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PROVA TESTEMUNHAL
PROVA ILÍCITA
SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
Sumário
I – Decorrendo dos autos que o conhecimento dos factos aos quais depôs a testemunha advieram do exercício das suas funções de advogada e ainda, no caso, enquanto entidade Autenticadora, estava a testemunha sujeita a sigilo profissional, para o que, querendo o executado socorrer-se das declarações proferidas, deveria ter diligenciado pela obtenção do levantamento do sigilo, solicitando Parecer à Ordem dos Advogados e suscitando o pedido de dispensa de sigilo junto do Tribunal da Relação, nos termos do art.º 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ex vi art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil. II - Assim não tendo ocorrido, não pode o Tribunal socorrer-se dessas declarações (conf. art.º 92º, n.º 5 do EOA: “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”) sob pena de se cometer uma nulidade. III - Não é possível considerar os factos que se assentaram com fundamento no depoimento prestado em violação do sigilo profissional provados ou não provados, devendo os autos baixar à 1ª Instância para que se faça a nova reapreciação da prova e dos factos em causa, com a anulação da Sentença anteriormente proferida relativamente a estes pontos da Matéria de Facto e no que destes dependa, nomeadamente, na análise jurídica subsequente e decisão da causa e eventualmente com reabertura da audiência e nova prestação de depoimento, precedido das diligências para a dispensa do sigilo profissional necessária. (Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
I. Relatório:
AA deduziu a presente oposição (mediante embargos de executado) à execução que lhe foi movida por FOLLOWORDS – ÁFRICA ADVISORS, LDA., invocando a inexistência do título executivo com fundamento na nulidade do termo de autenticação nos termos do art.º 70º do Código de Notariado; invocou, ainda, a inexequibilidade do título porquanto desacompanhado da prova de alguma prestação ter sido realizada ou constituída uma obrigação na sequência da previsão das partes; alegou ainda a falsidade do documento e finalmente impugnou a relação subjacente constante do documento dado à execução, invocando a respetiva inexistência.
Pugnou, a final, pela procedência da oposição e improcedência da execução.
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A oposição foi liminarmente recebida e a exequente apresentou contestação, no âmbito da qual impugnou, parcialmente, a matéria alegada pelo executado/opoente, assim como se pronunciou sobre as exceções por este invocadas.
Pugnou, a final, pela improcedência da oposição e pela condenação da executada/opoente como litigante de má-fé.
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Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual o Tribunal se pronunciou sobre os pressupostos processuais, bem como sobre as exceções dilatórias da inexistência e inexequibilidade do título executivo, julgando-as improcedentes.
Fixou o objeto do litígio e pronunciou-se sobre os requerimentos probatórios e designou data e hora para realização da audiência final.
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Procedeu-se à realização da audiência final, tendo a final sido proferida Sentença onde se decidiu julgar procedente a excepção da nulidade do termo de autenticação e em consequência da falta de título executivo, decidindo pela procedência da presente oposição à execução mediante embargos de executado e consequente absolvição do executado da instância executiva.
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Desta Sentença recorreu a Exequente formulando as seguintes Conclusões:
“A) Da fundamentação da decisão da Matéria de Facto Provada, os pontos 10, 11 e 12 da mesma da Testemunha BB.
B) Conforme decorre dos pontos 9 e 10 da Matéria de Facto Provada, a Testemunha em causa interveio nos actos em causa e teve conhecimento destes factos na qualidade de Advogada, e no âmbito da prestação de serviços jurídicos às partes que subscreveram o termo de autenticação, ou, pelo menos, a algumas delas.
C) Tais actos e factos encontram-se abrangidos pelo sigilo profissional a que esta Testemunha/Advogada se encontra sujeita nos termos do art. 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, pelo que, nos termos do n.º 5 deste mesmo preceito legal, o respectivo depoimento não pode fazer prova em juízo.
