LOCAÇÃO FINANCEIRA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO
CLÁUSULA PENAL
USURA
Sumário

I. Sendo enviadas por um contratante uma interpelação admonitória e uma comunicação resolutiva para o domicílio indicado no contrato, a declaração produz o seu efeito mesmo que não seja recebida pelo declaratário, a menos que este tivesse demonstrado que o não recebimento não se deveu a culpa sua;
II. A mera comprovação de uma desconformidade marginal entre a morada constante das missivas e a morada contratual não afasta tal imputação de culpa do declaratário no desconhecimento das comunicações enviadas, especialmente perante uma consignação de menção pelo distribuidor postal que não assinale qualquer dificuldade de localização do local de entrega dessa correspondência;
III. Tal conclusão sai reforçada numa situação em que o declarante, excedendo o referido no contrato, envie ainda cópias da sua declaração para os domicílios do declaratário constantes de portal de informação pública na internet e do lugar do imóvel objeto do contrato;
IV. Sendo válida e eficaz a comunicação resolutiva, o contrato deixa de vigorar na data de entrega da carta ao declaratário, independentemente do conhecimento efetivo do seu teor;
V. Não se afigura manifestamente excessiva a cláusula penal inserida em contrato de locação financeira imobiliária que estabeleça, além da restituição do bem, a obrigação de pagar uma sobretaxa de juro equivalente a 20% sobre as obrigações vencidas;
VI. O regime de usura previsto no art.º 1146.º do Código Civil, que se alarga a todos os contratos de crédito por via do disposto no art.º 559.º-A, não se aplica a contratos de crédito bancário.

Texto Integral

Decisão:

I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos de embargos de executado;
- Tribunal recorrido – Juízo de Execução de Almada – J1;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – embargos de executado;
- Decisão recorrida – Despacho saneador-sentença.
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I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrente (embargante-executada): - Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.;
- Recorrida (exequente): - Caixa Geral de Depósitos, S. A. --
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I.III. Síntese dos autos:
- Instaurou a exequente execução apresentando como título uma livrança preenchida pelo valor de €278.686,57 (duzentos e setenta e oito mil seiscentos e oitenta e seis euros e cinquenta e sete cêntimos);
- Embargou a executada, concluindo com um pedido de extinção integral da execução;
- Sustenta-o, em síntese, dizendo:
- A execução instaurada assenta em livrança;
- A livrança dada à execução foi entregue em branco, sem incluir valor a pagar ou data de vencimento;
- Foi emitida e entregue como colateral, ou em garantia, de contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre exequente e executada;
- Nos termos de tal contrato, a exequente deveria ter interpelado a executada, comunicando-lhe a existência de uma dívida, o respetivo valor e solicitando respetivo pagamento;
- Não o tendo feito, a obrigação é inexigível, o que retira exequibilidade à livrança dada à execução;
- Os valores liquidados e inscritos na livrança pela exequente são usurários;
- Assentam em cláusula penal, cujo valor é manifestamente excessivo. –
- Admitidos os embargos, foi a exequente-embargada notificada para contestar, o que fez, concluindo pela improcedência total dos embargos deduzidos.
- Em síntese, sustenta que a executada incumpriu o contrato causal, tendo o título cambiário sido preenchido e apresentado a pagamento nos termos contratados.
- Na sequência, foi apresentado pela embargante, em 5/12/2022, requerimento (ref. Citius 34379023) solicitando extinção da execução.
- Diz em tal requerimento, em síntese, que foi instaurado pela exequente, contra si, procedimento cautelar para entrega do bem locado, com base no mesmo contrato, procedimento declarado totalmente improcedente;
- Tal improcedência decorreu da circunstância de terem sido enviadas missivas para resolução contratual para morada diversa da constante do contrato ou da correta sede da ali requerida;
- Juntou cópia de sentença do Juízo Local Cível do Seixal, datada de 25/10/2022, que declarou improcedente procedimento cautelar de entrega;
- Posteriormente, por requerimento de 13/2/2023 (ref. Citius 35049755) juntou a embargante cópia de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 26/1/2023, que confirmou a referida sentença;
- Na sequência da junção destes requerimentos, foi proferido despacho com o seguinte teor:
REFª: 44062731
REFª: 44703918
Nos termos do artº 732º, nº 2 do NCPC, não é admissível a apresentação de articulados de resposta à contestação.
Embora seja admissível que a parte se pronuncie sobre documentos apresentados, essa sua posição não é considerada para os temas de prova assentes e controvertidos.
Do mesmo modo, em tudo o que exceda a resposta ou impugnação desses documentos, a exposição ter-se-á por não escrita, por violar frontalmente o expressamente disposto no supra mencionado preceito legal.
No caso presente a Embargante excede completamente a possível resposta aos documentos, vindo alegar matéria de facto e de direito o que não lhe é legalmente permitido.
A pronúncia sobre o documento deve circunscrever-se a impugnar o mesmo, arguir eventualmente a falsidade do mesmo ou explicar que não pode provar o que a contra-parte pretende com ele ver provado.
Assim sendo, e porque não é possível “desentranhar os requerimentos” da Embargante, uma vez que o processo é electrónico (virtual) determino que os supra referidos requerimentos sejam tidos como não escritos.
- Desta decisão não foi interposto recurso;
- Seguidamente foi elaborado despacho consignando entendimento sobre a possibilidade de dispensa de audiência prévia e de prolação de decisão final sem realização de diligências de prova, a que apenas a exequente respondeu, reiterando o teor do seu articulado;
- Após, foi proferido despacho saneador-sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor:
Pelo exposto, julgo os presentes embargos improcedentes por não provados, e consequentemente determino o prosseguimento da execução nos precisos termos em que foi instaurada.
- Não se conformando, apresentou a embargante a presente apelação.
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II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações (sem atualização de grafia e assinalando a negrito as questões suscitadas):
1. O presente recurso vem interposto da decisão que considerou os embargos improcedentes por não provados em consequentemente determinou o prosseguimento da execução nos precisos termos em que foi instaurada.
2. Entende a recorrente que o Tribunal, com o devido respeito, andou mal, decidiu contra a lei em vigor e desrespeitou o caso julgado que já havia quanto à questão principal dos embargos – a falta de interpelação admonitória necessária para que o contrato que deu azo à execução se considere definitivamente incumprido e possa ser aplicada cláusula penal que daquele decorre.
3. Os presentes embargos deram entrada em juízo em 11 de outubro de 2022 na sequência da citação da recorrente da execução contra si intentada pela recorrida.
4. Veja-se que partindo do pressuposto que o contrato de locação que vincula as partes estava definitivamente incumprido a exequente/recorrida intentou, não só
5. a execução que deu azo aos presentes embargos, mas também providencia cautelar de entrega judicial de bem.
6. Procedimento esse que correu sob o n.º 16999/22.3T8LSB no juiz ...do juízo local cível do Seixal, comarca de Lisboa a que a recorrente deduziu oposição e onde foi decidido:
7. “Neste sentido, e por não se poder considerar que a interpelação admonitória foi eficaz – já que não chegou ao conhecimento do destinatário nem por ele foi recebida, e esta circunstância não decorreu da sua culpa exclusiva – não poderia a requerente resolver o contrato de locação financeira, porque não havia ainda, por parte da requerida, um incumprimento definitivo do contrato, mas sim uma “simples” mora no cumprimento. Sendo a mora no cumprimento insuficiente para conceder à parte o direito potestativo de resolver o contrato, a resolução levada a cabo pela requerente em Dezembro de 2021 é ineficaz (já que soçobram os elementos constitutivos para a produção dos seus efeitos) e, como tal, não teve o condão de extinguir o contrato e as obrigações que emergem de tal extinção, nomeadamente a restituição do imóvel à requerente.
8. Nestes termos e face ao exposto, e considerando que os factos indiciariamente provados não permitem, juridicamente, concluir pela existência do direito a acautelar, improcede a providência cautelar requerida.”
9. Como se apura esta decisão transitada em julgado, faz caso julgado em relação à interpelação da recorrente/executada sobre a resolução do contrato.
10. A recorrente, na pendência deste processo de embargos, juntou aos autos a sentença em causa, através de requerimento ao processo, em 05 de dezembro de 2022, pouco depois de deduzidos os embargos, tendo o requerimento ficado registado sob o n.º 34370923 no citius.
