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LIQUIDATÁRIO JUDICIAL
PROCURAÇÃO FORENSE
IRREGULARIDADE
REPRESENTANTE DE SOCIEDADE
Sumário
- sendo a procuração forense subscrita por sujeito que se arroga da qualidade de administrador e munido de poderes suficientes para constituir representantes da sociedade quando a sociedade, já em processo de liquidação, não possuía qualquer administrador em funções, resulta afirmada a irregularidade da procuração por falta de poderes para o ato da respetiva constituição; - o sujeito (individual ou coletivo) que detenha a totalidade do capital social de uma sociedade não tem, só por isso, poderes de representação desta; - os Liquidatários Judiciais, únicos representantes da Requerente, declarando expressamente não ratificar o processado pelo Recorrente, inviabilizam a regularização dessa irregularidade e a aplicação das regras atinentes ao instituto da gestão de negócios. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I – As Partes e o Litígio
Recorrente / Ilustre Advogado: (…)
Recorrida / Requerente: (…), Limited, pessoa coletiva n.º (…) e sede em (…), (…) House, Le (…), ST Peter Port, Guernsey GY1 4NA
Requerida: (…) Portugal III, Unipessoal, Lda., pessoa coletiva n.º (…) e com sede em Aldeamento (…), Sítio dos (…), 8135-863 Almancil
(…), Limited apresentou-se a intentar o presente Procedimento Cautelar Especificado de Suspensão de Deliberações Sociais contra (…) Portugal III, Unipessoal, Lda., peticionando que seja determinada a suspensão da eficácia da deliberação datada de 29/08/2024 que teve por objeto a destituição da gerência e nomeação de outros gerentes à sociedade Requerida.
O requerimento inicial foi subscrito pelo Ilustre Advogado Dr. (…), que juntou procuração forense subscrita por (…), com indicação de que o fazia na qualidade de administrador, com poderes para o efeito, datada de 22/07/2024.
Decorreram diligências atinentes à citação da Requerida.
Em representação da Requerente (…) Limited (In Liquidation), apresentou-se a Ilustre Advogada Dra. (…) a requerer a extinção da instância, declarando não ratificar os atos praticados pelo advogado subscritor do requerimento inicial, que não possui mandato forense válido para representar a Requerente.
Alegou, para tanto, a dissolução forçada e a entrada em processo de dissolução, mediante sentença de 31/07/2020, donde resultam cessados os poderes dos administradores e que apenas os liquidatários são os únicos representantes da sociedade; a procuração junta é inválida e ineficaz, além de ter sido expressamente revogado o mandato nela conferido.
Em resposta, o Ilustre Advogado Dr. (…) apresenta-se a sustentar que os “liquidators” carecem de poderes revogar o mandato, tal como carecem de poderes para requerer a extinção da instância/desistir da instância/pedido (não lhes foram concedidos poderes para desistir de ações propostas no interesse da Requerente), uma vez que lhes está vedada a prática de qualquer ato que se mostre prejudicial para a sociedade ou para a preservação do respetivo património (exceto os atos que diretamente se relacionem especificamente com o processo de liquidação). Mais alega que cabe aos “liquidators” “tomar as medidas necessárias para conservar” as participações que a Limited detenha noutras sociedades, e que, visando os presentes autos a suspensão dos efeitos de deliberação ilegalmente tomada e substituição dos gerentes, o que é manifestamente contrário aos interesses da sociedade Requerente (…) Limited, os liquidatários não os podem impedir – o que implicaria o prejuízo do património e dos interesses que, naquela qualidade, estão obrigados a defender e a manter. Acresce que (…) Hotels e Resorts (…) Inc. é a titular das participações sociais da (…) Limited, sendo aquela que tem legitimidade para recusar e anular os atos dos liquidatários ou para exercer diretamente os poderes inerentes à participação que detém na (…) Limited. De todo o modo, fazendo apelo à urgência da reação devida ao curtíssimo prazo que a lei estabelece para o fazer, sempre teria cabimento a atuação nos termos do artigo 49.º/1, do CPC (Patrocínio a título de gestão de negócios).
