EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I. Em incidente de exoneração do passivo restante, não tendo o insolvente sido esclarecido de que se preparava a prolação da decisão final, nem tendo sido igualmente notificado para proceder à junção, por exemplo, das suas declarações fiscais ou declaração emitida pela Segurança Social no sentido de não ser titular de qualquer benefício social, com a apropriada cominação, a circunstância de ter procedido à junção de documentação que, provando uma situação de doença, não demonstra que a mesma é incapacitante, não configura violação grosseira do dever de informação consagrado no segundo segmento da alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.
II. Tendo sido o insolvente notificado para comparecer em tribunal a fim de prestar declarações, mas tendo-se omitido no despacho proferido que a diligência se destinava a conceder-lhe a possibilidade de prestar as informações em falta e, sobretudo, que a falta injustificada determinava a recusa da exoneração, a sua falta de comparência, ainda que injustificada, não pode dar lugar a automática recusa de exoneração do passivo restante.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

38/21.4T8OLH.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Comércio de Olhão - Juiz 1


I. Relatório
Inconformado com a decisão proferida em 16/12/2024 [Ref.ª133561186], que recusou ao devedor declarado insolvente (…) a exoneração do passivo restante, dela veio este interpor o presente recurso, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:
“1. Por sentença datada de 16-12-2024 o tribunal a quo recusou ao insolvente (…) o benefício da exoneração do passivo restante e condenou o Insolvente (…) nas custas do incidente.
2. O devedor ora Recorrente não se conforma com o despacho que ora se recorre.
3. Encontra-se incorretamente julgada a factualidade vertida no artigo 4º.
4. O ora Recorrente está e sempre esteve disponível colaborar com o Sr. Fiduciário, assim como a facultar todo e qualquer documento que se afigure necessário.
5. A decisão recorrida não consagra nenhum facto que consubstancie que a conduta do devedor foi dolosa ou com grave negligência.
6. Não tendo o ora Recorrente violado nenhuma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º do CIRE.
7. Não se encontrando preenchidos os requisitos para a cessação antecipada da exoneração do passivo.
8. No caso dos autos, entendeu-se que o devedor violou a obrigação de informar o fiduciário e o processo sobre os seus rendimentos.
9. Veja-se que o devedor em virtude do seu estado de saúde não exerce qualquer profissão e não aufere qualquer remuneração.
10. Não tendo o ora Recorrente actuado dolosamente ou com negligência grave, pois o insolvente não entregou a parte do seu rendimento a que estava obrigado porque não tinha, porque efetivamente não aufere quaisquer rendimentos.
11. Em bom rigor o insolvente ora Recorrente sobrevive com a ajuda dos seus familiares.
12. Por outro lado, o credor requerente da cessação antecipada não faz qualquer prova da atuação dolosa ou gravemente negligente e, muito menos, do encontra exactamente nas mesmas circunstâncias que conduziram à exoneração.
13. O mero incumprimento de um dever, sem se apurar se foi doloso ou não, não pode sem mais conduzir à cessação antecipada da exoneração do passivo.
14. Não se encontrando preenchidos os requisitos para a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, devendo o despacho recorrido ser revogado.
15. A cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante depende da verificação de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, não bastando a violação das obrigações previstas no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE.
16. O prejuízo para a satisfação dos créditos não decorre automaticamente da violação das obrigações previstas no artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, tendo que ser demonstrado de modo próprio, o que não sucedeu in casu.
17. A decisão do tribunal a quo violou o disposto nos artigos 239.º, n.º 4 e 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do CIRE e a nossa jurisprudência dominante, nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 779/14.2TBOLH.E1, datado de 22-10-2020 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 279/13.8TBPCV.C1.S2, datado de 09-04-2019 ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
18. Termos em que e face ao supra exposto deverá ser julgado procedente o recurso apresentado e em consequência deverá a decisão recorrida ser revogada, mantendo-se a decisão de exoneração do passivo restante ao devedor (…)”.
Concluiu pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão proferida.
Não foram oferecidas contra alegações.
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Resultando do disposto no artigo 635.º do CPCiv que pelas conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constituem questões a decidir:
i. do erro de julgamento do ponto 4.
ii. do erro de interpretação e aplicação do disposto nos artigos 239.º, n.º 4 e 243.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3, do CIRE, a impor a revogação da decisão recorrida.
