DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
IMPULSO PROCESSUAL
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Sumário

I. A reclamação de créditos é um apenso do processo executivo e está funcionalmente dependente dele, já que sem a execução a reclamação de créditos não subsiste. Porém, tem a estrutura de um processo declarativo autónomo e, por conseguinte, nada obsta a que se considere parada e a que, caso se verifiquem os demais pressupostos, se declare deserta a instância (da reclamação de créditos).
II. O instituto da deserção da instância previsto no artigo 281.º do CPC, pressupõe para além da paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, que essa paragem se deva à necessidade de impulso da parte, que atua com negligência.
III. No apenso de reclamação de créditos, após a fase dos articulados, não existe necessidade de impulso das partes, porquanto a responsabilidade por dar andamento ao processo pertence ao Tribunal, nos termos do artigo 791.º do CPC.
IV. Assim, o incumprimento do despacho de aperfeiçoamento, consubstanciado na não junção do título executivo, que suporta o crédito do reclamante, não importa a paragem do processo, que culmine com a extinção da instância por deserção.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Sumário: (…)

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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório:
A Caixa Geral de Depósitos, SA, por não se conformar com a decisão que declarou deserta a instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do CPC, proferida no dia 24-05-2024, na presente reclamação de créditos, que corre por apenso à ação executiva intentada por (…) e (…), SA contra (…), interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A) Vem o presente recurso interposto da Sentença que julgou extinta por deserção o apenso da Reclamação de Créditos com fundamento na aplicação automática do artigo 281.º do CPC, expondo que os autos aguardavam impulso processual há mais de seis meses;
B) Por Sentença condenatória proferida em 13/02/2015, nos autos de ação declarativa de condenação, com processo ordinário que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Santarém, sob o n.º 716/04.2TBALR, foi o Recorrido condenado a pagar, solidariamente, à ora Apelante, a quantia de € 13.755,45 (treze mil e setecentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos);
C) No caso sub judice, estamos perante uma Reclamação de Créditos, que corre por apenso a um processo de Execução Própria;
D) Entre a ação principal e os respetivos apensos existe uma unidade orgânica que traça a dependência entre os mesmos, designadamente entre as partes, o objeto de venda judicial;
E) Neste sentido, uma eventual falta de relação entre o processo principal e o respetivo apenso de reclamação de créditos prejudicaria o correto reconhecimento e graduação de créditos e, consequentemente, uma adequada distribuição do produto da venda do bem imóvel penhorado na execução, pelo que existe uma intrínseca relação de dependência entre o apenso de reclamação de créditos e a ação executiva, tanto mais que não nos podemos esquecer que o que fundamenta a Reclamação de Créditos é o ónus registado sobre o imóvel penhorado, ónus esse que corresponde à penhora registada sob a Ap. (…), de 2016/…;
F) A Apelante impulsionou, com requerimentos ao Douto Tribunal no processo principal de execução, e Comunicações ao Sr. Agente de Execução, o valor base e a modalidade da venda do imóvel penhorado;
G) Assim sendo, e uma vez defendida a relação entre o processo principal com o apenso da reclamação de créditos, em termos objetivos, os factos não permitem determinar a negligência da Apelante na paragem do processo, bem como a ausência de impulso processual;
H) Pelo que não se encontram preenchidos os requisitos cumulativos previstos no artigo 281.º do CPC, carecendo de fundamento legal a decisão de deserção no caso em apreço;
I) Por todo o exposto, e com o devido respeito, a não junção da Sentença condenatória não pode originar a deserção da instância, uma vez que aquilo que legitima a pretensão da ora Apelante nos presentes autos é o ónus registado sobre o bem imóvel melhor identificado no ponto 9. do presente articulado;
J) Assim, no ensejo do exposto, a instância não se encontrava a aguardar por impulso processual, não tendo fundamento a decisão de extinção da instância por deserção;
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os Vistos, cumpre apreciar e decidir:
1) Se se verificam os pressupostos para a declaração de deserção da instância, conforme decidido.