Juntou documento que denominou de Parecer Jurídico, com o seguinte teor:
(…)
Mais se apresentou o Ilustre Advogado Dr. (…) a juntar procuração com o seguinte teor:
(…)
Retorquindo a tal requerimento, e reiterando que devem ser dados sem efeito todos os atos processuais praticados pelo Dr. (…) por falta de mandato (artigo 48.º/2, do CPC), a Requerente apresentou-se a invocar que não tem a natureza de sucursal, que a (…), Hotels e Resorts (…) Inc., na qualidade de acionista única, não dispõe de quaisquer poderes para representar a Requerente nem para outorgar procurações em seu nome; os acionistas de uma sociedade em liquidação não podem livremente representá-la e administrar o seu património à revelia dos liquidatários judicialmente designados para este efeito.
Juntou documento que denominou de Parecer Dr. (…), sócio da sociedade de advogados … (Guernsey), sustentando que “um acionista não tem o direito de exercer os direitos detidos por uma sociedade de Guernsey” e “não existe qualquer fundamento legal no ordenamento jurídico de Guernsey que permita as ações sugeridas no Parecer da (…). Antes da dissolução, o administrador controlava os negócios e as atividades da Sociedade. Após a dissolução, o administrador deixa de ter o controlo, e a direção da Sociedade é colocada nas mãos dos Liquidatários Conjuntos, onde permanece.” “inerente a este poder está a capacidade de retirar/desistir ou extinguir processos que tenham sido iniciados em nome da (…) Limited (…)”.
Acrescenta que, em 07/06/2022, o Tribunal de Guernsey se pronunciou no sentido de que “os Liquidatários Conjuntos continuarão a ter e a poder exercer todos os direitos associados às (...) participações sociais (ou equivalente) em quaisquer outras subsidiárias ou investimentos legalmente detidos pela Sociedade.”
A Requerida, por seu turno, consignou nos autos que os seus atuais gerentes encontram-se vinculados ao cumprimento dos deveres legais aplicáveis aos gerentes de qualquer sociedade, previstos no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, inexistindo qualquer facto que permita supor que os mesmos não atuarão conforme a Lei, que a nomeação e o exercício de funções dos atuais gerentes da Requerida não representam qualquer risco para esta ou para a sócia única (…) Limited (In Liquidation) e que nada tem a opor à extinção da instância requerida pela (…) Limited (In Liquidation).
II – O Objeto do Recurso
Decorridos os demais trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida decisão conforme segue:
«reconhecendo-se a ocorrência de exceção dilatória nominada a que se refere o artigo 577.º, alínea h), do Código de Processo Civil, de conhecimento oficioso, ao abrigo do disposto nos artigos 48.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea c), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea h), 578.º, todos do Código de Processo Civil, julgam-se sem efeito os atos praticados pelo Ilustre Advogado que subscreve o requerimento inicial, Dr. (…) e determina-se o indeferimento liminar da petição inicial.
Custas pelo Ilustre Advogado que subscreve o requerimento inicial, nos termos do disposto no artigo 48.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.»
Inconformado, O Ilustre Advogado Dr. (…) apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine o prosseguimento dos autos. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão judicial datada de 04/12/2024 e que julgando sem efeito todos os atos praticados pelo ora signatário, reconheceu a existência da exceção dilatória nominada ínsita na alínea h) do artigo 577.º do CPC e determinou o indeferimento liminar da petição inicial.
2. Condenando o ora signatário, pessoalmente e nos termos do artigo 48.º/2, do CPC, em custas.
3. Não obstante não ser parte nos autos, mas porque a referida decisão o prejudica diretamente (pois que o condena em custas, além de firmar que atuou em juízo sem os devidos poderes de representação e, nos termos do mesmo artigo 48.º/2, do CPC, poder implicar a condenação do Recorrente em indemnização por prejuízos que pudesse ter causado com a sua atuação tida por indevida), pode o signatário da mesma interpor o presente recurso, nos termos do artigo 631.º/2, do CPC.
4. Entende o Recorrente, antes do mais, que a decisão de 1ª Instância padece do vício de omissão de pronúncia a que alude a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – o qual expressamente se argui.
