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SEGURO DE VIDA
DECLARAÇÕES INEXACTAS
RISCO
Sumário
Na adesão a um contrato de seguro de vida, impendem sobre o segurado, pessoa com informação privilegiada, especiais deveres de informação, assentes no dever geral de boa-fé na formação dos contratos, não sendo legítima a omissão de situações de saúde que aumentam o risco de ocorrência do evento coberto e cujo conhecimento pela seguradora provavelmente levaria à não aceitação daquela adesão, pelo menos, com as exatas condições contratadas, nomeadamente de preço (prémio do seguro).
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
«A», autora na ação declarativa de condenação, com processo comum, que move a Ocidental – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A., notificada da sentença absolutória, proferida em 30/10/2024, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
Na presente ação, a autora pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 103.692,82 €, acrescida dos juros vincendos até integral pagamento.
Para tanto e em síntese, alega:
- ser única e universal herdeira de seu filho «B», falecido em …08/2020, no estado de solteiro;
- em …02/2020, o seu falecido filho tinha outorgado contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca pelo qual adquiriu a fração autónoma correspondente ao 3.º andar direito do prédio urbano sito em Bom Retiro, Rua …, da freguesia e concelho de Vila Franca de Xira;
- o Banco Comercial Português (BCP) havia-lhe concedido empréstimo de 103.500,00 € que se destinou ao pagamento parcial do preço;
- paralelamente, o referido Banco exigiu-lhe a celebração de um contrato de seguro de vida, associado ao referido empréstimo, cobrindo os riscos de morte e de invalidez total e permanente do segurado, pelo capital seguro de 103.500,00 € o qual foi contratado com a ré, corresponde-lhe a apólice n.º ...82;
- na qualidade de herdeira do segurado, a autora comunicou à ré o falecimento daquele, reclamando o acionamento do seguro, ou seja, o pagamento do capital seguro, o que a ré negou, procedendo à anulação do seguro, por o segurado não ter declarado doenças pré-existentes de que padecia e que teriam condicionado a aceitação do risco.
Citada, a ré contestou a ação, alegando que, aquando da contratação do seguro, o segurado omitiu várias doenças de que padecia, nomeadamente, infeção por VIH, e que eram circunstâncias essenciais para a aceitação da celebração dos seguros pela seguradora ré, ou, no mínimo, teriam importância decisiva nas condições de aceitação. Pugnou pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
O processo seguiu os regulares termos e, após audiência final, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido. A autora não se conformou e recorreu, concluindo:
«1º- A ineficácia do contrato de seguro por via da respetiva anulação, sendo facto impeditivo do direito invocado, constitui matéria de exceção cuja alegação e prova compete à ré seguradora;
2º- Para preenchimento do requisito do dolo na declaração do segurado é indispensável alegar e provar que este agiu com intenção ou consciência de induzir em erro a seguradora e que esta, se não tivesse sido induzida nesse erro, jamais aceitaria o contrato.
3º- Porém tudo o que a Ré alegou foi que o segurado deveria ter declarado exaustivamente a sua situação clínica e não o fez;
4º- E que se o tivesse feito a Ré não teria celebrado o contrato ou então tê-lo-ia celebrado com restrições ou em condições mais gravosas para o segurado;
5º- Vindo a provar-se que essa informação poderia ter condicionado a aceitação do risco e poderia ter levado à recusa do contrato, mas não se tendo provado que levaria forçosamente à recusa.
6º- Não foi alegado e consequentemente não foi provado que o segurado agiu com intenção ou consciência de induzir a R. em erro nem que esta, se não tivesse sido induzida em erro, jamais aceitaria o contrato.
7º- E mesmo se tal tivesse sido alegado dificilmente seria demonstrado tendo em conta a motivação de estrita defesa da intimidade que está por detrás dessa atitude do segurado, como revelam os autos.
