RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
CONVENÇÃO DE HAIA
Sumário


1 – A Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980, ratificada por Portugal através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11/05 visa proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícita, estabelecendo as formas que garantam o regresso mais rápido possível da criança ao Estado da sua residência habitual.
2 – Estando assente a ilicitude da retenção, os tribunais têm de determinar o regresso imediato da criança, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção de Haia considera aptas a fundamentar uma decisão de recusa.
3 - O conceito de risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável, deve ser entendido como uma verdadeira exceção, utilizada apenas em última instância e não como um mecanismo de recusa automática.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

O Magistrado do Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de Braga, intentou a presente ação especial com processo tutelar comum com vista ao regresso imediato à República Federativa do Brasil da criança AA, nascida a ../../2015, filha de BB e de CC. 
Alegou, em suma, que a criança nasceu em ..., ..., ..., Estado ..., República Federativa do Brasil, país onde os seus pais contraíram matrimónio o qual foi dissolvido a ../../2020.
A criança viveu com a mãe em ..., ..., ..., até ../../2024 data em que a progenitora da menor viajou com ela para Portugal e domiciliou-se com a filha na Avenida ..., ..., casa ..., ..., ..., ....
O pai da menor apenas autorizou a vinda da filha a Portugal em férias, mas não autorizou a sua permanência em Portugal.
A deslocação e manutenção da criança em Portugal é ilícita porque efetuada em violação do regime do exercício das responsabilidades parentais que se encontrava em vigor relativamente a esta criança.
Terminou peticionando o regresso imediato da criança.

Distribuído o processo foram designadas datas para audição dos progenitores o que ocorreu a 18.11.2024, a 9.12.2024 e a 11.12.2024, tendo nesta última data sido ouvida, também, a avó paterna da menor. Foi tentada, sem sucesso, a audição da psicóloga que juntou um pequeno relatório aos autos mas recusou ser inquirida.
Foi junta prova documental.
A progenitora deduziu requerimento, a 26/11/2024, onde dá conta de que a criança está matriculada e a frequentar a escola pública de .... Pede que não seja ordenado o regresso da criança por este se traduzir num risco para a mesma. Alega que foi vítima de violência doméstica, tendo o progenitor sido alvo de queixas e sido deferidas medidas protetivas de afastamento, que não foram cumpridas, o que lhe valeu uma detenção por desobediência. Foi detido, de novo, por ofensas e ameaças e libertado mediante fiança. Foram-lhe apreendidas armas e, de novo, o tribunal concedeu medidas protetivas a favor da requerida. Em face das constantes ameaças à sua vida, a requerida e os filhos mudaram para o Estado ..., a cerca de 300 km do Estado ..., recomeçando aí a sua vida, apesar de não terem terminado as ameaças, quer por telefone, quer por mensagem, usando a filha para transmitir as ameaças de morte à mãe, vivendo a criança em pânico e com sucessivas crises de ansiedade, que a obrigaram a recorrer a um psicólogo O pai fica meses sem querer estar com a filha e quando o faz é por uns meros 10 minutos e nunca pagou a pensão de alimentos. Consumia cocaína na presença dos filhos. É obcecado pela requerida, não aceitando o fim da relação e está a usar a filha para a obrigar a regressar ao Brasil. A requerida teve de recorrer ao Tribunal para obter autorização para expedição do passaporte e para viajar para Portugal. Pede que seja proferida decisão de recusa de entrega da menor ao abrigo do artigo 13.º da Convenção de Haia.
O progenitor respondeu, alegando que tudo são mentiras da requerida e que os processos que a mesma refere estão extintos desde 2017 e nada consta no seu comprovativo criminal, que anexa, e que a filha sempre esteve bem no Brasil, junto do pai e família paterna e materna. Que a mãe apenas veio para Portugal para se juntar com um novo companheiro. Juntou vídeos e prints das redes sociais comprovativos do bom relacionamento com a filha.
           
Terminadas as diligências instrutórias, o MP emitiu parecer no sentido de que deve ser ordenado o regresso imediato da criança ao Brasil.
A progenitora alegou em sentido contrário, requerendo que, ao abrigo do artigo 13.º da Convenção de Haia, não seja ordenado o regresso da criança.
           
Foi proferida sentença que ordenou o regresso imediato da menor à República Federativa do Brasil.

