:15 da gravação de 27.06.2023 -, resulta a necessidade de concluir pela publicidade e conhecimento pelo R. da tabela de preços.
O) Errou, pois, o douto tribunal a quo, na apreciação conciliada de toda a prova produzida a esta matéria e na sua articulação com a factualidade dada como assente em 6) e 7), em razão do que se impõe que os factos constantes das alíneas c) e d), tidos como não provados, sejam efetivamente consideradas como provados.
SUPRA ARTIGOS 76º A 85
P) Cabia ao Réu, enquanto proprietário, retirar a embarcação da Marina ..., quando o sub-concessionário DD deixou de exercer a sua actividade na Marina ... no ano de 2015 – artigos 5, 19, 20 –
Q) Não o fazendo incorre na obrigação de pagamento dos custos de permanência da embarcação, de acordo com o regulamento e a tabela de preços em vigor – pontos 6 e 7 dos factos dados como provados –, tanto assim é que o Réu liquidou o valor correspondente ao parqueamento, no ano de 2016 - artigo 8 dos factos dados como provados.
R) O Réu não fez prova de que o EE dispunha de lugares de estacionamento e o Autor é terceiro em relação a qualquer acordo que o Réu tenha feito com o referido EE.
S) Atento que se deu como provado – pontos 77 e 78 - tem o Autor todo o direito e legitmidade para reclamar do Autor o valor correspondente à ocupação que a embarcação de que é proprietário vem fazendo, desde 2017, cabendo ao Réu e não ao Autor “entender-se” com o referido EE.
T) Tendo em conta que o Autor exerce a actividade de concessionário da Marina ..., não restam dúvidas que existe uma obrigação de remuneração do Autor pelo “parqueamento” da embarcação – cfr. artº 1155º, 1158º, nº 1 ex vi 1156º do CC
U) Como não existe um contrato escrito, mas o Réu sabia quais as condições de parqueamento de embarcações na Marina ..., o valor do parqueamento é determinado pelas tarifas vigentes, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 1158º do CC
V) À data de 05 de Março de 2021, data em que o Réu pretendia levantar a embarcação, era o Autor credor sobre o Réu de valores referentes ao parqueamento.
X) Quer o disposto na alínea e) do artigo 755º do CC, quer o nº 5 do artigo 7º do Regulamento de exploração da marina - ponto 14 dos factos dados como provados, conferiam ao Autor direito de retenção.
Z) A douta sentença reconhece, mesmo na análise que faz da factualidade que na data em que Réu se propôs retirar a embarcação - 05 de Março de 2021 (ponto 47 dos factos dados como provados), o Autor possuía um crédito sobre o Réu de, pelo menos 180 Euros, o que lhe conferia direito de retenção sobre a embarcação, até ao seu pagamento.
AA) Existe manifesta contradição entre o que dá como provado, a conclusão de que o Autor tinha, à data de 05 de Março de 2021 um crédito de 180,00 Euros e a conclusão de que não tinha direito de retenção porque não detinha nenhum crédito.
BB) Concluindo que o Autor tinha um crédito, de 180,00 Euros, segundo a douta sentença, ou 3.060,00 Euros, segundo a posição defendida pelo Autor, à data de 05 de Março de 2021, a retenção que fez da embarcação foi e mantinha-se lícita.
CC) Incumbia ao EE, por via do contrato de empreitada celebrado entre si e o Réu e - não ao Autor - no período de 2017 a 2020 -, guardar, vigiar e conservar a embarcação, pois a ele estava confiada.
DD) Atento o disposto no n.º 2 do artigo 5º do “REGULAMENTO DE EXPLORAÇÃO DA Marina ...”, aprovado pela B... - ponto 71 dos factos dados como provados – que estava afixado – ponto 6 - quando o Réu decidiu colocar a embarcação na Marina ..., tinha perfeita consciência que o fazia nas condições constantes daquele, assim o aceitando e vinculando-se ao mesmo.
EE) Inexiste, pois, qualquer contrato de depósito entre o Réu e o Autor, do que decorre a inexistência de qualquer obrigação de vigilância, cuidado ou manutenção por parte do Autor, pelo que inexiste o direito de que se arroga titular o Réu.
FF) Atento o disposto no artigo 27º do referido “REGULAMENTO DE EXPLORAÇÃO DA Marina ...”, aprovado pela B..., de que o Réu tomou previamente conhecimento e aceitou, este desonerou o Autor de toda e qualquer responsabilidade por acidentes, danos na embarcação, furtos e/ou roubos, assim como por quaisquer prejuízos.
GG) Com a existência de uma vedação com altura superior a dois metros, um circuito interno de videovigilância e o condicionamento do acesso ao interior no período de funcionamento - pontos 75 e 76 dos factos dados como provados -, estão mais que cumpridas as obrigações que pendiam sobre o Autor, apesar de não ter, alegadamente, impedido o furto e/dano.
HH) Assim, ainda que se considere existir um contrato de depósito, constata-se que o Autor, enquanto depositário mais que ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, nos termos do artigo 799º nº 1 do Código Civil, tendo-se por não culposo o alegado incumprimento, pelo que nenhuma responsabilidade tem no sucedido.