11. No entanto, apesar de as partes e os factos serem os mesmos, o tribunal considerou que a sentença junta aos autos deveria ser tida como “não escrita”, tendo até condenado a embargante em custas do incidente anómalo.
12. E como se vê, dispensando audiência prévia, audiência de discussão e julgamento, decidiu, contrariando caso julgado quanto à parte da matéria alegada no requerimento de embargos.
13. O documento que serve de base a esta execução é uma livrança, assinada em branco pelos executados, tendo sido este o instrumento a que a exequente atribuiu a natureza de título executivo.
14. Tal como se alegou e foi decido no processo 16999/22.3T8LSB que correu termos no juiz ... do juízo local do seixal , comarca de lisboa, cuja sentença, transitada em julgado, se encontra junta aos autos, olvidou a exequente/embargada/recorrida que teria de ter cumprido o clausulado do contrato em causa (referido no seu requerimento de execução) nomeadamente a norma 16ª e condições aí impostas para que o crédito se pudesse considerar vencido.
15. O contrato que está garantido pela livrança preenchida pela exequente e que se encontra junto aos autos é um contrato complexo e só da análise deste contrato, podemos chegar ao montante que efetivamente possa estar em divida, devidamente vencido e logo, exigível.
16. Para chegar ao montante em divida teria a exequente de ter interpelado a executada ao montante em divida, dar-lhe o prazo de trinta (30) dias a contar da data da comunicação escrita para pagar os valores em atraso, conforme o n.º 3 da cláusula 16ª do contrato em vigor entre as partes estipula.
17. E, findo este prazo, se a executada não liquidasse os valores em atraso, então estaria o crédito devidamente vencido e logo exigível.
18. São as cartas de interpelação que a embargante nunca recebeu e que o tribunal, apesar de já existir caso julgado em sentido contrário, entende que foi por culpa da embargante que não foram rececionadas.
19. A executada nunca foi notificada, nos termos e para os efeitos da clausula 16ª do contrato de locação financeira cuja livrança em branco era a garantia do seu pagamento.
20. As cartas enviadas à recorrente, veja -se a matéria dada como provada no ponto 21, 22 e 23 dos factos assente, nenhuma delas é endereçada à morada que a exequente/recorrida tem conhecimento de ser a da executada/recorrente.
21. Mas, por mais estranho que seja, para intentar o procedimento executivo a recorrida sabe indicar a morada correcta da executada/recorrente: ...Amora (estaleiro ...) ...Amora, onde esta foi citada.
22. Para a interpelação da resolução do contrato a recorrida não acerta uma única vez com a morada da recorrente:
23. Envia uma das cartas para ...Loures..., que foi devolvida com a indicação “mudou-se”
24. Envia uma carta para ...Amora e uma outra para ...Amora.
25. Em nenhuma das moradas a embargada acerta com a morada da embargante – morada onde sita o imóvel alvo do contrato e para onde aquela já tinha anteriormente enviado correspondência.
26. E, foi nesse sentido que se decidiu no processo n.º 16999/22.3T8LSB, no acórdão na 6ª secção do tribunal da relação de lisboa, transitado em julgado, que confirmou a sentença da primeira instância que a recorrente juntou aos autos e que o tribunal decidiu que se deveria considerar como não escrita nos autos.
27. Com o devido respeito, uma sentença que decide matéria que está ser discutida num Processo, que decide em determinado sentido e que junta aos autos, onde essa mesma questão é discutida, o tribunal decide não a ter em conta, configura, salvo o devido respeito, atento o disposto no, omissão de pronuncia, atento o disposto artigo 611º do Código Processo Civil.
28. Ao ignorar a sentença que decidiu quanto ao facto da interpelação admonitória da executada/Embargada/Recorrente o tribunal deixou de se pronuncia sobre uma questão sobre a qual se deveria de ter pronunciado, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil.
29. A simples menção nos autos de que haveria caso julga do em relação a uma parte substancial da matéria em causa nos presentes embargos levaria a que o tribunal, obrigatoriamente e até oficiosamente, carreasse tal decisão para os autos.
30. Pelo que, não tendo o tribunal de primeira instância tido em consideração a decisão, junta aos autos, que decide em sentido contrário ao agora decidido, em decisão já transitada em julgado, deverá este douto tribunal ter tal decisão em consideração.
31. A recorrente não teve conhecimento da resolução do contrato, não recebeu a interpelação admonitória com a indicação do pagamento das rendas em atraso e que sem o seu pagamento se consideraria o contrato resolvido.
32. É certo que a executada/embargante deixou de cumprir pontualmente o pagamento da prestação mensal a que estava obrigada e tal colocou-a em mora, tão simplesmente em mora, uma vez que a rescisão do contrato não operou.
33. A exequente/Embargada não cumpriu o acordo de preenchimento da livrança e por isso mesmo a quantia não é exigível, pois a divida não está vencida, mormente não está vencida a indemnização, a clausula penal no valor de 228.943,37€.
34. Não estando a divida vencida o título dado à execução é inexistente, uma vez que a alegada divida não se encontra vencida, nem liquidada, pelo que deverá ser suspensa a execução e canceladas as penhoras sobre o embargante, sem prestação de caução.
35. Como decorre do n.º 3 da clausula 16º do contrato celebrado entre as partes deveria a exequente ter tomado mão do expediente de interpelar a executada a pagar as quantias em atraso no prazo dos trinta (30) dias indicados nessa mesma clausula.
36. Ora, não ocorreu esta notificação do n.º 3 do artigo 16º do contrato , pelo que não foi dada oportunidade à executada de pagar as quantias em atraso e assim sendo a resolução não pode operar, a divida não está vencida e não existe liquidação da quantia exequenda, o que torna o título dado à execução como inexistente.
37. Ao não respeitar o normativo do contrato, há um desrespeito do acordo de preenchimento da livrança, tornando o seu preenchimento abusivo.
38. Mais, em 26 de janeiro de 2022 é feito um pagamento de 52.000€ e solicitado o extrato de conta para acertar os valores em atraso, conforme documentos juntos aos autos e apesar, de nem a própria embargada contestar tal pagamento ou o impugnar, o tribunal, erradamente, considerou que não está provado que esse pagamento fosse para cumprimento do presente contrato.
39. Além de que a cláusula penal identificada na al, c) da cláusula 16ª do contrato terá de ser considerada como abusiva.
40. Como é sobejamente defendido nos tribunais, a cláusula penal prevista no artigo 810º do n.º 1 do Código Civil, num conceito amplo engloba dentro si clausulas penais indemnizatórias e clausulas penais compulsórias: nas primeiras (clausulas penais indemnizatórias) que é o caso dos autos, o acordo das partes tem por exclusiva finalidade liquidar a indemnização devida em caso de incumprimento definitivo, de mora ou de incumprimento defeituoso.
41. Também é certo que à luz do artigo 812º do Código Civil, a clausula penal pode ser reduzida pelo tribunal, segundo critérios de equidade, uma vez que sendo uma norma inspirada em razões de ordem moral e social, prevalece sobre as convenções privadas.
42. A finalidade da norma do contrato é sancionar a parte pelo não cumprimento, isso é pelo não pagamento de rendas em atraso, e já tem uma sanção pelo não pagamento que são juros de mora, calculados segundo o artigo 13º do contrato em causa, “à taxa do contrato, acrescida da sobretaxa legal máxima”.
43. A acrescer mais 20% teremos, eventualmente, uma taxa superior a 30% de juros a vencerem-se sobre o capital em divida, no caso de haver
44. incumprimento, o que é manifestamente excessivo, exagerada e desproporcional às finalidades que presidem ao conteúdo do direito que se propõe realizar – sancionar o devedor pelo pagamento tardio ou pelo não pagamento.
45. Devendo seriamente o tribunal ponderar, tendo em conta os juízos de equidade, a redução desta cláusula penal se não a sua anulação, pois caímos no conceito de juros usurários se a exequente poder cobrar juros desta monta sobre alguma quantia que possa estar em divida.
46. E, não se diga que a parte sabia o que estava a assinar e conscientemente aceitou tal valor de clausula penal, uma vez que a posição preponderante das instituições bancárias sobre os necessitados de crédito, não seixa margem para negociar qualquer clausula do contrato, muito menos o valor de uma clausula.