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Da impugnação da matéria de facto
O apelante diz ter ocorrido erro no julgamento dos factos, alegando não resultar dos autos qualquer evidência de que não tenha remetido ao Sr. Fiduciário ou ao processo informação sobre os seus rendimentos, não obstante as solicitações para o efeito, assim impugnado o ponto 4 dos factos julgados assentes. Vejamos se lhe assiste razão.
Não podendo deixar de se reconhecer a natureza algo conclusiva do ponto de facto impugnado, resulta dos autos que, tendo sido notificado do despacho proferido em 1 de Julho de 2021, no qual foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do pedido restante, dele constando as obrigações que recaiam sobre o devedor declarado insolvente, designadamente, e para o que ora releva, o dever de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que auferisse ou viesse a auferir e informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património “na forma e no prazo em que isso lhe fosse requisitado”, assinalou o fiduciário no relatório apresentado em 14 de Julho de 2022 que o insolvente nenhuma informação tinha prestado sobre eventuais rendimentos por si auferidos durante o primeiro ano do período de cessão.
Notificado o devedor, veio a sua Il. advogada dar conta da impossibilidade de contactar o seu cliente apesar de todos os esforços desenvolvidos, comprometendo-se a prestar nos autos as informações solicitadas, tão logo fossem as mesmas obtidas (cfr. requerimento apresentado em 28/7/2022, Ref.ª 42971701).
No relatório apresentado em 6/7/2023 deu o fiduciário novamente conhecimento ao tribunal do facto de não ter sido disponibilizada qualquer informação pelo insolvente, quer pessoalmente, quer através da sua Ilustre mandatária (cfr. fls. 87-88 do processo físico), o que motivou o pedido de cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante por parte da credora (...).
Notificado o insolvente, veio novamente a sua Il. Mandatária dar conta da impossibilidade de com aquele estabelecer contactos, em ordem a prestar as informações solicitadas pelo fiduciário. Todavia, o devedor veio responder ao requerimento formulado pela credora (...) [Ref.ª 46170977, de 19/7/2023), aqui tendo alegado que se encontra de baixa médica, sem auferir quaisquer rendimentos, sobrevivendo com o auxílio de familiares (cfr. fls. 102-103 do processo físico), tendo apresentado 4 documentos em ordem a comprovar a sua situação de doença.
Notificado para documentar nos autos -através de documentos em língua portuguesa ou devidamente traduzidos- os factos invocados, voltou o insolvente a esclarecer que se encontra de baixa médica, dado padecer de doença auto imune, não auferindo quaisquer rendimentos.
Procedeu então à junção da tradução dos documentos antes apresentados, deles resultando ter dado entrada no Hospital (…), em Perpignan, França, nos dias 13/9/2021, 22/9/2021, 24/3/2022 e 29/9/2022, tendo tido alta pelas 16:00 h do mesmo dia 22/9, pelas 15:00h do dia 22/9, pelas 14:02h do dia 24/3 e pelas 14:29 do dia 29/9, mais constando dos ditos documentos que beneficia de isenção do pagamento dos custos da assistência prestada.
Resulta do que se deixou exposto que, tendo procedido à apresentação de documentos que atestam a sua ida a estabelecimento hospitalar por quatro vezes ao longo de um período que se estendeu por cerca de 1 ano, a verdade é que os mesmos não comprovam a alegada situação de saúde incapacitante, nem tão pouco a ausência de quaisquer rendimentos, designadamente que não receba qualquer subsídio, seja qual for a sua natureza, da segurança social francesa, elementos cuja obtenção pelo próprio se afigura não oferecer dificuldade. Não obstante, considerando que no ponto 4 se afirma não ter “o insolvente prestado qualquer informação sobre os seus rendimentos”, o que não é rigoroso, uma vez que reiterou não receber qualquer rendimento, não pode subsistir o facto impugnado, nos seus precisos termos, com o consequente deferimento da impugnação, sem embargo da consideração oficiosa dos factos acima enunciados, os quais resultam da análise do processo.
Por outro lado, resultando dos autos que ao designar data para audição do insolvente e do Sr. AI não fez a Sr.ª juíza constar a finalidade de tal diligência, não pode igualmente subsistir o ponto 6., dele ficando a constar apenas e só o teor daquele despacho, no seu 1.º segmento [Ref.ª 1305897409), alteração que se impõe atento o que dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPCiv.