8º- Pelo contrário, mostra-se fortemente indiciado que a motivação do segurado para omitir a sua situação clínica foi apenas a de ocultar e minimizar a sua doença para se livrar do preconceito social que a mesma ainda comporta, de mais a mais porque a contratação deste seguro de vida não constituía um objetivo autónomo ou dominante mas antes o cumprimento de uma condição imposta pelo Banco para lhe financiar a aquisição da casa, numa fase em que já se encontrava em progressiva recuperação imunitária.
9º- Tais omissões ou inexatidões têm de ser intencionais ou conscientes e dirigidas à criação de uma desconformidade entre a realidade e a representação dessa realidade pela contraparte (indução em erro da seguradora), sendo indispensável que tais circunstâncias se demonstrem inequivocamente, não podendo o julgador deduzi-las de outros factos que indiciariamente as sugiram, como sucedeu na sentença.
10º- Ora a Mmª Juiz concluiu pela existência de dolo na declaração do segurado com fundamento em meros indícios, mas não em provas e factos concludentes que pudessem sustentar tal conclusão e cuja demonstração competia à Ré.
11º- Foi assim violado o disposto no artigo 342º n.º 2 do Código Civil e por via disso foi feita errada aplicação do disposto no artigo 25º n.º 1 da Lei do Contrato de Seguro (DL 72/2008).
12º- Consequentemente deverá a douta sentença ser revogada e decretada a procedência total do pedido.» A seguradora recorrida pugnou pela improcedência da apelação, com as seguintes conclusões:
«1. A A. pede a revogação da decisão absolutória proferida em primeira instância, alegando que não é possível afirmar a existência de conduta dolosa por parte de «B», no momento da subscrição do seguro de vida em discussão nos presentes autos, quando omitiu o seu verdadeiro quadro clínico – não informou ser portador de infeção retroviral VIH1, nem nada informou quanto à existência de massa exuberante com menos de um mês de evolução, que se encontrava em investigação e veio posteriormente a ser diagnosticada como linfoma não Hodgkin. Ocorre que,
2. É inequívoco que a pessoa segura sonegou informação clínica, relevante para apreciação do risco contratual, à R. Seguradora.
3. Mais, atenta a gravidade, a seriedade do verdadeiro quadro clínico da pessoa segura, e o acompanhamento médico que tais patologias exigiam, o mesmo «B» não podia desconhecer a importância de declarar tal quadro no âmbito da celebração de um contrato de seguro de vida – tal resulta desde logo do senso comum que se espera do homem médio, mas ainda do próprio questionário clínico subscrito que expressamente questionava se o proponente se encontrava a ou tinha indicação para tratamento de doença infectocontagiosa.
4. Acresce que resultou provado que a pessoa segura expressamente declarou que havia respondido com verdade ao questionário, nada tendo omitido (o que se verificou ser falso), ficando consciente de que as declarações inexatas ou a omissão de factos, determinavam a nulidade do contrato de seguro.
5. Termos em que não poderia senão o Tribunal a quo concluir pela atuação dolosa de «B», até porque, nos termos do disposto no artigo 24.º do Regime Jurídico do Contrato de seguro, tal dolo não depende de uma qualquer intenção de, dessa forma, prejudicar o segurador ou obter reflexamente uma vantagem, bastando a intenção ou a consciência de que se está a prestar informação falsa ou a omitir informação relevante e de que, com essa atuação, se está a induzir em erro o declarante (dolo simples) – cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça datado de 19.09.2024, referente ao processo 3576/18.2T8CBR.C2.S1. Acresce que,
6. Resultou devidamente comprovado que, tivesse a R. Seguradora tido conhecimento das declarações omitidas por parte da pessoa segura não teria celebrado o contrato de seguro, termos em que não merece censura a sentença absolutória proferida em primeira instância pelo Tribunal a quo, mostrando-se esclarecedora e devidamente fundamentada, quer quanto à matéria de facto, quer quanto ao direito aplicável, razão pela qual não se justificará, salvo melhor opinião, a sua revogação por parte do Tribunal ad quem.