5. Pois que na decisão em apreço, o tribunal recorrido não escreve um parágrafo, uma linha, uma palavra sequer sobre questão que lhe foi colocada pelo Recorrente em requerimento datado de 17/10/2024 e que versava sobre a legitimidade da sócia única da Requerente (a sociedade … Hotels e Resorts … Inc.) para, estando os liquidatários daquela, por referência à mesma situação, a atuar em manifesto prejuízo da (…) Limited e para salvaguarda dos respetivos interesses, outorgar poderes forenses de representação da sua participada (a mesma … Limited).
6. Questão que, atendendo ao teor da decisão escrutinada, tem que se entender ter o maior relevo e, por isso, não poder deixar de ser devidamente apreciada e decidida.
7. Entende ainda o Recorrente que se impõe aditar aos factos dados como provados que “A sociedade (…) Hotels e (…) Holding Inc. é a titular da totalidade das participações sociais da (…) Limited”.
8. Facto que resulta indisputado do Doc. 4 junto pelos liquidatários no requerimento que dirigiram ao processo a 09/10/2024 e se apresenta com manifesta relevância para a boa decisão da causa.
9. Depois, verifica-se que a decisão recorrida erra na aplicação do Direito.
10. Isto porquanto deveria ter considerado que o Recorrente atuou sempre, ao longo do processo, validamente enquanto mandatário constituído da Requerente.
11. Num primeiro momento (concretamente aquando da submissão a juízo da Petição Inicial), no limite, a título de gestão de negócios e nos termos do artigo 49.º/1, do CPC – pois que se tratam os presentes autos de procedimento judicial de manifesta relevância (conforme consta da Petição Inicial apresentada), cuja propositura obedece a apertado prazo (cfr. artigo 380.º/1, do CPC), findo o qual já não é possível lançar-me mão deste tipo de procedimento cautelar.
12. Depois, porque a postura dos liquidatários se apresenta como manifestamente contrária e prejudicial aos interesses da (…) Limited (seja por tal postura a prejudicar diretamente, seja por prejudicar sociedade na qual a (…) Limited detém participações sociais – a Requerida … Portugal III) e porque, nesses casos e de acordo com as leis de Guernsey, tem a detentora das participações sociais da Requerente toda a legitimidade para atuar em seu nome e na defesa de tais interesses, com poderes que lhe foram devidamente conferidos pela titular das participações da Requerente – e por intermédio de procuração com ratificação do processo datada de 11/10/2024 e junta aos autos na mesma data.
13. Neste particular e procurando o lugar paralelo na lei portuguesa, não olvida o signatário que o artigo 152.º/1, do Código das Sociedades Comerciais estabelece que o liquidatário tem, para com a sociedade, os mesmos deveres e responsabilidades que têm os gerentes / administradores, estabelecendo o artigo 64.º/1/b), do mesmo diploma legal que os gerentes/administrados estão obrigados a observar apertados deveres de lealdade e a atuar sempre no melhor interesse da sociedade – deveres que, atenta a referida conduta processual dos liquidatários, é manifesto que não estão a cumprir…
14. Pelo que deveriam ter-se considerado válidos todos os atos praticados em juízo pelo Recorrente.
15. Sendo válidos e eficazes todos os atos processuais praticados pelo Recorrente, em representação da Requerente, nomeadamente a propositura do procedimento cautelar aqui em causa, manifesto se torna inexistir a exceção dilatória ínsita na alínea h) do artigo 577.º do CPC, ou qualquer outra que imponha ou possa importar o indeferimento liminar da Petição Inicial ou obstar ao normal prosseguimento dos autos.
16. Assim, ao ter entendido, de uma banda, que o Recorrente não podia ter atuado em gestão de negócios e, de outra banda, que não tinha poderes forenses para representar a Requerente, violou o tribunal a quo as disposições constantes dos artigos 2.º/1 e 2, 44.º/1, 45.º/1 e 49.º/1, todos do CPC.»
A Requerente, representada pela Ilustre Advogada Dra. (…), entre outros, apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso, já que a decisão não enferma de nulidade, o facto pretendido aditar é irrelevante para a decisão da exceção dilatória de falta de mandato, é descabido o apelo ao instituto da gestão de negócios porquanto é sabido que a (…) Limited, representada pelos seus liquidatários, não ratifica o processado nem pretende prosseguir com a instância.
A Requerida, em sede de contra-alegações, pugna pela improcedência do recurso, avançando ser o mesmo destituído de fundamento, mais salientando que não cabe à suposta única acionista da Requerente (…) Limited, que não é parte nos presentes autos, conferir poderes forenses a mandatário para representar uma outra pessoa jurídica, a Requerente (…) Limited.
Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da nulidade da decisão;
ii) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
iii) da regularidade do patrocínio da Requerente pelo Recorrente.
III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1.º Os presentes autos tiveram início com a apresentação de petição inicial em que o Ilustre Advogado Dr. (…) declara representar a Requerente que identifica do seguinte modo: “(…) Limited, pessoa coletiva n.º (…) e sede em (…), (…) House, (…), ST Peter Port, Guernsey GY1 4NA”.
2.º O subscritor do articulado mencionado em 1.º juntou aos autos cópia de instrumento datado de 22 de julho de 2024 com os seguintes dizeres:
“(…) Limited, pessoa colectiva n.º (…) e sede em (…), (…) House, (…), ST Peter Port, Guernsey GY1 4NA, neste ato representada por (…), na qualidade de administrador, com poderes para o efeito, constitui seu bastante procurador Dr. (…), advogado com cédula n.º (…) e com escritório em (…), n.º 1-10.º, 2685-223 Portela de Sacavém, a quem confere os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos, incluindo os gerais de substabelecer uma e mais vezes e os especiais de confessar, transigir e desistir.”
3.º A denominada “(…) Limited” é uma sociedade comercial constituída e existente ao abrigo das leis de Guernsey conforme certidão do registo comercial da (…) Limited de 8 de outubro de 2024, junta como como Doc. n.º 1, com o requerimento com a referência 12936248).
4.º Por sentença proferida em 31 de julho de 2020, o tribunal competente da Ilha de Guernsey (Royal Court of the Island of Guernsey) determinou a dissolução forçada e entrada em processo de liquidação (compulsory winding up) da (…) Limited, o que é equivalente a um processo de insolvência.
5.º No referido processo de liquidação foram nomeados como liquidatários da (…) Limited (…) e (…), conforme despachos de 31 de julho de 2020 e 13 de julho de 2021.
6.º Com a nomeação dos liquidatários, cessaram os poderes dos administradores da (…) Limited, exceto se os liquidatários ou o tribunal autorizarem a manutenção dos mesmos.
7.º A (…) Limited não tem nenhum administrador em funções, segundo o registo comercial.
8.º Os liquidatários (…) e (…) são os únicos representantes da (…) Limited.
9.º Compete exclusivamente aos liquidatários propor qualquer ação, arbitragem ou procedimento de qualquer natureza em (…) ou em qualquer outra jurisdição.
10.º Compete também aos liquidatários exercer todos e quaisquer direitos inerentes às participações sociais detidas pela (…) Limited noutras sociedades e tomar medidas necessárias para conservar e liquidar as mesmas participações, conforme despacho de 7 de junho de 2022, que declarou o seguinte: “Considerando que, por Despacho do Tribunal de 6 de maio de 2021, proferido a pedido dos Liquidatários Conjuntos, o Tribunal se pronunciou nos termos do artigo 426 da Lei das Sociedades (Guernsey) de 2008, conforme aditada (a Lei das Sociedades) (o Despacho com as Primeiras Indicações); e considerando que, através de citação realizada a 8 de dezembro de 2021, a (…) Hotels e Resorts (…) Inc. (… Holding) propôs uma ação judicial contra (…) e (…), na sua qualidade de Liquidatários Conjuntos da (…) Limited (em Liquidação Judicial) (os Liquidatários Conjuntos e a Sociedade, respetivamente) e a Sociedade, requerendo, nomeadamente, a revogação do Despacho com as Primeiras Indicações e a declaração de que a (…) Holding é a beneficiária final efetiva de todas as participações sociais legalmente detidas pela Sociedade em todas as subsidiárias a 8 de janeiro de 2009 e desde essa data (o Processo); e considerando que, em 14 de março de 2022, a (…) Holding requereu a realização de um julgamento sumário contra os Liquidatários Conjuntos e a Sociedade no âmbito do Processo e em 14 de abril de 2022 os Liquidatários Conjuntos requereram a realização de um julgamento sumário contra a (…) Holding no âmbito do Processo (os Pedidos de Julgamento Sumário), tendo sido designado para a realização do julgamento o dia 6 de junho de 2022; e considerando que, em 25 de março os Liquidatários Conjuntos requereram ao Tribunal indicações adicionais, nos termos do artigo 426.