ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
PRINCÍPIOS DA SUPLETIVIDADE E DA NECESSIDADE
MEDIDA DE REPRESENTAÇÃO ESPECIAL
Sumário

(elaborado pela relatora - art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. O processo especial de acompanhamento de maiores visa conferir ao acompanhante os poderes que se afigurem necessários em função da concreta situação do acompanhado, evidenciada pelos factos apurados no processo, não estando, por conseguinte, o julgador adstrito e limitado ao pedido que em concreto tenha sido deduzido no requerimento inicial (art.º 145º, nº 2, do CC).
2. Os princípios subjacentes ao regime do maior acompanhado são o da supletividade (a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam – art.º 140º, nº 2, CC) e o da necessidade (segundo o nº 1, do art.º 145º, do CC, o acompanhamento limita-se ao necessário).
3. Se o bem-estar e a salvaguarda de todos os interesses do maior puderem ser acautelados através dos deveres gerais de cooperação e assistência (art.º 140º, nº 2, CC), não há necessidade de decretar a medida de acompanhamento.
4. Decidindo-se o julgador pela necessidade de decretar o acompanhamento do maior, nomeando-lhe acompanhante, tinha forçosamente de lhe cometer dentro dos regimes previstos no nº 2, do art.º 145º, do CC, aquele ou aqueles que se ajustavam à situação concreta do acompanhado.
4. Estando provado que o acompanhado não tem capacidade para aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos, nem capacidade para gerir os seus bens, é manifesto que a salvaguarda destes seus interesses não pode ser acutelada através de deveres gerais de cooperação e assistência, impondo-se cometer à acompanhante nomeada, a medida de representação especial, com a atribuição de poderes para, em substituição do acompanhado, administrar os seus bens e decidir sobre os cuidados e/ou tratamentos de saúde de que o mesmo necessita.
5. Ademais, não tendo o acompanhado capacidade para gerir os seus bens, impõe-se restringir o direito de testar (art.º 147º CC).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
O Ministério Público propôs ao abrigo dos invocados arts. 219.º, n.º 1 da CRP; 1.º, 4.º n.º 1, alínea r), 9.º n.º 1 alínea g), da Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto (Estatuto do Ministério Público); 138.º e segs. do Código Civil; e 546.º, n.º 2 (1ª. Parte), 549.º, n.º 1 e 891.º e segs. do Código de Processo Civil, ação especial de Acompanhamento de Maior, em benefício de C…., solteiro, nascido em 5 de março de 1987 e com residência na Rua …., alegando, para tanto, e em síntese, que o mesmo sofre de debilidade mental ligeira, por via da qual não consegue cuidar da  sua higiene, satisfazer as suas necessidades alimentares, como não consegue gerir os seus bens, nem as suas contas bancárias, efetuar depósitos ou levantamentos ou quaisquer outras operações bancárias.
Termina, pedindo que seja decretado o acompanhamento do beneficiário e aplicadas as seguintes medidas de acompanhamento:
a) Representação geral, prevista no artigo 145.º, ns.º 2, alínea b), e 4, do Código Civil;
b) Limitação do direito de testar, previsto no artigo 147.º, n.º 2 do Código Civil.
Indicou para exercer a função de acompanhante, M…, progenitora do beneficiário.
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O requerido não foi citado pessoalmente por ter sido constatado pelo oficial de justiça que não demonstrava capacidade para entender o ato.
Em cumprimento do disposto no art.º 21º, nºs 1, e 2, do CPC foi nomeado e citado defensor oficioso para assegurar a defesa do requerido.
Não foi deduzida oposição.
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Procedeu-se à audição pessoal do requerido e foi solicitada a realização de relatório pericial psiquiátrico, o qual foi junto aos autos em 13 de setembro de 2024.
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Após, foi proferida sentença, que julgou a ação procedente e decretou o seguinte:
“Decreta-se que C…, solteiro, nascido(a) a 5 de março de 1987, filho(a) de A…. e de M…, natural de …… e residente em Rua …, se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado, nomeando-se como acompanhante M…, progenitora do(a) beneficiário(a), residente em Rua ….
Duração da medida – 3 anos.
Sem custas.
Fixa-se o valor da acção em € 30.000,01.
Registe e notifique.
Comunique-se à Conservatória do Registo Civil (arts. 902º e 894º do CPC) e ao
Centro de Saúde da área de residência.”
