É incompatível com a natureza do recurso, que constitui o meio processual próprio para se impugnar uma decisão judicial, nomeadamente para se procurar obter, do tribunal ad quem, uma providência que se solicitou ao tribunal a quo e este recusou, e não para, em face desta recusa, procurar obter do tribunal ad quem, uma providência que nunca foi solicitada ao tribunal a quo.
As conclusões do recurso são as seguintes:
1 – O tribunal determinou que o (…) Banco devolvesse, à insolvente, o salário desta referente ao mês de Julho de 2023, que aquele ilicitamente tinha bloqueado.
2 – O (...) Banco demorou 14 meses a devolver, à insolvente, o salário acima mencionado.
3 – Após ter devolvido o salário à insolvente, o (…) Banco contratou uma empresa para vir exigir, à insolvente, o salário que o tribunal o tinha obrigado a devolver.
4 – A recorrente requereu ao tribunal que notificasse o (…) Banco que não podia vir exigir da insolvente qualquer crédito, uma vez que, não tendo ainda o processo encerrado, os alegadamente credores não podem vir exercer qualquer direito junto da insolvente.
5 – O tribunal recusou-se pronunciar sobre o mérito do requerimento, violando o artigo 615.º, 1, d) e 608.º,1, todos do CPC.
6 – O despacho é nulo nos termos do artigo 615.º, 1, d), do CPC.
7 – O tribunal, ao não ter conhecido e se pronunciado sobre o mérito do requerimento, violou o artigo 20.º, 1, da CRP.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-se por outro que determine que o (…) Banco não pode exigir da recorrente qualquer crédito que se julgue credor enquanto o processo não estiver encerrado ou que seja proferido o despacho final sobre a exoneração do passivo restante.
Os factos relevantes para a decisão do recurso são os seguintes:
1 – Por sentença proferida em 22.06.2023, a recorrente foi declarada insolvente.
2 – Em 04.08.2023, a recorrente requereu a notificação do (…) Banco para desbloquear a sua conta bancária e lhe permitir levantar o seu salário.
3 – Em 29.08.2023, o tribunal a quo ordenou que o (…) Banco fosse notificado «de que a apreensão da conta bancária da insolvente decorrente da sua declaração de insolvência deverá permitir ao titular a movimentação dessa conta, onde é depositado o salário, até ao valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês.»
4 – No despacho referido em 3, o tribunal a quo declarou o processo encerrado, por insuficiência de bens, e proferiu o despacho inicial de exoneração do passivo restante.
5 – Em 29.08.2023, a recorrente apresentou requerimento em que se queixou de que o (…) Banco mantinha a sua conta bloqueada, assim a impedindo de levantar os salários de Julho e Agosto.
6 – Em 12.09.2023, a recorrente apresentou novo requerimento no mesmo sentido, uma vez que a situação se mantinha.
7 – Em 14.09.2023, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «Notifique o gerente do Balcão de Portimão do (…) Banco S.A., para, em cinco dias, esclarecer o motivo pelo qual continua a bloquear o acesso da insolvente à sua conta bancária, nomeadamente aos salários de Julho de 2023, apesar do despacho proferido a 28.8.2023 e notificado aquele banco.»
8 – Em 20.09.2023, o (…) Banco comunicou ao tribunal a quo que «foi efetuado o desbloqueio da conta n.º (…), titulada pela Insolvente (…) – NIF (…), encontrando-se a mesma livre de movimentação.»
9 – Em 26.09.2023, a recorrente apresentou requerimento em que alegou, nomeadamente, o seguinte: «o (…) Banco não respondeu à questão que lhe foi colocada pelo Tribunal, i.e, “porque continua a bloquear o acesso da insolvente á sua conta bancária nomeadamente ao salário de Julho de 2023”; o (…) Banco SA mentiu ao Tribunal, uma vez que a insolvente continua sem ter acesso ao seu salário de Julho de 2023». A recorrente concluiu renovando o requerido em 12.09.2023.