º da Lei das Sociedades em 7 de abril de 2022 (o Pedido de Segundas Indicações), cuja audiência foi adiada para 1 de junho de 2022; e considerando que na referida audiência de 1 de junho de 2022, após leitura da Primeira Declaração de (…), datada de 25 de março de 2022, e da Primeira Declaração de (…), datada de 20 de maio de 2022, e após audição do Advogado (…), em representação dos Liquidatários Conjuntos, do Advogado (…), em representação da (…) Holding, e do Advogado (…), em representação do (…) Bank AG, o Tribunal proferiu sentença através da qual confirmou o Despacho com as Primeiras Indicações, mas suspendeu os seus efeitos durante a audiência de julgamento referente aos Pedidos de Julgamento Sumário no Processo em 6 de junho de 2022, ressalvando que o Despacho com as Primeiras Indicações deveria continuar a produzir efeitos nesse período no que diz respeito (apenas) às participações na sociedade subsidiária que explora o Hotel … (nomeadamente a … Holdings SAS); e considerando que a audiência dos Pedidos de Julgamento Sumário foi encerrada em 6 junho de 2022 e o Tribunal proferiu sentença em 7 junho de 2022; e considerando que o Tribunal, em 7 de junho de 2022, analisou a confirmação do Despacho com as Primeiras Indicações; é ordenado o seguinte: (a) continuarão a ter e a poder exercer todos os direitos associados às Participações Sociais (conforme definidas no Despacho com as Primeiras Indicações) e às participações sociais (ou equivalente) em quaisquer outras subsidiárias ou investimentos legalmente detidos pela Sociedade; (b) podem continuar a tomar todas e quaisquer medidas que os Liquidatários Conjuntos considerem razoáveis para preservar e liquidar os ativos da Sociedade, incluindo as Participações Sociais e as participações sociais (ou equivalente) em quaisquer outras subsidiárias ou investimentos legalmente detidos pela Sociedade; (c) não são obrigados a reintegrar os anteriores administradores da (…) Holdings SAS, tal como requerido pela (…) Holding, e são autorizados a manter a nomeação do Sr. (…) ou, em alternativa, a substitui-lo por outra pessoa devidamente qualificada, conforme determinado pelos Liquidatários Conjuntos; e (d) podem pagar a sua remuneração razoável, custos e despesas da liquidação da Sociedade com os ativos da Sociedade, incluindo o produto de quaisquer vendas ou distribuições atribuíveis às Participações Sociais, ou quaisquer participações sociais (ou equivalente) em quaisquer outras subsidiárias ou investimentos legalmente detidos pela Sociedade.”
11.º Os liquidatários da (…) Limited não deram instruções a nenhum mandatário para propor o presente procedimento cautelar, nem outorgaram procuração alguma para esse efeito.
12.º Após se aperceberem da existência do procedimento cautelar os liquidatários enviaram ao Ilustre Mandatário que apresentou a petição inicial uma carta com o seguinte teor:
“4 de outubro de 2024
(…) Limited (in compulsory liquidation) (doravante, a «Sociedade»)
Assunto: Providências Cautelares (“Providências Cautelares”)
contra (…) Portugal II Unipessoal, Lda. E (…) Portugal III, Unipessoal, Lda.
Exmos. Senhores.
Tivemos recentemente conhecimento de duas providências cautelares (“providências cautelares”) que V. Exas. propuseram em nome e por conta da Sociedade contra a (…) Portugal II. Unipessoal, Lda. e a (…) Portugal III. Unipessoal, Lda. (doravante, “…Portugal II” e “… Portugal III”), pedindo a suspensão das respetivas deliberações sociais de destituição dos anteriores gerentes e designação de novos gerentes. Fazemos referência às providências cautelares n.º 807/24.3T8OLH e n.º 809/24.0T80LH.
Como é do v/ conhecimento, a Sociedade encontra-se atualmente em processo de liquidação em Guernsey, no qual os Srs. (…) e (…), da (…) Thornton Limited, foram nomeados como Liquidatários Conjuntos (Joint Liquidators) da Sociedade nos termos dos Despachos Judiciais (Court Orders) em anexo datados de 31 de julho de 2020 e de 13 de julho de 2021, respetivamente.