D) No ponto da 12 da Matéria de Facto Provado o Tribunal de 1.ª instância concluiu que os outorgantes não “declararam expressamente (…) que a sua vontade negocial é livre, esclarecida, ponderada, e formada de um modo julgado normal e são”.
E) Esta Conclusão contraria o ponto 7 da Matéria de Facto Provada, do qual consta que:
F) Tendo em conta o teor do documento em causa, esta contradição deverá ser superada através do recurso a este, e dando preferência ao provado sob o ponto 7 da Matéria de Facto Provada.
G) Por terem sido decididos com recurso a prova proibida e nula, e, no que diz respeito à parte final do ponto 12, de forma contraditória e indevida, devem os pontos 10, 11 e 12 da Decisão da Matéria de Facto provada ser eliminados e transferidos para o rol dos factos não provados, o que determina, por si só, a revogação da Sentença recorrida e a improcedência dos Embargos.
H) Ainda que o acordo sujeito a autenticação não tenha sido lido e/ou o seu conteúdo não tenha sido explicado pela entidade/advogada autenticadora, nem assim a autenticação dos autos seria nula.
I) Conforme decorre quer do próprio título executivo, quer do ponto 9. da Matéria de Facto Provada, o contrato autenticado foi elaborado e celebrado pelas respectivas partes, e não pela entidade/advogada autenticadora, apenas tendo sido entregue a esta, pelas primeiras, para efeitos da respectiva autenticação, após a sua assinatura.
J) Conforme consta do ponto 7. da Matéria de Facto Provada, os subscritores do termo de autenticação declararam:
Tendo ainda dispensado a leitura do termo de autenticação (idem, ponto 7. Da Matéria de Facto Provada).
K) “O termo de autenticação deve ser lavrado em conformidade com os requisitos previstos nos artigos 150.º e 151.º do Código de Notariado, devendo, nomeadamente, conter a declaração das partes de que leram o documento [autenticado] ou estão inteiradas do seu conteúdo e que o mesmo exprime a sua vontade.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-10-2019, Proc. n.º 19222/16.6T8PRT-A.P1.S2).
L) Deste conjunto normativo ressalta a distinção entre instrumento lavrado (no caso, o termo de autenticação) e documento autenticado. Quanto ao primeiro, decorre dos citados artigos 46.º, n.º 1, al. l), e 50.º que o notário (o advogado, sendo este a lavrá-lo) deve proceder à leitura do instrumento lavrado, mas a leitura pode ser dispensada «se todos os intervenientes declararem que a dispensam, por já o terem lido ou por conhecerem o seu conteúdo, e se o notário não vir inconveniente». Quanto ao documento autenticado, a sua leitura também é dispensada se as partes que nele intervieram declararem que «já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade».” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-04-2022, Proc. n.º 1965/20.1T8AGD-A.P1)
M) “Ora, tendo os outorgantes declarado que já leram e assinaram o documento apresentado para autenticação, está implícito que dispensaram a sua leitura. E, tendo declarado que têm dele perfeito conhecimento e que o mesmo exprime a sua vontade, estão a confirmar, clara e inequivocamente, o seu conteúdo, designadamente o reconhecimento, pelo aqui embargante, da obrigação de pagar ao exequente.” (idem, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto citado)
N) Porque, no caso concreto, e face aos factos provados nos pontos 7. e 9. da Matéria de Facto Provada, a leitura e explicação do conteúdo do documento submetido a autenticação não se revelavam obrigatórias, ao concluir pela nulidade desta o Tribunal de 1.ª instância violou os arts. 46.º, n.º 1, alínea l), 150.º, n.º 1 e 151, n.º 1, alínea a) do Código do Notariado.
Nestes termos, … deve ser concedido provimento ao Recurso, revogando-se a Douta Sentença recorrida e julgando-se a oposição à execução totalmente improcedente”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Admitido o Recurso e colhidos os vistos cumpre decidir.
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II. Questões a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente.