Termos em que, revogando-se a douta sentença a quo, substituindo-se por outra que, julgando a acção totalmente procedente, condene o Réu no pedido e, simultaneamente improcedente o pedido reconvencional deduzido pelo Réu, far-se-á inteira e sã JUSTIÇA!”.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se existe erro na apreciação da prova;
- se é devida, e a que título, qualquer importância pelo parqueamento da embarcação do Réu;
- se existe fundamento para dever o Autor proceder à imediata entrega da embarcação ao Réu;
- se o Autor é responsável, e a que título, por danos causados à embarcação durante o tempo em que esta se mantém parqueada no espaço explorado pelo Autor.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1) O A..., tem como finalidade principal desenvolver actividades que visem o engrandecimento do desporto, da cultura e da qualidade de vida em geral, tendo também em vista a efectivação dos direitos sociais;
2) O A. explora a Marina ..., sita na Estrada Nacional ..., ... Porto, nos termos e condições constantes do contrato de concessão celebrado com a B..., S.A.;
3) A propriedade da embarcação “...” encontra-se registada a favor do R., como decorre do Livrete nº ...;
4) A embarcação em causa está na “Marina ...” desde Setembro de 2006 e foi colocada na doca seca, na área reservada do sub-concessionário DD, em 21/10/2011, para venda;
5) A embarcação permaneceu na “Marina ...”, parqueada nas referidas instalações, mais concretamente na área seca, após DD ter deixado de trabalhar e prestar serviços naquela marina;
6) Existe um “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... e que se encontra de forma permanente patente ao público, afixado em local visível das instalações;
7) E um “Regulamento de Tarifas”, actualizado anualmente, juntando-se a título exemplificativo o de 2021;
8) O R. liquidou o valor correspondente ao parqueamento, no ano de 2016;
9) Depois dessa data, o R. nada mais pagou;
10) Atendendo a que a embarcação propriedade do R. possui uma dimensão inferior a seis metros, a mensalidade do parqueamento daquela embarcação é de 60,00 Euros;
11) O R. foi interpelado para proceder ao pagamento das mensalidade do período de Janeiro de 2017 a Março de 2021;
12) O R. ainda não retirou a embarcação da Marina;
13) O A. mantém a embarcação na Marina na sua posse, não autorizando a sua retirada até à liquidação das importâncias peticionadas;
14) Estatui o n.º 5 do artigo 7.º do “Regulamento de Exploração da Marina ...” que “O concessionário da Marina ... tem direito a retenção das embarcações com valores e acostagem não pagos nas instalações do ... até que o efetivo pagamento dos valores em dívida, consubstanciados no presente regulamento e materializado no regulamento de tarifas, seja devidamente comprovado.”;
15) Durante os anos de 2006 a 2015, a gestão da oficina da Marina ... foi do Sr. DD;
16) Durante o período de 2006 a 2015, o R. manteve sempre boa relação com o Sr. DD que era a pessoa que cuidava e tratava das embarcações ali estacionadas, bem como de todos os aspectos a elas relacionados;
17) O R. decidiu colocar a embarcação “...” à venda, tendo a mesma sido recolhida aos lugares adstritos à oficina de embarcações, para ser sujeita a uma revisão geral;
18) A oficina de reparação mecânica possui um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estão isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento;
19) Em meados de 2015, o Sr. DD cessou a sua gestão da oficina da Marina ...;
20) O Sr. DD quando cessou as suas funções, deixou a embarcação “...” no parque da oficina da Marina ...;
21) A oficina mecânica e o parque de estacionamento adstrito a esta, encontram-se dentro do complexo da Marina ..., sendo vigiada pela A. com câmaras de vigilância e com cancela de acesso restrito a possuidores de embarcações;
22) Desde pelo menos 2006 até à presente data, a pessoa que exercia e exerce as funções de gestão e direcção da Marina ..., em nome e em representação da A., é o Sr. CC;
23) O R., apesar de não navegar com a embarcação, deslocava-se à Marina ...;
24) Numa dessas visitas à Marina ..., no ano de 2015, o R. constatou que os painéis de revestimento interior da embarcação estavam danificados e que o rádio tinha desaparecido;
25) O R. comunicou o sucedido ao representante da A., uma vez que o bem se encontrava dentro da propriedade desta;
26) O Sr. CC apresentou ao R. o novo mecânico da oficina instalada na Marina ..., Sr. EE, de modo a proceder à reparação e pintura da embarcação, para que, posteriormente, fosse vistoriada e colocada novamente a navegar;
27) No ano de 2016, o R. acordou que o Sr. EE procedesse à reparação da embarcação, tendo em vista a aprovação da sua navegabilidade em vistoria;
28) Enquanto isto sucedia, e apesar do Sr. CC ter conhecimento pessoal do sucedido e de ter sido sempre informado pelo R. das diligências em curso, este foi surpreendido com a apresentação pelo próprio Sr. CC da conta correspondente à anuidade da Marina referente ao ano de 2016;
29) O R. falou pessoalmente com o Sr. CC, tendo-lhe dito que a embarcação ... tinha sido vandalizada nas instalações da Marina ..., sob guarda e vigilância da A., que entendia que não deveria suportar aquele custo, mas que, o faria pela última vez, de boa-fé, solicitando o apoio ao Sr. CC para acompanhar a reparação da embarcação;
30) O valor da reparação da embarcação foi pago pelo R. ao Sr. EE;
31) No momento em que a embarcação estava a ser inspeccionada pela Capitania, foi detectado um problema no motor;
32) Uma vez que lhe faltavam peças e seu interior continha água, peças metálicas de limalha e esferas;
33) O descrito em 32) e 33) ocorreu enquanto a embarcação se encontrava dentro das instalações da Marina ...;
34) No dia 14 de Fevereiro de 2017, o R. enviou um SMS ao Sr. CC a dar conta do sucedido nos termos que constam do documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
35) O R. acordou com o Sr. EE proceder à reparação do motor, para que, posteriormente, pudesse ser novamente vistoriada a embarcação;
36) A embarcação voltou novamente para as instalações da oficina para reparação do motor;
37) O R. deslocava-se à Marina ... para se inteirar do estado da reparação;
38) As justificações apresentadas pelo Mecânico, Sr. EE, ao R. para justificar o atraso da reparação da embarcação eram de vária índole;
39) Alegava que as peças estavam encomendadas, atrasos nas encomendas, promessas de que a reparação iria ocorrer em curto prazo de tempo, sendo certo que o R. nunca obteve uma resposta objectiva sobre a data de conclusão da reparação;
40) O R. teve conhecimento de que o mecânico Sr. EE iria deixar a Marina ... em 2020;
41) O R. informou o Sr. CC da sua pretensão em retirar em definitivo a embarcação das instalações da Marina ...;
42) De forma inusitada, a 15 de Novembro de 2020, o Senhor CC enviou um SMS do telemóvel com o número ..., para o telemóvel do Réu, com o seguinte teor: “ Boa tarde, relativamente ao seu barco solicito o pagamento de 660€ relativos ao estacionamento em área seca relativo ao período de janeiro a novembro de 2020 NIB ... desde já obrigado CC”(SIC) - conforme documento junto sob nº 2 e, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
43) A comunicação supra citada é a única em que a A. solicita ao R. qualquer pagamento e, como se comprova, não fez qualquer referência a valores em dívida referente a quaisquer anos anteriores.