10 – Em 04.10.2023, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «Notifique novamente o gerente do (…) Banco, balcão de Portimão, para desbloquear o salário depositado no mês de Julho na conta da insolvente, até ao montante correspondente ao salario mínimo nacional.»
11 – Em 16.10.2023, a recorrente reiterou os seus requerimentos anteriores, alegando que a situação neles exposta se mantinha.
12 – Em 28.10.2023, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«O (…) Banco informa que a conta da insolvente foi desbloqueada desde o dia 11.9.2023 e “efetuado o descativo de valores existentes para a cliente”.
A insolvente continua a insistir que não lhe é dado acesso ao salário do mês de julho.
Assim, com vista a esclarecer a questão, notifique o (…) Banco para enviar a estes autos o extrato da conta bancária da insolvente desde o dia 1 de Julho de 2023 até à presente data.
A insolvente deverá, em cinco dias, comprovar que não tem acesso à conta e à movimentação dos valores aí existentes.»
13 – Em 07.11.2023, a recorrente renovou o seu requerimento de 12.09.2023.
14 – Em 23.11.2023, o (…) Banco remeteu, ao tribunal a quo, cópia dos extractos das contas da insolvente desde 01.07.2023.
15 – Em 27.11.2023, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Inf. (…) Banco:
(…) foi declarada insolvente por sentença proferida a 22 de Junho de 2023.
A declaração de insolvência tem como efeito privar o insolvente dos poderes de administração e disposição dos bens que integram a massa insolvente – artigo 81.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A massa insolvente abrange todo património do devedor à data da declaração de insolvência bem como todos os bens e direitos que o insolvente adquira na pendência do processo. Sendo que os bens isentos de penhora só integram a massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta – artigo 46.º do mesmo Código.
Do artigo 738.º, n.º 1, 3 e 5, do Código de Processo Civil, resulta a impenhorabilidade o valor do salário líquido e dos saldos bancários em valor equivalente ao salário mínimo nacional.
Declarada a insolvência, os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com o previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – artigo 90.º – o que significa que têm que reclamar os seus créditos nos termos e prazo previstos no artigo 128.º desse Código.
Analisados os extratos bancários apresentados pelo (…) Banco, S.A. constata-se que a devedora tinha, na data da declaração de insolvência, um saldo negativo na sua conta bancária no valor de € 648,33.
Após a declaração de insolvência, a 26 de Junho de 2023, foi depositado na referida conta bancária o valor de € 929,26, correspondente ao salário liquido da devedora.
De acordo com as normas supra referidas, estava o credor (…) Banco, S.A. impedido de cobrar a sua divida com recurso aos valores que foram depositados na conta após a declaração de insolvência, antes teria que reclamar o seu crédito no processo de insolvência.
Do valor de € 929,26, que corresponde ao salário da insolvente no mês de Julho, é impenhorável o valor de € 760,00, que corresponde ao salário mínimo nacional em 2023.
Em face do exposto, deverá o (…) Banco, S.A. repor na conta da insolvente o valor de € 760,00, e entregar ao Sr. Administrador da insolvência o valor de € 169,26.
Notifique.»
16 – Em 11.03.2024, o (…) Banco comunicou, ao tribunal a quo, o seguinte:
«(…) foi verificado que a cliente beneficiava de um descoberto autorizado no montante de € 650,00, logo quando foi creditado o vencimento na conta à ordem, na data de 26/06/2023, o mencionado descoberto foi utilizado para liquidação do mesmo, sendo o valor em causa, o montante de € 648,33, tendo sido utilizado o crédito do vencimento para liquidar o montante em causa, ficando, assim, disponível a quantia de € 280,93 que a Cliente utilizou.
Face ao exposto e, salvo melhor opinião, o (…) Banco apenas deveria proceder à devolução do valor de € 648,33 (utilizado para regularizar o descoberto autorizado utilizado).
Por esse motivo, desde já agradecemos que se pronunciem sobre a informação prestada e esclarecer da quantia de € 648,33 qual a parte que deverá ser colocada à disposição da Cliente na sua conta à ordem, e qual o valor que deverá ser transferido para a conta da massa insolvente.
