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MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DA SENTENÇA
AMPLIAÇÃO
CONCEITOS DE DIREITO
JUÍZOS CONCLUSIVOS
Sumário
(da responsabilidade da Relatora) I – A matéria que consubstancia conceitos de direito e/ou juízos conclusivos tem de se considerar como não escrita, não podendo integrar a fundamentação de facto da sentença. II – A consideração pelo tribunal recorrido de factos não alegados pelas partes, em violação do disposto no artigo 5.º, n.º 1 e 2, do C.P.C., não consubstancia nulidade da sentença, antes determina a eliminação dos mesmos do elenco dos factos provados. III - Não foram objecto de apreciação e consequente fundamentação da convicção do julgador em sede de decisão sobre a matéria de facto factos invocados pelo Autor que se mostram indispensáveis para a decisão da causa, a saber aqueles invocados na parte final dos artigos 37º e 40º da petição inicial, e deste modo, não restando dúvidas sobre a relevância de tais factos para a decisão da causa, e não constando dos autos todos os elementos probatórios pertinentes, mostra-se indispensável a ampliação da matéria de facto para apuramento desses factos.
Texto Integral
Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
Banco Privado Português (Cayman) Ltd. (em liquidação), identificado nos autos, instaurou acção declarativa com processo comum contra AA e BB, identificados nos autos, pedindo que o tribunal:
a) Declare que no âmbito do contrato de abertura de crédito celebrado com o Autor os Réus utilizaram o montante de € 1.500.000,00, não tendo reembolsado o BPP Cayman de tal montante;
b) Condene os Réus a pagar ao Autor o montante total de € 2.681.207,04 correspondente a:
b. i) € 1.500.000,00 a título de capital mutuado;
b. ii) € 439.207,04 a título de juros calculados nos termos da cláusula 2.ª do contrato de abertura de crédito junto sob documento n.º 6 e,
b. iii) € 742.000,00 a título de juros calculados nos termos da cláusula 5.º do contrato de abertura de crédito junto sob documento n.º 6.
c) Condene os Réus ao pagamento de juros vincendos até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou ter celebrado com os Réus dois contratos de abertura de crédito em conta corrente, respectivamente no valor de 1.000.000,00 euros e de 500.000,00 euros, tendo esses montantes sido utilizados pelos Réus, e não reembolsados pelos mesmos.
Os Réus contestaram, por impugnação e invocando a prescrição dos juros, pugnando pela improcedência do pedido.
Foi proferida sentença que decidiu:
“declara-se a presente acção parcialmente procedente, por provada, declara-se que os réus receberam da autora a quantia global de 1.500.000€ (um milhão e quinhentos mil euros) e, em consequência, absolvendo-se os réus do mais peticionado, condenam-se estes no pagamento à autora dos seguintes valores:
a) 1.500.000€ (um milhão e quinhentos mil euros) a título de obrigação de restituição de capital cedido a crédito;
b) Juros convencionais (remuneratórios e moratórios) que se tenham vencido sobre o supra referido capital entre 5 de maio de 2014 e 5 de maio de 2019;
c) Juros moratórios legais à taxa devida para obrigações civis sobre todos os valores em dívida a 14 de abril de 2019 (capital e juros convencionais), desde esta data e até integral pagamento.
Mais se condenam os réus como litigantes de má-fé, em multa a liquidar.
Custas por autora e réus, na proporção do vencimento, que se fixa, respectivamente, em 1/5 e 4/5.
Notifiquem-se as partes da presente decisão e para, querendo, em dez dias, se pronunciarem sobre a liquidação da condenação a título de má-fé.”
Inconformados com a decisão os Réus vieram interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem: I. Emmáximasúmula,aspresentesconclusõespodemsintetizar-seem7 proposiçõesnucleares: g) Mesmo mantendo-se o acervo factual em que assenta a sentença recorrida, a acção devia ter sido julgada improcedente; h) O tribunal violou grosseiramente as regras, gerais e especiais, de distribuição do ónus da prova; i)A sentença padece de várias causas de nulidade, em especial aquelas que resultam da violação do princípio do dispositivo e da insuficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto; j) A decisão da matéria de facto deve ser alterada; k) Se o tribunal não tivesse violado o princípio do dispositivo, respeitando os limites dos seus poderes de cognição, mesmo que alguns dos factos alegados pelo autor fossem julgados procedentes (factos que o Tribunal recorrido substituiu por outros, da sua lavra), a ação ainda assim soçobraria; l) É absolutamente ilegal a condenação em multa ilíquida por alegada litigância de má fé. II. ParamelhoresclarecimentodoTribunaladquem,importa,todavia,procederaodesdobramentoanalíticodessasproposiçõesnucleares,comopassaafazer-se: III. Mesmosemalteraçõesnadecisãodamatériadefacto,aacçãodevia tersidojulgadaimprocedente. IV. Com efeito, e em primeiro lugar, a haver um credor, ele não seria, segundo os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido, o autor, mas uma outra entidade que não é parte no processo. V. Em segundo lugar, O saldo inscrito no “extracto” apresentado pelo autor (documento n.º 13 junto à PI), apelado, é 0 (zero), desmentindo a existência de qualquer crédito por reembolsar. VI. Se esse extracto valer, tem de valer integralmente. E tem de valer, sobretudo, naquilo que é, do ponto de vista jurídico-obrigacional, o mais relevante do seu conteúdo: o saldo, que é € 0,00, desdizendo qualquer crédito do autor sobre os réus. VII. Em vez de, em obediência às regras legais de distribuição do ónus da prova, responsabilizar o autor pela prova das suas alegações, o tribunal recorrido, invertendo-as, violando-as, partiu da “premissa” apriorística de que elas eram verdadeiras, lançando sobre os réus, ora apelantes, o ónus de infirmarem uma veracidade dada, à partida, por adquirida. VIII. Alimentado pelo preconceito (no sentido de conceito a priori, preexistente a qualquer exercício analítico de racionalização), que se sabe ser inimigo da objectividade e da imparcialidade, o Juiz deslizou inevitavelmente para aquilo que ele próprio, na sentença recorrida, denomina de “avaliação global da prova” – uma designação eufemística e benevolente de uma efectiva “inversão do ónus da prova”. IX. Paraalémdaviolaçãoda norma centraldon.º 1doart.º 342.ºdo CPC,o Tribunalrecorridovioloucrassamenteanormadon.º1doart.º 113.ºdo Decreto-Lein.º91/2018,de12/11 (Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica), que determina: “Caso um utilizador de serviços de pagamento negue ter autorizado uma operação de pagamento executada, ou alegue que a operação não foi corretamente efetuada, incumbe ao respetivo prestador do serviço de pagamento fornecer provade queaoperaçãodepagamentofoiautenticada,devidamenteregistadae contabilizadaequenãofoiafetadaporavariatécnicaouqualqueroutra deficiênciadoserviçoprestadopeloprestadordeserviçosdepagamento”(norma igual à que constava do n.º 1 do art.º 70.