USO INDEVIDO DO PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
REJEIÇÃO PARCIAL DA EXECUÇÃO
Sumário

1 - O uso indevido do procedimento de injunção, desde que seja manifesto, é enquadrável no art.º 726º nº 2 al. a) do C.P.C., uma vez que tal uso afeta o título que se formou pela aposição da fórmula executória no requerimento de injunção.
2 - A exceção do uso indevido do procedimento de injunção, na medida em que pode traduzir-se em manifesta falta ou insuficiência do título, é de conhecimento oficioso no âmbito da execução, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados.
3 - A expressão “outras quantias devidas” referidas no art.º 10º nº 2 al. e) do Anexo ao DL 269/98, de 1 de setembro, não inclui a “indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida”.
4 - Apenas quanto a essa indemnização, o título formado pela aposição da fórmula executória no requerimento de injunção é inexequível, pelo que apenas quanto a essa parte pode ser rejeitada a execução.

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na ação executiva que NOS Comunicações, S.A. move contra BB, a exequente interpôs recurso da decisão proferida a 6 de novembro de 2024, pela qual foi rejeitada a execução “por verificação da exceção dilatória inominada do uso indevido do procedimento de injunção e consequente falta de título executivo”.
Na alegação de recurso, a recorrente pediu que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que admita o requerimento executivo e mande prosseguir os autos, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. Considerou o Tribunal a quo existir exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção, absolvendo o Apelado da instância.
2. Salvo, porém, o devido respeito, tal decisão carece de oportunidade e fundamento, sendo contrária à Lei.
3. Desde logo porque a lei não habilita o Tribunal a quo a conhecer oficiosamente de exceções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo;
4. Das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção;
5. Permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o artigo 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC.
6. A injunção constitui um meio adequado para o pagamento das despesas associadas à cobrança das faturas relativas à prestação dos serviços contratados pelo Apelado;
7. Dado que, à semelhança do que sucede com os juros de mora, também as despesas de cobrança resultam diretamente da falta de pagamento da obrigação pecuniária principal e, por conseguinte, constituem uma obrigação pecuniária em sentido estrito, isto é, diretamente emergente do contrato;
8. Sem prescindir, o entendimento de que as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina que a extinção total da instância, mas somente a recusa do requerimento injuntivo relativamente à parte que integra tais custos administrativos.
9. A sentença proferida pelo Tribunal a quo trata-se de um indeferimento liminar da petição inicial, o que legitima a apresentação do presente recurso.»
O executado não respondeu à alegação do recorrente.
É a seguinte a questão a decidir:
- da rejeição da execução.
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No despacho recorrido, foi tido em consideração que “o exequente veio dar à execução requerimento de injunção ao qual foi aposta força executiva por secretário de justiça, do qual consta peticionado o pagamento de valores correspondentes, além do mais, a indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida”.
No requerimento de injunção, pode ler-se:
«A Req.te (Rte), celebrou com o Req.do (Rdo) um contrato de prestação de bens e serviços telecomunicações a que foi atribuído o n.º … No âmbito do contrato, a Rte obrigou-  -se a prestar os bens e serviços solicitados pelo Rdo, e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas, a devolver com a cessação do contrato os equipamentos da Rte e a manter o contrato pelo período acordado, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento de cláusula penal convencionada para a rescisão antecipada do contrato. Das facturas emitidas, permanece(m) em dívida a(s) seguinte(s): €72.58 de 05/01/2020, €99.88 de 05/02/2020, €110.8 de 05/08/2020, €101.45 de 04/09/2020, €2.5 de 06/11/2020, vencidas, respectivamente, em 01/02/2020, 01/03/2020, 01/09/2020, 01/10/2020 e 01/12/2020. Enviada(s) ao Rdo logo após a data de emissão e apesar das diligências da Rte, não foi(ram) a(s) mesma(s) paga(s), constituindo-se o Rdo em mora e devedor de juros legais desde o seu vencimento. Mais, é o Rdo devedor à Rte de €100, a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida. Termos em que requer a condenação do Rdo a pagar a quantia peticionada e juros vincendos.»
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Nos termos do art.º 734º nº 1 do C.P.C., “o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo”.
O art.º 726º nº 2 do C.P.C., “o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando:
a) Seja manifesta a falta ou insuficiência do título;
b) Ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso;
c) Fundando-se a execução em título negocial, seja manifesta, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda de conhecimento oficioso;
d) Tratando-se de execução baseada em decisão arbitral, o litígio não pudesse ser cometido à decisão por árbitros, quer por estar submetido, por lei especial, exclusivamente, a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, quer por o direito controvertido não ter caráter patrimonial e não poder ser objeto de transação.”.
Foi a “verificação da exceção dilatória inominada do uso indevido do procedimento de injunção e consequente falta de título executivo” o fundamento invocado pelo tribunal recorrido para rejeitar a execução.
Nas conclusões recursivas, a recorrente afirmou que “das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção” e que “permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o artigo 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC”.
Conforme resulta do art.º 857º nº 1 do C.P.C. - na redação dada pela L 117/2019, de 13 de setembro, “se a execução se fundar em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, para além dos fundamentos previstos no artigo 729º, aplicados com as devidas adaptações, podem invocar-se nos embargos os meios de defesa que não devam considerar-se precludidos, nos termos do artigo 14º-A do regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª Instância, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de setembro, na sua redação atual”.
O referido art.º 14º-A, introduzido pela L 117/2019, dispõe o seguinte:
“1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 225º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) a alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) a alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) a invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente.”
As “exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso” a que alude o art.º 726º nº 2 al. b) do C.P.C. são aquelas que respeitam ao próprio processo executivo.
Assim, as exceções dilatórias de conhecimento oficioso respeitantes ao procedimento injuntivo, como é o caso do uso indevido do procedimento de injunção, não se enquadram no art.º 726º nº 2 al. b) do C.P.C.
No entanto, o uso indevido do procedimento de injunção, desde que seja manifesto, é enquadrável no art.º 726º nº 2 al. a) do C.P.C., uma vez que tal uso indevido afeta o título que se formou pela aposição da fórmula executória no requerimento de injunção.
Conforme resulta do art.º 7º do Anexo ao DL 269/98, de 1 de setembro, “considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de fevereiro”.
Nos termos do art.º 14º nº 3 do Anexo ao DL 269/98, “o secretário só pode recusar a aposição da fórmula executória quando o pedido não se ajuste ao montante ou finalidade do procedimento”.
A exequibilidade do título formado pela aposição da fórmula executória no requerimento de injunção está, pois, dependente de este requerimento se ajustar à finalidade do procedimento de injunção.
A exceção do uso indevido do procedimento de injunção, na medida em que pode traduzir-se em manifesta falta ou insuficiência do título, é de conhecimento oficioso no âmbito da execução, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados.
É esta a posição que tem vindo a ser seguida pela Jurisprudência (www.dgsi.pt Acórdão da Relação de Lisboa proferido a 11 de março de 2025, no processo 10584/24.2T8SNT.L1-8, em que a ora relatora foi 1ª adjunta).
Nas conclusões recursivas, a recorrente afirmou que, “à semelhança do que sucede com os juros de mora, também as despesas de cobrança resultam diretamente da falta de pagamento da obrigação pecuniária principal e, por conseguinte, constituem uma obrigação pecuniária em sentido estrito, isto é, diretamente emergente do contrato”.
Resulta do art.º 10º nº 2 al. e) do Anexo ao DL 269/98, que, “no requerimento, deve o requerente formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas”.
«Para Salvador da Costa, “tendo em conta que a causa de pedir no procedimento de injunção é o incumprimento contratual, as referidas quantias a que se reporta o normativo, hão-de resultar do que foi objecto do contrato em causa” …
Alguma jurisprudência tem tido idêntico entendimento, ou seja, “considerando que com o instituto de injunção se pretendeu que se pudesse obter, de forma célere e simplificada, um título executivo, tal só se evidenciava com inerente à celeridade de atribuição e força executória uma pretensão onde os quantitativos se tivessem, à partida, como líquidos…”» (Joel Timóteo Ramos Pereira, Revista Julgar, nº 18 - 2012, pág. 116).
A expressão “outras quantias devidas” referidas no art.º 10º nº 2 al. e) do Anexo ao DL 269/98 não inclui, pois, a “indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida” mencionada no requerimento de injunção.
Nas conclusões recursivas, a recorrente afirmou que “o entendimento de que as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina que a extinção total da instância, mas somente a recusa do requerimento injuntivo relativamente à parte que integra tais custos administrativos”.
Por força do art.º 726º nº 3 do C.P.C., “é admitido o indeferimento parcial, designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo ou aos sujeitos que careçam de legitimidade para figurar como exequentes ou executados”.
Apenas quanto à quantia de € 100,00 a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida, o título formado pela aposição da fórmula executória no requerimento de injunção é inexequível, pelo que apenas quanto a essa parte pode ser rejeitada a execução (Acórdão da Relação de Lisboa acima citado).
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, alterando a decisão recorrida, rejeitam a execução no que toca à quantia de € 100,00 a título de indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida e respetivos juros, ordenando o prosseguimento dos autos quanto ao mais.
Custas do recurso pela recorrente na proporção do respetivo decaimento.