Em conformidade, a partir dessa data. os Liquidatários Conjuntos (Joint Liquidators) são os únicos representantes legais da Sociedade para todos os efeitos, incluindo para tomar decisões sobre quaisquer ações judiciais, arbitragens ou outros procedimentos em Guernsey e em qualquer outra jurisdição, como estabelecido no Anexo 1 junto ao Despacho Judicial (Court Order) datado de 31 de julho de 2020.
Não vos foram dadas quaisquer instruções pelos Liquidatários Conjuntos (Joint Liquidators) para propor as providências cautelares contra a (…) Portugal II e a (…) Portugal III. Qualquer procuração que possam ter não é do nosso conhecimento e já não é válida nem eficaz e, caso fosse, fica expressamente revogada pela presente carta. Consequentemente, não têm V. Exas. qualquer capacidade ou poderes para representar a Sociedade nas providências cautelares ou em quaisquer outros processos judicias ou extrajudiciais, atuais ou futuros.
Assim sendo, sem prejuízo de qualquer posição futura que a Sociedade possa vir a tomar relativamente às deliberações sociais da (…) Portugal II e (…) Portugal III objeto de litígio, exigimos que desistam imediatamente dos processos/providências e nos informem de quaisquer outros processos em curso relativos à Sociedade de que tenham conhecimento. Esta carta e a referida desistência não devem ser entendidas como renúncia a quaisquer direitos que a Sociedade possa ter relativamente às resoluções acima referidas. Agradecemos a vossa atenção imediata para este assunto e a vossa cooperação para prontamente pôr termo aos referidos procedimentos/providências. Caso tenham alguma questão ou entendam necessário algum esclarecimento adicional, não hesitem em entrar em contacto comigo ou com o meu colega. (…), em …@qt-ci.com”.
13.º Indicou-se como valor da causa € 40.000,00 (quarenta mil euros).
B – As questões do Recurso
i) Da nulidade da decisão
O Recorrente considera que a decisão enferma de nulidade porquanto não aprecia a arguida legitimidade da sócia única da Requerente (a sociedade … Hotels e Resorts … Inc.) para outorgar poderes forenses de representação da sua participada (a … Limited), para salvaguarda dos respetivos interesses, estando os liquidatários desta a atuar em manifesto prejuízo da (…) Limited.
Ora vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea d), do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
É que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras – artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
Segundo os ensinamentos de Alberto dos Reis[1], há que não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
Por conseguinte, o julgador não tem que analisar e a apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as razões jurídicas invocadas pelas partes em abono das suas posições. Apenas tem que resolver as questões que por aquelas lhe tenham sido postas[2]. Por isso, vem sendo entendido[3] que não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da ação. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, exceto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras. Deste modo, só haverá nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia quando o julgador tiver omitido pronúncia relativamente a alguma das questões que lhe foram colocadas pelas partes ou quando tiver conhecido de questões que aquelas não submeteram à sua apreciação. Nesses casos, só não haverá nulidade da sentença se a decisão da questão de que não se conheceu tiver ficado prejudicado pela solução dada à(s) outra(s) questões, ou quando a questão de que se conheceu era de conhecimento oficioso.
No que respeita a saber quais sejam as questões a apreciar, importa atentar na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as exceções invocadas pelo réu. Assim, as questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções.[4]
Ou seja, a sentença não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.[5]
Decorre do exposto que a decisão recorrida não enferma de nulidade.
Tal decisão contempla a apreciação da questão suscitada – a irregularidade do mandato exercido pelo Sr. Dr. (…). Embora, é certo, não aluda à circunstância de a sócia única da Requerente ter outorgado procuração em favor do Recorrente, apreciando tal argumento (…se bem que seja inequívoca a afirmação de que apenas os liquidatários estão munidos de poderes de representação da mesma sociedade), daí não resulta a respetiva nulidade por omissão de pronúncia, apenas assistindo à parte que lançou mão de tal argumento a possibilidade de o fazer valer em sede de recurso fundado na inconformidade com o decidido.
ii) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Na ótica do Recorrente, no rol dos factos provados está em falta a menção de que a sociedade (…) Hotels e Resorts (…) Inc. é sócia única da Requerente.