º do Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30/10). X.Ainversãodoónusdaprovaaprioristicamentedeterminadapelo Tribunal recorrido foialimentadaporvários equívocos,que têmde serdesmontados. XI. Oprimeirodeles refere-se à incompreensão das especificidades da moeda bancária. Dada a sua natureza, as operações bancárias com moeda escritural têm forçosamente de materializar-se em documentos, mesmo sendo electrónicos. As operações bancárias com moeda escritural existem na medida em que são documentadas(“escrituradas”) correctamente, de acordo com a lei. Neste caso, o documento, mais do que um meio de prova, é uma condição de existência do próprio facto. XII. Sem a apresentação dos extractos de conta contemporâneos dos alegados movimentos, e sem a alegação de que os réus, ora apelantes, não tinham reclamado contra o seu conteúdo, tais movimentos não existem, não havendo outro comportamento processual coerente que não seja a impugnação das correspondentes alegações do autor. XIII. Por outro lado, os réus, mais uma vez exercendo um direito seu, impugnaram que os alegados movimentos tivessem sido feitos “por instruções de AA” – porque realmente não foram (o que é confirmado pela inexistência de qualquer documento de suporte). XIV. Osegundoequívoco alimentador da inversão do ónus da prova consiste na desconsideração da essencialidade do extracto de conta na definição jurídica da relação entre banco e cliente. XV. Dada a natureza intrinsecamente escritural da moeda bancária, só há duas maneiras de um qualquer banco provar um certo movimento em conta [e que esse movimento dá execução a instruções do(s) titular(es) da conta]: - ou demonstrando a aprovação, expressa ou tácita, dos correspondentes extractos, emitidos com o conteúdo e a periodicidade devidos; - ou através da exibição dos documentos de suporte (em especial quanto às instruções recebidas dos titulares das contas). XVI. Oterceiroequívoco consiste na desconsideração da essencialidade, para a procedência da acção, dos factos concretizadores da efectiva utilização do crédito. XVII. A questão central dos autos é aquela que na, na sentença, se qualifica como “complementar” – precisamente a questão da utilização do “dinheiro [alegadamente] entrado na conta”, para usar o fraseado real da sentença. XVIII. Tanto assim que o autor, na conclusão da PI, não tendo feito qualquer alusão à “entrada do dinheiro na conta” (leia-se “inscrição a crédito”), pediu expressamente que o Tribunal declarasse que os “réus utilizaram o montante de € 1.500.000,00, não tendo reembolsado o BPP Cayman de tal montante”. XIX. O Tribunal recorrido, desrespeitando o objecto da acção configurado na PI, converteu em complementar o que era essencial (a “utilização” do saldo da conta), e a transformou em essencial o que era meramente instrumental (o crédito em conta). XX. Oquartoequívoco potenciador da inversão do ónus da prova respeita ao significado jurídico (jurídico-obrigacional) de inscrição de um crédito em conta (bancária). XXI. Consiste esse equívoco em pensar que a inscrição de um crédito em conta bancária (gerando um “depósito”, um saldo credor), mesmo quando alegadamente ocorra no quadro da execução de um contrato de abertura de crédito, consiste na efectiva “utilização” do crédito, geradora, por si só, de uma obrigação de reembolso. XXII. Não é, todavia, assim. A inscrição de um crédito em conta bancária gera isso mesmo: um crédito a favor do cliente, e a correspondente dívida do banco. Gera, verdadeiramente, um “depósito”, no sentido de um saldo credor a favor do cliente titular da conta (em conformidade com a definição de depósito do art.º 155.º/4 do Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras). XXIII. Como sublinha MiguelPestanadeVasconcelos: “Nessa medida, é a concessão de crédito que cria a moeda e que, portanto, gera os depósitos (loans make deposits), ou seja, os novos créditos a eles correspondentes. A concessão de crédito é que gera o depósito, e conduz à criação de moeda escritural. Recorrendo a um exemplo: se um banco conceder crédito a uma empresa no valor de € 1000, cria moeda, uma vez que gera,donada, outofthin air, por um simples registo contabilístico, o correspondente crédito sobre si, de que a empresa é titular.” XXIV. É por isso que um crédito em conta, enquanto tal, só pode, por definição, fundar uma pretensão de pagamento do titular da conta em relação ao banco, mas nunca deste em relação àquele. XXV. Oquintoequívoco alimentador da inversão do ónus da prova redunda na confusão entre o que é normal (o quid plerum que accidit), correspondente à experiência comum, e o anormal. XXVI. O Tribunal recorrido acha anormal que se celebre um contrato de abertura de crédito e que “o dinheiro não entre na conta”. Trata-se, porém, de algo perfeitamente normal e típico num contrato de abertura de crédito, de que apenas resulta, para o banco, a obrigação de conceder crédito e para o cliente o direito a exigi-lo. XXVII. É perfeitamente possível, e inteiramente normal, que, celebrado um contrato de abertura de crédito, nunca venha, porque o cliente não quer ou não precisa dele, a ser concedido efectivamente crédito. XXVIII. Nem a inscrição em conta, nem os posteriores movimentos a débito são imediatos e automáticos, dependendo ambos de actos voluntários (negociais ou não) do cliente. XXIX. É, portanto, perfeitamente normal que, celebrado um contrato de abertura de crédito, não se lhe sigam nem inscrições de crédito em conta, nem, muito menos, débitos correspondentes a utilizações. XXX.Oqueéanormaléque, primeiro, o autor (que silenciou qualquer alegação a esse respeito), e depois Sua Excelência, o Senhor Juiz, considerem que o crédito em conta, subsequente à conclusão do contrato de abertura de crédito, pode ser feito sem nenhuma instrução do cliente. XXXI. Sua Excelência, o Senhor Juiz, numa das passagens da sentença que mais desassombradamente manifestam a inversão do ónus da prova, favorecendo probatoriamente a parte que a lei probatoriamente desfavorece, afirma que seria anormal que um banco (ou um liquidatário de um banco) “emitisse documentação atestando [é sintomático que o Tribunal reconheça a uma das partes o poder de atestar factos) entrega e uso das quantias” se isso não fosse verdade, pois que isso representaria negligência na actividade bancária, fraude e burla. XXXII. Como quem diz: se o um banco atesta que foi assim, é porque foi assim; o cliente, se quiser, que prove o contrário. XXXIII.Oqueéverdadeéque,comoépúblicoenotório(efoialegado,semcontradição,nacontestação),oautorémesmoumreconhecidocasodeburlaefraude:osseusadministradoresforamcondenadosporfalsificação dedocumentos,falsificaçãodecontabilidadeeburlainformática, enganadodespudoradamenteosseusclienteseoregulador. XXXIV.Seháumaregra de experiência comum que se impõe, essa regra determina que nãose pode confiar nos registos de umbancocujos administradores foram condenados por falsificarem documentos e a contabilidade do banco, enganandotodaagente, manipulandoo respetivo sistemainformático. XXXV.Porfim,distinguindo entre o que é normal(o quod plerum queaccidit)e o que éanormal,vejamos todas as anormalidades da actuação e da história do autor enquantobanco,emgeral eno ocasodos autos: - nãoénormalumbancoserintervencionadopeloregulador; - nãoénormalumbancoinsolver; - nãoénormalosadministradoresdeumbancoseremcondenadospor crimes econtra-ordenações,envolvendofalsificaçãodedocumentos,falsificaçãode contabilidadeemanipulaçãoderegistosinformáticosecontasdeclientes; - nãoénormalumbanconãoemitirenãoenviaraosseusclientesextractosde contacomaperiodicidaderegulamentar; - nãoénormalumbanco (ou o representante dos seus destroços de liquidação) apresentar,cercade17anosapósalegadosmovimentosemconta,um “extracto” queabrangeumperíododecercade17anos; - não é mais, mais do que tudo, normal que um Tribunal reconheça aum bancocom estaspráticas e esta históriaoprivilégio deemitir “atestados” sobre factospor elealegados. XXXVI.Semprescindir,asentençaénula. XXXVII. Énulaporque,desdelogo,emviolaçãodoprincípiododispositivo, conheceudefactosessenciais,quedeucomoprovados,quenãoforam alegadospeloautor. XXXVIII. O autor alegou que as alegadas transferências bancárias foram ordenadas apenas por um dos réus, mas o Tribunal recorrido deu como provado que foram ordenadas por ambos. XXXIX. O Tribunal recorrido, para levar até ao fim a sua impressão inicial, teve de ir eliminando como podia os empecilhos que os autos lhe punham no caminho: ora a inconveniência de alguns dos factos essenciais alegados pelo autor, ora a ausência de prova da ocorrência de outros. XL. O autor alegou duas transferências bancárias que não conseguiu provar e alegou, além disso, que os valores transferidos teriam servido para