Deste modo no caso concreto, são as seguintes as questões a apreciar:
- Da prova proibida por violação do art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
- Se a leitura e explicação do conteúdo do documento submetido a autenticação não se revelavam obrigatórias, conf. os arts. 46.º, n.º 1, alínea l), 150.º, n.º 1 e 151, n.º 1, alínea a) do Código do Notariado.
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III. Fundamentação de Facto. Foi a seguinte a decisão sobre a matéria de facto na 1ª Instância: “Factos provados:
1. O exequente Followords - África Advisors, Lda. intentou a execução de que dependem estes autos contra AA com base no documento particular denominado “RECONHECIMENTO DE DIVIDA E ACORDO DE PAGAMENTO”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9. Após a assinatura do documento dado à execução, foi o mesmo entregue à Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB, com vista à elaboração, por esta, do termo de autenticação.
10. A Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB, havia sido contratada por CC, para exercer as funções, na qualidade de advogada para o grupo de empresas que tinha como sócios, além de outros, os intervenientes no documento dado à execução, para as quais prestava serviços jurídicos.
11. A Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB, não leu o documento dado à execução nem explicou às partes outorgantes o seu conteúdo.
12. Não foi explicado, pela Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB – na qualidade de “entidade autenticadora” –, aos intervenientes outorgantes/subscritores do documento dado à execução, “o seu conteúdo, e que tal como está redigido exprime a sua vontade e ainda a vontade das sociedades outorgantes representadas”, assim como, estes, não “declararam expressamente (…) que a sua vontade negocial é livre, esclarecida, ponderada, e formada de um modo julgado normal e são”.
* Factos não provados:
1. O documento dado à execução foi “forjado pelo sócio gerente da exequente sócio e advogado do executado, o qual, no local de trabalho de ambos, com a ajuda do outro sócio, DD, forçou o executado a assinar o dito documento, com recurso a ameaças e a estado de necessidade”.
2. A exequente não prestou ao executado quaisquer serviços de consultoria, no âmbito da prospeção de mercado em países africanos.
3. “Nunca o executado contratou ou recebeu da exequente quaisquer serviços, reconheceu qualquer dívida para com esta ou se obrigou a pagar-lhe o que quer que seja”.
4. O executado/opoente assinou o documento dado à execução “sob coação”.
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IV. Da prova proibida por violação do art. 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Suscita o recorrente a nulidade da prova produzida relativamente aos pontos 10, 11 e 12 da matéria de facto provada, alegando que os mesmos tiveram por fundamento o depoimento da Testemunha BB, a qual, conforme decorre dos pontos 9 e 10 da Matéria de Facto Provada, interveio nos actos em causa e teve conhecimento destes factos na qualidade de Advogada, e no âmbito da prestação de serviços jurídicos às partes que subscreveram o termo de autenticação, ou, pelo menos, a algumas delas.
Invoca assim que tais actos e factos se encontram abrangidos pelo sigilo profissional a que esta Testemunha/Advogada se encontra sujeita nos termos do art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, pelo que, nos termos do n.º 5 deste mesmo preceito legal, o respectivo depoimento não pode fazer prova em juízo.
Desta forma, entende que devem os pontos 10, 11 e 12 da Decisão da Matéria de Facto provada ser eliminados e transferidos para o rol dos factos não provados.
Vejamos.
Recordemos aqui os pontos da matéria de facto assente:
“10. A Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB, havia sido contratada por CC, para exercer as funções, na qualidade de advogada para o grupo de empresas que tinha como sócios, além de outros, os intervenientes no documento dado à execução, para as quais prestava serviços jurídicos.
11. A Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB, não leu o documento dado à execução nem explicou às partes outorgantes o seu conteúdo.
12. Não foi explicado, pela Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB – na qualidade de “entidade autenticadora” –, aos intervenientes outorgantes/subscritores do documento dado à execução, “o seu conteúdo, e que tal como está redigido exprime a sua vontade e ainda a vontade das sociedades outorgantes representadas”, assim como, estes, não “declararam expressamente (…) que a sua vontade negocial é livre, esclarecida, ponderada, e formada de um modo julgado normal e são”.”