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2. Fundamentação:
2.1. Resultam dos autos os seguintes factos, com relevância para a decisão:
1) A Caixa Geral de Depósitos, SA instaurou, no dia 12-04-2023, a presente reclamação de créditos, por apenso à execução para pagamento de quantia certa com o n.º 655/04.7TBALR, em que é executado (…), em virtude de ter registada a seu favor uma penhora sobre o imóvel penhorado na execução.
2) Invocou que, por sentença já transitada em julgado, proferida em 13/02/2015, nos autos de ação declarativa de condenação, com processo ordinário que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Santarém, sob o n.º 716/04.2TBALR, foi o Executado condenado a pagar, solidariamente, à Reclamante, a quantia de € 13.755,45 (treze mil e setecentos e cinquenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos).
3) E terminou, pedindo que fosse verificado e reconhecido o seu crédito sobre o executado, no valor total de € 22.830,73, acrescido dos respetivos juros vincendos até efetivo e integral pagamento e que fosse o mesmo graduado no lugar que lhe compete.
4) O executado e a exequente foram notificados para, no prazo de 15 dias, impugnarem o crédito reclamado, mas não deduziram impugnação.
5) Concluso o processo ao Mm.º Juiz foi proferido despacho a determinar que se averiguasse da dissolução/revitalização dos executados.
6) Nada tendo sido apurado, o processo foi novamente concluso ao Mm.º Juiz que determinou que se notificasse “a certidão de ónus e encargos que antecede aos sujeitos processuais e AE para, em 10 dias, se pronunciarem, designadamente quanto à existência de penhoras prévias à desta execução, e/ou inutilidade das reclamações deduzidas”.
7) Nada tendo sido feito, foi o processo novamente concluso, tendo então sido proferido despacho, a 21-09-2023, a determinar a notificação da reclamante para, em dez dias juntar aos autos certidão da sentença.
8) Nada tendo sido junto, foi proferido a 17-10-2023, o seguinte despacho, notificado à reclamante a 18-10-2023: “Insista junto da reclamante, sem prejuízo do prazo de deserção”.
1) Nada tendo sido dito ou feito pelas partes, neste apenso, no dia 24 de maio de 2023, o Mm.º Juiz proferiu a decisão recorrida, com a seguinte fundamentação:
“Com efeito, para efeito de apreciação da reclamação apresentada, desde 21/09/2023 e 17/10/2023 que o Tribunal aguarda o impulso da reclamante, e que a reclamante junte aos autos a sentença proferida em 13/02/2015, nos autos de ação declarativa de condenação, com processo ordinário que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Santarém, sob o n.º 716/04.2TBALR, a que se refere na reclamação.
Contudo, a reclamante não se digna responder, esclarecer nem juntar aos autos a documentação ordenada, pelo que a falta de impulso processual se deve a negligência da sua parte.
Pelo exposto, nos termos do disposto no art. 281.º do Código de Processo Civil, declaro deserta a instância.”
2) A 30/01/2024, a Apelante submeteu aos autos de execução para pagamento de quantia certa de que este é apenso, uma comunicação ao Agente de Execução, na qual se pronunciou quanto à modalidade de venda e ao valor base do bem imóvel penhorado e objeto de venda judicial nos presentes autos;
3) No referido processo de execução encontram-se em curso as diligências de venda judicial do bem imóvel.
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2.2 Do Direito:
Dispõe o artigo 281.º, n.º 1 do CPC que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
A deserção da instância é, assim, nos termos do disposto nos artigos 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c), do CPC, uma forma de extinção da instância que opera quando esta fique paralisada por mais de 6 meses, em resultado de conduta imputável à parte, que tinha o ónus de impulsionar o processo e não o fez conduzindo à paralisação do mesmo.