47. É do senso comum que os clientes de crédito das instituições bancárias, vulgo bancos, não tem qualquer poder negocial perante aquelas e perante as cláusulas de um contrato de crédito, seja de leasing ou outro.
48. O Artigo 1146.º do Código Civil, sob a epigrafe de Usura, define muito bem o conceito, que não é nem mais, os juros cobrados em soma com esta clausula penal de 20% de indemnização, sobre todas as outras quantias alegadamente em dívida, são efetivamente usurários e por isso deve esta clausula penal ser reduzida ou anulada, tendo em conta o pagamento dos juros pela taxa e sobretaxa máxima.
49. De quanto se diz, evidente se torna que falta ou, melhor, que inexiste título executivo à presente acção razão pela qual devem todos os executados ser absolvidos da instância executiva nos termos do preceituado no do C.P.C.
50. Decidiu o tribunal sem mais considerar que a recorrente não recebeu a notificação admonitória por sua culpa, ignorando até uma decisão já transitada me julgado sobre a mesma questão.
51. Com o devido respeito é notório que o tribunal andou mal quando, sem audiência prévia e sem audiência de discussão e julgamento, tendo conhecimento de sentença que decidiu parte da matéria em causa nos autos, não tem em conta na sua decisão, toda a matéria e documentos carreados para os autos.
52. Com o devido respeito, andou mal o tribunal, quando decidiu, com ligeireza, em sentido contrário ao que já foi decidido sobre a mesma questão, bastando-lhe para tal dizer que tal sentença junta aos autos não pode ser tida em consideração, Cfr. Cópia do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa transitado em julgado, que se junta nestas alegações de recurso.
53. Tal como foi decidido no acórdão em referência: “a requerida ( aqui nos presentes autos executada/embargante/recorrente) provou que não recebeu as cartas por ausência de culpa sua. A resposta tem-se por afirmativa. Desde logo, impõe-se consignar que a morada da recorrida sempre surge como incompleta por referência a morada da sede da recorrida, à data do contrato, o que pode ter originada a menção pelos correios de “desconhecido” a morada não é Rua Camara de Lobo, 30 A, Loures mas sim Rua Camara de Lobos 30A, Mealhada, Loures. A única carta que a recorrente enviou a interpelar para o pagamento foi uma carta que foi anexa à carta que constitui doc.4. e cujo a/r veio devolvido com a menção de “desconhecido”. Nenhuma outra carta foi enviada para o efeito. Neste contexto, temos para nós que a recorrida não teve qualquer culpa no não recebimento da interpelação. Em nada para ela contribuiu. Em face da devolução com o “desconhecido” deveria a recorrente ter diligenciado por nova notificação, desde logo para a morada completa. Feita assim a prova do não recebimento estamos perante uma situação de ausência de culpa por banda da recorrida. Ora, não tendo a recorrente dado cumprimento à interpelação contratualmente prevista não lhe assiste o direito de resolver o contrato. “
54. Com o devido respeito, o tribunal apesar de ter levado mais de dois anos a proferir sentença nos presentes embargos, prescindindo de audiência previa e de audiência de julgamento, preferiu o caminho mais fácil – indeferir tudo e manter na integra o requerimento executivo, apesar de serem flagrantes os seus erros e omissões.
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A autora, notificada, contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II. Questões a apreciar:
- Da invocada omissão de pronúncia (por preterição de caso julgado, face ao decidido em procedimento cautelar);
- Da exigibilidade do título, por efetiva resolução do contrato causal do título cambiário, na sequência de interpelação admonitória (com inerente apreciação dos efeitos de não recebimento das missivas enviadas pela exequente recorrida);
- Da licitude da cláusula penal computada na obrigação liquidada, da avaliação da sua proporcionalidade e da sua redução equitativa solicitada subsidiariamente.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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Matéria de facto dada por assente nos autos (sem atualização de grafia):
Encontram-se provados, por acordo das partes, face ao alegado no requerimento executivo e articulados de embargos, e por documentos (juntos aos autos e à execução principal, que não foram impugnados nem arguidos de falsidade) os seguintes factos:
1. No exercício da sua actividade comercial, a Embargada celebrou com a Embargante o Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542, composto de “Condições Particulares” e de “Condições Gerais”, junto aos autos com a contestação como doc. 1.
2. O Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542, foi celebrado a 07 de Abril de 2015, pelo prazo de 360 meses, estando a Embargante obrigada ao pagamento de 360 rendas mensais, no valor de € 2.702,35 (dois mil, setecentos e dois euros e trinta e cinco euros).
3. Nos termos do Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542 (n.º 1 das” Condições Particulares”) a Embargada veio a dar de locação financeira à Embargante um prédio urbano situado em ...Amora, freguesia de ...Amora, concelho de Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ...Amora sob a ficha número ...6...07, da freguesia de ...Amora, e inscrito na matriz predial sob o artigo ....
4. Consta da Cláusula 11ª do Contrato, sob a epígrafe “Garantias”, o seguinte: “11.1 Livrança em branco subscrita pelo locatário e avalizada por terceiro(s). Avalistas: AA, BB, CC, DD, EE, FF”.
5. Consta da Cláusula 4ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Outros encargos”, o seguinte: “1. Para além das rendas convencionadas, serão da responsabilidade do Locatário todos os encargos e despesas, nomeadamente impostos, emolumentos, taxas, licenças, multas, coimas e condomínio, que recaiam sobre o imóvel locado, por motivo da sua aquisição, registo, utilização e locação financeira. 2. Serão, igualmente, da responsabilidade do Locatário as despesas administrativas e comissões relativas à contratação e gestão do contrato, bem como todos os encargos, qualquer que seja a sua natureza, decorrentes das referidas contratação e gestão e constantes do preçário em vigor, disponível na página electrónica www.clf.pt. (…)”.
6. Consta da Cláusula 8ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Seguros a contratar”, o seguinte: “1. O Locatário obriga-se a efectuar e a manter em vigor, no decurso da vigência do contrato e/ou enquanto detiver o imóvel, os seguros com as coberturas e pelos montantes estabelecidos nas Condições Particulares. (…) 3. Se o Locatário não liquidar os prémios das apólices subscritas, o Locador poderá fazê-lo directamente, debitando ao Locatário os respectivos custos. (…)”.
7. Consta da Cláusula 13ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Juros de mora”, o seguinte: “Em caso de não pagamento pontual das rendas, do valor residual ou de quaisquer outras quantias devidas pelo Locatário no âmbito do presente contrato, serão devidos por este juros de mora, desde a data do vencimento até à data do efectivo pagamento, calculados à taxa do contrato acrescida da sobretaxa legal máxima, sem prejuízo do exercício dos demais direitos atribuídos ao Locador”.
8. Consta da Cláusula 15ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Capitalização”, o seguinte: “O Locador terá a faculdade de, a todo o tempo, capitalizar juros remuneratórios correspondentes a um período não inferior a três meses e juros moratórios correspondentes a um período não inferior a um ano, adicionando tais juros ao capital em dívida e passando aqueles a seguir todo o regime deste”.
9. Consta da Cláusula 16ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Resolução”, o seguinte:
“1. O contrato poderá ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais de direito, com fundamento no incumprimento de qualquer das obrigações contratuais da outra parte.
2. O Locador poderá resolver o presente contrato, em caso de procedência de qualquer embargo administrativo ou judicial, ou se se verificarem os pressupostos de insolvência, falência, recuperação de empresa, dissolução ou liquidação do Locatário, ou contra ele correr execução ou providência cautelar em que esteja ou possa estar em causa o imóvel locado.
3. O contrato será resolvido por iniciativa do Locador, se, decorrido o prazo de 30 dias a contar da data da comunicação escrita enviada ao Locatário, este não cumprir as obrigações em falta.
4. Em caso de resolução, o Locador tem o direito de exigir do Locatário:
a) A desocupação e a restituição do imóvel no prazo de 15 dias após recepção da carta de resolução;
b) O pagamento das rendas e outros débitos vencidos e não pagos, acrescidos dos juros de mora e outros encargos vencidos até à data da restituição do imóvel;
c) O pagamento de uma indemnização, a título de cláusula penal, igual a 20% a soma das rendas vincendas com o valor residual, acrescida de juros de mora contados a partir da data referida na alínea a).