Desde logo inexiste qualquer fundamento para colocar em causa o Ponto 10, uma vez que se limita a referir a contratação da Advogada; aliás, este ponto é o fundamento da invocação da prova proibida – caso o mesmo passasse a constar como Não Provado, como requerido pela recorrente, falecia a invocação da própria nulidade.
Quando aos Factos 11. e 12. consta na Motivação da Matéria de Facto o seguinte:
“A realidade dos factos descritos sob os pontos 9 a 11 resultou demonstrada pela análise crítica e conjugada das testemunhas DD – sócio do executado/opoente e gerente das sociedades “Independence Investments, Lda.” e “Popconcept, Lda.” (qualidade em que subscreveu o documento dado à execução) – e BB – Ilustre Senhora Advogada que elaborou o termo de autenticação que acompanha o documento dado à execução.
Ambos atestaram que a Senhora Advogada, Dr.ª BB, prestava serviços jurídicos, na qualidade de advogada, para várias empresas do Grupo, tendo sido, segundo a própria, contratada pelo representante da sociedade “Followords”, CC.
A Senhora Advogada, Dr.ª BB, descreveu, ainda, as circunstâncias em que elaborou o termo de autenticação – quando chegou ao escritório onde se encontravam os outorgantes identificados no documento, já este se mostrava elaborado, impresso, encontrando-se a ser assinado –, tendo sido muito espontânea ao afirmar que não elaborou o documento, não leu o documento nem explicou o seu teor/conteúdo: “Da minha parte eu não li [aos outorgantes] o reconhecimento de dívida!”
Resulta, assim, de forma clara e inequívoca que não foi explicado, pela Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB – na qualidade de “entidade autenticadora” –, aos intervenientes outorgantes/subscritores do documento dado à execução, “o seu conteúdo, e que tal como está redigido exprime a sua vontade e ainda a vontade das sociedades outorgantes representadas”, assim como, estes, não “declararam expressamente (…) que a sua vontade negocial é livre, esclarecida, ponderada, e formada de um modo julgado normal e são”.
Com efeito, resulta do teor do termo de autenticação que os outorgantes declararam “que leram o documento que antecede que é um Reconhecimento de dívida e acordo de pagamento, que lhes foi explicado o seu conteúdo (…)” – Por quem? Se não foi pela entidade autenticadora? – “(…) e que tal como está redigido exprime a sua vontade (…)”.
A referida testemunha disse recordar-se de os intervenientes estarem a falar entre eles, mas que não leu nem explicou o teor do documento, não tendo estado presente aquando da discussão dos respetivos termos/condições. De acordo com a própria, nesse dia foram assinados outros documentos e só esteve nas reuniões apenas para autenticar documentos.
Reiterou que, quando chegou à sala, os intervenientes estavam a assinar o documento, cujo teor não chegou a ler nem a explicar, pois partiu do princípio que quem assinou havia de ter lido, imaginando “que [na sua ausência] estiveram [os outorgantes] a discutir os termos do acordo”, uma vez que estava na presença de pessoas que já se conheciam entre si, há pelo menos um ano, e que teriam relações de confiança. Pareceu-lhe estarem entre amigos/colegas, em ambiente de confiança. Tanto mais que, só após ter regressado de um período de férias, em dezembro de 2022, percebeu que aqueles já não se davam da mesma maneira.
Não é crível, neste contexto, que os outorgantes tenham declarado à testemunha “que a sua vontade negocial é livre, esclarecida, ponderada, e formada de um modo julgado normal e são”. Nem tal foi, sequer, afirmado pela própria.
O que resulta do depoimento da testemunha BB é que esta – por força das funções que exercia nas sociedades, do conhecimento e relação de trabalho e de confiança que mantinha com os outorgantes e da relação destes entre si – se limitou a elaborar o termo de autenticação do documento particular dado à execução, como se de um pro forma se tratasse, entendendo que não se justificava, no caso e pelas razões expostas, cumprir as especiais formalidades normalmente exigidas para o efeito.