A requerida/progenitora interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1. A Recorrente discorda da sentença ora recorrida que ordenou o regresso imediato da criança AA, nascida a ../../2015, à República Federativa do Brasil. Ordenando, para o efeito, que a criança seja conduzida para junto da delegação de ... da DGRSP, acompanhada de todos os documentos que lhes seja respeitante, que deverão ser entregues pela mãe, a fim de que se possa providenciar pelo regresso da criança para junto do pai. Ordenando ainda a entrega do passaporte da criança, que está à guarda do Tribunal, ao pai.
2. Deve ser atribuído efeito suspensivo ao recurso, uma vez que estando em causa a entrega judicial de uma menor, com a execução da decisão imediata, atento o efeito (normal) devolutivo do recurso, ou seja, com o seu regresso ao Brasil e com entrega do passaporte ao pai, ficará prejudicado o efeito deste recurso,
3. bem como da decisão a tomar pelos tribunais brasileiros, de acordo com a ordem jurídica da nacionalidade da menor, no processo Tutelar Cautelar Antecedente, sob o n.º ...19/..., Seção Judiciária de ..., ... – ..., onde foi deferida a Tutela de Urgência determinando que a menor AA permaneça em Portugal, sob a guarda da sua mãe, CC, até que nova decisão seja proferida pelo juízo competente após o término do recesso forense. Suspendendo os efeitos da decisão proferida pelo Tribunal Português.
4. Tudo sem prejuízo do elevado interesse da criança que poderá ficar, e ficará seguramente, em causa.
5. A recorrente discorda da sentença quanto i) à factualidade dada como provada e não provada, ii) ao indeferimento não fundamentado de diligências probatórias, iii) ao não atendimento do interesse superior da criança, iv) à não consideração das responsabilidades parentais atribuídas unilateralmente à mãe, v) à desconsideração da mãe como progenitora da referência e, vi) à obrigação de entrega do passaporte da criança ao pai.
6. O presente recurso versa, fundamentalmente, sobre a impugnação da  matéria de facto; erro notório na apreciação da matéria de facto, erro que resulta do texto da decisão recorrida e, falta de fundamentação apresentada pela 1ª instância para impedir a produção de diversas diligências probatórias.
7. Durante as sessões de julgamento, o julgador indeferiu uma série de diligencias probatórias requeridas pela Recorrente, que se justificariam face à “prova” produzida pelo progenitor, limitando-se a fazer uma apreciação acrítica por tudo quanto foi dito em sede de declarações pelo Recorrido, valorizando favoravelmente tudo quanto foi dito pelo progenitor e, em simultâneo, pondo em causa tudo quanto foi alegado pela ora Recorrente, não disfarçando ao longo das sessões a sua opinião pessoal.
8. O direito à prova trata-se de direito constitucionalmente reconhecido por via do qual se faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados-Cfr. Art.20º da CRP.
9. A fundamentação relativa ao indeferimento de diligências probatórias requeridas no âmbito de “factos” que foram surgindo no decurso sobretudo das declarações do recorrido, não tem qualquer respaldo na lei, impondo-se, por tal, sem necessidades de maiores considerações, que o Tribunal de recurso decida pela sua revogação, devendo ser determinada a reabertura da audiência final para produção da prova testemunhal oportunamente oferecida e admitida, bem como das demais diligências probatórias entretanto indeferidas.
10. O Tribunal com esta conduta violou, entre outros, os princípios da igualdade das partes, da imparcialidade, cerceando a atuação da recorrente, sobretudo em termos de produção de prova, do inquisitório e, sobretudo, o da procura e descoberta da verdade material dos factos tendente a uma decisão justa e equitativa, no interesse da menor.
11. Era obrigação do tribunal, tendo em conta a especificidade do processo em causa, e o fim último a preservar, reger-se por critérios de equidade, admitindo todas as diligências probatórias que lhe permitissem apurar a verdade dos factos e assegurar a justa composição do litígio, sempre tendo em atenção o fim último: o superior interesse da criança, não se limitando a dar como certo tudo quanto era dito pelo pai em detrimento do alegado pela Recorrente e, sobretudo, da prova documental constante dos autos, inclusive proceder oficiosamente à audição da menor em ambiente seguro, no tribunal,
12. Tal viola, além do mais, o princípio e o exercício do contraditório, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, cujo princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo este princípio o nstrumento destinado a evitar as decisões surpresa – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo 12841/19.08T8LSB.L2-6, datado de 10 de setembro de 2020.
13. Caso a impugnação de matéria de facto não proceda ou dependa da realização das diligências probatórias requeridas e indeferidas, este Tribunal da Relação deverá ordenar a renovação da prova e sobretudo de novos meios de prova, sobretudo daqueles indeferidos.
14. A decisão de indeferimento de prova testemunhal violou o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC., e consiste, ainda, numa decisão surpresa, enquanto solução dada a uma questão que não foi configurada pelas partes, sem que as mesmas tivessem obrigação de a prever.
15. O julgador revelou uma atitude tendenciosa, diria até preconceituosa, que está patente em diversas passagens e comentários e imputações aviltantes relativamente à pessoa da recorrente, como seja “ora tal é quase estulto”, “um trabalho de sapa”, “ouvir uma criança, à distância, instruída pela requerida”.
16. A Recorrente não compreende porque é que foi dada maior - ou melhor, total! – credibilidade à versão do Recorrido, em detrimento da sua versão, sem que nada justificasse a atribuição dessa maior credibilidade, quando tudo quanto alegou estava alicerçado em prova documental.
17. A Recorrente juntou ao processo 23 documentos a que o Tribunal não atendeu, esvaziando-os de sentido probatório. A estes 23 documentos somam-se mais dois, cujo desentranhamento, de forma surpreendente, foi ordenado.
18. A recorrente considera incorretamente julgados e, por esse motivo, impugna a decisão proferida quanto aos pontos 8.º e 9.º da matéria de facto dada como provada, que deverão ser dados como não provados.
19. Impugna, também, os pontos 11º, 12º, 13º, 14º, 17º, 19º e 20º, da matéria de facto dada como não provada, que deverão ser dados como provados.
20. Matéria de facto vertida no ponto 8.º dos factos provados, deve ser dada como não provada, não tendo sido produzida prova e porquanto a recorrente provou que bloqueou o Recorrido como única forma de pôr fim às ameaças à sua vida, aos insultos e à violência verbal por parte do Recorrido, não sem antes advertir o Recorrido, por escrito, que a continuar com esse comportamento iria encerrar este canal de comunicação.
21. Quanto à matéria de facto vertida no ponto 9 dos factos provados, deve ser dado como não provados com base nos argumentos apresentados na conclusão anterior e face à ausência de prova. A avó paterna disse estar bloqueada pela Recorrente, sem mais, e o Tribunal não cuidou de confirmar junto do telemóvel da Recorrente, acreditando de imediato.
22. Quanto à matéria de facto vertida no ponto 11 dos factos dados como não provados, deve ser dada como provado atentos os documentos juntos pela Recorrente de onde resulta que o recorrido é violento, que a recorrente foi vítima de violência física, verbal e psicológica, que a violência era testemunhada pela criança, para além do facto de a menor estar a ser acompanhada desde 2021 por psicóloga.
23. Quanto à matéria de facto vertida nos pontos 12 e 13 dos factos dados como não provados, devem ser dados como provado atentas as declarações da Recorrente e a falta de impugnação do Recorrido.
24. Quanto à matéria de facto vertida no ponto 14 dos factos dados como não provados, deve ser dado como provado atentas as declarações da Recorrente e os documentos juntos sob os números 13 a 15, em 25/11/2024.
25. Quanto à matéria de facto vertida no ponto 17 dos factos dados como não provados, deve ser dada como provado, face aos documentos juntos ao processo e às declarações da Recorrente. A mãe do Recorrido não relatou momentos de convívios próprios de uma relação parental, entre pai e filha, quer em presença física quer em ajuda monetária.
26. Quanto à matéria de facto vertida no ponto 19 dos factos dados como não provados, deve ser dado como provado atentas as declarações da Recorrente e os documentos 13 a 15, com especial incidência no 14, juntos a 25/11/2024.
27. Quanto à matéria de facto vertida no ponto 20 dos factos dados como não provados, deve ser dado como provado atento por um lado toda a panóplia de prova constante dos autos, resulta – e tal é um facto de tal forma notório que carece de alegação e prova – naturalmente que a relação abusiva, as ameaças, a perseguição, a violência verbal e física, na presença da criança, afeta o seu estado mental e psicológico.