44) Em dia não concretamente apurado do mês de Novembro de 2020, o R., acompanhado do Sr. DD, deslocou-se à Marina ... para proceder ao levantamento da embarcação ...;
45) O porteiro abriu a cancela permitindo a entrada da viatura. Porém, ao colocar o reboque perceberam que os pneus do atrelado estavam completamente vazios e não podiam movimentar o mesmo naquelas condições. Ficou combinado regressarem noutro momento ao local para efectuarem a retirada da embarcação;
46) Face ao cenário de pandemia COVID-19 e restrições de circulação a que a população portuguesa foi sujeita no Estado de Emergência decretado e suas renovações sucessivas, só foi possível reprogramar a retirada da embarcação para 05 de Março de 2021;
47) Para surpresa e choque do R., no dia 5 de Março de 2021, o Sr. DD contactou-o via telefone, comunicando-lhe que se encontrava na Marina ... e tinha sido impedido pelo Sr. CC de retirar a embarcação ..., alegando "falta de pagamento à Marina" pelo aqui R.;
48) De imediato, o R. contactou telefonicamente o Director Geral da A., Sr. Coronel FF, solicitando que lhe fosse permitida a retirada imediata da embarcação;
49) O Sr. Coronel FF enviou um email ao R. em 11 de Março de 2021 a pedir para que este enviasse um resumo da situação, nos termos que constam do documento 3 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
50) O R. respondeu ao referido email em 22 de Março de 2021, nos termos constantes do documento 4 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
51) No mesmo dia 22 de Março, o R. recebeu uma resposta do Sr. CC, junta com a contestação como documento 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, anexando uma carta datada de 19 de Março de 2021 junta com a contestação como documento 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, na qual solicita ao R o pagamento da quantia de € 3.060.00 devida pelo parqueamento de Janeiro de 2017 a Março de 2021;
52) No dia 25 de Março de 2021 o R. respondeu ao email recebido, nos termos constantes do documento 7 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
53) O R., na exposição que fez à A. no citado documento 7, rejeitou efectuar o pagamento do valor reclamado de €3.060,00;
54) O A. não mais respondeu às solicitações do R., limitando-se a remeter-lhe via email, com uma transcrição, datado de 01 de Maio de 2021, a reclamar o pagamento do parqueamento no valor de € 3.060,00, correspondente ao período de Janeiro de 2017 a Março de 2021 e invocando o exercício do direito de retenção da embarcação, caso não procedesse ao referido pagamento, nos termos referidos no documento 8 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
55) A A. nunca remeteu ao R. qualquer factura ou documento contabilístico, no qual solicitasse algum montante em débito referente à embarcação ...;
56) Face ao silêncio da A., no dia 13 de Maio de 2021, o R. apresentou-se com um transporte adequado na Marina ... para retirar a embarcação ...;
57) No dia 13 de Maio, o representante da A., Sr. CC, ordenou ao funcionário ali presente que impedisse a retirada da embarcação “...”;
58) Face ao sucedido, o R. solicitou a comparência da Polícia Marítima para tomar conta da ocorrência;
59) Na presença do Agente da Polícia Marítima, o R. constatou o seguinte: A embarcação “...” tinha sido deslocada; A embarcação estava mal tapada e com água; O seu interior, incluindo as alcatifas, sistema eléctrico e os bancos, estava repleto de água e lixo;
60) A embarcação encontrava-se posicionada em frente aos escritórios da Marina – em local de passagem e de visibilidade aos responsáveis da Marina;
61) O representante da A., alegou a não autorização de retirada da embarcação, invocando o direito de retenção pela existência de uma dívida, não tendo exibido ao Agente da autoridade policial qualquer documento comprovativo da alegada dívida;
62) De 2017 a 2020, a embarcação ... encontrava-se em reparação na oficina existente na Marina;
63) Actualmente, a embarcação apresenta água no interior do convés, com manifesta degradação deste espaço por elevada concentração de humidades, deterioração/oxidação dos instrumentos de navegação, comando e controlo, cabos eléctricos à vista, sujidade e manchas os estofos, objectos nos interior do convés deteriorados, ausência de bateria, oxidação aparente no motor de proporção, hélice e coluna/rabeta com elevada deterioração dos elementos vedantes e de movimentação, característica de não uso/utilização/manutenção;
64) O valor da reparação da embarcação é de cerca de € 3.800;
65) O valor da embarcação, no estado em que se encontra, é de cerca de € 2.515,23 e, após a reparação necessária, de cerca de € 5.500,00;
66) Até à presente data, a A. não emitiu nenhuma factura de parqueamento da embarcação ...;
67) Desde o ano de 2016 até à presente data, que a embarcação ... ainda não foi reparada;
68) A embarcação encontra-se mal tapada e exposta ao vento, chuva e sol;
69) A embarcação foi deslocada pela Reconvinda dos lugares de parqueamento da oficina para os lugares de parqueamento da marina;
70) O R. esteve privado do uso da embarcação por período superior a 4 anos;
71) Prescreve o n.º 2 do artigo 5.º do “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... “Os contratos celebrados entre a Marina e os proprietários das embarcações não constituem por qualquer forma um contrato de depósito, pelo que a Marina não se responsabiliza pela guarda da embarcação;”
72) A embarcação não estava, até 2016, depositada aos cuidados do A.;
73) O DD era subconcessionário do A, sendo que no âmbito do acordo de subconcessão foi-lhe cedido o gozo de um espaço, dentro das instalações da Marina ...;
74) Estatui o artigo 27.º do referido “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... “Sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo anterior, a Marina não assume qualquer responsabilidade por acidentes ou por qualquer dano que se verifique nas embarcações, tanto no lugar de acostagem na água, como estacionadas na área seca, ou na demais área concessionada, bem como, pelo desaparecimento de embarcações ou objetos nelas existentes, assim como por quaisquer prejuízos resultantes de fenómenos naturais adversos, nomeadamente: enxurradas, ciclones, cheias.”;
75) As instalações da Marina ... estão dotadas de câmaras de vigilância e o acesso é condicionado com cancela;
76) Para além de a Marina ... estar vedada em toda a sua volta por vedação em rede, assim vedando o acesso ao interior da mesma, quando fora do período de funcionamento já que, durante o seu funcionamento, é vigiada pelos funcionários do A.;
77) Nem o Sr EE, nem o Sr. DD são funcionários/trabalhadores do A., nem têm qualquer acordo com o A. com vista à prestação de serviços de reparação aos clientes do A.;
78) A relação existente entre o Sr EE e o Sr. DD com o A., tem por base um contrato de concessão, no âmbito do qual o A. permitiu àqueles a prestação aos respectivos clientes de serviços de reparação, manutenção, tratamento e pintura de embarcações, comercialização de material náutico e de embarcações no ..., limitando-se a afectar à actividade daqueles uma área coberta e um área descoberta, destinada ao estacionamento de embarcações;
79) O R. indicou como morada a Rua ..., ... Porto e não recebeu a carta de 21 de Setembro de 2021, junta com a petição como documento 5;
80) Tendo sido avisado da missiva, no dia 23 Setembro 2021 e tendo sido depositado um aviso a tal respeito na sua caixa postal, não cuidou de, até ao dia 6 Outubro 2021 levantar a mesma nos CTT, como resulta da consulta do site dos CTT, pela referência ....
