FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB-ROGAÇÃO
COMPRA E VENDA DE VEÍCULO
REGISTO AUTOMÓVEL
Sumário

I. A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel.
II. Satisfeita a indemnização, o FGA fica sub-rogado nos direitos do lesado (tendo, ainda, direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso).
III. O detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente são solidariamente responsáveis pelo pagamento ao FGA, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro.
IV. O contrato de compra e venda de um automóvel é consensual, completa-se e produz os efeitos típicos da compra e venda por mero efeito das declarações contratuais, não carecendo para tanto do registo em nome do novo proprietário.
V. O registo de propriedade automóvel é obrigatório, mas não é constitutivo do direito de propriedade, nem do ato de transmissão deste, limitando-se a conferir uma presunção ilidível do direito registado.
VI. Tendo-se provado que o 2.º réu vendeu e entregou ao 1.º réu o veículo causador do acidente, semanas antes da ocorrência, e que o 1.º réu o comprou, recebeu e passou a usar, o 2.º réu, apesar de na data do acidente ainda se encontrar registado como proprietário, não o era, nem como tal é responsável pelo pagamento ao FGA acima aludido.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
Fundo de Garantia Automóvel, autor na presente ação declarativa de condenação, com processo comum, que intentou contra «B»,  NIF …, residente em Famões, e «C», NIF …, residente na Ramada, notificado da sentença absolutória e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
Na petição, o autor pediu a condenação dos réus no pagamento de 13.090,39€, acrescidos de juros vincendos sobre 11.953,35 € (montante relativo a indemnizações a terceiros lesados em acidente de viação em que o veículo de matrícula …SS foi interveniente, sem que fosse objeto de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, bem como custos de gestão e com o processo de averiguações)[1], e, ainda, do valor das despesas que venha a suportar com o valor em dívida, a liquidar em sede de execução.
Para tanto, alegou que o primeiro réu foi responsável pelo acidente de viação ocorrido, por força de imprudência e falta de atenção, mais alegando que aquele infringiu as normas do Código da Estrada, tendo causado danos em veículos de terceiros. Alegou ter procedido ao pagamento do valor necessário à reparação daqueles danos uma vez que o réu não tinha, à data, contratado seguro de responsabilidade civil automóvel. Mais alegou que o 2.º réu era, na mesma data, proprietário do veículo automóvel conduzido pelo 1.º réu, motivo pelo qual também responde pelos danos.
Regularmente citado, o primeiro réu não contestou nem constituiu mandatário.
O segundo réu contestou a ação, alegando que, à data dos factos, o veículo automóvel registado em seu nome havia sido vendido ao 1.º réu, o qual não procedeu ao registo da aquisição. Assim, rejeita responsabilidade no acidente de viação ocorrido e pugna pela absolvição dos pedidos.
O processo seguiu os regulares termos e, após audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, por não provada, e absolveu os réus dos pedidos.
O autor, FGA, não se conformou e recorreu, concluindo:
«1 – O tribunal entendeu como provado que o segundo Réu vendeu ao primeiro Réu o veículo …SS (factos provados 1 a 4), e simultaneamente deu como não assente que o preço foi pago (fato não assente B).
2 – Entende o Recorrente que se o preço não foi pago, o negócio de compra e venda não produziu o efeito da transferência da propriedade, sob pena de estarmos perante uma compra e venda gratuita ou uma doação atípica.
3 – A declaração de compra e venda junta pelo segundo Réu foi impugnada pelo Autor e está apenas preenchida nos campos “1” e “8”, sendo que o campo “A preencher pelos serviços competentes” encontra-se totalmente em branco, inexistindo sequer um carimbo de entrada num serviço do registo automóvel.
4 – Para concluir pela venda, o tribunal recorrido baseou-se também no depoimento de parte do primeiro Réu, mas que depois não considerou para outras consequências, olvidando que o proprietário tem a obrigação legal de contratar um seguro automóvel e que existem consequências legais para o incumprimento dessa obrigação.