28. A recorrente juntou um documento denominado “Declaração Psicológica”, elaborado e assinado pela psicóloga que acompanhava profissionalmente a menor AA desde 2021, no qual atesta a existência de crises de ansiedade desde 2021 relacionadas com conflitos no relacionamento com o pai biológico, referindo que a paciente, nas sessões mais recentes, relatou abusos psicológicos cometidos pelo pai.
29. A declaração não foi atendida pelo tribunal, num entendimento desfasado da realidade do que se passou em sede de produção de prova.
30. A autora da declaração é psicóloga formada, com o número de carteira profissional ...6/..., que acompanhou a menor AA desde 2021, no Brasil, presencialmente, conforme resulta da declaração.
31. Quando o juiz determinou a sua inquirição, na sessão de 9/12, a psicóloga veio em 10/12 – vide sms junto na sessão de 11/12 -, a escusar-se, invocando que estava emigrada nos Países Baixos e que não tinha “autorização do CRP para exercer atividade de psicologia fora do Brasil – vide sms junto.
32. Lendo-se ainda no sms junto que “a declaração que eu fiz é verdadeira, e ela realmente alegou sobre o abuso do pai”, acabando por referir que não se trata de um laudo, de um relatório pericial, porquanto, por questões formais, não pode exercer a profissão no estrangeiro.
33. O “abusivo” que a psicóloga imputa apenas se relaciona com a insistência natural, entendível a atendível, da recorrente em conseguir que a psicóloga depusesse com verdade.
34. A sentença, na sua fundamentação, confunde relação pai/filha com relação avó/neta. Na verdade, sem desprimor pelas relações familiares alargadas que serão sempre de proteger, a verdade é que esta não pode ser de substituição da relação pai/filha, relação esta em discussão.
35. A competência internacional do tribunal para julgar questões em matéria de responsabilidade parental é determinada pelo superior interesse da criança e, em particular, pelo critério da proximidade concretizado através de um conceito autónomo de residência habitual, conceito esse presente nos principais instrumentos de direito internacional que vinculam o Estado Português. (Cfr. A Competência Internacional dos Tribunais Portugueses em matéria de Responsabilidade Parental, Revista JULGAR, n.º 27, 2019).
36. A Convenção Sobre os Direitos da Criança, estabelece que “todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança” (art. 3º, nº 1).
37. A decisão que ora se recorre é contrária à salvaguarda do superior interesse da AA já que tal implica entregar a criança ao pai, com quem nunca viveu nem conviveu depois da separação do casal. Com quem não passa fins de semana, nem férias, com quem não faz uma simples refeição.
38. Sobre o interesse do menor, no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 8/91 disponível em www.dre.pt, é afirmado que se reconhece o interesse do menor como “a força motriz que há-de impulsionar toda a problemática dos seus direitos. Tal princípio radica na própria especificidade da sua situação perante os adultos, no reconhecimento de que o menor é um ser humano em formação, que importa orientar e preparar para a vida, mediante um processo harmonioso de desenvolvimento, nos planos físico, intelectual, moral e social. O conceito de interesse do menor tem de ser entendido em termos suficientemente amplos de modo a abranger tudo o que envolva os seus legítimos anseios, realizações e necessidades nos mais variados aspetos”.
39. O interesse do menor é um princípio orientador de qualquer decisão judicial, é, por isso, um conceito aberto que carece de concretização casuística, por parte do Juiz, conceito esse que tem de ser preenchido em cada caso concreto, levando em linha de conta inúmeros fatores designadamente as concretas necessidades físicas, intelectuais e materiais da criança, a sua idade, sexo, grau de desenvolvimento físico e psíquico, a sua adaptação ao ambiente escolar, familiar e social, entre outros, tendo sempre como fim último conseguir o desenvolvimento harmonioso e equilibrado da criança.
40. O exercício das responsabilidades parentais encontra-se subordinado àquele princípio fundamental denominado do interesse do menor.
41. A manutenção da AA em Portugal é a que melhor satisfaz o seu melhor interesse pois irá permitir um são desenvolvimento psicoemocional, potenciando um melhor desenvolvimento, e, sobretudo, não lhe coartando oportunidades a nível social, educacional e até de saúde.
42. O afastamento da AA da sua progenitora, ora Recorrente, terá consequências futuras irreversíveis a nível emocional e psíquico que poderia comprometer o seu desenvolvimento.
43. Tendo em consideração a situação fáctica, a ida da menor para o Brasil, com entrega do passaporte ao pai, causará verdadeiramente um desequilíbrio físico e psicológico à AA.
44. Mãe e filha têm uma situação estabilizada em Portugal: têm casa, a mãe tem emprego e a filha está a frequentar o ensino, têm estabilidade e estão socialmente inseridas.
45. As responsabilidades parentais, relativas à menor, AA, encontram-se devidamente reguladas, desde ../../2020, pela 1ª Vara de Família, Órfãos e Sucessões da Comarca de ..., Brasil, processo n.º ...21.
46. No ponto 2, alínea a. i, dos factos assentes e provados, resulta que “Pactuam as partes que a Guarda da menor impúbere, AA, será unilateral em favor da DIVORCIANDA, Sra. CC, em virtude de revelar melhores condições para exercê-la, conforme o disposto no artigo 1583, §2 do Código Civil.
47. As responsabilidades parentais encontram-se devidamente reguladas, e o Tribunal Português não pode, por falta de competência, interferir nesta matéria, indo para além dos poderes que lhe estão conferidos.
48. Revela-se, assim, ilegal a decisão de entrega do passaporte ao pai, sem mais, quando a guarda da menor está entregue à mãe.
49. O passaporte deve, assim, ser entregue à mãe, a quem caberá viajar com a filha para o Brasil se tal for ordenado de forma definitiva.
50. Não podemos atender ao superior interesse da menor, sem levarmos em consideração o progenitor com quem a AA tem mais (ou únicos) laços parentais.
51. É fundamental atender à relação da menor com a Recorrente, progenitor a quem foi confiada a guarda, e a ausência do outro progenitor, sendo que, no caso, é a mãe da menor a sua figura primária de referência, com quem vive desde que nasceu, e quem cuida de si de forma exclusiva, especialmente desde a separação dos progenitores.
52. Para o desenvolvimento da criança é menos traumatizante a redução do contacto com o progenitor sem a guarda do que uma rutura na relação com o progenitor com quem tem vivido, que será aquele com quem construiu uma relação afetiva mais forte.
53. Mostram-se verificadas as condições para que a menor tenha em Portugal condições para continuar o seu normal e harmonioso desenvolvimento, bem como a garantia de emprego por parte da progenitora, estabilidade familiar e, essencialmente, a inscrição do menor num estabelecimento de ensino em Portugal.
54. Alterada a matéria de facto nos termos pugnados, a decisão terá que necessariamente de improcedência do pedido do Recorrido.
55. A autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto (art.º 13º) – cfr. Acórdão proferido pela 1ª Secção pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Processo n.º 20/22.4T8VVC-A.E1.S1.
56. Caso assim se não entenda, e reproduzindo o vertido na conclusão 3, face ao processo que corre seus termos sob o n.º ...19/..., Seção Judiciária de ..., ... – ..., onde foi deferida a Tutela de Urgência determinando que a menor AA permaneça em Portugal, sob a guarda da sua mãe, ora Recorrente, até que nova decisão seja proferida pelo juízo competente após o término do recesso forense. Determinando, ainda, a suspensão dos efeitos da decisão proferida pelo Tribunal Português.
57. A jurisdição da nacionalidade da menor irá regular, de forma definitiva, esta questão da possibilidade da menor permanecer em Portugal, à guarda da sua mãe, com o que deveriam os tribunais portugueses sobrestarem sobre esta decisão até à prolação de decisão sobre aquela regulação definitiva nos tribunais brasileiros.
58. Estando em causa a entrega judicial de uma menor, com a execução da decisão imediata, sempre os tribunais portugueses deveriam sobrestar numa decisão definitiva enquanto os tribunais da ordem jurídica da nacionalidade da menor não regulassem de forma definitiva esta questão da possibilidade da menor permanecer a residir, em Portugal, com a mãe.
59. A sentença em crise, e que merece censura, viola diversas disposições legais, nomeadamente e entre outras, o disposto nos artºs. 3º, nº 3, 410º, 411º, 986º e ss, todos do CPC e ainda as normas constantes d os art.ºs 12º e 13º da Convenção de Haia; Princípio 2º da Declaração Universal dos Direitos da Criança; n.º 2 do art.º 24º, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; art.º 8º, n.º 2 da Convenção Europeia; art.ºs 8º, n.º 1, 20º, 24º, 25º e 27º da Constituição da República Portuguesa e os princípios norteadores da Convenção de Istambul.