III.2. A mesma instância considerou não provados os seguintes factos:
a) Em 2015, foi comunicada ao R. o fim da relação contratual com o referido subconcessionário;
b) E que teria de retirar a sua embarcação da doca seca, na área reservada do referido sub-concessionário, sob pena de lhe serem imputados custos de permanência, de acordo com a tabela de preços em vigor;
c) O R. era e é conhecedor do regulamento de exploração da Marina e do Regulamento de Tarifas e aceitou-os;
d) Este regulamento encontra-se afixado em lugar bem visível ao público;
e) Quando decidiu colocar e deixar permanecer a embarcação na Marina ..., apesar de instado para a sua remoção, o R. tinha perfeita consciência que o fazia nas condições constantes daquele, assim o aceitando e vinculando-se ao mesmo;
f) Durante o período de 2006 a 2015, o R. manteve sempre uma excelente relação com todos os colaboradores da Marina ...;
g) O Sr. DD quando cessou as suas funções, deixou a embarcação “...” em perfeito estado de conservação e com todos os seus pertences.
Concretamente, rádio, bóias, coletes, capotas, etc;
h) O R. deslocava-se à Marina ... com regularidade para ver o estado da embarcação;
i) Na ocasião referida em 24), o Sr. CC reconheceu o sucedido e prometeu ajudar na resolução do problema;
j) Aproveitando o momento da reparação referida em 26), o R. decidiu também, mandar fazer capotas novas - o que fez - tendo suportado o custo de €500,00;
k) O Sr. CC prometeu ajuda e colaboração ao R.;
l) Com base nesse compromisso de ajuda, e apesar de a embarcação estar, no momento, no “parque de estacionamento” da oficina, o R., de boa fé e com espírito de bom relacionamento, pagou essa anuidade de 2016 à A., tendo dito, na presença de terceiras pessoas, ao Sr. CC, que não voltaria a realizar outros pagamentos, enquanto o barco não estivesse integralmente reparado e em condições de poder navegar, pelos danos sofridos nas instalações da Marina;
m) Em Fevereiro de 2017 o Sr. EE comunicou ao R. que a embarcação ... estava pronta;
n) A embarcação, enquanto estava aos cuidados e sob a vigilância da A., foi vandalizada pela segunda vez, tendo-lhe sido roubadas peças e colocado água, peças metálicas de limalha e esferas no seu interior;
o) O referido em 35) ocorreu em Fevereiro de 2017;
p) Os factos supra descritos foram comunicados pelo R., directamente e de viva voz, ao Sr. CC nas instalações da Marina e presenciado por terceiros;
q) O R., sempre que se encontrava em território nacional, deslocava-se à Marina ... para se inteirar do estado da reparação;
r) O R. efectuou inúmeros telefonemas ao Sr. EE para obter uma resposta objectiva sobre a data de conclusão da reparação;
s) O R. passou a questionar o responsável da A. sobre o assunto. Este também alegava atrasos na obtenção das peças, comprometendo-se a ajudar a solucionar o problema;
t) O R. deslocou-se à Marina ... no Verão de 2020 e teve conhecimento directo pelo Mecânico Sr. EE de que este iria deixar a Marina .... Mais informou o R. de que a reparação não estava concluída;
u) O R. constatou que já não existia ninguém a trabalhar na oficina, que existiam problemas com vários utentes da Marina e que a mesma se encontrava praticamente ao abandono com sinais evidentes de actos de vandalismo, concretamente, vidros partidos e mau estado geral das instalações;
v) Questionado o representante da A., Sr. CC, sobre esta situação de inexistência de mecânico, este anunciou ao R. a vinda de uma nova empresa para a oficina da Marina ..., e que, finalmente, o problema seria resolvido, pedindo imensas desculpas pelo atraso na reparação;
w) O R., no final do Verão de 2020, depois de goradas a vinda da anunciada empresa para a oficina e das expectativas de que a A. criasse condições para a resolução do problema a que deu causa pelo seu não zelo, cuidado e boas práticas sobre a embarcação ... que estava à sua guarda nas instalações da Marina, deslocou-se pessoalmente às instalações da Marina ... e nessa altura informou o Sr. CC da sua pretensão em retirar em definitivo a embarcação das instalações, a fim de resolver o problema noutro local;
x) O representante da A. não manifestou ao R. qualquer entrave ou obstáculo à retirada da embarcação. Pelo contrário, disse directamente ao R., na presença de terceiros, que o ajudaria nas diligências que fossem necessárias, porque reconhecia que o R. havia sido vítima de uma série de acontecimentos, que o impediu, durante anos, de usufruir da sua embarcação;
y) O R. informou o representante da A. que a pessoa que iria proceder ao levantamento da embarcação seria o Sr. DD;
z) Imediatamente após a recepção do SMS identificado em 42), o R. contactou o representante da A., informando-o que não aceitava pagar qualquer quantia a título de “estacionamento” na oficina, uma vez que a responsabilidade dos danos existentes na embarcação ..., são da inteira responsabilidade da A. e, por outro lado, a embarcação esteve estacionada no parque de estacionamento da oficina mecânica da Marina;
aa) Face ao alegado pelo R., o Sr. CC disse-lhe, que tratasse da retirada do barco da oficina, com a maior brevidade possível, não tendo solicitado directamente o R. sobre o pagamento;
bb) Foi no dia 17 de Novembro de 2020 que ocorreu o facto descrito em 44);
cc) O representante da A., CC, tomou conhecimento directo do sucedido, não se tendo manifestado, nem oposto à retirada da embarcação, ou em relação a qualquer outro assunto;
dd) Na ocasião referida em 48), o R. informou o Diretor Geral da A., Sr. Coronel FF, que à data, não tinha qualquer montante em débito para com a A., uma vez que, desde o momento em que a embarcação foi vandalizada pela segunda vez, dentro das suas instalações, e estando a mesma estacionada para reparação na oficina ali existente, não era devido qualquer valor a título de “parqueamento”;
ee) Até à presente data a embarcação “...” esteve sempre parqueada nos lugares adstritos à oficina de reparação, a aguardar a conclusão dos trabalhos que nunca se efectivaram;
ff) Nas circunstâncias referidas em 58) o R. constatou que a embarcação estava destapada;
gg) Com a presente acção, a A. pretende criar uma falsa realidade de que a embarcação ocupou um lugar de parqueamento em doca seca no período de 2017 a 2021 por decisão unilateral do R., quando, na realidade dos factos, a embarcação ocupou sim, um dos lugares adstritos à oficina localizada dentro da Marina, que por sua vez, incumpriu todos os prazos acordados de reparação da embarcação;
hh) Desde o ano de 2016, até à presente data, que a embarcação ... tem sido sucessivamente vandalizada, enquanto se encontra no parqueamento da oficina da Marina;
ii) A embarcação está a exposta a todos os actos de vandalismo, uma vez que a Reconvinda não exerce qualquer vigilância sobre os bens que estão à sua guarda;
jj) A embarcação foi acorrentada pelo A.;