O depoimento da testemunha foi, neste particular, coerente, objetivo e credível, à luz das mais elementares regras da experiência, no sentido de admitir como plausível, ainda que censurável, que a testemunha se tenha limitado a “autenticar” um documento, a pedido das pessoas para quem exerce funções e que a contrataram (estando, de certa forma, numa posição de subalternização), no qual (documento) são intervenientes essas mesmas pessoas, sem questionar e sem fazer respeitar as exigências de forma legalmente previstas. Como a própria testemunha afirmou, nesse dia foram assinados outros documentos e só esteve nas reuniões, apenas, para autenticar documentos.
E foi desta realidade que o Tribunal, efetivamente, se convenceu.”
Dispõe o art.º 417º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”:
“1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados. (…)
3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: (…)
c) Violação do sigilo profissional ou dos funcionários públicos, ou do segredo do Estado, sem prejuízo do nº 4.
4 – Deduzida a escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
Resulta assim desta norma que a recusa de prestação de informações é legítima quando importar a violação de sigilo profissional.
Tem-se entendido por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque é inerente à própria natureza do serviço prestado e da profissão.
A razão de ser do dever de guardar segredo profissional por parte dos advogados é, por um lado, a confiança e a lealdade entre advogado e cliente e, por outro, a dignidade da advocacia. Assim, ao lado do interesse privado do cliente, existe o interesse público na confiança do advogado e na sua função.
Como pode ler-se a este respeito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018, Proc. n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público. Nas palavras de António Arnauld [“Iniciação à Advocacia”, página 66], o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense. A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral. Isso mesmo foi afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2017: “A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”. Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela [Parecer do Conselho Geral de 02.04.1981, em ROA, ano 41, páginas 900 e seguintes].”
Nos termos do art.º 92º do Estatuo da Ordem dos Advogados (E.O.A., sob a epígrafe “Segredo profissional”):
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.”
A norma é aplicável aos colaboradores do próprio advogado, ou porque fazem parte do seu escritório ou porque por este foi requisitado o seu auxílio.
Veja-se a este respeito o que dispõe o Código de Deontologia dos Advogados Europeus (Deliberação 2511/2007 OA publicada no DR II de 27.12.2007) no ponto 2.3, sob a epígrafe Segredo Profissional:
“2.3.1 - É requisito essencial do livre exercício da advocacia a possibilidade do cliente revelar ao advogado informações que não confiaria a mais ninguém, e que este possa ser o destinatário de informações sigilosas só transmissíveis no pressuposto da confidencialidade. Sem a garantia de confidencialidade não pode haver confiança. O segredo profissional é, pois, reconhecido como direito e dever fundamental e primordial do advogado. A obrigação do advogado de guardar segredo profissional visa garantir razões de interesse público, nomeadamente a administração da justiça e a defesa dos interesses dos clientes. Consequentemente, esta obrigação deve beneficiar de uma proteção especial por parte do Estado.
2.3.2 - O advogado deve respeitar a obrigação de guardar segredo relativamente a toda a informação confidencial de que tome conhecimento no âmbito da sua atividade profissional.
2.3.3 - A obrigação de guardar segredo profissional não está limitada no tempo.
2.3.4 - O advogado exigirá aos membros do seu pessoal e a todos aqueles que consigo colaborem na sua atividade profissional, a observância do dever de guardar segredo profissional a que o próprio está sujeito.”
Já se entendeu inclusivamente que este sigilo se estende aos próprios funcionários do organismo profissional que disciplina a atividade de advogado – cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 8/3/2018, Proc. n.º 3764/15.3T8BRG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt.
No entanto, como se verifica do disposto pelo art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil, supra citado, o segredo profissional não é absoluto, podendo ser dispensado através do incidente processual de quebra do segredo profissional, nos termos das disposições citadas, por força do princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade.