5 – O Autor peticionou a condenação do segundo Réu na qualidade de proprietário registado do veículo (artigos 24.º e 26.º da petição inicial e documento n.º 4 junto), confiando na informação registal e desconhecendo em absoluto os contornos da estória que o primeiro Réu foi contar na audiência de julgamento.
6 – Se a compra e venda não se concretizou, o primeiro e o segundo Réus, na qualidade de detentor e de proprietário, respetivamente, teriam de ser condenados solidariamente a reembolsar o Autor, nos termos do artigo 54.º, nº 3, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, que contém o Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, doravante SORCA.
7- Contrariamente, entendendo como entendeu o tribunal recorrida que o primeiro Réu comprou o veículo ao segundo Réu, teria então o primeiro Réu de ser condenado na qualidade de proprietário, nos termos do mesmo preceito legal.
8 – O Recorrente não se pode conformar com a completa desresponsabilização dos Réus, como se a obrigação de contratar um seguro automóvel não tivesse consagração legal e o seu incumprimento consequências, estando em causa nos autos um veículo que foi comprado, mas não foi vendido, ou que foi vendido sem ter sido comprado, qual res nullius móvel omisso no trato sucessivo do registo!
9 - A intervenção do Autor, indemnizando os lesados, determina a responsabilidade solidária do detentor, do proprietário e do condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro, nos termos do artigo 54.º, n.º 3, do SORCA.
10 - Este entendimento encontra respaldo também nas Diretivas da União Europeia que versam sobre a obrigação de celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel. Diretiva n.º 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972 e Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983.
11 - O que releva é a circunstância de o Recorrente ter sido chamado a regularizar um sinistro, enquanto organismo indemnizatório com um posição meramente subsidiária e de garante das vítimas, sendo que o seu direito de reembolso nasce da preterição da obrigação de seguro, sendo indiferente o preenchimento dos pressupostos de responsabilidade civil.
12 – A adoção de entendimento diverso redunda na preclusão, ou significativa diminuição, do exercício desse direito, prevendo a Lei que se prescinda, relativamente a estas pessoas, da verificação, face a elas, dos pressupostos da responsabilidade civil, por factos ilícitos, ou pelo risco.
13 - As pessoas responsabilizadas no artigo 54.º n.º 1 e 3 do sobredito diploma legal nenhuma relação têm, objetiva ou subjetiva, com a eclosão do sinistro, mas apenas se relacionam com o incumprimento da obrigação de segurar e, ainda assim, são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento ao FGA porque a sua conduta, por ação ou omissão, veio a provocar a intervenção indemnizatória do Fundo.
14 - Importa referir que o SORCA tem a mesma dignidade hierárquica do Código Civil, estando em causa dois diplomas materializados em decreto-lei, sendo o SORCA mais específico sobre a matéria de que tratamos, que têm necessariamente de ser articulada e atualizada com a legislação europeia em matéria de seguro automóvel, e é bastante mais recente que o Código Civil.
15 - Poderá argumentar-se que os artigos do diploma de 1965 não foram revogados pelo SORCA, neste particular, mas porventura não tinham de o ser, estando em causa matérias de natureza diversa.
16 – Atente-se por último ao Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 04 de setembro de 2018, proferido na sequência de um pedido de reenvio prejudicial apresentado pelo Supremo Tribunal de Justiça da República Portuguesa, do qual nos permitimos transcrever a seguinte passagem:
“(…) Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara: (…)
O artigo 1.º,n.º 4, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma legislação nacional que prevê que o organismo referido nesta disposição tem direito de regresso não só contra o responsável ou responsáveis pelo sinistro mas também contra a pessoa que estava sujeita à obrigação de contratar um seguro de responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo que causou os danos indemnizados por este organismo, mas não tinha celebrado um contrato para esse efeito, mesmo que essa pessoa não seja civilmente responsável pelo acidente no âmbito do qual esses danos ocorreram.” (sublinhado nosso).