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O Ministério Público não se conformou com a decisão e dela veio recorrer, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões e pedido:
“1. A sentença recorrida não aplicou quaisquer medidas de acompanhamento à beneficiária, limitando-se a decretar o seu acompanhamento.
2. O regime jurídico do maior acompanhado, por si só, sem que sejam aplicadas quaisquer medidas, constitui um recipiente sem conteúdo, ou seja, um copo vazio.
3. O Tribunal, ao não aplicar quaisquer medidas de acompanhamento, incorreu numa omissão de pronúncia que acarreta a nulidade da sentença - 615.º, n.º 1, d), do CPC, invocável em recurso – artigos 615.º, n.º 4 e 901.º do CPC.
4. Por um lado, o Tribunal não pode deixar de aplicar medidas de acompanhamento, porquanto tal obrigatoriedade resulta da estrutura do regime do maior
acompanhado e, entre outros, dos artigos 145.º do Código Civil e do artigo 900.º, n.º 1, do CPC.
5. Por outro lado, a omissão ocorre também porque a aplicação de medidas (representação geral) foi requerida pelo Ministério Público no requerimento inicial, pelo que, o Tribunal estava obrigado a conhecer daquele pedido.
Sem prescindir,
6. Ainda que se entenda inexistir nulidade por omissão de pronúncia, a aplicação de medidas de acompanhamento é, ainda assim, obrigatória, pelo que o Tribunal estava obrigado a aplica-las e, ao não o fazer, violou, além do mais, as disposições supra referidas, o que, em qualquer caso e à cautela, constitui fundamento subsidiário deste recurso.
Termos em que se requer que o presente recurso seja julgado totalmente procedente e, como tal, ser declarada a nulidade, por omissão de pronúncia, da sentença, com as consequências legais, ou, caso assim não se entende, revogando-se a decisão recorrida por violação das disposições legais que impõem a aplicação de medidas de acompanhamento.”
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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No despacho que recebeu o recurso, a Mª juíza do tribunal a quo, afirmou manter a decisão recorrida “… com fundamento nos argumentos de facto e de direito que estiveram na base da sua prolacção.”, concluindo-se que entendeu pronunciar-se, desse modo, sobre a nulidade imputada à sentença (cf. art.º 617º, nº 1, do CPC).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões que importa decidir são as seguintes:
- Nulidade da sentença (art.º 615º, nº 1, al. d), 1ª parte do CPC);
- Aplicação de medidas de acompanhamento em benefício do Maior Acompanhado. 

Fundamentação de Facto
Os factos a ponderar para a decisão são os que ficaram descritos em sede de relatório; os que foram fixados em 1ª instância, que não foram objeto de impugnação e que de seguida se transcrevem (art.º 663º, nº 6, CPC); bem como aqueles que infra se aditarão nos termos e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 607º, nº 4, e 663º, nº 2, do CPC.
Factos Provados em 1ª instância:
1º C…. nasceu a 5 de março de 1987, e é filho de A… e de M….
2º Entre outras patologias, o beneficiário apresenta “debilidade mental ligeira comórbida com politoxicofilia”.
3.º Não consegue cozinhar a sua alimentação.
4.º Não consegue tomar a medicação sozinho sem a orientação de terceiros.
5.º O beneficiário não possui capacidade para realizar a sua higiene pessoal sem a ajuda de terceiro, nem de executar tarefas em casa.
6.º Não possui capacidade para gerir os seus bens, nem as suas contas bancárias, levantamentos, depósitos e outras operações bancárias.
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Factos aditados com base no resultado da perícia psiquiátrica relativa ao beneficiário:
7º C… “… apresenta um quadro de Esquizofrenia Residual e Deficitária, situação clínica prevista e definida nos sistemas de classificação psiquiátrica e que evolui para episódios agudos (que motivam internamento temporário por períodos de sintomatologia produtiva delirante e alucinatória, com eventuais comportamentos disruptivos). A estabilização córnica leva a défice cognitivo progressivo e a eventuais delírios residuais.”
8º O requerido “Deverá manter seguimento médico regular, na especialidade de Medicina Geral e Familiar, bem como apoio em consultas de Psiquiatria (…). Do ponto de vista funcional, está indicado, também, a inclusão em programa de reabilitação cognitiva que possa mitigar a progressão dos défices e promover a aprendizagem ou consolidação de comportamentos sociais adaptativos, nomeadamente: treino de competências sociais, terapia ocupacional, treino de prevenção e recaídas, terapia cognitivo-comportamental orientada para o insight e motivacional (com intuito de manter abstinência de substâncias) e treino cognitivo.