5. O atraso na restituição do imóvel implica o pagamento de uma indemnização calculada nos termos previstos no nº 6 da cláusula 10ª destas Condições Gerais”.
10. Consta da Cláusula 18ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Capital em dívida”, o seguinte: “Para efeitos do presente contrato, entende-se por capital em dívida o somatório das rendas vincenda e do valor residual actualizados à taxa do contrato.”
11. Consta da Cláusula 19ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Garantias”, o seguinte: “O Locatário garantirá o cumprimento das obrigações por si assumidas no presente contrato nos termos constantes das Condições Particulares”.
12. Consta da Cláusula 20ª das Condições Gerais do Contrato, sob a epígrafe “Notificações”, o seguinte: “No âmbito do presente contrato, as notificações ou comunicações entre o Locador e o Locatário serão feitas para as moradas constantes deste contrato, devendo qualquer alteração ser comunicada por carta registada com aviso de recepção nos 30 dias subsequentes à respectiva ocorrência.”
13. Consta da Cláusula 8ª das Condições Particulares do Contrato, sob a epígrafe “Taxa do Contrato”, o seguinte: “Euribor Semestral na Base 365 dias, apurada em função da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros, arredondada para a milésima do ponto percentual mais próxima, acrescida de um spread de 1.0000 pontos percentuais. Se o contrato entrasse em vigor nesta data a taxa seria 1,0980%, a que corresponde uma Taxa Anual Efectiva de 1,1000 %, determinada com base na fórmula constante do Anexo 2 ao Dec.-Lei 220/94. A taxa de juro do contrato será determinada na data da entrada em vigor do presente contrato.”
14. Consta da Cláusula 9ª das Condições Particulares do Contrato, sob a epígrafe “Indexante e Critério de Indexação”, o seguinte: “As rendas são indexadas à Euribor Semestral na Base 365 dias, apurada em função da média aritmética simples das cotações diárias do mês anterior ao período de contagem de juros”.
15. No contrato de locação financeira imobiliária nº ...542 a ora Embargante “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.” indicou como morada contratual a ...Loures
16. Com data de 14 de Agosto de 2013, a “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, com sede em ... Loures e os demais executados (avalistas) subscreveram uma comunicação dirigida à “Caixa leasing e factoring” onde se refere o seguinte: “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda. (…) subscritor da livrança que junto se envia, e GG (…), FF (…), BB (….), DD (…), AA (…), CC (…), EE (…), avalistas dessa mesma livrança, Dão o seu consentimento expresso para que a mesma seja preenchida em caso de mora ou incumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas no contrato de locação financeira nº ...542, convosco celebrado. Tal livrança será pagável à vista e poderá ser preenchida e apresentada a pagamento logo que se verifique uma das situações referidas. V. Exas. ficam expressamente autorizados a preencher como entenderem a referida livrança quanto à data da sua emissão, ao local de pagamento e à quantia a pagar, desde que esta não exceda o total dos valores em dívida no contrato acima referido, acrescido dos encargos inerentes ao seu preenchimento e apresentação a pagamento. O cumprimento de todas as obrigações que resultem do contrato de locação financeira nº ...542 para o subscritor e os avalistas determina a cessação do referido contrato, sendo a livrança entregue para garantia do mesmo destruída pelo Locador, acto para o qual os signatários dão o seu consentimento expresso. (…)”, seguindo-se o carimbo da “Sustentâncora, Lda.” A Gerência” e as assinaturas manuscritas dos legais representantes desta e as assinaturas manuscritas dos avalistas, feitas pelos respectivos punhos.
17. Tendo a locatária deixado de pagar as prestações devidas, com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP /MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte: “O contrato em assunto regista, nesta data, diversos débitos em atraso, cujo montante ascende a 37.170,46 €, aos quais acrescem juros de mora, à taxa contratualmente prevista, que serão debitados após integral pagamento do montante reclamado. Vimos, por esta via interpelar V. Exas. para o pagamento da referida quantia no prazo máximo de 30 dias a contar desta data, a fim de evitar a resolução do contrato, a obrigação de restituição do imóvel locado livre de pessoas e bens e o recurso às vias judiciais. O pagamento deve ser efectuado por cheque a enviar directamente para os n/serviços, ou por crédito na n/ conta com o IBAN (…).”
18. Com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... ...Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542/2001, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a intenção de rescisão do contrato. (…)”.
19. A Embargante nunca enviou qualquer carta registada à CGD a informar a alteração da sua morada.
20. Nenhuma das cartas referidas nos pontos 16. e 17. foi recepcionada, tendo uma sido devolvida com indicação de morada desconhecida e a outra com indicação de objecto não reclamado.
21. Com data de 03 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP-N/MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte: “(…) Na sequência da n/carta anterior e por falta de regularização dos débitos na mesma indicados, vimos pela presente informar que consideramos o contrato em assunto definitivamente incumprido. Em consequência da resolução do referido contrato, encontram-se V. Exas. obrigados: a) Ao pagamento dos valores vencidos em dívida, no montante de 24.860,00€, b) Ao pagamento de uma cláusula penal, no montante de 228.943,37€, c) Ao pagamento de juros de mora, que, nesta data, ascendem a 332,52 € e cujo valor será actualizado à data do integral pagamento da dívida, d) À imediata restituição do imóvel locado, livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias após a recepção desta carta. (…) O não cumprimento das referidas obrigações implicará a imediata utilização de garantias que nos tenham sido prestadas e/ou o recurso às vias judiciais. (…).”, tendo esta carta sido devolvida com a indicação “Mudou-se”.
22. Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada de ...Amora uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures comunicando a rescisão do contrato. (…)”, tendo esta carta sido devolvida com a indicação “Não reclamado”.
23. Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a Refª^...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a rescisão do contrato. (…)”, tendo esta carta sido devolvida com a indicação “Não reclamado”.
24. Foi dada à execução a livrança nº ...321, com local e data de emissão em Lisboa a 19.01.2022, no valor de € 278.686,57, com vencimento à vista, de onde consta a expressão manuscrita “contrato de locação financeira nº ...542” subscrita pela “Sustentâncora, Lda.” e avalizada pelos demais executados, que apuseram no verso da livrança as suas assinaturas, antecedidas da expressão “bom por aval à firma subscritora”.
25. Em 26 de Janeiro de 2022 foi feita uma transferência de € 52.000,00 para a conta titulada pela Caixa Leasing e Factoring, por lançamento a débito de uma conta sedeada no Crédito Agrícola e titulada por “Nobreplanalto, Lda”.
26. A execução deu entrada em juízo em 01.07.2022.
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III. Apreciação do recurso:
Invocada preterição de caso julgado e omissão de pronúncia:
É indisputado nos autos que as partes celebraram contrato de locação financeira imobiliária, tendo a executada entregue, como garantia, uma livrança em branco, avalizada por terceiros, sendo este documento, preenchido, o título executivo que funda a execução de que os embargos são dependência.
A recorrente aceita expressamente que se encontrava em mora relativamente às rendas emergentes do contrato causal, recusando, todavia, que tal mora se tenha convertido em incumprimento definitivo, por falta da devida (contratual e legalmente) interpelação admonitória.
Por essa circunstância, dir-se-ia (ainda que a recorrente não o tenha precisado desta forma) que, sendo a relação entre subscritor e beneficiário da livrança de tipo cambiário imediato, ser-lhe-ia lícito opor os meios de defesa pessoais (causais) que dispunha contra o portador e, por consequência, a inexigibilidade da dívida substantiva traduziria também uma inexigibilidade da obrigação cambiária e, portanto, uma inexequibilidade do título apresentado.
Este argumento de base traduz-se, ou desenvolve-se, em dois fundamentos recursórios autonomizáveis, que cumpre apreciar.
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O primeiro desses fundamentos pode ser sintetizado na invocação de caso julgado da decisão de procedimento cautelar de entrega do imóvel objeto do contrato de locação.
Sustenta a recorrente que, com base nas mesmas comunicações tratadas nestes autos, foi decidido nesse procedimento que as interpelações admonitória e resolutiva, assumidamente não recebidas, não o foram sem culpa da destinatária, aqui embargante, por terem sido enviadas para domicílio errado.
O invocado erro na indicação do domicílio da locatária teria determinado improcedência do procedimento de entrega, decisão proferida em 1.ª instância e confirmada em recurso por esta Relação.