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II. Fundamentação
De facto
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade:
1. O recorrente (...) apresentou-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 6 de Abril de 2021, que se mostra transitada em julgado (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
2. Por despacho proferido em 1 de Julho de 2021 foi admitido liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante do insolvente (…).
3. Pela mesma decisão, o Tribunal determinou que, durante o período de cessão de rendimentos, então fixado em 5 anos, conforme ficou a constar do mesmo despacho, o Insolvente entregasse ao fiduciário todos os seus rendimentos, com a excepção do valor mensal correspondente a uma vez a retribuição mínima mensal garantida.
4. O insolvente foi notificado da decisão proferida e ainda de que, durante o período de cessão, ficava obrigado a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que auferisse, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que tal lhe fosse requisitado (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
5. O fiduciário nomeado apresentou o relatório relativo ao 1.º ano de cessão em 14 de Julho de 2022, dando nota de que o insolvente nenhuma informação tinha prestado sobre eventuais rendimentos por si auferidos durante aquele período (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
6. Notificado o devedor, veio a sua Il. advogada dar conta da impossibilidade de contactar o seu cliente apesar de todos os esforços desenvolvidos, comprometendo-se a prestar nos autos as informações solicitadas, tão logo fossem as mesmas obtidas (cfr. requerimento apresentado em 28/7/2022, Ref.ª 42971701 – facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
7. No relatório apresentado em 6/7/2023 o Sr. Fiduciário fez novamente constar não ter sido disponibilizada qualquer informação pelo insolvente, quer pessoalmente, quer através da sua Ilustre mandatária (cfr. fls. 87-88 do processo físico – facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
8. A credora (…) requereu em 10 de Julho que fosse declarada a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
9. O devedor respondeu em 19/7/2023 [Ref.ª 46170977), aqui tendo alegado que se encontrava de baixa médica, sem auferir quaisquer rendimentos, sobrevivendo com o auxílio de familiares, tendo procedido à junção de 4 documentos em ordem a comprovar a sua situação de doença (cfr. fls. 102-103 do processo físico – facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
10. Por despacho de 9/10/2023 [Ref.ª 129506171], a fls. 100 do processo físico, foi o insolvente notificado para proceder “ao pagamento do montante em dívida”, pronunciar-se “sobre o relatório anual e tais requerimentos”, ou para dizer o que tivesse por conveniente (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
11. O insolvente veio responder, reiterando que em virtude da sua situação de doença – depressão e doença de sangue, implicando a necessidade de longos internamentos e transfusões de sangue – não aufere quaisquer rendimentos, sobrevivendo com a ajuda dos seus familiares (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
12. Por despacho de 6/11/2023 [Ref.ª 129917638] foi concedido ao insolvente o prazo de 10 dias “para documentar – através de documentos em língua portuguesa ou devidamente traduzidos – os factos que invoca, designadamente a sua situação de doença e a ausência de rendimentos” (facto aditado, nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPCiv).
13. O devedor procedeu à junção da tradução dos documentos hospitalares referidos no ponto 10., dos quais resulta ter sido observado em hospital situado em França, sem internamento, nos dias 13.09.2021, 22.09.2021, 24.03.2022 e 29.09.2022.
14. Foi agendada diligência de audição do Insolvente e do Sr. AI, à qual o Insolvente e o seu Mandatário faltaram, sem comunicar ou justificar as razões da sua falta.
15. O período de cessão de rendimentos iniciou-se em Agosto de 2021 e terminou em Agosto de 2024.
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Direito
Da recusa da exoneração do passivo restante
Conforme consagrado no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o regime da exoneração do passivo restante pretende conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem das suas dívidas, permitindo-lhes deste modo encetarem a sua reabilitação económica - um novo começo, para usar a terminologia dos sistemas anglo saxónicos.
Tal então novel instituto, operando a extinção de todos os créditos sobre o insolvente pessoa singular que não tenham sido satisfeitos no âmbito do processo de insolvência nem no período agora fixado nos 3 anos posteriores ao encerramento, incluindo os que não tenham sido reclamados nem verificados (cfr. artigo 245.º do CIRE)[2], permite ao devedor honesto e de boa-fé um recomeço sem o pesado fardo da sua situação passiva, que é, deste modo, reconduzida a zero.