Lisboa, 10 de abril de 2025
Maria do Céu Silva
Rui Oliveira
Ana Paula Olivença (vencida conforme declaração que segue)
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Por mim, é entendido (posição já adoptada Proc. Nº 17042/23.0T8SNT.L1 e 5566/24.7T8SNT.L1) que circunscrevendo-se o procedimento de injunção ao cumprimento de obrigações pecuniárias directamente  emergentes de contrato, não pode o mesmo ser utilizado quando se visa, para além do mais, a exigência de outra soma pecuniária proveniente de origem diversa, defendendo que o uso indevido do procedimento de injunção mesmo que a título  meramente parcial inquina todo o processo de injunção, afastando a apreciação do pedido para os quais o procedimento de injunção é adequado ou admissível.
Intentando-se a execução dando-se como título executivo injunção de onde resulte que abrange semelhantes quantias, há que se verificar exceção dilatória de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância, devendo-se indeferir liminarmente o requerimento executivo.
Neste mesmo sentido, de que «a injunção à qual foi aposta fórmula executória nestas circunstâncias está assim afetada de vício que constitui exceção dilatória inominada justificativa do indeferimento liminar da execução», ver, ainda, Ac. RP, de 08.11.2022, relatado por Alexandra Pelayo (in www.dgsi.pt).
Assim, manteria a decisão de 1ª instância.
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Ana Paula Olivença