A análise desta questão impõe a sua subdivisão a vários níveis.
O primeiro deles é estritamente processual e relativo à não admissão do articulado de resposta à contestação e da sorte a atribuir ao documento que o acompanhou – cópia da sentença proferida no procedimento cautelar, avaliação que deve ser acompanhada da junção, em requerimento posterior (ainda anterior ao despacho saneador-sentença) de cópia do acórdão desta Relação que confirmou a decisão cautelar proferida.
Sustenta a recorrida, nas suas contra-alegações, que a recorrente não recorreu do despacho de não admissão do articulado, ficando precludido o direito de pôr em causa essa decisão.
Assiste-lhe razão, mas apenas prima facie.
De facto, nos termos conjugados do art.º 638.º n.º 1 e 644.º n.º 2 al. b) do CPC teria a parte o prazo de 15 dias para pôr em causa, por via de recurso, o despacho em causa, sendo que, na medida em que este não teria admitido um articulado, seria tramitado separadamente e com subida imediata.
Em termos simples, o despacho em causa tornou-se, efetivamente, definitivo no processo.
Todavia, o seu teor não é unívoco e presta-se a dúvidas interpretativas sobre o sentido e alcance da decisão que contém.
Ressalta-se, em primeiro lugar, que as referências citius nele contidas não têm correspondência nos requerimentos apresentados após articulados (ou, diga-se, em qualquer requerimento constante dos autos) e, nessa medida, contém, necessariamente, esse lapso de escrita.
Tal, todavia, não afasta a certeza sobre o objeto de pronúncia, que são os referidos requerimentos da embargante-executada, apresentados após a dedução de contestação, datados de 5/12/2022 e 13/2/2023.
Analisando o teor do despacho, é absolutamente claro que traduz uma determinação de rejeição de articulado, mas, quanto às cópias da sentença e do acórdão proferidos em sede cautelar, a interpretação do decidido presta-se a dúvidas.
Assim, se o dispositivo termina por um concludente que os requerimentos sejam tidos como não escritos, não deixa na sua fundamentação de afirmar que a embargante excede completamente a possível resposta aos documentos, vindo alegar matéria de facto e de direito, o que não lhe é legalmente permitido.
Por outro lado, o despacho é omisso quanto à admissibilidade de junção dos documentos apresentados, seja com o articulado declarado não escrito, seja com o requerimento posterior, que, nessa medida, por não terem sido expressamente rejeitados, devem considerar-se juntos aos autos.
Diga-se, a acrescer, que quanto a qualquer dos documentos (cópia da sentença e cópia do acórdão), sendo supervenientes face ao requerimento inicial de embargos, não tendo havido lugar a qualquer debate antes da prolação de decisão, teria que se admitir, no limite, até a sua apresentação com as alegações de recurso, nos termos do n.º 1 do art.º 651.º do CPC (as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art.º 425.º do CPC - documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), situação que, no limite, sempre se deveria considerar verificada in casu.
Quer isto dizer, fechando esta primeira asserção, quer a sentença proferida no procedimento cautelar, quer o acórdão que a confirmou, devem considerar-se integrantes dos autos, sendo elementos a ponderar na decisão.
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Será que tal dá sustentação à invocada omissão de pronúncia, à luz do que dispõe o art.º 615.º n.º 1 al. d), como sustenta a recorrente?
Apesar de a decisão recorrida não referir expressamente tais decisões judiciais proferidas no procedimento de entrega, deve entender-se que inexiste alguma omissão de pronúncia.
A mm. Juíza a quo, a despeito do supra referido, analisou amplamente o fundamento de oposição que a mesma convoca – a existência de uma válida e eficaz interpelação admonitória e, consequentemente, de uma válida e eficaz resolução do contrato de locação financeira.
Essa é a matéria que à decisão competia conhecer, e foi conhecida (no sentido que as comunicações não foram recebidas por culpa da destinatária, aqui embargante, tendo a declaração respetiva produzido os respetivos efeitos jurídicos).
Neste ponto não se justificam considerações adicionais – a nulidade apontada não se verifica porque a questão do envio de comunicações resolutivas, sua validade e eficácia foi apreciada na sentença.
Questão diversa será a de saber se o decidido deve ou não ser mantido.
Essa é, todavia, já uma questão de mérito dos fundamentos de recurso e não de algum vício na decisão.
Para o sustentar, invoca a recorrente dois fundamentos, também eles autonomizáveis: - a existência de caso julgado face ao decidido em sede de procedimento cautelar e a própria verificação de uma eficaz comunicação resolutiva.–
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- Do caso julgado no procedimento cautelar:
Deve começar-se por referir que, a despeito de a questão ter sido expressamente suscitada em recurso, ainda que o não tivesse sido, sempre poderia ser conhecida, atenta a possibilidade de o fazer oficiosamente – veja-se, a propósito, o acórdão Supremo Tribunal de Justiça – STJ - de 4/7/2024 (Paula Leal de Carvalho, dgsi.pt -https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e0429222b085f7aa80258b50005b0334?OpenDocument)
Se a questão de existência de julgado deve ser conhecida, a resposta a dar-lhe é divergente da solução propugnada pela recorrente.
Ressaltando a natureza perfunctória, preliminar e provisória da decisão cautelar, deve entender-se que não constitui caso julgado material na ação, seja aquela em que a questão seja definitivamente decidida ou outra.
Acolhe-se, a este propósito, a doutrina jurisprudencial, reafirmada pelos acórdãos STJ de 3/10/24 (Nuno Ataíde das Neves) e 12/7/2018 (Gonçalves Rocha), ambos em dgsi.pt - https://www.dgsi.pt/JSTJ.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1d5a143ab48258b080258bac005a3c86?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1c9b7e48e003f675802582c8004d312d?OpenDocument.
Diz-se no primeiro destes que, uma decisão proferida em providência cautelar é, por natureza, provisória, assentando o seu julgamento na mera aparência do direito invocado pelo requerente, não se lhe podendo conceder carácter definitivo, este só alcançável na acção principal de que depende o procedimento cautelar (art. 364º do CPC), e indispensável a que se lhe possa reconhecer força de caso julgado material, para além do estrito âmbito do processo em que foi proferida.
Se a força de caso julgado material não se impõe e, portanto, não se pode considerar prejudicado o conhecimento da validade e eficácia das comunicações resolutivas, tal não significa, por outro lado, que o teor das decisões proferidas no procedimento cautelar não deva ser tomado em conta, como fator de análise.
As decisões proferidas são, assim, consideradas, como mais um dos elementos a considerar. –
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- As comunicações resolutivas do contrato causal:
Sem prejuízo do que antes ficou dito, o primeiro juízo a assentar refere-se à inexistência de qualquer impugnação à matéria de facto estabelecida na sentença recorrida.
O que se encontra assente nos autos é, portanto, o único fundamento da decisão.
É a seguinte a matéria fixada nos autos com relevo na apreciação desta questão:
- No exercício da sua actividade comercial, a Embargada celebrou com a Embargante o Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...542, composto de “Condições Particulares” e de “Condições Gerais”, junto aos autos com a contestação como doc. 1.
- Nos termos desse contrato a Embargada veio a dar de locação financeira à Embargante um prédio urbano situado em ...Amora, freguesia de ...Amora, concelho de Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial de ...Amora sob a ficha número ...6...07, da freguesia de ...Amora, e inscrito na matriz predial sob o artigo ...;
- Tendo a locatária deixado de pagar as prestações devidas, com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP /MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte:
“O contrato em assunto regista, nesta data, diversos débitos em atraso, cujo montante ascende a 37.170,46 €, aos quais acrescem juros de mora, à taxa contratualmente prevista, que serão debitados após integral pagamento do montante reclamado. Vimos, por esta via interpelar V. Exas. para o pagamento da referida quantia no prazo máximo de 30 dias a contar desta data, a fim de evitar a resolução do contrato, a obrigação de restituição do imóvel locado livre de pessoas e bens e o recurso às vias judiciais. O pagamento deve ser efectuado por cheque a enviar directamente para os n/serviços, ou por crédito na n/ conta com o IBAN (…).”
- Com data de 23 de Setembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... ...Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542/2001, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte: “(…)
Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a intenção de rescisão do contrato. (…)”.
- A Embargante nunca enviou qualquer carta registada à CGD a informar a alteração da sua morada.