TERMOS EM QUE,
Deverá:
i) atribuir-se efeito suspensivo ao presente recurso;
ii) ser o mesmo julgado procedente, por provado, e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida:
a. substituindo-a por uma outra de improcedência do pedido de entrega imediata da menor ou,
b. caso assim se não entenda, por uma outra que determine a reabertura da audiência para produção da prova indeferida e, c. ainda, caso assim se não entenda, por uma outra que sobreste sobre a decisão a prolatar pelos tribunais brasileiros sobre regulação definitiva desta questão;
Com o que se fará a acostumada,
JUSTIÇA!

O MP respondeu, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Já neste Tribunal, alterou-se o efeito do recurso para suspensivo, como, aliás, havia sido requerido pela recorrente.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com o indeferimento de requerimentos probatórios, a impugnação da decisão de facto e a decisão sobre o regresso ou permanência da menor.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença recorrida foram considerados os seguintes factos:
Factos provados:
1. AA, nascida a ../../2015, em ..., ..., Brasil é filha de BB e de CC.
2. BB e CC foram casados entre si, matrimónio este que veio a ser dissolvido por Acordo Judicial de datado de ../../2020, acordo este homologado judicialmente nos autos do processo de n. ...21, oriundo da 1ª Vara de Família, Órfãos e Sucessões da Comarca de ... e quem concomitantemente, regulou as responsabilidades parentais relativas a AA nos seguintes termos:
a. Cláusula Sétima:
i. Pactuam as partes que a Guarda da menor impúbere, AA, será unilateral em favor da DIVORCIANDA, Sra. CC, em virtude de revelar melhores condições para exercê-la, conforme o disposto no artigo 1583, § 2º do Código Civil.
b. Cláusula Oitava.
i. As partes convencionam que o DIVORCIANDO, Sr. BB, possui autorização para visitar a menor na cidade ... com direito a pernoite em finais de semanas alternados, podendo retirar a menor de sua residência na sexta-feira às 19:00h e devendo entregá-la no domingo às 18:00h, improrrogavelmente, devendo comunicar a DIVORCIANDA com 72h (setenta e duas horas) de antecedência quanto ao exercício de tal direito.
ii. Parágrafo primeiro.
Durante a primeira metade das férias escolares da menor, tanto as do meio do ano quanto as do final do ano, e no feriado do dia das crianças alternado, resguarda-se ao DIVORCIANDO o direito de viagem para a Comarca de ... com a filha menor, desde que previamente comunicado à DIVORCIANDA, Sra. CC.
iii. Parágrafo segundo.
No tocante ao feriado do dia das crianças, carnaval, semana santa, bem como as festividades de final de ano (todos alternados), poderá o DIVORCIANDO retirar a criança de sua residência em ... e viajar para a Comarca de ..., no final de semana compreendido ao feriado, pegando a menor às 19:00h da Sexta-feira; todavia, obriga-se a devolvê-la improrrogavelmente até às 18 (dezoito) horas do feriado, não podendo tal visitação prejudicar o período letivo da menor, situação a qual deverá ser avaliada quando de feriados que contenham períodos letivos intercalados.
iv. Parágrafo terceiro.
No tocante às férias da menor, obriga-se o DIVORCIANDO a devolver a criança à DIVORCIANDA na Comarca de ... impreterivelmente até às 18:00h do primeiro dia da segunda metade das férias de julho quando das férias do meio do ano, e até às 18:00h do primeiro dia da segunda metade das férias de janeiro quando das férias do final do ano.
v. Parágrafo quarto.
Poderá a DIVORCIANDA, Sra. CC, por mera liberalidade, autorizar a visitação em períodos diversos aos estipulados e/ou prorrogação da visitação contidos nesta Cláusula, durante o período por ela estipulado. Parágrafo quinto. Convencionam, ainda, o direito do DIVORCIANDO, Sr. BB, de manter contato com a filha menor mediante chamadas de vídeo efetuadas pela DIVORCIANDA ao DIVORCIANDO, no intervalo máximo de 7 (sete) dias entre as ligações, sem que tal contato configure descumprimento por parte do DIVORCIANDO das medidas protetivas contidas nos autos de n. ..., oriundos da 2ª Vara Criminal e de Infância e Juventude da Comarca de ....
3. CC solicitou a BB, autorização para se deslocar com a filha de ambos para a Europa, nas férias escolares desta, durante o mês de julho de 2024 e por um período de 30 dias, projeto este a que o progenitor deu o seu consentimento.
4. CC obteve autorização judicial para viajar a Portugal com a filha, em férias.
5.  Antes do período previsto mês de julho de 2024 a progenitora, no dia ../../2024, viajou, acompanhada da filha AA, para Portugal, sendo que a viagem de regresso para o Brasil estava prevista para o dia 26 de junho de 2024
6. Mais se fez acompanhar a progenitora de todo o percurso escolar da sua filha, tudo com o intuito de a poder transferir e matricular em escola diversa daquela que frequentava no Brasil.
7. Em Portugal, a progenitora e a filha fixaram-se na Avenida ..., ..., casa ..., ..., ..., ....
8. O progenitor questionou a progenitora sobre o porquê da antecipação da viagem em questão, mais a questionando sobre a data e regresso da filha ao Brasil, sendo que a progenitora acabou por bloquear o seu contacto telefónico, cerceando-lhe o acesso a informações sobre a descendente.
9. À criança AA não é permitido, pela progenitora, falar com o pai e com a avó paterna.