kk) O descrito em 68) ocorrreu com o único objectivo de tentar criar a convicção a “terceiros”, nomeadamente ao tribunal, de que a embarcação está no parqueamento e, desta forma, alegar a cobrança de uma mensalidade de acordo com a alegada tabela de preços ali afixada;
ll) O Reconvinte só foi confrontado com um pedido de pagamento de € 660,00 em Novembro de 2020, a que respondeu;
mm) Foram os colaboradores do A. que, de forma altruísta e desinteressada, auxiliaram o R. no agendamento e realização da vistoria junto da Autoridade Marítima, vistoria essa que foi realizada em 16/12/2016;
nn) A embarcação não foi considerada apta porque não tinha em funcionamento os seus elementos mais básicos e imprescindíveis, tais como o sistema de ventilação/arrefecimento do motor, a bomba de fundo, o conjunto de identificação, o elevador da coluna do motor, o sistema de luzes, a buzina, entre outros;
oo) O R. não recebe as missivas do A. que lhe são dirigidas para a morada referida em 78);
pp) O estado em que se encontra a embarcação deve-se à inércia, abandono e descuido do R., que nenhum cuidado ou manutenção votou à embarcação desde 2011.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
2. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[3].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[4].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[5], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
Pretende o recorrente que, reexaminada a decisão de facto proferida em primeira instância, seja a mesma alterada por esta instância de recurso no que concerne aos segmentos a que se reportam os pontos 18.º, 28.º, 29.º e 42.º dos factos considerados provados, assim como os referentes às alíneas a), b), c) e d) da matéria dada como não provada.
Satisfatoriamente cumpridos os ónus fixados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, importa proceder à reclamada reapreciação da matéria de facto objecto de impugnação pelo recorrente.
- Ponto 18.º dos factos provados: pretende o apelante que seja alterada a redacção deste segmento decisório, de forma a poder dele constar: “18) A oficina de reparação mecânica possuía, até meados de 2015 um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade que estavam isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento”, indicando os meios de prova que, no seu entender, suportam a pedida modificação.
O tribunal recorrido fundamentou o decidido, quanto a este concreto segmento, no depoimento das testemunhas CC e DD e nas declarações do Réu.
Quanto às declarações de parte prestadas pelo Réu, questiona o recorrente a credibilidade das mesmas, argumentando, designadamente, que “[A]tento o interesse pessoal, falta de objetividade, falta de corroboração pela demais prova produzida nos autos, não deveria ter sido atribuída pelo Tribunal ad quo a credibilidade mínima exigida à fixação de prova às declarações de parte do R”- alínea C) das conclusões.
De acordo com o n.º 3 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Lebre de Freitas, cujo pensamento se pode reconduzir à tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos em termos de valoração das declarações de parte, defende que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”[6].
Carolina Henriques Martins[7], sustenta, por seu turno que “[...] não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objecto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objectivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, [...] também não se pode esquecer o caráter necessário e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório”.
Miguel Teixeira de Sousa, tomando posição sobre a mesma específica questão, escreveu: “Se o princípio de prova é o menor grau de prova admissível e se se atribui esse valor às declarações de parte, então o que não teria nenhum valor probatório em si mesmo (nem sequer como mera justificação) passa a poder ter algum valor probatório, ainda que o menor na escala dos valores probatórios. Mais em concreto: se se atribui às declarações de parte relevância como princípio de prova, isso significa que estas declarações, apesar de não serem suficientes para formar a convicção do juiz nem sobre a verdade, nem sobre a plausibilidade ou verosimilhança do facto, ainda assim podem ser utilizadas para corroborar outros resultados probatórios. A conclusão não deixa de ser a mesma, se se pretender defender (…) que as declarações de parte só podem relevar como princípio de prova.
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exatamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368.º, n.º 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente.
Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova stricto sensu ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis”[8].
Já Mariana Fidalgo[9] especifica: “[...] ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objecto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova”.
No caso em apreço, o Réu confirmou, no decurso das declarações prestadas em audiência de julgamento, a matéria vertida no ponto 18.º dos factos provados.
A testemunha DD, que, tal como consta dos pontos 15) e 19) dos factos provados, entre 2006 e meados do ano de 2015, manteve a gestão da oficina da Marina ..., esta explorada pelo Autor, em regime de concessão, como igualmente resulta do ponto 2) dos factos provados, esclareceu que enquanto manteve a gestão da dita oficina, onde o Réu colocou o seu barco para ser efectuada uma revisão geral, existia na Marina um espaço exterior à oficina que explorava que era afecto à mesma, conforme contratualizado, onde eram colocados barcos para nela serem reparados, adiantando ainda que essa zona destinada a um determinado número de barcos que estavam para reparação não estava delineada no local, sendo os barcos parqueados de acordo com a gestão efectuada pelo Sr. CC.
A mesma testemunha revelou desconhecer os termos do contrato celebrado entre a Autora e a C..., após ter cessado, em meados de 2015, a gestão da oficina da Marina ..., não podendo, assim, elucidar se, e em que termos, continuou a haver lugares afectos à oficina para os barcos aí entregues para reparação.
A testemunha CC, Director do Autor A... desde 2006, confirmou a existência, até meados do ano de 2015, altura em que cessou o contrato celebrado com DD, de “lugares gratuitos”, contratualizados com a oficina, para parqueamento de barcos, não tendo sido solicitado ao Réu pagamento pelo aparcamento do seu barco entre 2011 e 2015 por o mesmo se encontrar aparcado num desses “lugares gratuitos”.
De acordo com o depoimento da mesma testemunha, o contrato subsequente à cessação da gestão da oficina pelo DD não incluía, como anteriormente, a cedência de “lugares gratuitos”, tendo as pessoas que tinham barcos nesses locais sido avisadas para os retirarem, no espaço de cerca de um ano, ou iniciarem o pagamento da acostagem.