17 - Face a tudo quanto se expôs, o Recorrente não se conforma e requer que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com todas as legais consequências.»
O 2.º réu pugnou pela improcedência da apelação, com as seguintes conclusões:
«a) O Recorrente apresenta apenas o argumento que não tendo sido pago o preço, o negócio de compra e venda não produziu o efeito da transferência da propriedade, pelo que a propriedade permaneceu na esfera jurídica do Segundo Réu.
b) Ignora o Recorrente, que o Primeiro Réu em sede de audiência de julgamento, confessou que o veículo lhe foi entregue, lhe foram entregues as chaves e os documentos e ele utilizou o veículo no seu interesse.
c) O Tribunal “a quo” fez uma correta apreciação das provas que lhe foram apresentadas, considerando provado que “1. Em agosto de 2018 o 1.º e o 2.º réu acordaram que, em troca de valor monetário não concretamente apurado, o 2.º réu entregaria o veículo Mercedes de matrícula …SS ao 1.º réu.
2.Em face disso, o 2.º réu entregou o veículo ao 1.º réu «B», tendo-lhe entregue igualmente a documentação do veículo e a declaração de venda por ambos assinada.
3. «B» fez seu o veículo automóvel, a documentação e declaração de venda.
4. A partir daquela data o 1.º R. passou a circular com o veículo automóvel.”
d) Em síntese o Primeiro Ré, é o proprietário do veículo automóvel.
e) Se o primeiro R. não pagou o veículo, esse facto coloca-o numa posição de devedor em relação ao segundo, mas não deixa de ser titular do veículo automóvel.
f) Nesse sentido de pronúncia unanimemente a jurisprudência, tendo sido citada na sentença os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa (de 08-02-2007, proc. n.º 349/2007), e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (de 17/06/2021, proc. n.º 941/17.6T8PVZ.P1), a cuja argumentação deste já se adere.
g) Tratando-se de um bem móvel, como bem salientam os citados acórdãos, o contrato de compra e venda torna-se perfeito com a emissão das respetivas declarações negociais, uma de compra e outra de venda.
h) Não sendo o segundo R. o proprietário do veículo ocorre a impossibilidade objetiva da sua condenação, tendo o Tribunal “a quo”, proferido a sentença, de acordo com os elementos que tinha na sua posse e de acordo com o depoimento das testemunhas, que possibilitaram uma correta decisão da causa.
i) Louva-se, o Recorrido, nos termos da douta sentença, entendendo, consequentemente que deve ser negado provimento ao recurso assim se fazendo a devida e esperada JUSTIÇA!»
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, a questão que se coloca é a de saber se o autor tem o direito de exigir dos réus (ou de algum deles) os valores das indemnizações pagas aos lesados e compensação pelos custos processuais (gestão e averiguações) em que incorreu.
II. Fundamentação de facto
Mostram-se provados os seguintes factos:
1. Em agosto de 2018, o 1.º e o 2.º réus acordaram que, em troca de valor monetário não concretamente apurado, o 2.º réu entregaria o veículo Mercedes de matrícula …SS ao 1.º réu.
2. Em face disso, o 2.º réu entregou o veículo ao 1.º réu «B», tendo-lhe entregue igualmente a documentação do veículo e a declaração de venda por ambos assinada.
3. «B» seu o veículo automóvel, a documentação e declaração de venda.
4. A partir daquela data, o 1.º R. passou a circular com o veículo automóvel.
5. No dia 17 de setembro de 2018, pelas 17H20, circulavam na Rua da Liberdade, perto do entroncamento desta via com a Avenida São Sebastião, na Pontinha, concelho de Odivelas, dois ligeiros de passageiros, um Peugeot com a matrícula …75 e um Mercedes de matrícula …SS, e um pesado de mercadorias, Mercedes, com a matrícula …VE.