Assim, verifica-se que nesta matéria estão em causa dois interesses públicos essenciais na administração da Justiça; por um lado o princípio da confiança no advogado e na sua função e por outro o princípio da cooperação de todos para a descoberta da verdade, sendo necessário em cada caso concreto fazer a correcta ponderação das circunstâncias a fim de verificar qual o princípio preponderante em cada situação.
O levantamento do sigilo profissional obedece a regras, previstas pelo art.º 135º do Código de Processo Penal, aqui aplicável, como vimos, por força do disposto pelo n.º 4 do art.º 417º do Código de Processo Civil:
“1 – Os ministros da religião ou confissão religiosa e os advogados, (…) e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 – Havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante o qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 – Nos casos previstos nos nº 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, (…).”
Feito este enquadramento legal, resulta dos autos que nenhuma dispensa de sigilo profissional foi requerida pela testemunha, ou pelas partes, estando assente que “10. A Ilustre Senhora Advogada, Dr.ª BB, havia sido contratada por CC [legal representante da exequente] para exercer as funções, na qualidade de advogada para o grupo de empresas que tinha como sócios, além de outros, os intervenientes no documento dado à execução, para as quais prestava serviços jurídicos.”.
Decorre ainda dos autos que o conhecimento dos factos aos quais depôs a testemunha advieram precisamente do exercício das suas funções de advogada e ainda, no caso, enquanto entidade Autenticadora.
Assim, estava a testemunha sujeita a sigilo profissional, para o que, querendo o executado socorrer-se das declarações proferidas, deveria ter diligenciado pela obtenção do levantamento do sigilo, solicitando Parecer à Ordem dos Advogados e suscitando o pedido de dispensa de sigilo junto do Tribunal da Relação, nos termos do art.º 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, ex vi art.º 417º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
Assim não tendo ocorrido, não pode o Tribunal socorrer-se dessas declarações (conf. art.º 92º, n.º 5 do EOA: “Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”) sob pena de se cometer uma nulidade.
Quanto ao regime a que está sujeita esta nulidade subscreve-se o que vem referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023 proferido no Proc. n.º 1178/21.5T8FNC.L1.S1, no sentido de se estar perante uma cominação específica, susceptível de ser conhecida oficiosamente, a todo o tempo: “O caso específico em violação do dever de sigilo profissional do advogado, esse, não pode reconduzir-se ao conceito e, sobretudo, não pode reconduzir-se ao regime das nulidades processuais secundárias: 34. O artigo 92.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados ao determinar que “[os] actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”, contém uma cominação específica 35. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2022 — processo n.º 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1 — di-lo de forma explícita: “O n.º 5, do […] artigo 92.º, estabelece como consequência da violação do sigilo profissional do advogado, que as provas que desrespeitem o dever de segredo não são idóneas a fundamentar a demonstração dos factos revelados nas negociações […] com esta cominação específica, a produção dos meios de prova com esta incidência não constitui uma simples nulidade inominada secundária, a ser arguida, nos termos dos artigos 195.º e 199.º do Código de Processo Civil […], revelando-se antes uma violação de uma proibição de produção de prova, cuja consequência é a proibição da sua valoração, tendo essa violação um tratamento autónomo do que se encontra previsto para as nulidades processuais, podendo, designadamente, tal infração ser conhecida em recurso, sem que a nulidade da produção do respetivo meio de prova tenha que ser arguida nos termos previstos no artigo 199.º do Código de Processo Civil”.
Aqui chegados, impõe-se concluir que os factos 11 e 12 não podem ser considerados, nos termos da Motivação que resulta da Sentença proferida, como Provados.
Mas igualmente não pode sem mais considerar-se os mesmos como Não Provados como pretende a Recorrente.
Essa apreciação há-de ser feita mas pela 1ª Instância.