Esta testemunha, que mantém estreita e prolongada relação com o Autor A..., revelou na prestação do seu depoimento ausência de distanciamento em relação ao objecto de litígio, respondendo mesmo com animosidade a questões que lhe eram colocadas, sobretudo em relação às que encarava como desfavoráveis à posição defendida nos autos pelo Autor, o que, naturalmente, abala a credibilidade de algumas dessas respostas, determinando reservas quanto à sua integral isenção.
Assim, ponderando e valorando os meios probatórios em causa, altera-se a redacção do ponto 18) dos factos provados, que passa a ser a seguinte:
A oficina de reparação mecânica possuiu, pelo menos até meados de 2015, um conjunto de lugares de estacionamento adstritos à sua actividade, isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento.
- Pontos 28.º, 29.º e 42.º dos factos provados: pretende o recorrente que se considerem não provados os factos em causa.
O tribunal recorrido julgou provada a factualidade constante destes segmentos com base na admissão por acordo, nos termos do disposto no artigo 574.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, além de prova documental.
A matéria vertida naqueles pontos factuais corresponde integralmente ao alegado pelo Réu nos artigos 24.º, 25.º e 46.º da contestação/reconvenção que o Autor, na resposta ao referido articulado, não impugnou, encontrando ainda a matéria do ponto 42.º suporte probatório no documento n.º 2 junto com o articulado do Réu (print da mensagem).
Não merece, por conseguinte, qualquer reparo a decisão que julgou provada a factualidade mencionada nos indicados segmentos.
- Alíneas a) e b) dos factos não provados: reclama o recorrente que sejam considerados provados os factos que integram as ditas alíneas, convocando, para o efeito, fundamentalmente o depoimento da testemunha CC.
Sobre a factualidade em questão prestou o Réu declarações, negando-a, enquanto a testemunha CC confirmou a existência de vários avisos aos proprietários de embarcações parqueadas nos lugares afectos à oficina que DD explorou.
O depoimento da testemunha em causa, cuja credibilidade suscita fundadas reservas, pelas razões já antes apontadas, não foi corroborada por qualquer outro meio de prova, designadamente documental, quando é este o meio normalmente usado para a concretização de comunicações desta natureza.
Assim, totalmente em consonância com as razões descritas na decisão que teve por não provada a matéria em causa, entende-se não merecer a mesma, também nesta parte, qualquer censura.
- Alíneas c) e d) dos factos não provados:
Alega o apelante existir, desde logo, contradição com a matéria fixada nos pontos 6) e 7) dos factos dados como provados quanto à existência e afixação em local visível ao público dos Regulamento de Exploração da Marina e do Regulamento de Tarifas.
Mencionando a alínea d) que “Este regulamento encontra-se afixado em lugar bem visível ao público”, e interpretando-se a alusão a “Este regulamento” como sendo o Regulamento de Tarifas, indicado em último lugar na antecedente alínea c), não se detecta a invocada contradição com a factualidade assente nos ditos pontos 6), que refere a existência de “um “Regulamento de Exploração da Marina ...”, aprovado pela B... e que se encontra de forma permanente patente ao público, afixado em local visível das instalações”, e como que consta do ponto 7), que se reporta a “um “Regulamento de Tarifas”, actualizado anualmente, juntando-se a título exemplificativo o de 2021”, sem referência à sua afixação em local acessível ao público.
Arredada a existência da convocada contradição, e ponderando a prova indicada pelo apelante para sustentar a alteração do decidido quanto aos segmentos decisórios em análise, facilmente se conclui pela inexistência de prova confirmadora da factualidade neles referidos.
A testemunha CC apenas aludiu ao pagamento, pela acostagem do barco do Réu, nos anos de 2007 a 2011, do valor de € 1.150,00/ano, enquanto a testemunha BB, companheira do Réu desde 2005, confirmou o pagamento, presencialmente na marina, no escritório do Autor, ou por transferência bancária, dos valores devidos pela acostagem do barco entre os anos 2006 e 2015.
Deste modo, não tendo os depoimentos em causa virtualidade bastante para a comprovação da matéria factual inscrita nas referidas alíneas c) e d), e na ausência de outro meio de prova de que resulte a demonstração dessa matéria, necessariamente se teria de concluir em termos coincidentes com o decidido em primeira instância.
Por conseguinte, à excepção da alteração introduzida à redacção do ponto 18.º dos factos provados, mantém-se, sem outras modificações, o decidido quanto à demais matéria objecto de impugnação recursiva.
2. Da aplicação do direito aos factos provados.
Com a acção proposta pretende o Autor a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 3.420,00, correspondente às mensalidades, à razão de € 60,00/mês, que entende serem devidas pelo parqueamento da embarcação deste no espaço da Marina ..., por aquele explorado, no período de Janeiro de 2017 a Setembro de 2021.
Como destaca a sentença sob recurso, no ano de 2016 o Réu acordou com EE - que, mediante acordo estabelecido com o Autor, explorava, em regime de concessão, uma oficina instalada no espaço da Marina ..., onde, designadamente, aquele prestava serviços de reparação, manutenção, tratamento e pintura de barcos de clientes do demandante – a reparação do motor do barco ....
Para o efeito, a referida embarcação retornou às instalações daquela oficina, que até meados do ano de 2015 foi explorada, em regime de sub-concessão, por DD, e à qual, por acordo entre este e o Autor, pelo menos até este cessar a gestão da referida oficina, foi cedido um conjunto de lugares de parqueamento adstritos à sua actividade, isentos do pagamento de qualquer valor pecuniário a título de parqueamento, e aí permanece, sem que tivesse sido reparada.
Na tese do Autor, finda a relação contratual que estabeleceu com DD e cessando este, em meados de 2015, a exploração da oficina existente na Marina ..., foi extinta a cedência gratuita de lugares de parqueamento para os barcos que nela fossem entregues para reparação, tendo aquele comunicado o facto aos proprietários das embarcações aparcadas naqueles lugares para, sob pena de lhes passar a ser cobrado o valor devido pelo acostamento, para procederem à sua retirada, concedendo-lhes um prazo de um ano para o efeito.
Não logrou o Autor, todavia, demonstrar esta factualidade, sendo, a esse respeito, irrelevante a modificação introduzida nesta instância à redacção do ponto 18.º dos factos provados.
Tal circunstância teria, necessariamente, de determinar a sucumbência, pelo menos em parte, da pretensão do Autor.