Contudo para que possamos proceder à transferência para a conta da massa insolvente, caso seja o pretendido que nos identifiquem qual o IBAN da mesma, para se proceder em conformidade.»
17 – Em 04.04.2024, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Inf. (…) Banco – 11.3.2024:
Em face da informação do (…) Banco, S.A. que informa que a insolvente utilizou parte do salário, e que aquele banco apenas reteve o valor de € 648,33, e notificada a insolvente não negou ter gasto o valor de € 280,93 do salário de Julho, o (…) Banco deve restituir à insolvente o valor de € 648,33.
Notifique, sendo o (…) Banco, S.A., para proceder à referida devolução em cinco dias.»
18 – Em 17.07.2024, a recorrente apresentou um requerimento no qual, alegando que a restituição ordenada no despacho transcrito em 17 não fora realizada, solicitou «que o (…) Banco seja notificado no âmbito da ação executiva, que corre por apenso a estes autos(apenso D), afim deste valor ser coercitivamente apreendido.»
19 – Em 10.09.2024, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: «Notifique o (…) Banco, SA para, em cinco dias, comprovar nestes autos, a devolução do valor fixado no despacho de 4.4.2024, sob pena de condenação em multa.»
20 – Em 02.01.2025, a recorrente apresentou o seguinte requerimento:
«(…)
1. Em 19-09-2024, o (...) Banco devolveu à insolvente o valor de € 648,33, por determinação do douto Tribunal, cfr a fls... dos autos.
2. Passados alguns meses veio o (…) Banco, novamente, importunar a insolvente, exigindo através de uma entidade identificada como (…) Portugal, Lda., o pagamento do dinheiro que devolveu, acrescido de juros (€ 690,43) uma vez que tinha bloqueado a acesso desse valor à insolvente sem fundamentação legal para o efeito. Doc. 1
3. Como consequência deste facto, além do incómodo e a perseguição constante feita pelo (…) Banco junto da insolvente, que entretanto mudou de banco, mas não consegue encerrar a conta que tinha naquela instituição.
4. O (…) Banco, tal como outros credores foram notificados para vir reclamar os seus créditos à Sra. Administradora de Insolvência, dentro do prazo legalmente dado para o efeito, não o fizeram na altura, o seu direito precludiu.
5. Estando a ora requerente insolvente e a decorrer o prazo de cessão do rendimento disponível, no âmbito do requerimento e despacho inicial de Exoneração do Passivo Restante, não podem os credores que não reclamaram os seus créditos junto da massa insolvente, virem reclamar junto da insolvente.
Termos em que se requer a V. Exa. que mande notificar o (…) Banco para se abster de continuar a incomodar a insolvente, sob pena de o mesmo ser condenado em multa e condenado pelo crime de desobediência nos termos do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do CP.»
21 – Com o requerimento referido em 20, a recorrente juntou uma comunicação do (…) Banco, a si dirigida, datada de 11.12.2024, com o seguinte teor:
«No sentido de encontrarmos uma solução em conjunto para a dívida que tem com Grupo (…) Banco, SA, solicitamos que nos contacte através do n.º (…) ou respondendo via e-mail para (…).
Em alternativa, pode facultar-nos o seu contacto direto e horário preferencial para contacto e um dos nossos gestores irá entrar em contacto com V/ Exa..
(…)
Valor: € 690,43
A este valor acrescem juros de mora, à taxa legal, até liquidação total do débito.»
22 – Em 16.01.2025, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Req. insolvente 2.1.2025:
Não cabe ao Tribunal supervisionar a atuação dos Bancos, nem resolver questões que extravasam o âmbito do processo.
Pelo que, por falta de fundamento legal, indefiro o requerido.»
23 – O presente recurso tem por objecto o despacho transcrito em 22.
1. A solicitação que a recorrente fez ao tribunal a quo foi a seguinte: notificação do (…) Banco para se abster de continuar a incomodar a insolvente, sob pena de ser condenado em multa e pela prática de um crime de desobediência nos termos do artigo 348.º, 1, b), do Código Penal.