9º Mais consta do mesmo relatório que:
- “O quadro clínico (…) tende a declínio e agravamento progressivo, sendo passível de recuperação parcial sob tratamento de apoio indicados”.
- “(…) conclui-se o parecer que o examinando globalmente cumpre os pressupostos médico-legais previstos no art.º 138º do Código Civil para beneficiar do regime de maior acompanhado, nomeadamente em regime de representação geral”.
-  “Relativamente à gestão da pessoa e categorias de atos que relevam para a saúde, do ponto de vista médico-legal, cumpre dizer que: sobre a responsabilidade em aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos, esta não lhe deverá ser confiada, uma vez que a sua doença pode prejudicar a decisão, sendo que está naturalmente dependente da complexidade e consequências do tratamento em concreto pelo que deverá sempre ser avaliado caso a caso, ou seja tratamento a tratamento”.
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Facto aditado com base na informação prestada nos autos pelo Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (ofício apresentado em 18 de maio de 2022 – referência citius 4706539):
10º O requerido não outorgou testamento vital ou procuração de cuidados de saúde.

Fundamentação de Direito
A) Nulidade da decisão (omissão de pronúncia – art.º 615º, nº 1, al. d), 1ª parte). As nulidades previstas na sobredita norma são únicas, típicas, e consubstanciam vícios estruturais ou intrínsecos da decisão. Traduzem-se em erros de atividade ou de construção da própria sentença ou despacho (cf. art.º 163º, nº 3, CPC), não visando o denominado erro de julgamento de facto e/ou de direito (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o Acórdão do STJ de 11/10/2022, proferido no âmbito do processo nº 602/15.0T8AGH.L1-A.S1, disponível in www.dgsi.pt), e embora uma e outra das situações configurem realidades distintas, são frequentemente confundidas pelas partes/intervenientes, como sucede no caso dos autos, como veremos infra.
Segundo o disposto na 1ª parte da alínea d), do nº 1, do art.º 615º, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Estamos perante uma nulidade estritamente relacionada com o disposto no art.º 608º, nº 2, do CPC, nos termos o qual, “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
“As questões previstas no nº 2 reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e exceções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em  defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir. Deste modo, não constitui nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, a circunstância de não se apreciar ou fazer referência a cada um dos argumentos de facto e de direito que as partes invocaram tendo em vista obter a (im)procedência da ação. Questões e argumentos não se confundem, sendo que o dever de decisão é circunscrito à apreciação daquelas, tanto mais que, com muita frequência, as partes são prolíficas num argumentário cuja medida é inversamente proporcional à pertinência das questões”.[1]
E como é também pacificamente aceite na nossa jurisprudência, “Apenas existe omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, mas já não quando deixe de apreciar os argumentos invocados a favor da posição por si sustentada, não sendo de confundir o conceito de “questões” com o de “argumentos” ou “razões””[2].
«A omissão de pronúncia respeita exclusivamente a questões, sendo que esta noção abrange as pretensões que as partes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia».[3]
Tendo presente o exposto, e vista a decisão recorrida, a Mª juíza do tribunal a quo não omitiu pronúncia sobre as medidas de acompanhamento por cuja aplicação o Ministério Público pugnou no requerimento inicial, tendo, sim, concluído, em razão dos factos e argumentos jurídicos que convocou na sentença, pela desnecessidade de aplicação de qualquer medida de acompanhamento em benefício do Maior Acompanhado, para além da nomeação de acompanhante. É o que resulta sem margem para qualquer dúvida do seguinte trecho da decisão:
“Reportando-nos ao caso concreto, verifica-se que o Requerido padece de doença do foro mental. Em virtude de tal doença, vivencia limitações no seu quotidiano e necessita da ajuda de terceiras pessoas para algumas das atividades da vida diária. Nesta medida e em face da citada lei, importará decretar seu acompanhamento.
Impõe-se, ainda, sopesar os deveres gerais de cooperação e de assistência mobilizáveis, por referência ao n.º 2 do artigo 140.º do Código Civil, ante a circunstância do Requerido ter apoio na comunidade e na família.
Apesar da flexibilização do regime jurídico dos maiores acompanhados em contraste com o pretérito regime normativo das incapacidades, não se prescinde da verificação da necessidade do acompanhamento, sendo que por força precisamente do princípio da necessidade, na dúvida, não deve ser decretada nenhuma das medidas de acompanhamento.