De todo o modo, tendo a embarcação do Réu sido colocada na Marina ... para reparação na oficina sub-concessionada a EE, qualquer valor devido pelo parqueamento da embarcação sempre seria da responsabilidade da pessoa incumbida da realização dos trabalhos de reparação, durante o tempo em que aguardou a reparação, fim para a qual a referida embarcação aí deu entrada, já que nenhum acordo foi estabelecido entre o Réu e o Autor quanto ao parqueamento durante esse período. Como assinala a sentença recorrida, “[E]stando a embarcação confiada a EE para reparação, no período de 2017 a 2020, o estacionamento ou parqueamento da embarcação, a ser devido, teria de ser exigido aquele empreiteiro e não ao R. (já que o R. apenas estava obrigado a pagar a reparação ao empreiteiro, com todos os custos e despesas associados)”.
A sentença recorrida julgou a acção parcialmente procedente, condenando o R. a pagar à A. a quantia de 180 (cento e oitenta) euros, acrescida dos juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento[10], absolvendo o R. do demais peticionado.
Considerou, para o efeito, que “[C]omo o empreiteiro deixou de ser concessionário da Marina em 2020, o R. devia ter retirado a sua embarcação da Marina ... assim que aquele saiu. Todavia, o R. não retirou a sua embarcação Marina e manteve-se em 2021 a ocupar um lugar de estacionamento na doca seca, o que não lhe era permitido e o fez incorrer na obrigação de indemnizar o A..
Essa indemnização terá de corresponder ao valor da tarifa do estacionamento de um barco daquela categoria, que é de 60 euros por mês, e é devida até à data, em Março de 2021, em que o R. foi impedido pelo A. de retirar a sua embarcação. O valor do estacionamento de um barco como o do R. é de 60 euros mensais, pelo que o R. terá de indemnizar o A. no montante de 180 euros (60 euros * 3 meses)”.
A mesma sentença julgou parcialmente procedente a reconvenção deduzida pelo Réu/Reconvinte, condenando o Autor/Reconvindo a “entregar imediatamente ao R. a embarcação sob a designação “...”, de cor branca, com o Livrete nº..., com o motor de Marca ... nº ..., a gasolina, com o Casco nº ..., sita na Marina ..., Estrada Nacional ..., ... Porto a AA, seu legítimo proprietário”.
Depois de reconhecer que o Réu tem o dever de indemnizar o Autor no valor de € 180,00, à razão de € 60,00/mês, pela ocupação indevida de espaço destinado a parqueamento de embarcações desde a data em que EE cessou a exploração da oficina em que o Réu entregou o seu barco para reparação, até Março de 2021, altura em que pretendeu retirar o barco das instalações do Autor e foi impedido de o fazer, acrescenta a mesma sentença que “Como se infere do que já se deixou dito, o crédito peticionado não existe, pelo que o A. não goza de direito de retenção sobre a embarcação do R.
A retenção da embarcação do R. na Marina pelo A. é assim ilegal e faz o A. incorrer na obrigação de indemnizar o R. e de lhe entregar a embarcação ...”.
Também com esta decisão não conformou o Autor, insurgindo-se pelo facto de na mesma sentença se afirmar que o “o crédito peticionado não existe”, negando, com esse fundamento, qualquer direito de retenção sobre a embarcação e, contraditoriamente no seu entender, lhe ser reconhecido um crédito de € 180,00 sobre o Réu.
Não há dúvida que o recorrente explora, em seu benefício, algumas imprecisões que afectam a sentença recorrida ou, pelo menos, alguma falta de clareza na exposição dos seus fundamentos.
Sem necessidade de um transcendente esforço de interpretação, extrai-se, porém, da sentença que o crédito reclamado pelo Autor a título de contrapartida devida, porque contratualizada com o Réu, pelo parqueamento do barco deste não existia à data em que foi ao demandado recusada a retirada da sua embarcação. Daí, e bem, concluir ter sido ilegal tal retenção.
Contudo, reconhece a mesma sentença ter o Autor um crédito sobre o Réu no valor de € 180,00, pela ocupação, durante três meses, de espaço reservado a parqueamento de embarcações.
Esse reconhecimento não é, ao contrário do que esgrime o Autor, contraditório com a afirmação de que o crédito por ele peticionado não existe: a sentença nega que tenha o Autor direito a receber qualquer importância a título de preço devido pelo parqueamento do barco do Réu, mas reconhece que lhe assiste o direito de ser indemnizado pelos prejuízos decorrentes desse aparcamento abusivo, fixando, com recurso a critérios de equidade, o valor da indemnização devida a esse título, cujo crédito se consolida com a decisão que reconhece esse direito e fixa o valor indemnizatório.
Neste concreto contexto, pode-se seguramente afirmar que no momento em que o Autor se recusou a entregar o barco ao Réu não gozava de qualquer direito de retenção que legitimasse essa recusa.
Mas reconhecendo a sentença que o Réu deve indemnizar o Autor pela abusiva ocupação, pelo período de três meses, de um lugar de aparcamento de embarcações, existe fundamento para a condenação do Reconvindo na entrega imediata do barco ao Réu?
Segundo o artigo 754.º do Código Civil, “O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, “consiste o direito de retenção na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir a obrigação a que está adstrito para com aquele”[11], acrescentando: “Para que exista direito de retenção, nos termos deste artigo 754º, é necessário, em primeiro lugar, que o respectivo titular detenha (ilicitamente: cfr. art.º 756º, alin. a)) uma coisa que deva entregar a outrem; em seguindo lugar, que, simultaneamente, seja credor daquele a quem deve a restituição; por último, que entre os dois créditos haja uma relação de conexão (debitum cum re junctum), nas condições definidas naquele artigo – despesas feitas por causa da coisa ou danos por ela causados.”
Galvão Telles[12] caracterizava o direito de retenção como “(…) um direito a se, que não se integra no direito de crédito como um seu atributo ou faculdade, antes lhe acresce como uma prerrogativa complementar que, por claras razões de justiça e equidade, a lei concede ao credor para robustecer a sua posição”.
Trata-se, para o mesmo autor, de um verdadeiro direito real, um direito absoluto, a todos oponível e que reveste uma dupla natureza, apresentando-se, por um lado, como uma garantia real indireta, ou seja, como um meio de coerção ao cumprimento da obrigação, na medida em que o devedor, ou quem quer que porventura se haja tornado entretanto proprietário do objecto, sabe que não pode exigir o mesmo senão mediante o simultâneo pagamento de quanto ao retentor é devido, sentindo-se, assim, compelido a efectuar o pagamento.