No entanto, e conforme resulta da lei, a extinção das obrigações só pode/deve ser concedida ao devedor que, pela sua conduta anterior e ao longo do período de exoneração, demonstre ser merecedor do benefício, actuando com honestidade, transparência e boa-fé[3]. A conduta do insolvente é avaliada aquando da prolação do despacho dito liminar e na decisão final[4], podendo no entanto ser apreciada em momento anterior para os efeitos previstos no artigo 243.º, que prevê a cessação antecipada do incidente de exoneração.
Ora, analisando a tramitação dos presentes autos, verifica-se que tendo a credora (...) requerido a cessação antecipada do procedimento, requerimento que o Sr. AI acompanhou e a que o devedor insolvente respondeu, a verdade é que a decisão aqui sindicada terá sido proferida ao abrigo do disposto no artigo 244.º, decisão final, portanto, dado ter entretanto decorrido o período de cessão, hoje fixado em 3 anos (sem prejuízo de eventual prorrogação), por força das alterações introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, substituindo o inicialmente previsto período de 5 anos em vigor aquando da abertura do incidente nestes autos. Não obstante, como nada foi, a este respeito, esclarecido pelo tribunal, resulta das alegações apresentadas pelo recorrente o convencimento de que está em causa a cessação antecipada do procedimento, o que não é o caso.
Nos termos do convocado artigo 244.º, “A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.” (cfr. n.º 2 do preceito).
Por sua vez, o artigo 243.º para que aquele remete, dispõe que:
“1. Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.”.
Nos termos do n.º 2 do preceito “Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las”.
As obrigações impostas ao devedor insolvente pelo artigo 239.º são, para o que ora releva, as elencadas no n.º 4, a saber:
“a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores”.
No caso presente, a recusa de exoneração do passivo restante assentou na consideração de que o insolente violou, “pelo menos com negligência grave, as obrigações que lhe foram impostas, concretamente a obrigação de informar o fiduciário e o processo sobre os seus rendimentos”, nunca tendo comprovado nos autos a sua situação patrimonial, designadamente os rendimentos que auferiu ao longo do período de cessão, tendo-se acrescentado que “manteve um incompreensível alheamento ao longo de quase todo o período de cessão de rendimentos, dado que nem sequer compareceu, nem se fez representar, na diligência agendada para poder expor ao Tribunal as suas razões”. Dissentindo deste entendimento das coisas o insolvente reitera o que já alegara no requerimento inicial e sempre informou: encontra-se em situação de baixa por doença, situação que se manteve ao longo dos 3 anos, não tendo auferido qualquer rendimento, donde, conclui, não resultar dos autos que tenha violado a obrigação de informação com dolo ou sequer negligência grave.
Vejamos se lhe assiste razão.
Não se questiona que o dever de colaboração do devedor decorre da mais elementar boa fé, que lhe impõe a adopção de uma conduta proba e transparente, pressuposto inalienável da concessão do considerável benefício que representa a exoneração do passivo restante. Deste modo, o incumprimento, com dolo ou negligência grave, do dever de informação consagrado no segundo segmento da alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º, tendo clara autonomia em relação ao dever de entrega ao fiduciário dos rendimentos objecto de cessão, é, assim, bastante para justificar a recusa da exoneração, a qual, nos termos do n.º 2 do artigo 243.º acima transcrito, “é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las”. Compreende-se a solução legal, uma vez que a violação do dever de informação é susceptível de frustrar a verificação daquele outro dever de entrega.
Todavia, e como se alertou no acórdão deste TRE proferido em 14/9/2023 (processo n.º 213/16.3T8STR.E1, subscrito pela ora relatora e pelo 2.º adjunto na qualidade de 1.º e 2.º adjuntos), a violação daquele dever de informação não prescinde do elemento subjectivo do tipo legal, ou seja, que o devedor actue com dolo ou culpa grave. Por assim ser, tendemos a concordar com o alegante quando defende que os factos elencados não permitem tal inferência.