Em si mesma, a providência solicitada é absolutamente estranha à finalidade do processo de insolvência, enunciada no n.º 1 do artigo 1.º do CIRE. Sintomaticamente, a recorrente não fundamenta a sua pretensão em qualquer norma deste código. Na realidade, tal norma não existe. Daí que estivesse vedado, ao tribunal a quo, ordenar a notificação solicitada pela recorrente, por falta de norma habilitante. Isto, obviamente, independentemente da fase em que o processo se encontrasse.
2. O tribunal a quo proferiu todas as decisões que o CIRE lhe impunha enquanto o (…) Banco não desbloqueou a conta da recorrente e lhe restituiu todas as quantias que tinha de lhe restituir. Porém, a partir do momento em que aquela conta foi desbloqueada e as quantias ilicitamente retidas foram integralmente restituídas, ficaram resolvidos os problemas entre a recorrente e o (…) Banco que decorreram da declaração de insolvência.
Logo, qualquer problema surgido posteriormente a esse momento entre a recorrente e o (…) Banco é estranho ao processo de insolvência. Se alguma das partes pretender tutela jurisdicional para algum direito que se arrogue, terá de a solicitar através da propositura de uma acção apropriada para esse efeito. O processo de insolvência não constitui o meio próprio para a resolução desse eventual conflito, através do enxerto de incidentes estranhos à sua natureza e finalidade, como a recorrente pretende.
3. A recorrente argumenta que o tribunal a quo se recusou a pronunciar-se sobre a conduta do (…) Banco «que voltou a violar o despacho que determinou a devolução do dinheiro do salário da insolvente do mês de Julho de 2023, que o banco tinha bloqueado o acesso ao mesmo naquela data, impedindo a insolvente de movimentar livremente o seu crédito e fazer face à sua subsistência.»
Esta argumentação não faz sentido. O despacho que a recorrente refere foi cumprido pelo (…) Banco no momento em que a quantia em causa foi restituída. Nesse momento, o despacho em questão alcançou o fim a que se destinava, sendo logicamente impossível a sua posterior violação ou incumprimento.
4. Ao recusar-se a proceder à notificação solicitada pela recorrente, o tribunal a quo não se recusou a conhecer do mérito do requerimento. O tribunal a quo conheceu do mérito do requerimento ao considerar que a providência que lhe estava a ser solicitada carecia de fundamento legal e, por isso, tinha de ser recusada. Nada mais podia fazer.
Sendo assim, o despacho recorrido não padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC.
5. A recorrente conclui as suas alegações solicitando, não já a notificação do (...) B para se abster de continuar a incomodá-la, sob pena de ser condenado em multa e condenado pelo crime de desobediência nos termos do artigo 348.º, 1, b), do Código Penal, mas sim a prolação de decisão que determine que o (…) Banco não pode exigir da recorrente qualquer crédito que se julgue credor enquanto o processo não estiver encerrado ou que seja proferido o despacho final sobre a exoneração do passivo restante. Ou seja, a recorrente pretende que o tribunal ad quem profira uma decisão diversa daquela que solicitou ao tribunal a quo.
Isto é incompatível com a natureza do recurso, que constitui o meio processual próprio para se impugnar uma decisão judicial, nomeadamente para se procurar obter, do tribunal ad quem, uma providência que se solicitou ao tribunal a quo e este recusou, e não para, em face desta recusa, procurar obter, do tribunal ad quem, uma providência que nunca foi solicitada ao tribunal a quo. O recorrente pode pedir a alteração ou a anulação da decisão do tribunal a quo, mas não pode, em sede de recurso, alterar a providência que solicita. Nesta última hipótese, o tribunal ad quem estaria, não a sindicar, como tribunal de recurso, a decisão recorrida, mas sim a proferir, em primeira instância, uma decisão sobre uma nova pretensão. Tudo isto decorre dos artigos 627.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º do CPC.
6. Concluindo, o tribunal a quo decidiu acertadamente, devendo o despacho recorrido manter-se.
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
27.03.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (1.ª adjunta)
Ana Margarida Leite (2.ª adjunta)