Não provados:
Não se provou que:
10. O progenitor tenha processos pendentes ou medidas protetivas vigentes.
11. A requerida e os filhos viveram uma vida de terror, temendo pelas próprias vidas.
12. Face às ameaças e perseguições, a requerida viu-se obrigada a mudar de Estado, mudando-se para o Estado ..., a cerca de 300km do Estado ..., recomeçando aí a sua vida
13. Mas mesmo aí, o requerente começou a persegui-la e a ameaçá-la de morte caso não retomassem a relação conjugal.
14. Tendo a relação terminado há mais de 6 anos, o requerente continua a perseguir e a ameaçar de morte a requerida, quer por telefone, quer por mensagem, que a atemorizam a ela e aos filhos, temendo pelas suas vidas
15. O requerente nunca se inibiu de usar a filha, nas chamadas telefónicas, para que transmitisse as ameaças de morte à mãe caso não regresse, vivendo a criança em pânico e com sucessivas crises de ansiedade.
16. O requerente dirige-se à filha, chamando-a de gorda e feia.
17. O requerente nunca foi um pai presente ou atento. Nunca participou nas rotinas da criança, nunca foi carinhoso. Depois da separação ficava meses sem querer estar com a filha, e quando o fazia era por uns meros 10 minutos.
18. O requerente consumia cocaína na presença das crianças, deixando-a pela casa ao alcance da menina.
19. O requerente é obcecado pela requerida, não aceitando até ao dia de hoje o fim da relação, e está a usar a filha para a obrigar a regressar ao Brasil e poder concretizar as ameaças de morte caso a requerida não retome a relação.
20. AA viva num estado enorme de ansiedade e perturbação em consequência de comportamentos do progenitor.

Como questão prévia, dir-se-á que o conteúdo das três primeiras conclusões está prejudicado, não só porque foi, entretanto, por este Tribunal, conferido efeito suspensivo ao recurso, como porque foi já proferida decisão definitiva no Processo Tutelar Cautelar Antecedente que, sob o n.º ...19/..., julgou extinto o processo, sem decisão de mérito e revogou a decisão que deferiu a antecipação dos efeitos da tutela de urgência (cfr oficio enviado pelo Poder Judiciário - Secção Judiciária de ..., respondendo a informação por nós solicitada sobre o destino do processo).