6. O Peugeot, registado em nome de «E», era conduzido por «F».
7. O veículo Mercedes de matrícula …SS encontrava-se registado em nome do segundo réu.
8. O pesado de mercadorias, estava registado em nome de “Transportes Rodoviários …, Lda.”, e era conduzido por «D».
9. O veículo de matrícula …SS seguia na Rua da Liberdade, sentido Vale Pequeno-Pontinha, quando, ao descrever a curva que a via apresenta perto do entroncamento com a Avenida São Sebastião, invadiu a faixa de rodagem de sentido contrário, e foi embater na parte lateral traseira esquerda do Peugeot …75, que circulava na mesma via no sentido oposto.
10. Com o embate, o Peugeot foi projetado para a faixa de rodagem contrária, indo embater de frente com o pesado de mercadorias que ali passava, após o que se imobilizou.
11. Após o embate, o condutor do veículo …SS prosseguiu a marcha e ausentou-se para parte incerta.
12. A via era, e é, constituída por duas faixas de rodagem, paralelas entre si, com sentidos de trânsito opostos, delimitadas por traço contínuo.
13. Por força da colisão o condutor do Peugeot sofreu dores que determinaram a sua ida ao Hospital Beatriz Ângelo, onde foi observado no serviço de urgências, tendo sido emitida fatura pela assistência hospitalar, no valor de 85,91 €.
14. Por força do embate, o veículo Peugeot …75 ficou com a porta traseira esquerda amolgada e, bem assim, o guarda-lamas traseiro do lado esquerdo amolgado, o pneu traseiro esquerdo rebentado, toda a dianteira e capot amolgados, sendo que a sua reparação foi orçamentada em 7.515,92 €.
15. O valor venal do veículo Peugeot …75 era, nessa data, de 5.923,00 €.
16. O salvado do veículo Peugeot …75 foi avaliado em 1.335,00 €.
17. Na sequência do embate, o veículo Mercedes …VE ficou com para-choques, guarda-lamas e farol, do lado esquerdo, amolgados e riscados; a sua reparação foi estimada em 6.189,20€.
18. O Fundo de Garantia Automóvel procedeu ao pagamento da fatura hospitalar pelo valor de 85,91€.
19. O Fundo de Garantia Automóvel procedeu ao pagamento à proprietária do veículo Peugeot da quantia de 4.588,00 €, correspondente ao valor venal daquele veículo descontado do valor pelo qual foi avaliado o salvado, que ficou na posse da mesma.
20. Pela reparação do pesado de mercadorias, o autor pagou à oficina “Auto … – Oficina de Reparações Automóveis, Lda.” o montante de 6.189,20€.
21. O autor pagou, ainda, à proprietária do veículo pesado o valor de 826,32 €, correspondente a quatro dias de paralisação, à razão de 206,58 € diários, nos termos do acordo celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguros e a ANTRAM para o período compreendido entre 1 de março de 2018 e 28 de fevereiro de 2019.
22. O autor incorreu no pagamento de despesas de gestão, a saber, com o processo de averiguações despendeu o valor de 127,92 €; pelos processos de peritagem dos dois veículos lesados despendeu os montantes de 65,19 € e de 57,81 €; pela participação de acidente de viação pagou o valor de 13,00 € à PSP.
23. À data dos factos, o veículo Mercedes de matrícula …SS não se encontrava coberto pelo seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório.
*
Foram julgados não provados os seguintes factos:
A. O primeiro Réu conduzia o Mercedes de matrícula …SS.
B. O primeiro réu pagou o preço acordado pela aquisição do veículo …SS ao 2.º réu.
C. Os réus foram interpelados para proceder ao pagamento do valor em dívida.
III. Apreciação do mérito do recurso
A matéria de facto é clara e não foi impugnada. Resumindo e atendo-nos ao essencial: em 17/09/2018, na Rua da Liberdade, na Pontinha, o veículo de marca Mercedes, matrícula …SS, não abrangido por contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, interveio num acidente com culpa do seu condutor (que abandonou o local sem se dar a conhecer e cuja identidade não se apurou); o citado Mercedes embateu no Peugeot …75, que foi projetado para a faixa de rodagem contrária, indo embater de frente com o pesado de mercadorias Mercedes …VE, que ali passava; por força do acidente, o condutor do Peugeot sofreu dores que determinaram a sua ida ao Hospital Beatriz Ângelo, onde foi observado no serviço de urgências, tendo sido emitida fatura, pela assistência hospitalar, no valor de 85,91 €, que o FGA pagou; o veículo Peugeot …75 ficou com a porta traseira esquerda amolgada e, bem assim, o guarda-lamas traseiro do lado esquerdo amolgado, o pneu traseiro esquerdo rebentado, toda a dianteira e capot amolgados, sendo que a sua reparação foi orçamentada em 7.515,92 €; o  valor venal do mesmo Peugeot era, nessa data, de 5.923,00 €, e o salvado foi avaliado em 1.335,00 €, tendo o FGA pago à proprietária do Peugeot a quantia de 4.588,00 €; o veículo Mercedes …VE, por seu turno, ficou com o para-choques, guarda-lamas e farol, do lado esquerdo, amolgados e riscados, tendo a sua reparação importado em 6.189,20 €, que o FGA pagou; o FGA pagou, ainda, à proprietária do veículo pesado o valor de 826,32 €, correspondente a quatro dias de paralisação, à razão de 206,58 € diários, nos termos do acordo celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguros e a ANTRAM para o período compreendido entre 1 de março de 2018 e 28 de fevereiro de 2019; o autor incorreu no pagamento de despesas de gestão, a saber, com o processo de averiguações despendeu o valor de 127,92 €, pelos processos de peritagem dos dois veículos lesados despendeu os montantes de 65,19 € e de 57,81 €, e pela participação de acidente de viação pagou o valor de 13,00 € à PSP; à data dos factos, o veículo Mercedes de matrícula …SS encontrava-se registado em nome do 2.º réu, mas era habitualmente utilizado pelo 1.º réu, ao abrigo de um contrato de compra e venda entre ambos, e não se encontrava coberto por seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório.
Nos termos do disposto no artigo 47.º do Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, constante do DL 291/2007, de 21 de agosto (alterado pelo DL 153/2008, de 6 de agosto e pela Lei 32/2023, de 10 de julho), de ora em diante SORCA, a reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel nos termos constantes dos artigos subsequente.
Não foi posto em causa nos autos que o FGA tivesse pago em conformidade com as suas obrigações legais. O acidente foi claramente causado pela conduta ilícita e culposa do condutor do veículo marca Mercedes, matrícula …SS, o que não suscitou dúvidas na ação, nem é objeto deste recurso. O mesmo veículo não era objeto de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pelo que o Fundo indemnizou os lesados, como devia (artigo 47.º, n.º 1, do SORCA).
O que se discutiu na ação e se mantém neste recurso é a responsabilidade dos réus, de forma a permitir que o Fundo os demande, por se encontrar sub-rogado nos direitos dos lesados. O artigo 54.º do SORCA estabelece que, satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso. O n.º 3 do mesmo artigo e diploma afirma que o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente são solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro. A(s) entidade(s) que reembolse(m) o Fundo beneficia(m) de direito de regresso contra outros responsáveis, se os houver, relativamente ao que tiver(em) pago (n.º 5 do mesmo artigo 54.º).
Perante os factos processualmente adquiridos (maxime 7, 11 e não provado A), desconhece-se a identidade do condutor do veículo de matrícula …SS (causador do acidente), no momento do acidente.
Sabe-se, porém, que o 1.º réu era a pessoa que tinha a direção efetiva do veículo na mesma altura, sendo, pelo menos, seu detentor, desde há algumas semanas. O 1.º réu será, com certeza, condenado nos pedidos. Quem tem a disponibilidade do veículo apenas deixará de responder por ele se o mesmo lhe tiver sido subtraído contra a sua vontade. Uma tal circunstância não foi sequer alegada. Recaía sobre o 1.º réu o ónus de alegar e provar que o veículo lhe tinha sido furtado ou roubado (circunstância que, inclusivamente, deve ser anotada no registo, por força do disposto no artigo 5.º-A do DL 54/75).