investir na aquisição de participações sociais da Liminorke e da Kendall II. XLI. O Tribunal recorrido, não encontrando prova de nenhum desses factos, decidiu dar como provado outro “facto”: o facto de os réus “fazerem seus” os “montantes entregues pelo autor”. XLII. Emconsequênciadasduasviolaçõesdoprincípiododispositivo queseacabadeidentificar,otribunalcometeuumaterceira,consistenteemdeclararemobjectodiversodopedido:aopassoqueoautorpediaquesedeclarasse que os réus“utilizaramo montante e de €1.500.000,00”, o Tribunaldeclarou que “osréusreceberam daautoraaquantiaglobal€1.500.000,00”. XLIII. AsentençaétambémnulaporqueoTribunalincumpriuasexigênciasmínimas dodeverdedeverdefundamentaçãodadecisãodamatériadefacto. XLIV. Em lugar de, discriminadamente, identificar quais, especificamente, os meios de prova em que fundou a convicção da ocorrência de cada um dos factos que deu como provados, o Tribunal recorrido, limitou-se a referências genéricas a amálgamas indiscriminadas de factos de meios de prova, enriquecidas com fórmulas sem nenhum valor acrescentado, em termos de cumprimento do dever de fundamentação, como a afirmação de que a testemunha “depôs de forma credível”. XLV. Adecisãodamatériadefactodeveseralterada. XLVI.Háalgunsfactosinstrumentaisque,sendorelevantesparaadecisãosobre algunsdosfactosessenciais,devemserjulgadosprovados,asaber: a) O facto de todas as instruções dos réus para movimentação das suas contas no banco autor serem dadas por escrito, sendo essa a prática estabilizada entres as partes (gravaçãoáudiododepoimento da testemunha CC,entre00:07:35e00:07:48); b) O facto de todas as transferências de fundos referidas no documento n.º 13 junto à PI serem dirigidas a outras contas dos réus abertas no banco autor, e não em outro banco (gravaçãoáudio do depoimento da testemunha DDentre01:26:00e01:29:25 e gravação áudio da testemunha EE, entre00:21:00e00:21:45); c) O facto de os administradores do autor terem sido condenados por falsificação de documentos e de contabilidade, com o propósito de enganarem os clientes do banco autor e o regulador. XLVII.Há,poroutrolado,umfactoinstrumentalqueoTribunalrecorridoconsideroue quedeveserjulgadonãoprovado:ofactodaalegadasolidezdosistema informáticodoautor(gravação áudio do depoimentodatestemunhaFF, entre00:05:00e00:07:25) XLVIII.HáumfactoessencialsobreoqualoTribunalrecorridonãosepronunciou,mas que deve ser julgado não provado, asaber:ofacto de aquantiade €1500000,00 tersidotransferidadeumacontadosréus,abertanobancoautor,parauma contaabertaemoutro banco(gravação áudio do depoimentodatestemunha DD, entre01:26:00e01:29:25e gravação áudio do depoimento testemunhaldeEE, entre00:21:00e00:21:45). XLIX. Háfactosqueforamjulgadosprovados,masquedevemserjulgadosnão provados,asaber: a) O facto objecto do n.º 14 da lista de factos provados; b) O facto objecto do n.º 15 da lista de factos provados; c) O facto objecto do n.º 16 da lista de factos provados (gravação áudio do depoimentodatestemunhaCC, entre00:07:35e00:07:48); d) O facto objecto do n.º 17 da lista de factos provados, CC, entre 00:07:35 e 00:07:48 (gravação áudio do depoimentodatestemunhaCC, entre00:07:35e00:07:48); e) O facto objecto do n.º 18 da lista de factos provados; f) O facto objecto do n.º 19 da lista de factos provados (gravação áudio do depoimentodatestemunhaCC,entre00:07:35e00:07:48); g) Facto objecto do n.º 21 da lista de factos provados. L. Sem prescindir, aacçãosempre deveriaimprocedermesmoque fossemjulgados provadosalgunsdosfactosalegadospeloautor,que,comoseviu,numa violação grosseiradoprincípio do dispositivo, foram substituídosporoutrosque oTribunalrecorridodecidiuarticular,elepróprio,ejulgarcomoprovados. LI. O caso mais flagrante diz respeito à questão da autoria das instruções ou ordens de realização dos movimentos a débito alegadamente inscritos pelo autor em contas dos réus –movimentos esses, recorde-se, absolutamente essenciais para a procedência da acção. LII. O autoralegouquetaismovimentosforamfeitosporapenasumdosréus,AA. O tribunal recorrido, para além de ter omitido a sua pronúncia sobre alguns daqueles movimentos (os mais essenciais de todos), num movimento decisório desconcertante (desconcertante para quem espera dos Juízes respeito escrupuloso pelo princípio do dispositivo – que é uma das faces do princípio da imparcialidade), deucomoprovadoquetaismovimentoshaviam sidofeitosporordemdosréus,deambososréus. LIII. Sem essa grosseira violação do princípio do dispositivo, mesmo que se tivesse dado como provado que as ordens para os alegados movimentos a débito tivessem sido dadas pelo réu AA, como alegado pelo autor, a acção teria de ser julgada improcedente, dado que, na ausência de lei ou estipulação em contrário (oautornemsequeralegouaexistênciadecontratodeaberturade conta), a conta onde se terão inscrito tais movimentos era uma contaconjunta, por força do disposto no art.º 513.ºdoCC. LIV. E, sendo uma conta conjunta, nunca poderia ser movimentada por ordem de apenas um dos seus titulares. Algum movimento que tivesse sido feito com base em ordem, ou instruções, de apenas um dos réus sempre lhes inimputável e inoponível. LV. ParececlaroqueSuaExcelência,oSenhorJuizqueproferiuasentençarecorrida,teriapreferidoqueoautorapresentasseumaPIdiferentedaqueapresentouequeosréusdeduzissemumacontestaçãodistintadaquededuziram.Comoaspartesnãoarticularamcomolhepareceumaisconveniente,foipro-activo:começouporconvidarosréusarepensarasuacontestação(sugerindo-lhes, implicitamente, que confessassem ou,alternativamente,quealegassemterempagooqueele,SenhorJuiz,jáconsiderara,apriori,comodevido);eacabouadarcomoprovadosfactosnãoalegadoseadeclararalgodiversodoqueforapedido. LVI. Por outro lado, mesmoquesemantivesseadecisãodefactoquantoaos alegadosmovimentosadébito,sempreaacçãoteriadeimproceder. LVII. Na verdade, tais movimentos, como se viu, circunscrevem-seatransferênciasde fundos entre contas dos mesmos clientes abertas no mesmo banco. LVIII. O quesignificaquetaistransferênciasnãoalteram,denenhummodo,arelação obrigacionalentreaspartes: se um banco credita na conta X do cliente A a quantia de € 1.000,00, este passa a ser credor, em relação ao banco, dessa quantia (loans make deposits); se essa quantia for depois transferida para a conta Y do mesmo banco, titulada pelo mesmo cliente A, este continua a ser credor de €1.000,00 em relação ao mesmo banco; o débito na primeira conta foi neutralizado pelo crédito na segunda – tudo visto, a posição relativa das partes é exactamente a mesma, continuando o cliente credor do banco. LIX. Efoiexactamenteporisso,sabendodisso,queoautoralegou(epediuquefosse declarado)que osréusutilizaramo crédito, atravésdatransferência dos valores alegadamentelançadosacréditoparaoutrobanco–facto,absolutamente essencialparaosucessodaacção,sobreoqualoTribunalrecorridonemsequer sepronunciou(masque,emqualquercaso,devedar-secomonãoprovado). LX. Não é legalmente possível condenar numa “multaaliquidar”. Se o Tribunal não tem elementos para determinar a multa, deve, antes de proferir a sentença, apurá-los. LXI. Condenar numa multa ilíquida é o mesmo que não condenar em multa nenhuma, colocando-se o Tribunal a si próprio num dilema: ou não líquida a multa em decisão subsequente; ou fá-lo ilegalmente, praticando um acto nulo, depois de esgotado o seu poder jurisdicional. LXII. Seja como for, não estão, de nenhum modo, verificados os pressupostos da litigância de má fé. LXIII. O Tribunal recorrido violou as seguintes normas: art.º 342.º/1 do CC, art.º 113.º/1 do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12/11, e arts. 542.º, 607.º/4 e 615.º/1-b), c), d) e e), todos do CPC. Eis,assim,SenhoresJuízesDesembargadores,asrazõespelasquaissepedequea apelaçãosejajulgadaprocedente,revogando-se,emconsequência,asentença recorridaesubstituindo-aporacórdãoqueabsolvatotalmenteosréusdopedidoeda condenaçãocomolitigantesdemáfé.