A apelante não se conforma com o indeferimento de uma série de diligências probatórias por si requeridas no processo, sustentando que o direito à prova é um direito constitucionalmente reconhecido, pelo que devem ser revogados tais despachos, devendo ser determinada a reabertura da audiência final para produção da prova testemunhal e das demais diligências probatórias entretanto indeferidas, entre elas, a audição da criança. Sustenta-se, também, na violação do princípio do contraditório.
Nesta parte, pese embora se compreenda e sinta até alguma simpatia pelos inúmeros desabafos e considerações que a recorrente tece acerca da forma como foram conduzidos os trabalhos e relativamente a algumas expressões constantes da sentença que a magoaram (e não nos cansamos de repetir que os despachos e sentenças devem ser o mais objetivos possíveis, sem considerações de ordem subjetiva e opinativa que acabam por ser lidos, por vezes, de forma dolorosa por quem é destinatário dos mesmos e que nada acrescentam à decisão jurídica da causa), a verdade é que, indeferidos meios de prova, quem os requer só tem uma forma de reagir contra tais despachos, que é o recurso autónomo previsto no artigo 644.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Civil (aplicável subsidiariamente aos processos tutelares nos termos do artigo 33.º do RGPTC).
O que se verifica é que a ora apelante, notificada dos despachos de indeferimento a que alude, não recorreu dos mesmos, pelo que se formou nos autos caso julgado formal, que impede que, agora, nos pronunciemos sobre tal matéria.
Deve, também, dizer-se que estamos perante um processo urgente, de jurisdição voluntária, iniciado em novembro de 2024 e com três sessões para audição dos pais e avó paterna, para além de variados requerimentos das partes, promoções e despachos com vista à decisão final.
Em acórdão proferido em 11/07/2024, no processo 3040/18.0T8VCT-C.G1, in www.dgsi.pt, relatado pela aqui relatora e com a mesma 2.ª adjunta, referimos, a este propósito:
 “Comecemos por atentar em alguns princípios que devem ser atendidos na apreciação de requerimentos probatórios, primeiro em geral e depois no tipo de processo, de jurisdição voluntária, em que nos encontramos.
O direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva (que decorre do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o qual impõe que seja assegurado a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a equidade do processo) tem como consequência, além do mais e no que aqui nos interessa, que a par do direito à invocação dos factos relevantes se permita a prova dos mesmos, sob pena de se ter um processo ineficaz e injusto (sem se apurarem os factos que fundamentam o direito, não se mostra possível o seu julgamento, com a competente aplicação das normas jurídicas).
Em regra, quando se fala da instrução no âmbito do processo pensa-se nos factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova, a verter no enunciação dos temas da prova.
Mas também pode haver necessidade de apurar factos em incidentes processuais, relevantes para sua decisão.
De qualquer forma, não é admissível nos autos a apresentação de meios de prova que logo à partida se mostrem totalmente impertinentes para a decisão da causa ou de algum dos seus incidentes: tal advém além do mais da proibição da prática de atos inúteis, prevista no artigo 130º do Código de Processo Civil. Veja-se que, nos termos do artigo 7º nº 1 “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados”.., concorrer “para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” e 6º nº 1, ambos desse diploma “Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente…”
Mesmo que se entenda (como se entende) que se deve dar prevalência à justiça material sobre uma mera justiça formal (sem esquecer que para tanto importa respeitar as regras processuais, ainda que lidas com flexibilidade, porque sem respeito pelas mesmas tal não será possível), há sempre que ter em conta que importa obter uma tempestiva aplicação da justiça, sob pena da mesma não ter eficácia razoável.
Ora, só a aplicação racional dos meios e esforços de todos os intervenientes processuais permite essa eficiência.
Assim, é mister não desperdiçar tempo e meios na apreciação de factos que não importam para a solução justa do litígio e por isso também na produção de meios de prova que apenas visam a prova de factos irrelevantes para a decisão da causa. No campo da prova, são múltiplas as normas do Código de Processo Civil que o afirmam: artigo 438º nº 2 (“Quando o juiz verifique que os documentos requisitados se revelam manifestamente impertinentes ou desnecessários e caso a parte requerente não tenha atuado com a prudência devida, é a mesma condenada ao pagamento de multa”), 443º, nº 1 “ Juntos os documentos e cumprido pela secretaria o disposto no artigo 427.º, o juiz, logo que o processo lhe seja concluso, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, manda retirá-los do processo e restitui-os ao apresentante, condenando este ao pagamento de multa”…, artigo 476º, nº 1 do Código de Processo Civil, quanto à fixação do objeto da perícia “ Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto,…” artigo 516º, nº 3 “O juiz deve obstar a que os advogados tratem desprimorosamente a testemunha e lhe façam perguntas ou considerações impertinentes”.
Por outro lado, há que atentar que estamos perante um processo de jurisdição voluntária, onde são admissíveis critérios de conveniência e de oportunidade, sendo clara a flexibilidade da tramitação processual imposta no artigo no n.º 2 do artigo 986º do Código de Processo Civil, que afirma que “só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias “.
O juiz pode por isso, com maior liberdade, atendendo aos fins do processo e a necessidade de proferir decisão em tempo razoável, neste tipo de processos, restringir os meios de prova oferecidos pelas partes ou diligenciar para além deles, ter uma intervenção com um pendor mais discricionário, avaliando, com prudência, o que é útil ou inútil para a decisão da causa.
Assim, nesta sede nunca seria obrigatória a produção de todas as provas apresentadas ou requeridas pelas partes, devendo o juiz na sua determinação ponderar a sua pertinência”.
Para além do que já supra se disse quanto ao caso julgado formal decorrente da ausência de interposição de recurso relativamente aos despachos de indeferimento de requerimentos de prova, acresce que os mesmos estão fundamentados e foram notificados à requerente, não se compreendendo a alegação da apelante quanto à ausência de contraditório e à existência de decisão-surpresa.
Improcede, assim, nesta parte, a apelação.