- Nenhuma das cartas referidas foi recepcionada, tendo uma sido devolvida com indicação de morada desconhecida e a outra com indicação de objecto não reclamado.
- Com data de 03 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Construção e Reparação Naval, Lda.”, para a morada da R. ...Loures, uma carta registada com aviso de recepção com a Referência “DAP-N/MC/...542/34045277”, onde indicava o Contrato nº ...542, e onde se referia o seguinte:
“(…) Na sequência da n/ carta anterior e por falta de regularização dos débitos na mesma indicados, vimos pela presente informar que consideramos o contrato em assunto definitivamente incumprido. Em consequência da resolução do referido contrato, encontram-se V. Exas. obrigados:
a) Ao pagamento dos valores vencidos em dívida, no montante de 24.860,00€,
b) Ao pagamento de uma cláusula penal, no montante de 228.943,37€,
c) Ao pagamento de juros de mora, que, nesta data, ascendem a 332,52 € e cujo valor será actualizado à data do integral pagamento da dívida,
d) À imediata restituição do imóvel locado, livre de pessoas e bens, no prazo de 15 dias após a recepção desta carta. (…)
O não cumprimento das referidas obrigações implicará a imediata utilização de garantias que nos tenham sido prestadas e/ou o recurso às vias judiciais. (…).”
- Esta carta foi devolvida com a indicação “Mudou-se”;
- Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada de ...Amora uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte:
“(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a refª ...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures comunicando a rescisão do contrato. (…)”;
- Esta carta foi devolvida com a indicação “Não reclamado”.
- Com data de 3 de Dezembro de 2021, a CGD enviou à “Sustentâncora – Const. E Rep Naval, Lda.”, para a morada da ... ...Amora (morada da sede que consta no portal MJ), uma carta registada com aviso de recepção com a referência “DAP/MC/...542, Com o assunto “Contrato de Locação Financeira nº ...542”, onde referia o seguinte:
“(…) Para vosso conhecimento, juntamos cópia da carta com a Ref.ª...542/2021, enviada para a morada R. ...Loures, comunicando a rescisão do contrato. (…)”,
- Esta carta foi devolvida com a indicação “Não reclamado”.
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Olhando diretamente para os termos do contrato de locação financeira dado por assente, deve ressaltar-se que a morada da executada-embargante deste constante é ...Loures.
Mais se verifica que o objeto do contrato é um bem imóvel, destinado a armazém, situado em ...Amora concelho do Seixal, descrito na CRP da Amora sob a ficha n.º ...6...07 da freguesia da ...Amora e inscrito na matriz predial sob o artigo ....
Com estes elementos contratuais, a exequente embargada dirigiu missivas à executada em dois momentos distintos: - em 23 de setembro de 2021, com o sentido de a interpelar a cumprimento, sob advertência de resolução, e em 3 de dezembro de 2021, com o sentido de declarar efetiva cessação contratual.
Em qualquer desses momentos, enviou várias cartas registadas com aviso de receção, nenhuma delas recebida pela locatária, aqui recorrente.
Na primeira ronda de cartas, enviou-as para as seguintes moradas (com indicação da subsequente sorte):
- R. ...Loures e R. ..., ...Amora, cartas devolvidas, do que se apurou, uma com menção de morada desconhecida e a outra com menção de objecto não reclamado.
Na segunda ronda de cartas, enviou-as para as seguintes moradas (e subsequente sorte):
- R. ...Loures (devolvida com a menção “mudou-se”); ...Amora (devolvida com a menção "Não reclamado”) e R. ... Amora, morada da sede que consta no portal da empresa no Ministério da Justiça (devolvida com a menção “Não reclamado”).
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Analisando estes elementos, não se pode afirmar, pelo contrário, que o locador não foi diligente no envio das comunicações constitutivas de interpelação admonitória e resolutiva.
Em primeiro lugar, elemento que só por si deve ser qualificado de decisivo, deve entender-se que as comunicações foram enviadas para a morada constante do contrato.
Existem pequenas discrepâncias entre o que consta deste documento e o que foi aposto nas missivas, sendo que a indicação da rua, número de porta e localidade apresenta correspondência (a imprecisão refere-se a omissão na indicação completa da localização "...Loures" e não apenas "Loures", bem como uma diferença na indicação do código postal).
Em segundo lugar, verifica-se que, relativamente a esta morada, a informação postal é de que a locatária se teria mudado e, portanto, o distribuidor postal teria identificado o destinatário e o local de entrega da correspondência, devendo-se o insucesso na mesma a essa alteração.
Esta asserção também faz sobrelevar a circunstância, apurada, de ausência de qualquer comunicação da locatária de mudança de domicílio.
Acresce que a locadora enviou comunicações para moradas não constantes do contrato: - a que consta de informação oficial do Ministério da Justiça e a do próprio imóvel objeto da locação, comunicações que, de acordo com o teor das informações consignadas pelo distribuidor postal, não apresentaram qualquer dificuldade de identificação do ponto de entrega e, portanto, não cumpriram a respetiva função devido ao que deve ser qualificado como uma omissão de diligência no recebimento por parte do destinatário –decorrente da menção aposta de "objeto não reclamado".
A conclusão que se tira, não deixando de compaginar estas ilações com os juízos formulados no procedimento cautelar em que os elementos foram apreciados, é a de que as declarações em causa não foram recebidas por culpa do destinatário, a aqui recorrente.
Neste circunstancialismo, valem as afirmações feitas em acórdão STJ de 16/12/2021 acerca da eficácia da declaração não recebida por ter entrado na esfera de disponibilidade do destinatário (Ricardo Costa – ecli.jurisprudência):
- https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2021:4679.19.1T8CBR.C.C1.S1.68?search=zIYC3ndY7WuC6ehkA90)
A declaração negocial com um destinatário (receptícia ou recepienda) ganha eficácia (vinculatividade) se chegar à sua esfera de disponibilidade material ou de acção ou se chegar ao seu conhecimento, verificando-se logo na primeira circunstância que ocorrer com prioridade cronológica, uma vez que, chegada ao “local” de poder do declaratário-destinatário (caixa do correio postal, caixa de um dispositivo automático de recepção de chamadas telefónicas ou fax, caixa digital do correio electrónico) ou entregue a pessoa com competência para a recepção (representantes, trabalhadores, auxiliares, etc.), é irrelevante que não a venha a conhecer efectivamente, assim como é irrelevante que não chegue ao seu poder se a conheceu efectivamente em momento anterior (art. 224º, 1, 1ª parte, CCiv.).
Essa disponibilidade faz relevar que o critério legalmente relevante não é o de efetivo conhecimento da declaração, é o da sua cognoscibilidade, verificados que sejam critérios de diligência adequados a uma pessoa média.
Disse-se ilustrativamente, ainda nesse aresto, que a chegada à esfera de disponibilidade material ou de acção integra a cognoscibilidade (possibilidade ou susceptibilidade de conhecimento) da declaração pelo destinatário, independentemente do conhecimento efectivo, esfera essa aferida de acordo com as circunstâncias normais que envolvem o destinatário e correndo contra si os riscos que, de forma previsível e antecipada, impossibilitam (sibi imputet) que a cognoscibilidade se converta em conhecimento efectivo, desde que essa esfera esteja sob o controlo do destinatário.
O locatário terá mudado de local de sede, realizando tal alteração no portal público de informação, mas não o comunicando ao contratante, aqui exequente; como se terá abstido de proceder ao levantamento de correspondência registada depositada em local onde tem a sede atual, ou instalações, sendo-lhe imputável a inação, ou a omissão de diligência no recebimento das comunicações postais.
Sibi imputet a ausência de conhecimento efetivo da interpelação admonitória e da declaração resolutiva. Ao abrigo do disposto no art.º 224.º n.º 2 do CC, tais declarações devem considerar-se válidas e eficazes e, por consequência, mantida a resolução contratual efetuada e a licitude de preenchimento do título.
Por consequência, improcede o recurso interposto com este fundamento. –
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- Do preenchimento do título – extensão da obrigação exequenda – cômputo de cláusula penal:
A este nível apresenta a recorrente dois argumentos iniciais que se apresentam manifestamente inconsistentes e um terceiro que deve merecer uma análise mais detida.