O Recorrido contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões: Aqui chegados, cumpre, de forma sumária, convocar os elementos probatórios que confirmam o acerto e, consequentemente, a manutenção da decisão sobre a matéria de facto. Sendo certo que relativamente aos pontos 1 a 13 dos factos assentes nenhuma crítica mereceu em sede de apelação, pelo que, não será necessário repisar os factos nos quais tal factualidade foi dada por assente. Sendo certo que, estando devidamente assentes os factos, a conformação jurídica é simples na medida em que, não obstante, a tergiversação argumentativa dos Réus estamos perante uma situação típica de responsabilidade por violação de obrigações contratuais, por parte dos Réus. Não obstante a prosápia argumentativa que perpassa as alegações, é inequívoca que a ponderação e valorização dos meios de prova carreados para os autos confirmam a justeza e acerto da sentença proferida pelo Tribunal “a quo”. Relativamente ao ponto 14 é inequívoco de toda a alegação e documentação junta aos autos que os Réus são titulares da conta n.º … e que esta foi movimentada crédito e a débito. O facto de na sentença ser indicada, somente, uma referência ao Banco Privado Português (BPP) – sem qualquer referência sequer a SA, como é correctamente referido – não põe em crise – até porque confessado pelos Réus – que estamos perante uma conta aberta no BPP Cayman e titulada pelos Réus. Seria, no limite, um mero lapso de escrita perfeitamente identificado no contexto em que foi escrito e para o qual foi apresentado requerimento. O facto de os Réus serem os titulares de tal conta resulta, desde logo, de expressa confissão dos Réus e de decisão já transitada em julgado (conforme melhor exposto supra); dos contratos de abertura de crédito em conta corrente com expressa referência a tal conta onde seriam creditados os montantes contratados e também de toda a documentação complementar, na qual se incluem os extractos bancários e as comunicações internas do banco que referem tal conta como sendo dos Réus. Relativamente aos pontos 15.º, 18.º e 21.º dos factos assentes, o acerto da decisão resulta da prova conjugada dos contratos de abertura de crédito em conta corrente com expressa referência dos montantes objecto da abertura de crédito em conta corrente, assim como de toda a documentação complementar, na qual se incluem os extractos bancários (cf. documento n.º 13 e 19 e respectivo reconhecimento notarial). Também os esclarecimentos prestados em audiência pelo Dr. DD se revelaram importantes tendo tal testemunha, conforme realça a sentença prestado depoimento de “forma credível, demonstrando conhecimento de todo o negócio e história do BPP”. Finalmente, relativamente aos pontos 16., 17. e 19. dos factos assentes, o acerto da decisão resulta da prova conjugada dos contratos de abertura de crédito e também de toda a documentação complementar, na qual se incluem os extractos bancários (cf. documento n.º 13 e 19 e respectivo reconhecimento notarial) e os registos de movimentação juntos pelo Autor sob documento n.º 14 e 17. Também os esclarecimentos prestados em audiência pelo Dr. DD se revelaram importantes pela clareza e independência com que foram prestados. Uma nota final para evidenciar que, embora exista factualidade que indicasse a finalidade última dos investimentos realizados pelos Réus, o Meritíssimo Tribunal “a quo” entendeu não ter sido realizada prova suficiente no sentido de que os títulos adquiridos fossem os indicados pelo Autor – Kendall II e Liminorke. Contudo, é inegável que, até pelos esclarecimentos prestados pelo Dr. DD e pela Dra. CC, que os montantes objecto dos contratos juntos aos autos foram disponibilizados pelo Autor aos Réus e por estes utilizados para a subscrição de investimento de “private equity”, aliás, em conformidade com todas as propostas juntas aos autos. Relevando, acima de tudo, a prova irrefutável de entrega e uso dos créditos contratualizados entre as partes, tal como decidido pelo Tribunal a quo, que bem andou na apreciação da prova produzida, qualificação dos factos e sua subsunção ao Direito aplicável, inevitavelmente conducente à condenação dos Réus no pedido. NESTESENTIDO,DEVERÁSERMANTIDAASENTENÇAPROFERIDAPELOMERITÍSSIMOTRIBUNAL“AQUO”SÓASSIMSEFAZENDOACOSTUMADAJUSTIÇA!!!
Posteriormente foi proferida decisão pela 1ª instância fixando em 15 (quinze) UC a multa devida pelos réus como litigantes de má-fé.
Os Réus interpuseram recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem: I. Não é legalmente possível condenar numa “multaaliquidar”. Se o Tribunal não tem elementos para determinar a multa, deve, antes de proferir a sentença, apurá-los. II. Condenar numa multa ilíquida é o mesmo que não condenar em multa nenhuma, colocando-se o Tribunal a si próprio num dilema: ou não líquida a multa em decisão subsequente; ou fá-lo ilegalmente, praticando um acto nulo, depois de esgotado o seu poder jurisdicional. III. O despacho recorrido, que, depois de proferida a sentença, liquida multa cujo montante, se havia relegado, naquela, para posterior liquidação, é nulo, na medida em que, tendo sido praticado depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal (n.º1 e 3 do art.º do art.º 613.º do CPC), conhece de matéria de que este estava proibido de conhecer(vício de excesso de pronúncia) –facto integrador da nulidade cominada na parte final da alínea d) do n.º1 do art.º 615.º do CPC. IV. O Tribunal recorrido violou as seguintes normas: art.º 613.º1, ex vi n.º 3 do mesmo preceito, e 615.º/1-d), ambos do CPC. Eis,assim,SenhoresJuízesDesembargadores,asrazõespelasquaissepedequea apelaçãosejajulgadaprocedente,revogando-se,emconsequência,odespacho recorrido.
O Recorrido não apresentou contra-alegações.