Mas ainda que assim não fosse, o que não se admite e apenas por dever de patrocínio se alega,
7. A conduta omissa negligente de «B» sempre determinaria a exclusão do sinistro participado ao abrigo do disposto no artigo 26.º, n.º 4 al. b) do Regime Jurídico do Contrato de Seguro. Com efeito,
8. Resultando inequivocamente provado que a R. Seguradora, tivesse sabido e conhecido da patologia pré-existente, não teria celebrado o presente contrato de seguro, sempre está aquela Ré desobrigada de cobrir o sinistro morte, entretanto ocorrido. Até porque,
9. Resulta provado nos presentes autos (facto n.º 14) que a causa de morte da pessoa segura de «B» decorreu, em grande medida, daquelas patologias omitidas: infeção retroviral por VIH1 e linfoma não Hodgkin, constando ali devidamente listadas no certificado de óbito.
10. Note-se que a infeção não controlada por citomegalovírus com duração de 29 semanas não pode ser dissociada do quadro de infeção retroviral por VIH1, nem do linfoma não Hodgkin de que padecia a pessoa segura.
11. Na verdade, é do conhecimento geral que a maioria da população adulta é portadora daquele vírus, em estado de latência ou com infeção assintomática, o qual pode, no entanto, causar complicações graves em doentes imunodeprimidos, como era o caso de e se veio a verificar em «B» – o mesmo é dizer que, não fosse o quadro de infeção por vírus de imunodeficiência humana, não teria a pessoa segura sofrido o trágico desfecho por conta da infeção por vírus CMV.
12. Termos em que, em todo e qualquer caso, e também por via das pretensas declarações omissas negligentes, sempre caberá ao Tribunal ad quem manter a decisão proferida em primeira instância, absolvendo a R. Seguradora de todos os pedidos contra si formulados.»
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito. Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se, devido às declarações inexatas do segurado, a seguradora está desobrigada de cobrir o sinistro. II. Fundamentação de facto
Mostram-se provados os seguintes factos:
1. Com data de ...01.2020, «B» subscreveu, na qualidade de segurado, uma proposta de adesão de seguro de vida-crédito habitação vida risco da R., com as coberturas morte e invalidez total e permanente, sendo tomador e beneficiário o Banco Comercial Português, S.A., pelo montante em dívida no empréstimo associado ao contrato referido em 3), bem como o segurado e os seus herdeiros legais em caso de morte do mesmo, pelo eventual remanescente, até ao limite do capital seguro de € 103.500,00, com início na data da escritura de aquisição, correspondente à apólice n.º …82.
2. Por escrito de …02.2020, autenticado na mesma data, «B» outorgou um contrato de compra e venda e de mútuo com hipoteca, mediante o qual adquiriu, pelo preço de € 115.000,00, a fração autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao terceiro andar direito, destinada a habitação, do prédio urbano sito em Bom Retiro, Rua …, freguesia e concelho de Vila Franca de Xira, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º … da mencionada freguesia.
3. No escrito anteriormente referido o BCP concedeu a «B» um empréstimo no montante de € 103.500,00 que se destinou ao pagamento parcial do preço, ficando o mesmo garantido por hipoteca sobre a dita fração.
4. Na proposta referida em 1) o segurado subscreveu a declaração, de entre o mais, de que “1. Tomei conhecimento das condições do contrato de seguro e foram-me prestados todos os esclarecimentos necessários e legalmente exigíveis, declarando ter recebido para este efeito os anexos a esta proposta: Documento de informação sobre o produto de seguros e Condições Gerais e Especiais. (…) 4. Toma conhecimento de que a apreciação e aceitação do risco proposto poderá ficar dependente da realização de Exames Médicos e/ou Exames Auxiliares de Diagnóstico, o que será transmitido ao Proponente/Pessoa Segura após a receção e análise da presente Proposta de Adesão nos serviços do Segurador e que as garantias do seguro de vida proposto só produzirão efeitos após a conclusão do referido processo de aceitação e com a emissão do Certificado de Seguro ou das Condições Particulares. A pessoa segura pode aceder aos dados médicos relativamente aos exames realizados.”