Assim, começa a recorrente que aludir a não ter sido considerado um pagamento de €52.000 efetuado, dizendo que o tribunal a quo mal teria andado ao não o dar por provado.
Na verdade, a embargante não invocou qualquer pagamento como fundamento de oposição e, nessa medida, tal facto não poderia ser autonomamente considerado.
É certo que em documento anexo ao requerimento inicial a embargante juntou comprovativo de transferência bancária que teria concretizado a favor da exequente, do valor em causa (€52.000).
Não o trata, todavia, como facto parcialmente extintivo da obrigação, ou sequer o alega, apresentando-o como mero argumento instrumental da estrutura a sua oposição – que a obrigação causal não estava definitivamente incumprida ou, dizendo de outro modo, que tal pagamento teria tido o efeito de fazer cessar a mora no pagamento de rendas que se verificava.
Nesta perspetiva, verifica-se que o pagamento efetuado foi realizado em data posterior ao da comunicação resolutiva (a data constante do comprovativo de transferência é 26 de janeiro de 2022, sendo a data de comunicação resolutiva 3 de dezembro de 2021, como antes referido).
Acresce que a data aposta na livrança (19 de janeiro de 2022) é também anterior à de pagamento e, ainda que a data de propositura da execução seja posterior (19 de julho desse ano de 2022), não computando qualquer abatimento face ao valor preenchido no título, a questão acima referida permanece incontornável – o pagamento não foi fundamento de oposição e, portanto, não é um facto objeto dos autos.
Acresce, em todo o caso, o outro elemento incontornável acima assinalado – o pagamento não foi invocado como facto extintivo (parcialmente extintivo) da obrigação, mas como facto impeditivo da validade ou eficácia da comunicação resolutiva.
No documento apresentado (e também não alegado) existe uma cópia de comunicação (aparentemente) mantida entre representante da embargante e da exequente que é bem demonstrativa desta (pretendida) função:
Da mesma consta: - "quarta-feira efetuaremos uma transferência de cerca de €52.000,00€ para a conta do contrato, que julgamos será mais que suficiente para pôr em dia o mesmo" (comunicação datada de 24/1/2022).
Quer isto dizer, por consequência, que, quer esta comunicação quer o aludido pagamento, terão sido efetuados já depois de ter cessado o contrato.
Assim sendo, este fundamento recursório não colhe, manifestamente.
Isso não invalida que, aparentemente, exista uma omissão de cômputo de tal pagamento na dívida inicialmente liquidada na execução.
Essa é, todavia, uma questão que não pode ser aqui apreciada, por não ser objeto de oposição ou recurso, havendo mecanismos, seja em sede executiva (ao nível de alteração da liquidação, por imputação de pagamento não anteriormente computado), seja em sede declarativa (no limite, com recurso ao instituto do enriquecimento sem causa) para tutelar a situação em apreço. –
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Não colhendo este fundamento, não colhe igualmente, de forma evidente, a invocação de uma situação de usura.
Sustenta a embargante que o cômputo de juros contratuais, acrescida da sobretaxa contratual a acrescer mais 20% determinará eventualmente, uma taxa superior a 30% de juros a vencerem-se sobre o capital em divida, o que integraria o conceito de usura.
Na medida que a embargante solicita também excesso da cláusula penal computada, traduzindo esta um adicional computado tendo por referência os juros cobrados, ou, em termos simples, juros adicionais de 20%, deve entender-se que este argumento não goza de autonomia face a tal invocação.
Será, por isso, em sede de decisão relativa ao excesso da cláusula penal que a análise deve ser feita. –
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Sustenta, portanto, a recorrente que a cláusula penal é excessiva.
É indisputada a natureza da clausula acionada, i.e., que se trata, no caso, de uma fixação consensual da indemnização devida pelo incumprimento contratual, vulgarmente designada por cláusula penal indemnizatória.
O conteúdo da cláusula estipula um acréscimo equivalente a 20% dos juros máximos devidos sobre o montante em dívida.
Para análise da proporcionalidade desta cláusula deve começar-se por considerar o tipo contratual em causa.
O nomen juris em português é, para este efeito, mais expressivo que a designação internacionalmente divulgada de leasing, que limita o conteúdo a figura ao quadro locatício.
A natureza financeira do contrato é estrutural.
Trata-se de um produto comercial desse tipo, traduzindo uma função primacial de instrumento oneroso contratado por instituição comercial cuja atividade é a concessão de crédito a particulares e empresas.
A sua dimensão locatícia é também conatural neste tipo, com esta referência se pretendendo relevar que implica também a cedência onerosa de gozo de um bem, que se mantém na esfera do proprietário locador até ao termo do contrato, com uma opção (hoc sensu) de aquisição pelo seu usuário, a final.
Esta referência esquemática permite pôr em relevo que, neste tipo contratual, a existência de juros convencionais traduz a retribuição natural pela cedência de capital e, por outro lado, ainda que o contrato tenha uma natureza essencial de instrumento financeiro e, portanto, a sua onerosidade esteja sobretudo ligada à retribuição de capital e não à cedência de gozo de um bem (a aquisição do bem é, neste contrato, instrumental da aplicação do capital pelo locador), não deixa de ser certo que, mantendo-se o objeto contratual na esfera jurídica da instituição financeira, traduzirá uma normal execução do contrato que a transferência de propriedade não se venha a concretizar, a final.
Quer isto dizer, em termos simples, que é algo de natural neste tipo contratual que o locatário suporte prestações de capital e juros e, a final, não venha a ser proprietário do bem locado.
A perda do capital e seus acréscimos e do próprio bem objeto do contrato não pode, assim, ser considerada uma situação contratualmente anómala.
Esta primeira asserção é relevante para começar a enquadrar a invocada desproporção da cláusula penal.
Em termos de factualidade assente, face à supra decidida subsistência da resolução contratual, a embargante ficará privada do bem objeto do contrato e, nos termos liquidados, estaria obrigada a suportar as prestações devidas até cessação do contrato, acrescida de sobretaxa contratual e de uma cláusula penal equivalente a 20% dos juros devidos.
Será esta indemnização estabelecida a forfait excessiva?
Várias considerações se impõem, avançando na análise.
Em primeiro lugar, esta natureza estabelecimento prévio da indemnização contratual é um elemento que depõe a favor da validade da pena contratual.
Disse-se sinteticamente em acórdão do STJ de 18/11/2007 (Oliveira Rocha - https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/07b3572-2007-89280875) que a redução da cláusula penal só deve efectuar-se em casos excepcionais, o que está de harmonia com o seu valor coercivo, bem como com o seu carácter “a forfait”, sendo que ela corresponde a um acordo firmado pelas partes, que, presumivelmente, não deixaram de ponderar as suas vantagens e os seus inconvenientes.
Num caso, como o dos autos, em que não está em causa a liberdade ou a vontade de qualquer dos contraentes, esta dimensão de autonomia privada não pode, pelo contrário, ser subvalorizada.
Não deixa, todavia, de dever ser igualmente assinalada a assimetria da posição dos contratantes, mesmo tratando-se de duas sociedades comerciais, entre uma instituição financeira e uma pequena ou média empresa do ramo das reparações navais.
A diferença na posição das partes e na sua capacidade negocial é algo que não pode também ser ignorado na decisão desta questão.
A matéria de ponderação da proporcionalidade de cláusulas penais insertas especificamente em contratos de locação financeira tem sido objeto de diverso tratamento jurisprudencial.
Mereceu já repetido acolhimento a posição que sustenta a desproporcionalidade de cláusulas indemnizatórias que imponham a obrigação de pagamento de rendas até final do contrato a acrescer à obrigação de restituição do bem locado.
Assim, designadamente, os acórdãos do STJ de 10/7/2012 (Serra Batista - dgsi.pt:
https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2012:1407.10.0TJPRT.P1.S1.AB?search=EdBucRSduT1W63_S3Q) e desta Relação de 7/3/2019 (António Valente – dgsi.pt:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/16a392acc72a1058802583c1003ed005?OpenDocument).
Desenvolvendo esta doutrina, ou introduzindo elementos adicionais de ponderação na mesma, outras decisões têm introduzido como fator a considerar a natureza do bem objeto do contrato de locação financeira.