A propósito da natureza do direito de retenção, escreveu-se no Acórdão do STJ, de 04.10.2005[13] que trata-se de “um direito real de garantia - que não de gozo -, em virtude do qual o credor fica com o poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma certa conexão eleita pela lei, e não, por exemplo da própria natureza da obrigação, representa uma garantia direta e especialmente concedida pela lei”.
No caso em apreço, mostram-se reunidos os pressupostos do direito de retenção a que alude o citado artigo 754.º do Código Civil: i) a posse e obrigação de entrega duma coisa; ii) a existência, a favor do devedor, dum crédito exigível sobre o credor; iii) e a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa, ou seja, este crédito acha-se ligado à coisa, visando o pagamento de despesas que o detentor com ela efetuou ou a indemnização de prejuízos que em razão dela sofreu – “debitum cum re junctum”.
Ora, gozando o Autor do direito de retenção sobre a embarcação do Réu, pode aquele recusar a entrega da referida embarcação, que tem na sua posse, enquanto não for satisfeito o crédito que tem sobre este, reconhecido na sentença recorrida, que condenou o Réu no pagamento da quantia de € 180,00, acrescida de juros de mora desde a citação.
Consequentemente, não poderia proceder a pretensão do reconvinte quanto à entrega imediata do barco, pelo que, nesta parte, terá de proceder o recurso do apelante, impondo-se a revogação da sentença na parte em que condenou o Autor a proceder a essa entrega – segmento constante do n.º 2, alínea a) do dispositivo da sentença.
Tendo a sentença condenando o Autor “a pagar ao R./ ao Reconvinte a quantia correspondente aos danos patrimoniais sofridos pelo R. em virtude da sua conduta, acrescidos dos juros vincendos peticionados, a determinar em sede de liquidação” – n.º 2, alínea b) do dispositivo da sentença - também o recorrente manifestou, por via do recurso interposto, a sua dissidência contra este segmento condenatório, enjeitando qualquer responsabilidade pela reparação desses danos, alegando a inexistência de qualquer contrato de depósito tendo por objecto o barco do Réu, bem como violação de um dever de vigilância incumprido.
Como fundamento do mencionado segmento condenatório, escreveu-se na sentença aqui sindicada: “O R. alegou que o A. tinha e tem o dever o de vigilância sobre as embarcações acostadas na água ou estacionadas na área seca e que incumpriu tal dever, pelo que é responsável pelos danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais que sofreu em virtude da conduta do A..
[...] aquele EE ficou adstrito à obrigação de realizar a obra de reparação da embarcação, mas, também, uma vez que o embarcação lhe foi confiada para reparação, a obrigação de a guardar e conservar, no período de 2017 a 2020.
Incumbia assim aquele EE e - não ao A. - no período de 2017 a 2020 -, guardar, vigiar e conservar a embarcação, pois a ele estava confiada. Assim, a ter sido incumprido o dever de vigilância, é aquele EE - e não a A. - que terá de responder pelos danos eventualmente sofridos pelo R. naquele período.
O A. é todavia responsável pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo R. a partir de 5 de Março de 2021, em virtude da retenção - ilícita e culposa - da embarcação "..." pelo A. naquela data e que se mantém até hoje”.
Precisa, mais à frente, a mesma sentença que o Autor só responde pelos danos causados no barco do Réu a partir de 5 de Março de 2021, data em que impediu que este procedesse ao seu levantamento.
Ou seja, a sentença não funda o dever de indemnização pelos danos causados à embarcação do Réu a partir de 5 de Março de 2021 num eventual contrato de depósito – que, na verdade, não tendo ocorrido qualquer acordo entre Autor e Réu quanto à entrega da mencionada embarcação para efeitos de aparcamento em espaço gerido pelo primeiro, não existe -, mas antes na responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente da retenção ilícita e culposa do barco por determinação do Autor.
Neste enquadramento, não faz qualquer sentido a convocação feita pelo recorrente do disposto no artigo 27.º do Regulamento de Exploração da Marina ..., aprovado pela B..., para justificar a desoneração do Autor de qualquer responsabilidade por acidentes, danos na embarcação, furtos e/ou roubos, assim como outros prejuízos, porquanto a exclusão de responsabilidade assegurada pelo normativo em causa apenas actua no âmbito da responsabilidade contratual.
Em suma: o Autor é responsável por quaisquer danos que a embarcação do Réu possa ter sofrido no período em que a reteve ilicitamente, isto é, no período compreendido entre 5 de Março de 2021 e a data do presente acórdão, que, confirmando ter o Autor um crédito sobre o Réu, resultante da ocupação, com a sua embarcação, de um lugar de aparcamento no espaço explorado pelo primeiro, também reconheceu gozar o Autor de retenção da referida embarcação enquanto não for garantida a satisfação daquele crédito.
Procede, assim, o recurso do apelante, alterando-se a sentença nos ditos termos.
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- revoga-se a sentença na parte em que condenou o Autor a entregar ao Réu a embarcação nos termos fixados no n.º 2, alínea a) do respectivo dispositivo;
- altera-se o segmento decisório do n.º 2, alínea b) do dispositivo da mesma sentença, condenando-se o Autor/Reconvindo a indemnizar o Réu/Reconvinte pelos danos patrimoniais por este sofridos em consequência de estragos/deteriorações causados à embarcação no período compreendido entre 5 de Março de 2021 e a data do presente acórdão, cuja quantificação se relega para ulterior liquidação;
- quanto ao demais, confirma-se a sentença recorrida.
Custas da apelação – por apelante e apelado, na proporção do respectivo decaimento, fixado em 40% e 60%, repectivamente: artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 10 de Abril de 2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Isabel Peixoto Pereira
Isabel Ferreira
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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2]Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Acórdão Relação de Coimbra de 11.03.2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20.09.2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[4] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 157.
[5] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[6] “A Acção Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, pág. 278.
[7] “Declarações de Parte”, Universidade de Coimbra, 2015, pág. 58.
[8] https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia-536.html#links, texto publicado a 20.01.2017.
[9] “A Prova por Declarações de Parte”, FDUL, 2015, pág. 80.
[10] Decisão que o Réu não impugnou.
[11] Código Civil Anotado, Volume I, pág. 696
[12] O direito de retenção no contrato de empreitada, in “O Direito”, 119, 1987, págs. 15 a 17.
[13] Processo n.º 05A2158, www.dgsi.pt.