A apelante prossegue com a impugnação da decisão de facto, designadamente, no que concerne aos pontos 8 e 9 dos factos provados, que considera que devem transitar para os factos não provados e quanto aos factos não provados números 11, 12, 13, 14, 17, 19 e 20, que entende que devem ser dados como provados.
Verifica-se, contudo, que a apelante não dá cumprimento ao disposto no artigo 640.º, n.ºs 1 b) e 2 do CPC, concretizando os diversos meios probatórios que entende que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, designadamente, quanto aos gravados, indicando as passagens da gravação respetiva, o que implica a rejeição do recurso nesta parte.
Com efeito, analisada a alegação da apelante, verifica-se que, relativamente a todos os factos impugnados, remete para os documentos que juntou ao processo e para as suas declarações prestadas nas diligências de 18/11, 09/12 e 11/12, sem indicar quaisquer passagens das mesmas e limitando-se a discordar da avaliação que o tribunal fez dos documentos e das inquirições, dizendo repetidamente que deu prevalência aos documentos e inquirição da outra parte.
A impugnação efetuada nestes moldes, não pode proceder, pois não cumpre o ónus que advém à parte que impugna previsto naquele artigo 640.º do CPC e contém em si uma discordância genérica sobre a forma como foi avaliada a prova, remetendo sempre para os mesmos documentos e para a sua inquirição, sem fazer o confronto – que o julgador fez – com os outros meios de prova oferecidos, nem indicando especificamente, por referência à prova gravada, os extratos que considera relevantes para que seja proferida decisão diversa.
Deve, apenas dizer-se que resulta do ponto 2 dos factos provados, designadamente das cláusulas do acordo sobre as responsabilidades parentais, que a apelante vivia, nessa data, no Estado ..., com a filha, e que o progenitor vivia em ..., daí não resultando, contudo, o motivo pelo qual tal sucedia (ponto 12 dos factos não provados), sendo certo que, pese embora essa distância, foi acordado um regime de visitas ao pai bastante extenso (fins-de-semana, férias, feriados, datas especiais).
A questão de não ter sido dada importância à declaração emitida por psicóloga, sobre o estado de ansiedade da menor, está claramente explicada na motivação da decisão de facto e, pese embora, se concorde com a apelante quando diz que a psicóloga nunca referiu que não tinha competência para emitir tal declaração, a verdade é que resulta das mensagens trocadas entre ambas, de que a apelante juntou prints, completa relutância da pessoa em causa em confirmar perante o tribunal o que havia escrito, escudando-se no facto de a sua licença profissional não ter validade no estrangeiro, o que de forma nenhuma pode ser relevante, uma vez que a suposta avaliação terá sido efetuada no Brasil, onde poderia exercer, e o tribunal apenas queria ouvi-la sobre a avaliação profissional que terá efetuado à criança. Seja como for, a pessoa em causa escusou-se a depor e pretendeu até devolver a quantia recebida para não ser mais incomodada com o assunto, o que foi tido em conta, pelo tribunal, e bem, na desvalorização deste documento.

Não sendo alterada a matéria de facto, importa proceder ao seu enquadramento jurídico.
A apelante sustenta que a manutenção da criança em Portugal é a que melhor satisfaz o seu interesse, sendo que o afastamento da sua progenitora terá consequências futuras irreversíveis a nível emocional e psíquico que poderiam comprometer o seu desenvolvimento.
Ora, sendo certo que, em qualquer processo em que esteja em causa uma criança, não podemos nunca esquecer o seu superior interesse, considerado este como um conceito jurídico indeterminado, tornando-se necessário recorrer a critérios de oportunidade, de acordo com o caso concreto, de modo a concretizar o seu conteúdo (normalmente entendido como o direito da criança “ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” – Almiro Rodrigues, in “Interesse do menor, contributo para uma definição”, Revista Infância e Juventude, n.º 1, 1985, 18-19, citado por Tomé d’Almeida Ramião em LPCJP Anotada e Comentada, 6.ª edição atualizada e aumentada, pág. 36), é também certo hoje que a chamada figura primária de referência a que a apelante faz alusão é insuficiente para definir uma decisão sobre o projeto de vida de uma criança, pois que desvaloriza muitos outros aspetos que são fundamentais para que ela se desenvolva de forma harmoniosa e autónoma.
O que está aqui em causa, contudo, não é a definição do projeto de vida desta criança.
As responsabilidades parentais da mesma estão fixadas no processo que correu termos no Brasil (ponto 2 dos factos provados) e só aí poderão ser alteradas (veja-se que a decisão é posterior à ocorrência dos factos de alegada violência doméstica invocados pela progenitora nestes autos e, assim mesmo, foi fixado o regime de visitas alargado ao progenitor).
A justiça portuguesa foi chamada apenas a resolver o problema da retenção ilícita da menor em Portugal.
Nos presentes autos, ao abrigo do disposto na Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25/10/1980, ratificada por Portugal através do Decreto do Governo n.º 33/83, de 11/05 considerou-se ter existido uma deslocação ilícita de menor para Portugal, promovida pela sua mãe e sem o conhecimento ou autorização do pai.
Em primeiro lugar deve dizer-se que não há dúvida que, neste caso, ocorreu a deslocação ilícita da menor, uma vez que foi violado o direito de visita conferido por decisão judicial proferida no Brasil que era o país onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação – veja-se artigos 3.º, 4.º e 5.º da Convenção de Haia de 1980. Certo, também que, por aplicação da lei brasileira considera-se que o exercício das responsabilidades parentais cabe, neste caso, a ambos os progenitores. Assim resulta dos artigos 1630º e 1631, do Código Civil Brasileiro, ficando, desta forma, demonstrado que também o progenitor da criança tem, de pleno direito, o exercício das responsabilidades parentais sobre a filha, sendo indiscutível que no âmbito dos poderes-deveres que o integram se inclui o de decidir o local onde a mesma há de residir.
Esta deslocação ilícita é, aliás, reconhecida pela apelante, que solicitou autorização ao progenitor e ao tribunal para trazer a menor de férias a Portugal (pontos 3 e 4 dos factos provados).
A questão que está em discussão é a de saber se pode ser recusado o regresso da menor ao Brasil.
A Convenção da Haia a que vimos fazendo referência dispõe no seu artigo 12.º que «quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança».
Visa-se, assim, assegurar o regresso imediato da criança ao país da sua residência habitual, sem prejuízo de poder ser determinada a sua retenção nos termos do disposto no artigo 13.º da referida Convenção.
“O escopo fundamental destes instrumentais internacionais é determinar o regresso imediato da criança deslocada ou retida ilicitamente, evitando assim políticas parentais de facto consumado típicas na pós-rutura conjugal em que, independentemente da razão subjacente, um dos membros do extinto casal desloca o filho para outro país sem que exista autorização jurisdicional ou consentimento parental do outro progenitor” - acórdão da Relação de Évora de 27/06/2024, processo n.º 2695/23.8T8PTM.E1 (Tomé de Carvalho), in www.dgsi.pt.
Da interpretação integrada do conjunto de normas aplicáveis ressalta que, nos casos de retenção ilícita, a ideia matricial é que a ordem de regresso imediato constitui a regra e a decisão de retenção no país de destino assume carácter excecional – veja-se Anabela Sousa Gonçalves “Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças: Entre a Convenção de Haia e o Regulamento Bruxelas ii bis, Cadernos de Direito Actual, disponível in http://www.cadernosdedireito actual.es/ojs/ índex.php/cadernos/article/view/43; Lima Pinheiro, Deslocação e retenção internacional ilícita de crianças, Revista da Ordem dos Advogados, Jul./Dez. 2014, págs. 679-693; Gonçalo Magalhães, Aspetos da ação destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II bis, Julgar n.º 37, Jan/Abril, 2019; Anabela Fialho, Resolução de situações práticas – aplicação prática dos instrumentos”, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf, págs. 377 e seguintes; Leonor Valente Monteiro, Da aplicação prática Do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de novembro e Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980”, disponível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf, págs. 179 e seguintes (todos citados no Acórdão da Relação de Évora a que se fez referência)
Veja-se o Acórdão do STJ de 05/11/2009, processo nº 1735/06.OTMPRT.S1 (Maria dos Prazeres Beleza), in www.dgsi.pt, onde se pode ler: “Estando assente a ilicitude da retenção, os tribunais têm de determinar a entrega imediata da criança, sem que possam discutir a bondade da solução, salvo se ocorrerem as circunstâncias ponderosas que a Convenção da Haia sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 25 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto nº 22/83 de 11 de Maio e o referido Regulamento consideram aptas a fundamentar uma decisão de recusa”.