Saber se o 1.º réu, mais do que detentor, era proprietário, ou seja, se o direito de propriedade sobre o veículo foi transferido para o 1.º réu, é questão a ser resolvida em conjunto com a subsequente: a de saber se, perante a factualidade adquirida nos autos, o 2.º réu ainda tinha, à data do acidente, a qualidade de proprietário do veículo, caso em que seria, nessa qualidade, responsável perante o Fundo.
Provado ficou que, em agosto de 2018, o 1.º e o 2.º réus acordaram que, em troca de valor monetário, o 2.º réu entregaria o veículo Mercedes de matrícula …SS ao 1.º réu; na sequência, o 2.º réu entregou ao 1.º réu o veículo, a documentação do mesmo e a “declaração de venda” por ambos assinada; o 1.º réu fez seu o veículo automóvel, passando a com ele circular.
Nesta descrição encontram-se os elementos essenciais do contrato de compra e venda: o acordo sobre a transmissão da propriedade do veículo, mediante um preço (v. artigo 874.º do CC, que define o contrato de compra e venda como aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço).
Que houve um acordo sobre a transmissão da propriedade do 2.º para o 1.º réu é indubitável, na medida em que o 2.º réu preencheu e entregou ao 1.º réu a vulgarmente chamada “declaração de venda” (um formulário para requerimento de registo automóvel que, entre o mais, identifica o vendedor e o comprador e serve para que este promova o registo em seu nome).
O acordo sobre a prestação remuneratória consta expressamente dos factos assentes. O facto de não se conhecer o concreto valor acordado, nem se saber se foi efetivamente pago é irrelevante, pois o pagamento do preço constitui cumprimento da prestação contratual e não ato formativo do contrato.
Por regra, a que a compra e venda não foge, no ordenamento jurídico português os contratos são consensuais quanto à constituição, bastando o acordo sobre as obrigações contraídas para que o contrato se forme. A transmissão da propriedade, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço são efeitos do contrato de compra e venda, como expressamente estabelece o artigo 879.º do CC.
O contrato celebrado é, pois, consensual quanto à sua constituição (o que se opõe a real quanto à constituição), ou seja, não carece de entrega ou de outro ato material para que a sua formação se complete.
Pergunta seguinte: será que, além de consensual quanto à constituição, o contrato celebrado é também consensual quanto à forma? Estamos agora no domínio de outra classificação: a que opõe contratos formais (normalmente entendidos como os que exigem a sua celebração por escrito – artigo 364.º, n.º 1, do CC) e contratos consensuais, que não exigem mais que o acordo oral para a sua constituição. Por regra, com a qual a compra e venda dos autos tem correspondência, a validade da declaração negocial não depende da observância de forma especial (artigo 219.º do CC). Quer o DL 54/75, de 12 de fevereiro, que remodelou o sistema de registo da propriedade automóvel (com várias alterações, sendo a mais recente a introduzida pelo DL 111/2019, de 16 de agosto), no seu artigo 2.º-B, quer o DL 177/2014, de 15 de dezembro, que instituiu um procedimento especial para o registo de propriedade de veículos, preveem expressamente a aquisição de veículos por «contrato verbal de compra e venda».
A transmissão da propriedade de veículos automóveis está sujeita a registo obrigatório (artigo 5.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do DL 54/75). O mesmo registo obrigatório deve ser promovido no prazo de 60 dias a contar da data do facto (artigo 42.º do Decreto 55/75, de 12 de fevereiro, que aprovou o Regulamento do Registo de Automóveis).
Apesar dessa obrigatoriedade, o registo da propriedade automóvel não é constitutivo do direito de propriedade. Como acima dissemos, a transmissão da propriedade sobre o veículo opera por mero efeito do contrato, independentemente do registo. O artigo 1.º do DL 54/75 atribui ao registo de veículos, essencialmente, o escopo de dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.