Pelo exposto, não se estabelecem outras medidas, além da necessidade de nomeação de acompanhante.
Ao acompanhante, no exercício da sua função, cabe privilegiar o bem-estar e recuperação do acompanhado, devendo manter um contacto próximo com este, vide n.º 1 e 2 do artigo 146.º do Código Civil.”
A sentença não enferma, consequentemente, da sobredita nulidade.
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B) Reapreciação da decisão de mérito: necessidade de definição de medidas de acompanhamento.
A questão colocada pelo Ministério Público/recorrente, centrada na necessidade de aplicação de medidas de acompanhamento, sob pena de violação do disposto nos arts. 145.º do CC e 900.º, n.º 1, do CPC, constitui questão de mérito e impõe a reapreciação da   decisão do ponto de vista do direito, cabendo desde já salientar que o processo especial de acompanhamento de maiores visa conferir ao acompanhante os poderes que se afigurem necessários em função da concreta situação do acompanhado, evidenciada pelos factos apurados no processo, não estando, por conseguinte, o julgador adstrito e limitado ao pedido que em concreto tenha sido deduzido no requerimento inicial (art.º 145º, nº 2, do CC).
A Lei nº 49/2018 de 14/08, criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966).
Dispõe agora o art.º 138º, do CC, que o “… maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
Dispõe, por seu turno, o art.º 140º, do mesmo Código, no seu nº 1, que: “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.”
Os princípios subjacentes ao novo regime são o da supletividade e o da necessidade.
O primeiro dos princípios encontramo-lo previsto no nº 2, daquele art.º 140º, que prevê que a “…medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.”
O princípio da necessidade está consagrado no art.º 145º, do CC, que no seu nº 1, prevê que o “… acompanhamento limita-se ao necessário.”, prevendo, no mais, a mesma norma, o conteúdo do acompanhamento nos seguintes termos:
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes.”
O Prof. Miguel Teixeira de Sousa[4] explica-nos que o decretamento da medida de acompanhamento de maior exige a verificação de duas condições: “Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no Art.º 145º, nº 2 do CC; isto significa que, na dúvida não é decretada nenhuma medida de acompanhamento; Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (Art.º 140º, nº 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior”.
Deste modo, decidindo-se pela necessidade de decretar o acompanhamento do maior e nomeando-se-lhe acompanhante, tem, forçosamente, de lhe ser cometido dentro dos regimes previstos no nº 2, do art.º 145º, do CC, aquele ou aqueles que se ajustem à situação concreta do beneficiário. Ou seja, tem de definir-se o conteúdo do acompanhamento, pois, caso contrário, e concordando-se com o recorrente, de nada serviria a nomeação de acompanhante. Se o bem-estar e a salvaguarda de todos os interesses do maior pudessem ser acautelados através dos deveres gerais de cooperação e assistência (art.º 140º, nº 2, CC), e na esteira dos ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa, não existiria necessidade de decretar a medida de acompanhamento.
Ora, no caso, e em face dos factos apurados, é manifesto que a salvaguarda dos interesses do beneficiário não pode ser acutelada através de deveres gerais de cooperação e assistência, e, tendo sido decretada a medida de acompanhamento, impõe-se, em consequência, definir o seu conteúdo.
Vejamos, então.
No campo da saúde, é absolutamente necessário conferir ao acompanhante os poderes para, em substituição do acompanhado, decidir e exigir junto de instituições de saúde, o seu seguimento médico regular na especialidade de medicina geral e familiar, bem como apoio em consultas de psiquiatria; aceitar a ministração de medicamentos e tratamentos médicos que a sua condição de saúde exija e que o mesmo não está comprovadamente em condições de decidir. Recorde-se, a este respeito. o que resulta da perícia psiquiátrica: “Relativamente à gestão da pessoa e categorias de atos que relevam para a saúde, do ponto de vista médico-legal, cumpre dizer que: sobre a responsabilidade em aceitar ou recusar tratamentos que medicamente sejam indicados e propostos, esta não lhe deverá ser confiada, uma vez que a sua doença pode prejudicar a decisão…”. Sem o cometimento de quaisquer poderes ao acompanhante, este, no âmbito dos meros deveres gerais de cooperação e assistência não poderá decidir e agir naqueles termos, como não poderá exigir, em substituição do acompanhado, a sua inclusão em programa de reabilitação cognitiva que possa mitigar a progressão dos défices e promover a aprendizagem ou consolidação de comportamentos sociais adaptativos, nomeadamente, treino de competências sociais, terapia ocupacional, treino de prevenção e recaídas, terapia cognitivo-comportamental orientada para o insight e motivacional (com intuito de manter abstinência de substâncias) e treino cognitivo, como se afigura necessário à sua condição de saúde, como é expressamente salientado no relatório pericial.