II – OBJECTO DO RECURSO
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões formuladas pelo Recorrente na motivação do recurso em apreciação, estando vedado a este Tribunal conhecer de questões aí não contempladas, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se impõe (artigos 635º, nº 2, 639º, nº 1 e nº 2, 663º, nº2 e 608º, nº 2, do C.P.C.)
Deste modo, as questões que cumpre apreciar são as seguintes: Recurso interposto da sentença
- exclusão de juízos conclusivos/de direito inseridos na decisão de facto;
- nulidade da sentença por violação do princípio do dispositivo, por falta de fundamentação e por excesso de pronúncia, e insuficiência da decisão de facto;
- impugnação da decisão de facto;
- erro de direito conducente à improcedência do pedido;
- não estão preenchidos os pressupostos da condenação dos Réus como litigantes de má-fé;
- inadmissibilidade legal da condenação do litigante de má-fé em multa a liquidar; Recurso interposto da decisão que fixou em 15 (quinze) UC a multa devida pelos réus como litigantes de má-fé
- nulidade da decisão por excesso de pronúncia.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A)
O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1.O Banco Privado Português (Cayman) Limited (In Official Liquidation) é uma sociedade de direito das Ilhas Caimão, nesse país tendo estado autorizada a exercer actividade bancária e registada junto do Registrar of Companies of the Cayman Islands (documento n.º 1 da petição inicial, dado por integralmente reproduzida);
2. Por decisão do Grand Court of the Cayman Islands proferida no dia 9 de julho de 2010, o BPP Cayman foi declarado insolvente e iniciou o seu processo de liquidação (nos demais termos do documento n.º 3 anexo à petição inicial, dado por integralmente reproduzido);
3. São liquidatários actuais da autora GG (nomeado por decisão do Grand Court of the Cayman Islands de 20/11/ 2014) e HH (nomeado por decisão do Grand Court of the Cayman Islands de 13 de julho de 2016) – nos demais termos dos documentos n.º 4 e 5 da petição inicial, dados por integralmente reproduzidos;
4. A autora instaurou, contra os aqui réus, processo executivo para cobrança do crédito em discussão nestes autos, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo de Execução de Lousada – Juiz 2, processo n.º 1628/19.0T8LOU;
5. Os aqui réus, executados naqueles autos, deduziram oposição à execução, designadamente invocando falta de título executivo;
6. Por acórdão de 8/11/2021 proferido pelo Tribunal da Relação do Porto foi decidida a extinção da execução por a exequente carecer de título dotado das necessárias condições de exequibilidade extrínseca, (nos demais termos da cópia junta como documento n.º 6 anexo à petição inicial, dada por integralmente reproduzida);
7. Nesse acórdão consta, designadamente, que a execução em causa fora proposta em 30 de abril de 2019;
8. Em 10 de Novembro de 2006, no âmbito da sua actividade bancária, o BPP Cayman celebrou com os réus AA e BB escrito intitulado Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente, nos demais termos constantes do documento n.º 8 anexo à petição inicial, dado por integralmente reproduzido;
9. Desse escrito consta, designadamente, que BPP Cayman concede crédito em conta corrente aos réus, até ao montante máximo de € 1.000.000 (um milhão de euros);
10. Nesse dia 10/11/2006, declarando ser para garantia das obrigações assumidas no escrito antes referido, os aqui réus declararam constituir penhor a favor do BPP das contas bancárias 14005 e 8051, incluindo todos os valores mobiliários e disponibilidades financeiras que as integrassem nesta data e aqueles que as viessem a integrar (nos demais termos do escrito junto como documento n.º 9 anexo à petição inicial, dado por integralmente reproduzido);
11. Em 15 de março de 2007 autora e réus declaram por escrito intitulado Aditamento ao Contrato de Penhor que os réus procediam a reforço e substituição das garantias (nos demais termos do documento n.º 10 anexo à petição inicial, dado por integralmente reproduzido);
12. No dia 22 de outubro de 2007, autora e réus declararam por escrito intitulado 1.º Aditamento ao Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente celebrado em 10/11/2006, designadamente, que o BPP Cayman aumenta o limite de crédito dos Réus em € 500.000,00 (quinhentos mil euros) para um total de € 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil euros), nos demais termos do documento n.º 11 anexo à petição inicial, dado por integralmente reproduzido;
13. Nesse dia de 22 de outubro de 2007 autora e réus declararam por escrito o que consta de documento intitulado 2.º Aditamento ao Contrato e Penhor celebrado em 10/11/2006, nos demais termos constantes do anexo n.º 12 à petição inicial, dado por integralmente reproduzido;
14. Os réus AA e BB são clientes do Banco Privado Português (BPP) e titulares de conta bancária aberta aí aberta em 10/11/2006, com o n.º …, que movimentaram a débito e a crédito;
15. No dia de abertura de conta (10/11/2006) a autora entregou aos autores, creditando a referida conta bancária no BPP com o n.º …, o montante de €1.000.000 (um milhão de euros);
16. Nessa mesma data, por ordem dos réus dada de forma não apurada, o montante antes referido foi transferido e creditado na conta bancária n.º 2457, também titulada pelos réus junto do BPP;
17. Ainda nessa data (10/11/2006), por ordem dos réus dada de forma não apurada, o montante antes referido (um milhão de euros) foi transferido e creditado na conta bancária n.º … titulada pelos réus junto da aqui autora BPP Cayman;
18. No dia 22/10/2007 a autora entregou aos réus, por meio de crédito na conta bancária n.º …, o montante de €500.000,00 (quinhentos mil euros);
19. Por ordem dos réus, dada de forma não apurada, este montante (quinhentos mil euros) foi transferido foi transferido e creditado na conta bancária n.º … titulada pelos réus junto da aqui autora BPP Cayman;
20. Nos documentos intitulados Proposta de Aprovação de Operação de Crédito, nos demais termos dos documentos n.º 16 e 18 juntos à petição inicial, dados por integralmente reproduzidos, consta o nome do réu ao lado dos dizeres mutuário e os dizeres manuscritos investimento financeiro em Liminorke e Kendal II ao lado dos dizeres impressos “finalidade”;
21. Os réus fizeram seus e não restituíram os referidos montantes entregues pela autora (valor global de €1.500.000,00 - um milhão e quinhentos mil euros), designadamente não aprovisionando a conta bancária n.º … de valores que permitissem a cobrança de qualquer quantia pela autora, desde data não apurada não posterior a 13/11/2009. –
B)
O Tribunal a quo julgou não provado o seguinte facto:
- Que os réus tenham utilizado as quantias creditadas em conta bancária para aquisição de títulos Liminorke e Kendal II.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Exclusão de juízos conclusivos e de direito inseridos na decisão de facto
Os Recorrentes impugnaram a decisão de facto, e das conclusões recursórias decorre que os mesmos colocam em crise a conclusão/valoração jurídica que o tribunal a quo indevidamente inseriu no ponto 21 da decisão do facto, no segmento relativo aos factos provados.
Ora a fundamentação de facto da sentença deve conter apenas matéria de facto, conforme decorre do disposto no nº 4 do artigo 607º do C.P.C..