Conforme se decidiu no recente Acórdão do STJ n.º 2/2025, de 26 de fevereiro proferido na revista ampliada n.º 4368/22.0T8LRA.C1.S1, “Este instituto jurídico assenta, portanto, no demonstrado desinteresse, incúria ou indesculpável desleixo da parte (que sabia ou devia saber que sobre ela recaía o impulso processual) em promover os termos da causa, concretizando-se, portanto, na falta do empenho e cooperação (cfr. artigos 7.º, n.º 1 e 8.º do Código de Processo Civil) que lhe eram em concreto exigíveis, não sendo admissível que a instância subsista indefinidamente à espera da prática do ato processual que lhe competia diligentemente realizar e que durante tanto tempo inexplicavelmente omitiu”.
Neste acórdão fixou-se jurisprudência, no sentido de que
“I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.
II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Importa, assim, averiguar se estão reunidos os pressupostos da deserção da instância, a saber:
1) O processo estar parado há mais de 6 meses;
2) A paragem dever-se à necessidade de impulso da parte
3) A parte atuar com negligência;
1) Quanto à paragem do processo:
Ficou demonstrado perante os factos dados como provados que:
- O apelante apresentou uma reclamação de créditos, mas não a instruiu com a documentação pertinente, designadamente com o título executivo respeitante ao crédito reclamado.
- Não foi deduzida impugnação,
- O Tribunal convidou, em 21-09-2023, o apelante a juntar a certidão da sentença (que constituía o título executivo).
- Mantendo-se a falta, o Tribunal, em 17-10-2023, insistiu com o reclamante fazendo constar do despacho “Sem prejuízo do prazo de deserção”.
- Não tendo sido junto o documento, em 23.05.2024 foi declarada a extinção da instância, por deserção.
Do exposto resulta que o apenso de reclamação de créditos ficou, efetivamente, parado por mais de 6 meses por o Tribunal ter entendido que o processo não podia ser movimentado enquanto o reclamante não juntasse o título executivo.
Entende a reclamante/apelante que apesar de não ter junto aos autos a documentação solicitada, pelo Tribunal, no apenso da reclamação de créditos, inexiste motivo para decretar deserta a instância uma vez que se encontravam a ser praticados os atos atinentes à promoção da venda do imóvel, com vista ao ressarcimento do crédito da Exequente e da ora Apelante, pelo que não se poderá considerar que o processo estava parado.
Conclui que entre a ação principal e o apenso existe uma unidade orgânica que traça a dependência entre os mesmos, pelo que tendo o reclamante tido intervenção na execução, designadamente pronunciando-se quanto à modalidade de venda, não há ausência de impulso processual e por conseguinte inexiste fundamento para a deserção da instância.
De facto, resulta, da matéria factual dada como provada, que o reclamante/recorrente, a 30/01/2024, submeteu, aos autos de execução, uma comunicação dirigida ao Agente de Execução, na qual se pronuncia quanto à modalidade de venda e ao valor base do bem imóvel penhorado e objeto de venda judicial nos autos;
Porém, é manifesto que este requerimento, apresentado pelo recorrente na ação executiva, não obsta a que se considere parado o apenso de reclamação de créditos.
Por um lado, porque o requerimento de pronúncia quanto à modalidade da venda não tem a virtualidade de promover o andamento da reclamação de créditos. Com efeito, tal requerimento, foi junto à ação executiva, mas não implicou qualquer movimentação, designadamente a conclusão ao Juiz, do apenso de reclamação de créditos.
Por outro lado, porque embora a reclamação de créditos, atento o disposto nos artigos 788.º e seguintes do CPC, corra por apenso à execução e esteja dela dependente funcionalmente, já que sem a execução o apenso de reclamação de créditos não subsiste, apresenta-se ainda assim com a estrutura de um processo declarativo autónomo e, por conseguinte, nada obsta a que se considere o processo parado e a que, caso se verifiquem os demais pressupostos, se declare deserta a instância.
Assim, não tendo o apenso de reclamação tido qualquer movimentação entre 21-09-2023 e 23-05-2024, concluímos que o apenso de reclamação de créditos estava objetivamente parado há mais de 6 meses quando foi prolatada a decisão de deserção da instância.