Essas circunstâncias estão previstas no artigo 13.º, como exceções que devem ser ponderadas, no sentido de não ser ordenado o regresso da criança, delas se destacando a contida na sua alínea b):
 “Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar:
b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
O risco intolerável não pode significar apenas um conjunto de situações difíceis na vida de uma criança. Isto é, de acordo com a interpretação de Maria dos Prazeres Beleza, a exigência de gravidade do risco ou de intolerabilidade da situação obrigam a uma interpretação restritiva quanto ao grau de uma e de outra - Maria dos Prazeres Beleza, Jurisprudência sobre Rapto Internacional de Crianças, Julgar, n.º 24, 2014, pág. 85.
Num recente Acórdão do STJ, de 10/12/2024, processo n.º 976/24.2T8GMR-A.G1.S1 (Fátima Gomes), in www.dgsi.pt, (que revogou um Acórdão por nós proferido em que não se ordenou o regresso da criança, apesar de o mesmo ter contornos fáticos muito diversos deste) considerou-se que “O conceito de risco deve ser entendido como uma verdadeira e extrema exceção, utilizada apenas em última instância – como diz o progenitor pai, posição com que se concorda – e não como um mecanismo de recusa automática. Trata-se de um conceito a interpretar restritivamente e ponderadamente, sendo claramente de aplicar a situações de maus tratos comprovados, incluindo abuso sexual ou de outro tipo, regresso a zonas de guerra, fome, ou que não respeitem os direitos humanos, que não está em causa na situação da França (nem do Brasil, acrescentamos nós)”.
Ora, vertendo ao caso concreto e tendo em conta a matéria de facto apurada, não nos é possível concluir que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou de ser colocada, por qualquer modo, numa situação intolerável e contrária aos seus superiores interesses.
Embora a progenitora tenha alegado um conjunto de situações que, em abstrato, poderiam servir para impedir o regresso da criança (apesar de mais focadas na sua relação com o progenitor e referentes a situações já com alguns anos), o que é certo é que as mesmas não resultaram demonstradas, tal como não ficou assente que, com o regresso ao Brasil, poderiam não estar salvaguardados os direitos e interesses da menor, sendo certo que era sobre aquela que impendia o ónus de prova de qualquer uma das circunstâncias que, à luz dos citados dispositivos legais, legitimariam a determinação da recusa do regresso da criança ao Brasil (onde sempre residiu e de onde foi deslocada, por decisão unilateral da sua progenitora).
A terminar, diga-se que esta ação de entrega da criança é distinta do fundo do direito em questão, não contendendo com a definição das responsabilidades parentais dos progenitores, mas visando apenas sancionar o carácter ilícito da deslocação (ou da retenção) da criança, evitando que a passagem do tempo venha consolidar as situações constituídas em violação de direitos dos progenitores ou de terceiros, e procurando neutralizar uma via de facto - Rui Moura Ramos, O rapto de crianças no plano internacional: alguns aspetos», Institvto Ivridico, Vulnerabilidade e Direito, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2017, págs. 24 e 25 (citado no Acórdão da Relação de Évora de 27/06/2024
E, por conseguinte, se for caso disso, como os Tribunais da República Federativa do Brasil são os competentes para apreciar um eventual pedido de alteração da regulação das responsabilidades parentais, caso aí se decida que o interesse superior da menor é ficar à guarda e aos cuidados da mãe, com eventual autorização de regresso a Portugal, então sim a recorrente estará legitimada a fazê-lo, o que não sucedeu na presente ocasião.
Improcede, assim, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

***
Guimarães, 2 de abril de 2025

Ana Cristina Duarte
Alcides Rodrigues
Carla Maria de Sousa Oliveira