A referência na norma do nº 4 do artigo 607º do C.P.C. a “factos “não deixa dúvidas sobre o entendimento aí consagrado, ou seja. que “o objecto da sua pronúncia aqui prevista limita-se, tão só e apenas, a factos, dela estando necessariamente excluída matéria conclusiva ou de direito”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 18.1.2024, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt )
Com efeito “ apesar de não existir no actual CPC, de 2013, uma disposição idêntica ao art.º 646.º, n.º 4, do anterior CPC, de 1961 (onde se afirmava que se tinham como «não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito» [14]), entende-se hoje, tal como então, que há que distinguir na decisão de facto entre facto, direito e conclusão: pretende-se que a decisão de facto contenha apenas o facto simples, assertivamente afirmado e demonstrado; e dela sejam excluídos, quer meras realidades hipotéticas, quer conceitos de direito (salvo os que transitaram para a linguagem corrente, por assimilação pelo cidadão comum, uma vez que correspondem a um facto concreto, e desde que não constituem eles próprios o thema decidendu), quer conclusões, que mais não são do que a lógica ilação de premissas [15].Logo, quando na fundamentação de facto de uma decisão judicial se contenham, como pretensos factos, realidades hipotéticas, conceitos de direito e/ou conclusões, deverão os mesmos ter-se por não escritos (isto é, necessariamente como inexistentes, enquanto factos)”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 18.1.2024, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt ; no mesmo sentido ver Acórdão da Relação de Évora de 28.6.2018, rel. Florbela Moreira Lança e jurisprudência aí citada, e Acórdão da Relação do Porto de 13.7.2022, rel. Fátima Andrade, também disponíveis em www.dgsi.pt )
Deste modo, “sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado. Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob esta perspectiva, não se podendo incluir na mesma a valoração jurídica de factos, mas apenas as circunstâncias de vida subjacentes a essas valorações que as possam vir a sustentar, na apreciação jurídica que sobre as mesmas venha a ser realizada, integrando, já estas, matéria de direito”. (Acórdão da Relação de Évora de 28.6.2018, rel. Florbela Moreira Lança, disponível em www.dgsi.pt )
Assim sucede com a a expressão “Os réus fizeram seus “que consta do ponto 14 dos Factos Provados, matéria que consubstancia conceitos de direito e/ou juízos conclusivos, a qual por conseguinte tem de se considerar como não escrita, não podendo integrar a fundamentação de facto dessa decisão.
Com efeito não se aqui trata aqui de factos, isto é, realidades apreensíveis pelos sentidos, “produtores dos efeitos jurídicos pretendidos “, mas antes de “simples referência a conceitos legais ou a afirmação de certas conclusões desenquadradas dos factos subjacentes”. (A. Geraldes, obra supra cit., pág. 177)
Importa não olvidar que “a supressão de expressões de cariz jurídico-conclusivo, não tem a virtualidade de afastar a valoração dos concretos factos que constem da matéria de facto provada de afastar a valoração dos concretos factos que constem da matéria de facto provada, pois é com base em factos concretos que pode sustentar-se o juízo e não a partir de expressões conclusivas que representam conceitos/conclusões que não podem ser objecto de prova”. (Acórdão da Relação de Évora de 28.6.2018, rel. Florbela Moreira Lança, disponível em www.dgsi.pt )
Termos em que se julga não escrita a expressão “fizeram seus “do ponto 14 da Fundamentação de Facto, segmento dos Factos Provados da decisão recorrida, o qual passará a ter a seguinte redacção:
Os réus não restituíram os referidos montantes entregues pela autora (valor global de €1.500.000,00 - um milhão e quinhentos mil euros), não aprovisionando a conta bancária n.º … de valores que permitissem a cobrança de qualquer quantia pela autora, desde data não apurada não posterior a 13/11/2009. Nulidade da sentença por violação do princípio do dispositivo, por falta de fundamentação e por excesso de pronúncia, e insuficiência da decisão de facto
Vieram os Recorrentes arguir a nulidade da sentença recorrida por violação do princípio do dispositivo, sustentando que o tribunal a quo conheceu de factos essenciais que não foram alegados pelo Autor, a saber que os movimentos bancários referenciados na petição inicial foram ordenados também pela Ré.
Insurgem-se igualmente os Recorrentes por o tribunal a quo nem sequer se ter pronunciado sobre os factos alegados pelo Autor, ou seja, que os Réus utilizaram o crédito respectivamente de 1.000.000,00 e de 500.000,00 euros que este lhes concedeu, que, no entanto, entendem deverem ser julgados não provados.
Os Recorrentes invocam ainda a nulidade da sentença por o tribunal a quo ter declarado objecto diverso do pedido pelo Autor, e por falta de fundamentação da decisão de facto.
Sentença nula é aquela que padece de algum dos vícios taxativamente enumerados no artigo 615º, nº 1, do C.P.C.., que engloba nas alíneas b) e c) “vícios de estrutura”, e nas alíneas d) e e) “vícios de limites (de pronúncia ou de objecto)”. (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 3ª ed., pág. 451)
Apelam os Recorrentes ao disposto nas alíneas b), c), d) e e) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C., cuja violação imputam ao tribunal a quo.
Dispõe o artigo 615º, nº 1, b), do C.P.C. que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
Trata-se de um corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais constitucionalmente consagrado (artigo 205º da C.R.P.), preconizado pelo artigo 154º do C.P.C., e particularizado no que respeita à sentença no mencionado artigo 607º, nº 2, nº 3 e nº 4, do C.P.C..
O dever de fundamentação das decisões que se impõe ao julgador visa garantir o direito a um processo justo e equitativo consagrado no artigo 6º da C.E.D.H., assegurando o efectivo exercício do direito de recurso, que integra as garantias de defesa constitucionalmente previstas, bem como a legitimação das decisões do poder judicial, inerente às regras da independência e imparcialidade do juiz no exercício da função jurisdicional que constituem princípios estruturantes do estado de direito (artigos 203º da C.R.P., 3º e 6º C do E.M.J. e 6º da C.E.D.H.).
A fundamentação dos actos decisórios torna inteligíveis os motivos subjacentes à tomada da decisão, a qual deste modo pode ser compreendida e sindicada pelos seus destinatários, e tornada perceptível para a comunidade em geral.
O artigo 607º, nº 2, nº 3 e nº 4, do C.P.C., estabelece as regras de elaboração da sentença nos seguintes termos:
2 - A sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Tem sido entendimento da doutrina e da jurisprudência que “há nulidade (…) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão “, e que “não a constitui a mera deficiência de fundamentação “. ( Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., pág. 736 ; no mesmo sentido ver Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I,2018, págs. 615 e 616 ; Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140 ; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 687 ; Acórdãos do S.T.J. de 3.3.2021, rel. Leonor Rodrigues, e de 3.3.2021, rel. Maria do Rosário Morgado, da Relação de Coimbra de 13.12.2022, rel. Paulo Correia, e da Relação de Guimarães de 12.10.2017, rel. José Cravo, todos disponíveis em www.dgsi.pt )
Conforme decidido pelo Acórdão da Relação do Porto de 4.5.2022, “a arguida falta de motivação da decisão da matéria de facto (falta de fundamentação e omissão de pronúncia) não constitui vício da sentença susceptível de gerar nulidade à luz do art.º 615º do CPC, sendo antes patologia que a verificar-se, poderia determinar a aplicabilidade da solução estabelecida no art.º 662º, nº 2, d) do CPC”. (rel. João Ramos Lopes, disponível em www.dgsi.pt )
Com efeito, “apesar de no presente a sentença contemplar também a decisão da matéria de facto, tal como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, esta circunstância “não justifica a aplicação, sem mais, do regime do art.º 615.º à parte da sentença relativa à decisão da matéria de facto – desde logo porque a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art.º 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do acto”(cf. os n.ºs 2 e 3 do art.º 662) –, obriga, pelo menos, a ponderar, caso a caso, a possibilidade dessa aplicação[5],[6].