Tal como referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que se acabou de citar, assente que não é possível considerar os factos que se assentaram com fundamento no depoimento prestado em violação do sigilo profissional, devem os autos baixar à 1ª Instância para que se faça a nova reapreciação da prova e dos factos em causa, com a anulação da Sentença anteriormente proferida relativamente a estes pontos da Matéria de Facto e no que destes dependa, nomeadamente, na análise jurídica subsequente e decisão da causa, eventualmente com reabertura da audiência.
Aqui chegados, é certo que se refere no Acórdão que supra se citou: “36. Entendendo-se, como se entende, que o depoimento prestado em violação do sigilo profissional do advogado determina a aplicação de um regime autónomo, distinto do regime das nulidades processuais, deve conhecer-se do vício e decidir-se a terceira questão — se deve ser determinada a anulação de todo o processo a partir do depoimento do Dr. FF e o regresso à fase processual em que deveria ter sido requerido o incidente de levantamento do sigilo profissional. 37. Ora, não há nenhuma razão para dar à Autora, agora Recorrente, uma segunda oportunidade para fazer a prova dos factos dados como não provados sob os n.ºs 12-14. 38. A consequência jurídica da prestação de depoimento em violação do dever de sigilo profissional do advogado é a inidoneidade do meio de prova para a demonstração dos factos alegados. 39. O juízo sobre se o facto está ou não provado deve formular-se como se não tivesse sido prestado o depoimento, ou como se não tivessem sido apresentados os documentos relacionados com factos sujeitos a sigilo profissional — se o facto tiver sido dado como provado com fundamento exclusivo no depoimento do advogado, deverá ser dado como não provado [---]; se não, poderá ser dado como provado ou como não provado, em função dos demais meios de prova, nos termos do art.º 195º, n.º 1 do Código de Processo Civil.”
Não se concorda, salvo melhor opinião, com o entendimento que não podem as partes requerer nova prestação de depoimento, requerendo previamente a dispensa do sigilo profissional necessária.
Na verdade, nenhum dos intervenientes processuais veio a fazê-lo ou suscitá-lo, sendo que caberia em primeiro lugar à própria testemunha suscitar a questão. Com a decisão de anulação do seu depoimento entende-se que tudo se passa como se este não houvesse sido prestado, não impedindo que o mesmo venha a ser renovado mas com observância das legais formalidades. Não o admitir pode traduzir-se num coartar do direito da parte de produzir prova (sobretudo em casos em que entenda que aquela será a única prova possível sobre determinado facto essencial) sendo possível que a testemunha obtenha junto da OA a necessária dispensa de sigilo.
Desta forma, por procedente esta parte do recurso, anula-se a Sentença proferida relativamente aos Pontos 11 e 12 da Matéria de Facto, devendo reponderar-se a prova produzida e eventualmente, se assim for requerido, com renovação do depoimento da testemunha Dra. BB, precedido da necessária dispensa de sigilo, anulando-se ainda a decisão no que destes factos dependa, nomeadamente, na análise jurídica subsequente e decisão da causa.
Desta forma, prejudicado fica o conhecimento dos restantes fundamentos do recurso.
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Vencido no Recurso é o Recorrido o responsável pelas custas do mesmo - art.º 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
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DECISÃO:
Por todo o exposto, julga-se procedente o Recurso interposto, anulando-se a Sentença proferida relativamente aos Pontos 11 e 12 da Matéria de Facto, devendo reponderar-se a prova produzida e eventualmente, se assim for requerido, com renovação do depoimento da testemunha Dra. BB, precedido da necessária dispensa de sigilo, anulando-se ainda a decisão no que destes factos dependa, nomeadamente, na análise jurídica subsequente e decisão da causa.
Custas do Recurso pelo Recorrido.
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Registe e notifique.
Lisboa, 10/4/2025
Vera Antunes
António Santos
Anabela Calafate (com Voto de Vencida, que segue infra) Voto de Vencida
Voto vencida pois entendo que o depoimento da testemunha Dra BB, advogada, sobre o modo como executou a autenticação das assinaturas não respeita a factos de que tenha tomado conhecimento, e por isso, não tem que ver com sigilo profissional.
Anabela Calafate