5. Na cláusula 6.ª, n.º 1, al. a), das condições gerais anexas ao escrito referido em 1), foi estipulado que “1. Não se consideram cobertos por este contrato os sinistros resultantes de: a) doença preexistente, considerando-se como tal toda a alteração involuntária do estado de saúde da Pessoa Segura, suscetível de constatação médica objetiva, e que tenha sido objeto de um diagnóstico ou que, com suficiente grau de evidência, se tenha revelado em data anterior à da adesão ao presente contrato ou à do aumento do capital seguro da cobertura, respeitando neste último caso a exclusão somente ao acréscimo de cobertura, salvo quando tenha havido comunicação formal ao Segurador, e aceitação por parte deste, nas condições que para o efeito tenham sido estabelecidas; (…)”. 6. Em anexo ao escrito referido em 1) foi preenchido um questionário médico subscrito também em 15.01.2020 por «B», no qual foi assinalado um x na resposta “Não” à pergunta “Recebeu algum conselho médico ou indicação para tratamento relacionado com doenças infectocontagiosas (como por exemplo: HIV Sida, Hepatite ou outras)?”.
7. No questionário anteriormente referido foi ainda feito constar que “Declaro que respondi ao questionário clínico com todo o rigor e verdade não tendo omitido qualquer facto relevante, pelo que das mesmas não consta qualquer inexatidão, designadamente por falta de diligência, cuidado ou atenção no preenchimento do questionário clínico. Tomo ainda conhecimento que o presente questionário faz parte integrante da proposta de adesão acima identificada e que as declarações inexatas ou reticentes ou a omissão de factos, tornam o pedido de adesão nulo e sem qualquer efeito, exonerando o Segurador da obrigação de pagamento de qualquer indemnização.” 8. Na data referida em 1) «B» tinha conhecimento de que havia sido rastreado positivo para uma infeção retroviral a VIH1 em ...07.2019, sendo seguido desde então em consulta de imunodepressão e tendo, entretanto, iniciado terapêutica, com recuperação imunitária progressiva.
9. Em ...01.2020 «B» recorreu a uma consulta extra por apresentar uma massa exuberante na região axilar esquerda, com menos de um mês de evolução.
10. Após realização de exames, em ...02.2020 foi diagnosticado a «B» um linfoma não Hodgkin, correspondendo a linfoma de Burkitt, estádio 1-B.
11. “B» iniciou então quimioterapia, tendo o processo se mostrado refratário a dois esquemas quimioterapêuticos efetuados.
12. Por causa de novo avanço do processo neoformativo, «B» veio a ser internado no Hospital de Santa Maria em ...08.2020, apresentando uma infeção CMV disseminada pulmonar e hepática, além do linfoma refratário.
13. Em …08.2020, durante o seu internamento hospitalar, «B» faleceu.
14. No certificado de óbito de «B» consta como causa da sua morte infeção por CMV disseminada não controlada, com a duração de 2 semanas, linfoma não Hodgkin – linfoma de Burkitt refratária a múltiplos esquemas terapêuticos, com duração de 6 meses, e infeção retroviral por VIH-1 controlada, com a duração de 2 anos.
15. A proposta de seguro referida em 1) foi automaticamente aceite pela R. por ter sido respondido negativamente a todas as questões de saúde constantes do questionário referido em 6).
16. Caso «B» tivesse respondido positivamente à questão referida em 6), teriam sido pedidos relatórios e elementos clínicos adicionais para parecer médico e análise do risco pela R., podendo o contrato de seguro ser recusado por esta face à curta duração do tratamento da doença.
17. Caso a R. tivesse conhecimento do referido em 9), os seus serviços teriam pelo menos aguardado pelos resultados dos exames para decidir da celebração ou não do contrato de seguro, sendo o mesmo recusado no caso do diagnóstico referido em 10).
18. Por escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 30.11.2020, a A. foi declarada única herdeira do seu filho «B», por o pai deste ter repudiado a sua herança, não tendo mais nenhum descendente para além daquele.