Acrescentam os mesmos autores (obra citada, pág. 736) “Face ao actual código, que integra na sentença tanto a decisão da matéria de facto como a fundamentação desta decisão (art.º 607.º, n.ºs 3 e 4), deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b) do n.º 1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo à segunda, diversamente aplicável o regime do art.º 662, n.ºs 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.pt, proc. 1644/11, e ac. do TRP de 29.6.2015, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt, proc. 839/13)”. ( in Acórdão da Relação de Coimbra de 13.12.2022, rel. Paulo Correia, disponível em www.dgsi.pt ; no mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto de 4.5.2022, rel. João Ramos Lopes, disponível em www.dgsi.pt)
Importa não olvidar que a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto comporta a “ a indicação expressa das razões que levaram à formulação do decidido, embora não se imponha ao tribunal a descrição minuciosa de todo o processo de raciocínio, bastando que sejam indicados, de forma clara e inteligível, quais os meios de prova, fazendo-se a enunciação das razões ou motivos substanciais porque os mesmos relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador, de modo a que se possa controlar a razoabilidade da convicção expressa “.( Acórdão da Relação de Coimbra de 16.3.2021, rel. António Carvalhal Martins, disponível em www.dgsi.pt )
Ora ao contrário do invocado pelos Recorrentes o tribunal a quo não omitiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto e, por conseguinte, não se verificando a falta absoluta dos fundamentos de facto em que se estriba a sentença recorrida improcede nesta parte o recurso.
Dispõe a alínea c) do nº 1 artigo 615º do C.P.C., que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A nulidade “ ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final “, tratando-se de “ situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente “. (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 738)
Por outro lado a decisão judicial é “ obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível ; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes; num caso não se sabe o que o juiz quis dizer ; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos “. (Acórdão do S.T.J. de 12.1.2023, rel. Ramalho Pinto, disponível em www.dgsi.pt ; no mesmo sentido ver Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 738)
No que respeita a estes fundamentos de nulidade apesar de os terem invocado genericamente os Recorrentes nem nas alegações nem nas conclusões do recurso concretizam essa alegação.
Improcede assim nesta parte o recurso.
Dispõe o artigo 615º, nº 1, alínea d), parte final, do C.P.C., que é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A nulidade por excesso de pronúncia reporta-se aos casos “do conhecimento de questões que a sentença não podia julgar, por não terem sido postas em causa”. (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 691)
Sustentam os Recorrentes que a sentença recorrida é nula porquanto o tribunal a quo conheceu de factos essenciais que não foram alegados pelo Autor, a saber, que os movimentos bancários referenciados na petição inicial foram ordenados também pela Ré.
A causa de pedir corresponde ao facto jurídico em que se funda a pretensão jurídica dos opoentes – artigo 484º, nº 4, do C.P.C..
Deste modo “o preenchimento da causa de pedir, independentemente da qualificação jurídica apresentada, pressupõe a alegação do conjunto de factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou das normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela jurisdicional se busca através do processo.” (A. Geraldes, Temas de Reforma do Processo- 1 Princípios Fundamentais, 1997, pág. 176)
De acordo com o disposto pelo artigo 5º, nº 1, do C.P.C., o juiz” só pode servir-se dos factos articulados pelas partes (integradores da causa de pedir ou em que se baseiam as excepções), só podendo, pois, fundar a decisão nos factos essenciais (principais) alegados pelas partes nos articulados, sem prejuízo dos poderes de cognição oficiosa (e consideração ) dos factos complementares que lhe são conferidos pelo nº 2 do art.º 5º”. (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, 3ª ed., Pág. 422)
Conforme decidido pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 27.2.2025 “ apenas podem ser considerados na sentença (com referência, sempre, aos limites de cognição do tribunal traçados pela causa de pedir e/ou excepção individualizadas e identificadas nos factos essenciais alegados pelo autor e pelo réu – art.º 5º, nº 1 e 615º, nº 1, al. d) do NCPC) os factos complementares e instrumentais – estes, quando resultem da instrução da causa (art.º 5º, nº 2, a) do NCPC); aqueles, quando resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido as partes possibilidade de se pronunciar (art.º 5º, nº 2, b) do NCPC)”. (rel. Carla Oliveira, disponível em www.dgsi.pt; no mesmo sentido Acórdãos da Relação do Porto de 5.12.2024, rel. Carlos Portela; Coimbra de 15.1.2019, rel. Vítor Amaral; do S.T.J. de 7.12.2023, rel. Cura Mariano)
No entanto a consideração pelo tribunal recorrido de factos não alegados pelas partes, em violação do disposto no artigo 5.º, n.º 1 e 2, do C.P.C., não consubstancia a invocada nulidade da sentença.
Fazendo apelo aos ensinamentos de Alberto dos Reis “quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art.º 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art.º 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”. (Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1984, págs. 144 e 145)
Efectivamente “ o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC”. (Acórdão do S.T.J. de 23.3.2017, rel. Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt)
É certo que “a decisão de matéria de facto pode ainda sofrer de outras patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação da prova e que podem e devem ser conhecidas e solucionadas oficiosamente pela Relação. Assim é, nomeadamente, quando a decisão de facto inclua asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito; se revele excessiva; seja deficiente, obscura ou contraditória; careça de ampliação; e não esteja devidamente fundamentada”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 27.2.2025, rel. Carla Oliveira, disponível em www.dgsi.pt)
Deste modo “ quando o juiz tome conhecimento de factos essenciais de que se não pode servir, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes, não comete a nulidade prevista no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC ”, antes “ quando tal ocorra, não podem tais factos ser considerados, devendo ser eliminados do elenco dos factos provados, mesmo oficiosamente por envolver a interpretação e a aplicação de regras processuais de cariz imperativo, concretamente do artigo 5º, nº 1 e 2 do NCPC “. (Acórdão da Relação de Guimarães de 27.2.2025, rel. Carla Oliveira, disponível em www.dgsi.pt )
Termos em que se julga não escrita a expressão “por ordem dos réus dada de forma não apurada “dos pontos 17 e 19 da Fundamentação de Facto, segmento dos Factos Provados da decisão recorrida, os quais passarão a ter a seguinte redacção:
17. Ainda nessa data (10/11/2006), por ordem do réu dada de forma não apurada, o montante antes referido (um milhão de euros) foi transferido e creditado na conta bancária n.º … titulada pelos réus junto da aqui autora BPP Cayman;
19. Por ordem do réu, dada de forma não apurada, este montante (quinhentos mil euros) foi transferido foi transferido e creditado na conta bancária n.º … titulada pelos réus junto da aqui autora BPP Cayman.
Insurgem-se igualmente os Recorrentes por o tribunal a quo nem sequer se ter pronunciado sobre os factos alegados pelo Autor, ou seja, que os Réus utilizaram o crédito respectivamente de 1.000.000,00 e de 500.000,00 euros que este lhes concedeu, que no entanto entendem deverem ser julgados não provados, sustentando que se tratam de factos essenciais de acordo com o disposto pelo artigo 5º, nº 1, do C.P.C..
Fazem-no sem qualificar expressamente o vício que assim apontam à sentença recorrida.