O registo automóvel tem, portanto, um efeito enunciativo ou declarativo: o «primeiro efeito dos registos é a publicidade em si mesma, isto é, independente de qualquer efeito jurídico específico. Os registos dão conhecimento à comunidade dos factos que deles são objeto, conhecimento esse que é relevante para os mais variados fins. A um sistema registral cujos efeitos sejam apenas enunciativos pode chamar-se “registo declarativo”» (Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Almedina, 2020, p. 102). Todos os registos têm um efeito enunciativo, mas o registo automóvel (à semelhança do que sucede com o registo predial – Autor cit., ob. e loc. cit.) não tem, no ordenamento português, um efeito meramente enunciativo.
Acresce-lhe, tal como sucede com o registo predial, um efeito de oponibilidade a terceiros e um efeito presuntivo: presume-se proprietário do veículo a pessoa a favor de quem o respetivo direito está registado.
O primeiro resulta do artigo 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, e o segundo do artigo 7.º do mesmo Código, que é aplicável ao registo automóvel por força do disposto no artigo 29.º do DL 54/75. De dizer que, ainda que não existisse a presunção legal, o registo sempre geraria uma presunção judicial, natural ou de facto, de titularidade do direito registado.
O registo obrigatório de propriedade automóvel adquirida por contrato verbal de compra e venda deve ser promovido pelo comprador, por requerimento por si subscrito e confirmado pelo vendedor, através de declaração de venda apresentada com o pedido de registo (artigo 1.º, alínea a) do artigo 25.º do Decreto 55/75), mas também o pode ser por requerimento subscrito conjuntamente pelo vendedor e pelo comprador (alínea b) do mesmo artigo e diploma). As subsequentes alíneas do mesmo artigo preveem que o registo deva ser feito pelo vendedor quando se trate de entidade comercial que tenha por atividade principal a compra de veículos para revenda, ou de entidade que, em virtude da sua atividade, proceda com caráter de regularidade à transmissão da propriedade de veículos, ou, ainda, de locador financeiro ou de longa duração, na sequência do exercício do direito de compra no fim do contrato de locação financeira ou de aluguer de longa duração registado.
A não regularização do registo de propriedade, como se lê no preâmbulo do acima referido DL 177/2014, que instituiu um procedimento especial para o registo de propriedade de veículos, «apresenta graves consequências, quer para quem permaneceu proprietário no registo, quer para quem adquiriu e não promoveu o registo a seu favor, como também para as diversas entidades públicas que assentam as suas decisões sobre titularidades que presumem ser substantivamente verdadeiras. Desde logo, verifica-se que do incumprimento da obrigação de registo ou do seu cumprimento tardio resulta, não apenas a possibilidade de apreensão do veículo e a aplicação de sanções pecuniárias, como outras consequências que prejudicam o titular inscrito. É o que se passa com o Imposto Único de Circulação, que atinge quem se encontra registado como proprietário de veículo automóvel e não aquele que é o seu verdadeiro proprietário e que não registou a sua aquisição». Por estas razões, o diploma em causa criou um regime especial para o registo requerido apenas pelo vendedor (não comercial ou profissional abrangido por alíneas do artigo 1.º do artigo 25.º do Decreto 55/75), com base em documentos indiciadores da compra e venda, com notificação à parte contrária a cargo do serviço de registo.
Nos termos do DL 177/2014, o pedido de registo com base em requerimento subscrito apenas pelo vendedor pode ser formulado apenas após o decurso do prazo legalmente estabelecido para efetuar o registo obrigatório (artigo 2.º, n.º 1, do DL 177/2014), prazo que, como vimos, é de 60 dias.
No caso dos autos, o acidente dá-se dentro do período de sessenta dias subsequente à compra e venda, que sabemos ter sido celebrada algures em agosto de 2018, vindo a acidente a suceder em 17 de setembro do mesmo ano.