19. A A. comunicou à R. o falecimento do seu filho «B», reclamando o pagamento do capital seguro referido em 1).
20. Por carta de 15.03.2021 a R. comunicou à A. que declinava qualquer responsabilidade pelo pagamento do capital seguro da apólice e que procedia nessa data à anulação do contrato de seguro, por a pessoa segura não ter feito qualquer referência, no ato de subscrição do contrato, a qualquer tipo de doença pré-existente, tendo pelo contrário respondido em sentido negativo a todas as questões relacionadas com a existência de eventuais problemas de saúde, não tendo sido mencionadas as patologias pré-existentes aquando do preenchimento da proposta de adesão e respetivo questionário médico em 15.01.2020.
21. Na carta anteriormente referida acrescentou ainda a R. que da documentação clínica na sua posse verificava que existia um quadro clínico pré-existente que se tivesse sido declarado teria condicionado a aceitação do risco, bem como que as declarações inexatas, reticentes ou que omitissem qualquer fato, designadamente relativas a alguma doença pré-existente, isto é, ocorridas antes da data de entrada em vigor do contrato de seguro, e que por isso se encontravam excluídas do âmbito da cobertura de riscos, tornavam nulo o pedido de adesão ao contrato de seguro de vida em causa. III. Apreciação do mérito do recurso
Na génese do litígio está um contrato de seguro de grupo, ramo vida, celebrado entre a seguradora ré e o, entretanto falecido, filho da autora, ora apelante. Esse contrato de seguro era acessório de um contrato de mútuo celebrado entre o mencionado filho da autora, na qualidade de mutuário, e um banco mutuante. O propósito do contrato de seguro em causa nos autos era o de garantir o cumprimento das prestações do mutuário em caso de incapacidade permanente ou morte do mesmo. A prestação pecuniária da seguradora neste contrato de seguro era ab initio incerta, quer na sua concretização, quer no seu montante, pois ela dependia de um acontecimento futuro e incerto – a ocorrência de incapacidade ou morte do segurado durante a vida do contrato de mútuo –, e, verificando-se essa ocorrência, o valor a desembolsar pela seguradora corresponderia ao que, no momento relevante, estivesse em dívida no contrato de mútuo.
O contrato de seguro dos autos reconduz-se ao amplo tipo do contrato de seguro, pelo qual, tipicamente, «o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente» (artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL 72/2008, de 16 de abril, alterado por vários diplomas, de ora em diante, RJCS).
Os contratos de seguro inscrevem-se na categoria (em Portugal, meramente doutrinária) dos contratos aleatórios e, dentro desta, nos de garantia. Os contratos aleatórios têm em comum serem contratos onerosos nos quais, no momento da sua celebração, a existência e/ou a extensão da prestação de uma ou de ambas as partes está, por estipulação contratual, dependente de um facto incerto quanto à sua verificação (incertus an) ou quanto ao momento dessa verificação (incertus quando), o que gera incerteza sobre o resultado económico do contrato, para ambas as partes. Nos contratos aleatórios, como o dos autos, a incerteza relativamente ao resultado económico do contrato e o eventual desequilíbrio final entre as prestações, são algo perspetivado ab initio na estrutura do contrato, uma álea intrínseca, necessária, que afeta a existência ou a extensão da prestação. Nas palavras de Carlos Ferreira de Almeida são contratos «em que o risco, previsto no próprio contrato é elemento desse contrato, constitui uma finalidade meta-jurídica, fundamental e global do contrato», em que «a prestação (ou sujeição) de uma das partes, as circunstâncias dessa prestação ou a seleção da parte sobre quem recairá a obrigação dependem de um evento futuro e incerto»; logo acrescenta que se definem «pelo caráter eventual da prestação característica ou da prestação única» (Carlos Ferreira de Almeida, Contratos,III, Contratos de liberalidade, de cooperação e de risco, Almedina, 2012, pp. 150-151).
Os contratos aleatórios subdividem-se em aleatórios puros e de garantia. Os primeiros são contratos de jogo e aposta, em que o risco é gerado pelo próprio contrato, sendo o objetivo deste a criação do risco. Os contratos de garantia, pelo contrário, têm por finalidade a cobertura de um risco preexistente – minimizar os efeitos nefastos da ocorrência do evento incerto, já possível aquando da celebração do contrato.