Porém, como já se referiu, para além da paragem por 6 meses, importa apurar se havia o ónus da parte de impulsionar o processo e se foi a inércia negligente da parte que levou efetivamente à paragem do processo. Vejamos:
2) Da necessidade de impulso da parte
O tribunal considerou que a parte tinha o dever de juntar a certidão da sentença para o processo prosseguir. A recorrente, por seu turno, defende que a instância não se encontrava a aguardar o seu impulso processual porque “a não junção da sentença condenatória não pode originar a deserção da instância”.
Vejamos. Explica Paulo Ramos de Faria in O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa – Julgar on line, pág. 4, “Num processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz (artigo 6.º, n.º 1), deverá ser (desejadamente) cada vez mais rara a efetiva ocorrência da deserção da instância, por mais raros serem os atos que só a parte pode (deve) praticar e que importam a paragem do processo. A promoção da habilitação de herdeiros ou a constituição de novo advogado pelo autor, após a renúncia do anterior, são casos emblemáticos de impulso processual que só à parte cabe”.
A questão que, assim, se coloca é a de saber se a junção, a estes autos, da sentença, que constitui o título executivo respeitante ao crédito reclamado consubstancia, de facto, um ónus do reclamante necessário ao prosseguimento do processo e que importa a paragem do processo.
Dos despachos proferidos não consta qualquer normativo legal de onde resulte que a lei faz depender a movimentação do apenso de reclamação de créditos da junção do referido documento e, de facto, não se vislumbra a sua existência.
Pelo contrário, o artigo 791.º do CPC prescreve a tramitação subsequente à fase dos articulados, enunciando as várias decisões possíveis que o Tribunal pode e deve proferir, consoante a existência ou não de impugnações.
Assim, conforme se decidiu no Acórdão do STJ de 2-02-2022, proferido no Processo n.º 15485/17.8T8LSB-C.L1.S1 “a falta de título executivo, importava a não verificação de um pressuposto legal de natureza formal do qual dependia a admissibilidade da reclamação desse crédito. Ora, não se verificando então esse pressuposto legal, tal impunha a rejeição da reclamação, levando, em consequência, ao não reconhecimento do crédito nela reclamado. Solução essa essa que resulta, assim, desde logo, da conjugação daquilo que se deixou exposto com aquilo que se mostra plasmado na segunda parte do acima citado n.º 4 do artigo 791.º, e particularmente do seu último segmento. Consequência essa a que, a nosso ver, e caso porventura assim não fosse de entender, sempre seria de extrair quer por via da aplicação conjugada (e adaptada) daquele normativo legal com o n.º 1 do artigo 590.º (pois, como vimos, estamos perante um incidente do processo executivo com a estrutura de uma ação declarativa autónoma), quer mesmo, e por identidade razão e numa interpretação extensiva, da conjugação daquele mesmo normativo com o disposto nos artigos 726.º, n.º 4, alínea a), 726.º, n.º 2, alínea a) e 734.º.
Por conseguinte, nem ao abrigo do Princípio da Gestão Processual, consagrado no artigo 6.º do CPC, que aliás, diga-se também, não foi invocado, o Tribunal ignorando o disposto no artigo 791.º do CPC, poderia cometer à parte um impulso que incumbe ao Tribunal.
Em suma, não tendo o reclamante cumprido o despacho de aperfeiçoamento proferido pelo Tribunal, com vista a suprir a irregularidade, juntando o título em falta, no prazo de dez dias, incumbia ao Tribunal prosseguir com o processo nos termos do disposto no artigo 791.º e seguintes (termos posteriores – Verificação e Graduação dos Créditos) não podendo concluir-se que existia necessidade de impulso da parte.
Pelo exposto, importa concluir não estarem reunidos os pressupostos para a declaração da deserção da instância, devendo o processo prosseguir.
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3. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao presente recurso de apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento do processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 791.º do Código do Processo Civil.
Sem custas.
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Évora, 27 de março de 2025
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
José António Moita (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
(documento com assinaturas eletrónicas)