Para a celebração do contrato de seguro obrigatório não existe qualquer prazo, devendo o proprietário celebrá-lo de imediato, pois é responsável pelo risco da condução do mesmo por terceiros, desde o momento da aquisição. O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação (salvo se for utilizado pelo tomador do seguro inicial para segurar novo veículo) – artigo 21.º, n.º 1, do SORCA.
Nos presentes autos foi ilidida a presunção de propriedade do 2.º réu, conferida pelo registo. Provou-se que o 1.º réu era o proprietário aquando do acidente.
Como vimos, satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso; são solidariamente responsáveis pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do n.º 1, o detentor, o proprietário e o condutor do veículo cuja utilização causou o acidente, independentemente de sobre qual deles recaia a obrigação de seguro (artigo 54.º, n.ºs 1 e 3 do SORCA).
Desconhece-se o condutor e sabe-se que o 1.º réu era o proprietário e legítimo possuidor do veículo; o 2.º réu não tinha nenhuma das qualidades descritas na norma. Apenas o 1.º réu responde perante o Fundo autor, ao abrigo do disposto no artigo 54.º, n.º 3, do SORCA, e deve ser condenado a reembolsar o Fundo pelo valor de 11.953,35 €, soma das seguintes parcelas: 85,91 € pagamento da fatura de urgência hospitalar da condutora do Peugeot; 4588,00 € pagos à dona do Peugeot pela perda total do veículo; 6189,20 € correspondentes à reparação do pesado de mercadorias; 826,32 € pela paralisação do mesmo veículo durante quatro dias; 127,92 € pelo custo do processo de averiguações; 65,19 € e 57,81 € pelas peritagens dos dois veículos lesados; e 13,00 € pelo documento de participação à PSP.
Os juros de mora são devidos desde a citação para a presente ação, dado não se ter provado interpelação em momento anterior (artigo 805.º, n.º 1, do CC).
Finalmente, o pedido ilíquido formulado pelo autor (valor das despesas que venha a suportar com o valor em dívida, a liquidar em sede de execução), o mesmo improcede por não serem prováveis despesas futuras decorrentes do ilícito. É certo que, nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 1, do SORCA, o autor tem direito ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso. Porém, esses processos estavam findos aquando da propositura da ação, ou o autor não alegou que assim não fosse, e pediu os valores que com eles despendeu. Para se vir a compensar dos valores líquidos que pediu e nos quais o 1.º réu vai ser condenado, o autor nada mais terá de fazer, além da eventual propositura de execução, se o 1.º réu não pagar voluntária e oportunamente.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, condenando o 1.º réu a pagar ao autor a quantia de 11.953,35 € (onze mil novecentos e cinquenta e três euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal para juros civis desde citação até efetivo e integral pagamento, e mantendo, no mais, a sentença objeto de recurso.
Custas pelo 1.º réu na proporção de 50%; no mais, sem custas, dada a isenção do Fundo (artigo 63.º, n.º 1, do SORCA).

Lisboa, 10/04/2025
Higina Castelo
Fernando Alberto Caetano Besteiro
Laurinda Gemas
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[1] O valor indicado no pedido formulado na petição como base de incidência dos juros foi 11.935,35 €, e não 11.953,35. No entanto, os mencionados 11.935,35€ resultam de um manifesto lapso material do autor, que antes sempre tinha referido 11.953,35 €, valor que efetivamente corresponde à soma das parcelas que pagou aos lesados de 85,91 (urgência hospitalar) + 4588 (perda total do Peugeot) + 6189,20 (reparação do pesado de mercadorias) + 826,32 (paralisação do pesado de mercadorias) + 127,92 (processo de averiguações) + 65,19 (peritagem de um dos veículos) + 57,81 (peritagem de segundo veículo) + 13 (pagamento à PSP pela elaboração de documento). Como tal, este Tribunal da Relação retifica oficiosamente aquele manifesto lapso material do pedido, que importava numa diferença de 18 €.