Já no campo da gestão e administração do seu património, está demonstrado que o beneficiário não possui capacidade para gerir os seus bens, nem as suas contas bancárias, efetuar levantamentos, depósitos e executar outras operações, pelo que sem o cometimento de poderes à acompanhante, esta não poderá exercitar em nome daquele quaisquer direitos junto de  instituições, nomeadamente, perante entidade processadora de rendimentos de que o acompanhado beneficie, da Segurança Social ou de qualquer instituição financeira, designadamente, para abrir ou movimentar conta bancária de que aquele seja titular, de modo a poder garantir a satisfação das suas necessidades básicas, o que o acompanhado, sozinho, também não revela ser capaz.
Pelo exposto, em face do quadro factual apurado, impõe-se atribuir à acompanhante, já nomeada, poderes de representação especial, designadamente:
- De, em substituição do beneficiário, administrar os seus bens e património, podendo, para tanto, abrir contas bancárias em nome daquele e/ou movimentar aquela(s) de que seja titular; como exercitar qualquer direito necessário à referida administração de bens junto de qualquer entidade/serviço, designadamente, junto da Segurança Social; entidade processadora de quaisquer rendimentos auferidos pelo beneficiário; instituições bancárias... 
- De, em substituição do beneficiário, aceitar ou recusar tratamentos que medicamente lhe sejam indicados e propostos; solicitar o seguimento médico regular na especialidade de medicina geral e familiar; o apoio em consultas de psiquiatria; e solicitar inclusão em programa de reabilitação cognitiva.
Dada a incapacidade para o beneficiário gerir o seu património, impõe-se, ainda, em face do disposto no art.º 147º do CC, restringir o direito de testar.
 Não dispondo o beneficiário de testamento vital ou de procuração para cuidados de saúde, não se impõe a adoção de qualquer medida de acautelamento da sua vontade.
A medida de representação especial será revista com uma periodicidade de três anos (cf. art.º 155º do CC).
Considera-se desnecessária a constituição de conselho de família.

Decisão
Pelo exposto, acordam as Juízas da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação, e, em consequência, determinar que o regime de maior acompanhado decretado em benefício de C…, traduz-se no cometimento à acompanhante nomeada, da medida de representação especial, com os seguintes poderes:
- De, em substituição do beneficiário, administrar os seus bens e património, podendo, para tanto, abrir contas bancárias em nome do beneficiário e/ou movimentar aquela(s) de que seja titular; como exercitar qualquer direito necessário à referida administração de bens junto de qualquer entidade/serviço, designadamente, junto da Segurança Social; entidade processadora de quaisquer rendimentos auferidos pelo beneficiário; instituições bancárias. 
- De, em substituição do beneficiário, aceitar ou recusar tratamentos que medicamente lhe sejam indicados e propostos; solicitar o seguimento médico regular na especialidade de Medicina Geral e Familiar; o apoio em consultas de psiquiatria; e solicitar inclusão em programa de reabilitação cognitiva.
Mais se determina a restrição ao beneficiário o direito de testar (art.º 147º CC):
A medida será revista de três em três anos (art.º 155º, do CC).
Após trânsito, extraia-se certidão da presente decisão e remeta-a à Conservatória do Registo Civil para efeitos de averbamento ao assento de nascimento, nos termos do disposto nos arts. 1920º-B e 1920º-C, aplicáveis ex vi art.º 153º, nº 2, do CC, e arts. 69º, nº 1, al. g), 78º, nºs 1, e 2, do CRC.
Publicite-se a decisão, em conformidade com o disposto no art.º 902º, nº 3, do CPC.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 10 de abril de 2025
Cristina Lourenço
Carla Figueiredo
Amélia Puna Loupo
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[1] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, “O Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2ª Edição, pág. 753.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3/11/2020, proferido no Processo nº 2057/16.3T8PNF.P1S1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.3.2022, proferido no Proc. 1071/18.9T8TMR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] Apresentação realizada no Centro de Estudo Judiciários, em 11 de dezembro de 2018, na Ação de Formação sob o tema “O Novo Regime Jurídico do Maior acompanhado – O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspetos processuais, pág. 51.