Antes de mais, cumpre fazer notar que, para lá de o ora recorrente não ter sido em momento algum esclarecido de que se preparava a prolação da decisão final, ao que resulta dos autos não foi igualmente notificado para proceder à junção, por exemplo, das suas declarações fiscais ou declaração emitida pela Segurança Social no sentido de não ser titular de qualquer benefício social, com a apropriada cominação. Reconhece-se que a documentação junta, fazendo prova de que o insolvente recorreu periodicamente ao hospital, o que indicia uma situação de doença, já não comprova que seja impeditiva de auferir rendimentos por força do trabalho ou que não possa ser beneficiário de prestações sociais, abonadas pelo ISS ou pela Segurança Social francesa, o que se desconhece. Todavia, a insuficiência da informação prestada, rectior, a insuficiência dos elementos de prova juntos para comprovar a informação prestada, nas circunstâncias processuais que o elenco dos factos provados denuncia, não é, em nosso entender, fundamento bastante para que se conclua ter actuado com negligência grave – a conduta infractora não lhe vem imputada a título doloso –, entendida como a violação grosseira e verdadeiramente indesculpável dos deveres a que se encontrava sujeito.
Acrescenta-se que, tendo sido o insolvente notificado para comparecer a fim de prestar declarações, omitiu-se por completo no despacho proferido que a diligência se destinava a conceder-lhe a possibilidade de prestar as informações em falta e, sobretudo, que a falta injustificada determinava a recusa da exoneração. Ademais, em bom rigor, o insolvente justificou e reiterou a não entrega de qualquer quantia com a completa ausência de rendimentos devido à situação de doença -alegação que vem do início do processo, constando do requerimento inicial- pelo que a questão é probatória e não propriamente de recusa de esclarecimentos.
É certo que, conforme relembra o acórdão acima citado, o Tribunal Constitucional sufraga o entendimento de que «envolvendo a exoneração do passivo restante uma colisão de direitos ou valores constitucionalmente protegidos – de um lado, a protecção constitucional dos créditos, no quadro da proteção geral do património; do outro lado, a protecção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade, e, também, o princípio, próprio do Estado Social de Direito, da proteção social dos mais fracos – apenas os interesses do devedor insolvente não culposo foram considerados pelo legislador como devendo prevalecer sobre os dos credores, tanto mais que para a exoneração não é exigida sequer uma satisfação parcial dos créditos destes» (cfr. acórdão n.º 733/2021, de 22/9/2021, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210733.html). No entanto, e precisamente por isso, terá sempre de ser feita uma avaliação cuidadosa do comportamento do devedor, atenta a relevância da decisão a proferir, em ordem a sustentar um juízo de culpabilidade, positivo ou negativo.
Na presente situação, todavia, o enunciado de facto não permite a nosso ver concluir que o recorrente actuou com negligência grave e, estando em causa uma decisão que contende com direitos fundamentais, ela terá de assentar em factualidade que suporte um juízo inequívoco de culpa grave, o que não ocorre na decisão recorrida.
Decorrerá daqui que a exoneração deve ser concedida ao insolvente? Afigura-se que a resposta terá que ser negativa, não permitindo igualmente a matéria de facto elencada, pela sua insuficiência, formular um juízo seguro de ausência de culpa.
Atento o exposto, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, cabe determinar oficiosamente a anulação da decisão recorrida, a fim de ser ampliada a matéria de facto, devendo o tribunal notificar o requerente para juntar aos autos, em prazo a designar, e sob pena de ser proferida decisão de recusa da exoneração do passivo restante, declarações fiscais atinentes ao período de cessão, e declarações, emitidas pela SS em Portugal e França, das eventuais prestações sociais de que seja beneficiário ou, não sendo o caso, que ateste a ausência de qualquer prestação desta natureza.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em anular a decisão recorrida ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPCivil, a fim de ser ampliada a matéria de facto nos termos acima especificados.
Sem custas.
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Sumário: (…)
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Évora, 27 de Março de 2025
Maria Domingas Simões (Relatora)
Ana Margarida Carvalho Leite (1ª Adjunta)
Vítor Sequinho dos Santos (2º Adjunto)



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[1] Srs. Juízes Adjuntos:
1.ª Adjunta: Sr.ª Juíza Desembargadora Ana Margarida Carvalho Leite;
2.º Adjunto: Sr. Juiz Desembargador Vítor Sequinho dos Santos.
[2] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[3] Cfr. Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, pág. 264.
[4] E ainda no ano posterior ao trânsito em julgado do despacho de exoneração, conforme prevê o artigo 246.º.