É de considerar, no entanto que do que trata aqui é de insuficiência da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Conforme decidido pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 7.12.2023, “ não se está perante uma nulidade da sentença, prevista no artigo 615º, nº 1, d), do CPC (por omissão de pronúncia), nem perante uma nulidade de sentença por falta de fundamentação da matéria de facto (prevista na alínea b) do citado artigo 615º) mas de uma eventual omissão de factos na descrição da matéria de facto, a demandar a sua ampliação em sede de recurso, nos termos previstos no artigo 662º, nº 2, c)”. (rel. Amália Santos, disponível em www.dgsi.pt)
Com efeito os “ factos não constituem, pois, a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal e, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da acção, o facto de não lhes fazer referência - eventualmente porque não considerou tais factos relevantes no tratamento da questão - não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia. Os factos que alegadamente foram desconsiderados na 1ª instância poderiam eventualmente relevar no âmbito da valoração e aplicação das regras de direito; a sua falta pode constituir errore in judicando ou erro judicial, mas não o indispensável errore in procedendo, próprio das nulidades da sentença.” (Acórdão da Relação de Guimarães de 24.11.2014, rel. Filipe Caroço, disponível em www.dgsi.pt )
Deste modo “a decisão de facto será deficiente quando o tribunal não se pronuncie sobre factos essenciais ou complementares, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 14.3.2024, rel. José Carlos Duarte, disponível em www.dgsi.pt )
Entendendo-se que a decisão da 1ª instância é “ deficiente quando o que tenha dado como provado e como não provado não corresponda a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado pelas partes (…) padecendo a decisão de facto de alguns daqueles vícios, e não constando do processo todos os elementos que permitam supri-la, deverá ser anulada a sentença por forma a que o Tribunal a quo o possa colmatar (artigo 662º, nº 2, al. c), do C.P.C.).” (Acórdão da Relação de Guimarães de 6.3.2025, rel. Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt )
Importa não olvidar que se designa “por abertura de crédito (…) o contrato pelo qual o banco (creditante) se obriga a colocar à disposição do cliente (creditado) uma determinada quantia bancária (acreditamento ou linha de crédito) por tempo determinado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões”. (Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, 2014, pág.501)
Assim “incumbe ao creditante (Banco) o ónus da prova (art.342º, nº 1 do CC) de que o montante disponibilizado naquela primeira fase foi efectivamente entregue e utilizado pelos creditados naquela segunda fase do contrato”. (Acórdão da Relação de Guimarães de 2.11.2017, rel. Pedro Damião e Cunha, disponível em www.dgsi.pt; por todo ver ainda ver Acórdão da Relação de Lisboa de 14.9.2023, rel. Rui Manuel Pinheiro de Oliveira)
Não suscita por conseguinte dúvida a essencialidade dos factos referentes à utilização das quantias objecto do contrato de abertura de crédito em conta corrente celebrado entre as partes, factos esses, aliás alegados pelo Autor na sua petição inicial.
Dispõe o artigo 662º, nº 2, c), do C.P.C., a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Decorre assim da norma acima citada que no que respeita à ampliação de matéria de facto aí prevista se trata “de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do Recorrente bastando que a Relação se defronte com uma omissão objectiva de factos relevantes “. (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 307)
Conforme escreveu Ferreira de Almeida, “o juízo de indispensabilidade deve ter em mira os factos (relevantes/ pertinentes) conexionados com alguma das soluções plausíveis da questão de direito, face ao objecto do recurso e aos demais elementos oficiosamente atendíveis”. (Direito Processual Civil, volume II, 3ªed., pág.589).
Como tal, “se a decisão recorrida não se pronunciou sobre tais factos, considerando-os provados ou não provados, omitiu (…) matéria factual relevante para a decisão de direito, justificando-se que seja ordenada a ampliação da decisão de facto de forma a constituir base suficiente para a decisão jurídica do pleito”. (Acórdão do S.T.J. de 20.10.2005, rel. Araújo de Barros, disponível em www.dgsi.pt )
Ora não foram objecto de apreciação e consequente fundamentação da convicção do julgador em sede de decisão de matéria de facto factos invocados pelo Autor que se mostram indispensáveis para a decisão da causa, a saber aqueles invocados na parte final dos artigos 37º e 40º da petição inicial.
Deste modo, não restando dúvidas sobre a relevância de tais factos para a decisão da causa, e não constando dos autos todos os elementos probatórios pertinentes, mostra-se indispensável a ampliação da matéria de facto para apuramento desses factos. (neste sentido Acórdão da Relação de Guimarães de 6.10.2022, rel. Anizabel Pereira, disponível em www.dgsi.pt )
Neste sentido decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra de 3.3.2020, que conhecendo “oficiosamente a Relação da existência do vício da deficiência de facto (art.º 662º, nº 2, c) CPC), tal implica a anulação do julgamento e reenvio do processo ao tribunal da 1ª instância, ainda que a prova produzida em audiência tenha sido integralmente gravada”. (rel. Jorge Arcanjo, disponível em www.dgsi.pt)
Impõe-se, por conseguinte, nos termos preconizados pelo artigo 662º, nº 2, c), do C.P.C., a anulação oficiosa da sentença recorrida com vista ao apuramento dos factos acima referidos, ficando prejudicado a apreciação das demais questões suscitadas em sede de recurso interposto da sentença e do recurso interposto da decisão que fixou em 15 (quinze) UC a multa devida pelos réus como litigantes de má-fé.
Trata-se de “alargamento ou ampliação da matéria de facto, essa, com a consequente repetição do julgamento circunscrita à parte viciada da decisão fáctica objecto do acórdão anulatório da Relação “. (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, 3ª ed., pág. 589; no mesmo sentido Acórdão da Relação de Guimarães de 6.10.2022, rel. Anizabel Pereira, disponível em www.dgsi.pt)
V – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interposto da sentença e, em consequência, decidem:
- julgar não escrita a expressão “fizeram seus “do ponto 14 da Fundamentação de Facto, segmento dos Factos Provados da decisão recorrida, o qual passará a ter a seguinte redacção:
Os réus não restituíram os referidos montantes entregues pela autora (valor global de €1.500.000,00 - um milhão e quinhentos mil euros), não aprovisionando a conta bancária n.º … de valores que permitissem a cobrança de qualquer quantia pela autora, desde data não apurada não posterior a 13/11/2009.
- julgar não escrita a expressão “por ordem dos réus dada de forma não apurada “dos pontos 17 e 19 da Fundamentação de Facto, segmento dos Factos Provados da decisão recorrida, os quais passarão a ter a seguinte redacção:
17. Ainda nessa data (10/11/2006), por ordem do réu dada de forma não apurada, o montante antes referido (um milhão de euros) foi transferido e creditado na conta bancária n.º … titulada pelos réus junto da aqui autora BPP Cayman;
19. Por ordem do réu, dada de forma não apurada, este montante (quinhentos mil euros) foi transferido foi transferido e creditado na conta bancária n.º … titulada pelos réus junto da aqui autora BPP Cayman.
- anular a sentença recorrida com vista à ampliação da matéria de facto tendo por objecto os factos “ o crédito no montante de € 1.000.000,00 (um milhão de euros) foi efectivamente utilizado pelos Réus – cf. documento n.º 13 “ e “ o crédito no montante de € 500.000,00 (quinhentos mil euros) foi efectivamente utilizado pelos Réus - cf. documento n.º 13”, determinando-se a remessa dos autos à 1ª instância para julgamento e prolação de nova sentença pelo mesmo juiz que proferiu a sentença recorrida, não abrangendo o julgamento a parte decisão de facto que não está viciada ;
- declarar prejudicado o conhecimento do remanescente objecto do recurso de interposto da sentença e do recurso interposto da decisão que fixou em 15 (quinze) UC a multa devida pelos réus como litigantes de má-fé.
Custas do recurso pela parte vencida a final (artigo 527º, do C.P.C.).
Notifique e dê baixa.
Lisboa, 10-04-2025
Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros
Amélia Ameixoeira
Marília dos Reis Leal Fontes