Não se confunda o risco preexistente, exterior ao contrato aleatório de garantia, e que este visa cobrir, com a álea própria do contrato aleatório, essencial e intrínseca, consistente no facto de a prestação ficar dependente do facto incerto, coincidente com a materialização daquele risco (sobre a distinção entre estes dois tipos de risco, Margarida Lima Rego, Contrato de seguro e terceiros:estudo de direito civil, Coimbra Editora, 2010, maxime pp. 145-53). Nos contratos aleatórios de garantia, ambos os referidos tipos de risco coexistem.
Outra distinção a fazer é a que aparta álea essencial e intrínseca própria dos contratos aleatórios e risco contratual normal, inerente aos contratos em geral, sobretudo aos não instantâneos: o risco de que a prestação da parte contrária não venha a ser satisfeita do modo esperado (mora, cumprimento defeituoso, incumprimento, impossibilidade), ou de que, por alteração das circunstâncias económicas ou financeiras, se torne menos vantajosa que o previsto aquando da contratação, ou de que a sua própria prestação se torne mais onerosa.
Sendo a função económico-social dos contratos de seguro (e dos de garantia, em geral), não a criação de um risco pelo prazer do jogo, mas antes a de acautelar a ocorrência de um evento aleatório e minorar as suas consequências nefastas, da economia do contrato de seguro faz parte a tentativa de equilíbrio das prestações através da diminuição da exposição a esse risco, externo ao contrato. Concretizando com os dados do caso: a função do contrato de seguro de vida dos autos era a de garantir ao banco mutuante (beneficiário principal do contrato de seguro) que o evento aleatório constituído pelaincapacidade permanente ou pelo óbito do mutuário durante a vida do contrato de mútuo não iria afetar a prestação contratual a que o mutuário estava obrigado perante o mutuante. Logo, faz parte da natureza daquele contrato de seguro que a parte mais exposta ao risco tente avaliá-lo e excluir do contrato as situações em que a ocorrência do evento aleatório (que, lembramos, no caso, era incapacidade permanente ou pelo óbito do mutuário durante a vida do contrato de mútuo) é elevadamente provável. Para efetuar essa avaliação – que, no final das contas, permite a oferta de seguros com preços módicos –, a seguradora carece de dados que apenas o segurado lhe pode fornecer, seja por ter deles conhecimento, seja pela sua submissão a determinados exames.
Por isso, no contrato de seguro de vida, impendem sobre o segurado, parte com informação privilegiada, especiais deveres de informação, assentes no dever geral de boa-fé na formação dos contratos (artigo 227.º) não sendo legítima a omissão de situações de saúde que aumentam o risco de ocorrência do evento coberto e cujo conhecimento levaria à não celebração do contrato pela seguradora, com as exatas condições contratadas, nomeadamente de preço (prémio do seguro).
O RJCS destina algumas normas aos deveres de informação do tomador do seguro ou do segurado. Lê-se no n.º 1 do artigo 24.º do RJSC que «o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador». Por vezes o tomador do seguro – pessoa que celebra o contrato e se obriga a pagar o prémio de seguro – não coincide com o segurado, sujeito do risco coberto pelo seguro. Normalmente o tomador do seguro coincide com o segurado, mas não é necessariamente assim e, no caso dos autos, não era. Nos seguros de grupo acontece a dissociação entre tomador (no contrato-quadro de seguro) e segurado. Prevendo que o segurado possa não ser tomador, mas terceiro face ao contrato de seguro, a lei expressa que as obrigações de informação recaem sobre o tomador ou o segurado. No caso dos autos, tratava-se de um seguro de grupo contributivo em que o tomador e beneficiário (o banco) repercutia sobre o segurado o valor do prémio.
O segurado estava, portanto, obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conhecia e que razoavelmente devia ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. E assim era mesmo que essas circunstância não tivessem sido solicitadas no questionário que lhe feito quando aderiu ao seguro. Com efeito, o n.º 2 do artigo 24.º do RJCS explicita que o disposto no número anterior – a obrigação de declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador – é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.