Assim, em acórdão desta Relação de 20/2/2024 (Carlos Oliveira - http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3a0aff65db99fd7a80258ad80038f027?OpenDocument) foi admitida uma cláusula penal desse tipo (pagamento integral de rendas a acrescer à restituição do bem) num caso em que o objeto do contrato tem elevada obsolescência, i.e., que terá um valor real muito reduzido no momento do respetivo termo previsto.
Esta consideração da natureza do bem objeto do contrato torna-se operativa, enfatizando que, perante um modelo contratual aberto, terá que ser diversa a avaliação se se tratar de uma locação financeira de um bem imóvel (sobretudo relevando a pública e notória avaliação deste tipo de bens) ou de um móvel, seja este um veículo, um equipamento informático, ou outro, cuja desvalorização seja, em termos de normalidade social, acentuada.
Este tipo de consideração levou a que em situação de leasing imobiliário se tenha dito em acórdão do STJ de 4/7/2024 (Isabel Salgado - https://juris.stj.pt/15919%2F16.9TSLSB-B.L2.S1/sSGqjGPBQiGZ52mTTDMpyqDLLew?search=3JlWtLFsTVlAMra_89s) que na locação financeira imobiliária, por definição, objecto de investimento rentável dada a valorização do preço de mercado dos imóveis, ficam diluídos os danos advindos para o locador da resolução por incumprimento do locatário.
Chegando a este ponto de ponderação e seguindo as linhas acima referidas, algumas conclusões intercalares se podem estabelecer a propósito da avaliação da cláusula penal em apreço.
Assim:
a. Que o contrato em causa tem uma natureza primária de contrato financeiro;
b. Que deve ser relevada a liberdade contratual das partes, matizada pela assimetria da posição negocial da instituição financeira e da pequena ou média empresa;
c. Que uma cláusula penal que impusesse integral cumprimento do contrato e restituição do bem seria, tendencialmente, excessiva;
d. Que o objeto contratual deve ser considerado na avaliação do dano emergente para o locador;
e. Que se deve considerar facto notório que um objeto contratual relativo a bem imóvel, pela valorização que lhe é conatural na generalidade dos ciclos económicos, mitiga grandemente a existência de danos emergentes do contrato para o locador (que não lucros cessantes).
Avançando para uma análise mais direta para a cláusula em apreço, pode começar por dizer-se que se tornou, de algum modo, uma pena contratualmente típica, na medida em que previsões de idêntico teor passaram a ser inseridas repetidamente em contratos análogos.
Assim, foram merecendo tratamento doutrinal e jurisprudencial específico.
Pronunciou-se expressamente Pestana de Vasconcelos sobre cláusula de conteúdo muito próximo (Cláusulas penais em contratos de locação financeira, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 76, 2016, p. 66) dizendo que a cláusula penal que acabou por vir, em geral, com flutuações, a ser aceite foi aquela em que o locatário, para além de ter que pagar as prestações vencidas, terá ainda que pagar 20% das prestações vincendas e o valor residual.
No mesmo sentido decidiu o STJ, designadamente pelo acórdão, de 11/1/2024 (Catarina Serra, https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/96d374c05b254e1880258aa300586e32?OpenDocument)
Avançando para a decisão, não pode deixar de se relevar o carater casuístico da avaliação e, portanto, a consideração deste tipo de cláusulas contratualmente típicas não poder ser feito de modo meramente abstrato.
Deve acolher-se o que foi dito em acórdão da Relação do Porto de 20/2/24 (Rodrigues Pires - https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/14056-2024-877935575) que, para que a redução equitativa de cláusula penal ocorra, exige-se que seja apurado um carater manifestamente excessivo, ou seja que se mostre flagrantemente exagerada ou desproporcionada às finalidades que presidiram à sua estipulação e ao conteúdo do direito que se propõe realizar.
Esse cariz manifesto da desproporcionalidade pressupõe sempre a alegação e prova de factos donde decorra o seu manifesto excesso.
Colocando a análise a este nível, fica evidente que a embargante recorrente nada alegou de concreto que sustente a invocação.
Que valor se encontrava em mora nas prestações; qual o valor remanescente de capital à data de cessação; que valor de mercado atribui ao bem locado; que valor tinha à data do contrato; ou qualquer outro elemento que pudesse ser relevante, nada disso foi trazido aos autos e, portanto, não pode ser objeto de consideração.
Subsistem, assim, como meros elementos de análise, o próprio teor da cláusula e a consideração, genérica, de valorização do mercado imobiliário.
É este o ponto de análise em que se justifica introduzir o argumento de usura apresentado pela recorrente.
Como acima referido, a recorrente apresentou este argumento de forma conjunta, englobando, ou confundindo, usura e cláusula penal. Afinando a análise jurídica necessária, esta perspetiva não deixa de ter algum suporte legal.
Assim, diz o art.º 1146.º do CC, sob a epígrafe usura que é havido como usurário o contrato de mútuo em que sejam estipulados juros anuais que excedam os juros legais, acrescidos de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real (n.º1), sendo que é havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real (n.º 2).
No n.º 3 é expressamente estabelecida a sanção para essa usura - se a taxa de juros estipulada ou o montante da indemnização exceder o máximo fixado nos números precedentes, considera-se reduzido a esses máximos, ainda que seja outra a vontade dos contraentes.
Quer isto dizer, portanto, que relativamente a contratos de mútuo, o legislador estabeleceu um regime de aproximação, ou mesmo equivalência, entre a usura strictu sensu, ou aplicação de taxa usurária, e a cláusula penal excessiva, quando computada como acréscimo de juros.
Depondo no sentido do alargamento deste regime poderia convocar-se o disposto no art.º artigo 559.º-A que expressamente determina a aplicação do artigo 1146.º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou actos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos.
Repescando a referência anteriormente feita acerca da natureza estruturalmente financeira deste tipo contratual, tal conduz a comportar o contrato objeto destes autos nesse quadro amplo dos contratos de crédito e, por isso, na previsão deste preceito.
Assim sendo, ainda que o não seja em sentido próprio, a propriedade do imóvel pelo locador ao longo da execução contratual desempenhará uma função análoga a uma verdadeira garantia real, assegurando que a entidade locadora salvaguarde, pelo respetivo valor, o incumprimento da obrigação de restituição e remuneração do capital contratualmente alocado.
Neste quadro negocial, poderia considerar-se uma aplicação direta do disposto nos referidos preceitos, no que diz respeito à natureza creditícia do contrato, e uma aplicação analógica do mesmo, no que concerne à previsão de garantia real, o que permitiria, em tese, sustentar uma redução da cláusula penal ao seu máximo, equivalente a 7% sobre os juros legais aplicáveis a obrigações comerciais.
Seria, neste entendimento, tratada a locação financeira imobiliária como simples contrato de crédito com garantia real.
A tal opõe-se, todavia, a sua natureza de instrumento jurídico bancário.
Como se resumiu no acórdão desta Relação de 10/5/2007 (Carla Mendes - https://jurisprudencia.pt/acordao/80207/) a lei admite que os limites contemplados naquele artigo 1146.º do Código Civil sejam afastados tratando-se de operações de crédito celebradas por instituições de crédito ou parabancárias (artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de Novembro, alterado pelos Decretos-Leis n.º 83/86, de 6 de Maio e 204/87, de 16 de Maio em conjugação com o Aviso do Banco de Portugal 3/93).
No mesmo sentido, aludindo à liberalização das taxas de juro como fundamento para afastar os limites do art.º 1146.º do CC, designadamente, acórdão também desta Relação de 19/5/2020 (Carlos Oliveira, dgsi.pt:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/97003ef5b9b48d5980258574004ba051?OpenDocument).
Perante este quadro regulador, afastada a qualificação de usura que lhe poderia ser aplicável, caso o contrato não fosse bancário, fica também legalmente permitida a desproporção verificada que, por isso, não pode ser qualificada de grave ou ostensiva e, portanto, torna-se insuscetível de fundamentar uma respetiva redução equitativa.
O excesso não foi alegado nem demonstrado e o quadro legal abstratamente definido não estabelece uma situação usura proibida.
Por consequência, também este fundamento recursório soçobra.
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Em conclusão, a apelação improcede in totum devendo manter-se a decisão recorrida.
É o que se decide. –
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III. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com dispensa de taxa remanescente.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 10-04-2025
João Paulo Vasconcelos Raposo
Arlindo Crua
António Moreira