No caso dos autos, a seguradora submeteu ao segurado questionário no qual expressamente perguntava se tinha recebido algum conselho médico ou indicação para tratamento relacionado com doenças infectocontagiosas (como por exemplo: HIV Sida, Hepatite ou outras), pergunta à qual o segurado respondeu com a mentira, “Não” (facto 6)
Aquando da adesão ao contrato de seguro, o segurado sabia que tinha sido rastreado positivo para uma infeção retroviral a VIH1, cerca de seis meses antes, sendo seguido desde então em consulta de imunodepressão e tendo, entretanto, iniciado terapêutica, com recuperação imunitária progressiva (facto 8). Ainda antes da adesão ao seguro, o segurado recorreu a uma consulta extra por apresentar uma massa exuberante na região axilar esquerda, com menos de um mês de evolução (facto 9), vindo a ser diagnosticado, em 5 de fevereiro, com um linfoma não Hodgkin, correspondendo a linfoma de Burkitt, estádio 1-B (facto 10).
O segurado veio a falecer meses depois da contratação do seguro por «infeção por CMV disseminada não controlada, com a duração de 2 semanas, linfoma não Hodgkin – linfoma de Burkitt refratária a múltiplos esquemas terapêuticos, com duração de 6 meses, e infeção retroviral por VIH-1 controlada, com a duração de 2 anos» (facto 14, certificado de óbito).
O segurado não só tinha conhecimento da sua condição física nos termos acima narrados, como não podia deixar de saber – como qualquer adulto na posse de plena capacidade jurídica – que essa condição, se revelada à seguradora, conduziria provavelmente à recusa da sua adesão. Inclusivamente, o segurado subscreveu declaração na qual, mais uma vez mentindo, declarou ter respondido ao questionário clínico com todo o rigor e verdade não tendo omitido qualquer facto relevante, pelo que das suas respostas não constaria qualquer inexatidão, designadamente por falta de diligência, cuidado ou atenção no preenchimento do questionário clínico (facto 7). Mais constava dessa declaração ter consciência de que o mesmo questionário era parte integrante da proposta de adesão e que as declarações inexatas ou reticentes ou a omissão de factos tornariam o pedido de adesão nulo e sem qualquer efeito, exonerando a seguradora da obrigação de pagamento de qualquer indemnização (facto 7).
Impõe-se concluir que o segurado quis falsear a sua situação clínica (negando expressamente o HIV de que se sabia portador), sabendo que com essa autuação a seguradora iria contratar em erro sobre a situação clínica do autor, e conformou-se com a indução desse erro. Tanto é quanto basta para que se verifique dolo no incumprimento do dever de declarações exatas, na dupla vertente de «de dolo enquanto vício da formação da voluntas e dolo enquanto forma de culpa», como exigido por parte da doutrina (Mafalda Miranda Barbosa, «Causalidade no universo dos seguros: o não cumprimento da declaração inicial de risco e o seu regime», Revista de Direito Comercial, 15/01/2028, maxime pp. 50-53, www.revistadedireitocomercial.com) e da jurisprudência (Ac. STJ de 19/09/2024, proc. 3576/18.2T8CBR.C2.S1, www.dgsi.pt).
Nos termos do disposto no artigo 25.º do RJCS, em caso de incumprimento doloso do dever de declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro (n.º 1); ou, ocorrendo o sinistro antes de o segurador ter conhecimento das declarações inexatas, o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro, seguindo-se o regime geral da anulabilidade (n.º 3).
Foi o que sucedeu. Ocorrido o sinistro, no caso a morte do segurado, a seguradora ré não acedeu em pagar o capital ainda em dívida ao banco mutuante, invocando declarações inexatas, nomeadamente reticentes, do filho da autora aquando da adesão ao seguro, sobre elementos determinantes para a avaliação do risco.
Bem andou o tribunal a quo em julgar a ação improcedente, absolvendo a ré do respetivo pedido.
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, confirmando a sentença objeto de recurso.
Custas pela apelante.
Lisboa, 10/04/2025
Higina Castelo
Susana Maria Mesquita Gonçalves
António Moreira