Porque se trata de facto invocado como fundamento da junção da procuração emitida pela (…) Hotels e Resorts (…) Inc. atribuindo ao Recorrente poderes para representar em juízo a Requerente, afigura-se ser de considerar tal facto no processo, de modo a permitir a apreciação da alegação do Recorrente nesta matéria.
Assim, vai aditado o n.º 14 aos factos provados, com a seguinte redação: (…) Hotels e Resorts (…) Inc. é sócia única da Requerente.
iii) Da regularidade do patrocínio da Requerente pelo Recorrente
Em 1.ª Instância, considerou-se não ter o Recorrente logrado demonstrar representar a sociedade Requerente, quer porque o instrumento de procuração forense foi subscrito por (…), arrogando-se da qualidade de administrador e munido de poderes suficientes para constituir representantes da sociedade quando, efetivamente, a sociedade Requerente já não possuía qualquer administrador em funções, quer porque apenas os Liquidatários Judiciais nomeados (… e …) são os representantes da Requerente, tendo expressamente declarado não ratificar o processado pelo Recorrente.
Assim é.
A procuração foi subscrita por (…), na qualidade de administrador e munido de poderes suficientes para constituir representantes da sociedade, com data de 22/07/2024.
No entanto:
- por sentença proferida em 31/07/2020, foi determinada a dissolução forçada e entrada em processo de liquidação da (…), Limited;
- no referido processo de liquidação, foram nomeados (…) e (…) como liquidatários e únicos representantes da (…), Limited, tendo cessado os poderes dos administradores;
- (…), Limited não tem nenhum administrador em funções, segundo o registo comercial;
- compete exclusivamente aos liquidatários propor qualquer ação, arbitragem ou procedimento de qualquer natureza em (…) ou em qualquer outra jurisdição.
Em face de tal quadro circunstancial, resulta evidente a irregularidade da procuração junta com o requerimento inicial, datada de 22/07/2024. O respetivo subscritor não dispunha de poderes de representação da sociedade Requerente, não tinha já a qualidade de administrador, o que implica na irregularidade do mandato por falta de poderes para o ato da respetiva constituição.
O que se verifica relativamente à procuração emitida pela (…) Hotels e Resorts (…) Inc. atribuindo ao Recorrente poderes para representar em juízo a Requerente. De igual modo, (…) Hotels e Resorts (…) Inc., apesar de ser sócia única da Requerente, não tem poderes de representação desta, os quais cabem, em exclusivo, aos liquidatários judicialmente nomeados.
Não cabe sequer equacionar que o sujeito (individual ou coletivo) que detenha a totalidade do capital social de uma sociedade se possa confundir com esta ou substituir-se aos órgãos desta em ordem a aglutinar os poderes e competências a ela inerentes. As sociedades comerciais, enquanto pessoas coletivas, são centros autónomos de relações jurídicas, autónomos mesmo em relação aos seus sócios, membros ou às pessoas que atuam como seus órgãos, gozam de personalidade jurídica (artigo 5.º do CSC) e são dotadas de capacidade que compreende os direitos e as obrigações necessários e convenientes à prossecução do seu fim (artigo 6.º/1, do CSC).
Não cabe aqui apreciar as alegações do Recorrente no sentido de que os liquidatários não estão a zelar pelos interesses da Requerente, que a substituição da gerência da Requerida é lesiva dos interesses da Requerida e da Requerente, que a atuação processual por incumbência dos administradores cessionários da Requerente é a única forma de zelar por esses interesses. As regras atinentes à representação legal das sociedades são inequívocas, não legitimando a prática de atos em seu nome por sujeitos desprovidos de poderes para o efeito. O que não depende dos objetivos ou intenções pretendidos prosseguir por tais sujeitos.
Verifica-se, portanto, a irregularidade do mandato – artigo 48.º/1, do CPC.
Na medida em que os Liquidatários expressamente declararam não reconhecer ao Recorrente capacidade ou poderes para representar a Sociedade Requerente nas providências cautelares ou em quaisquer outros processos judicias ou extrajudiciais, atuais ou futuros, reclamando a cooperação daquele para prontamente pôr termo aos referidos procedimentos / providências, resulta evidente não haver lugar à ratificação do processado pelos representantes legais da Requerente, conforme estabelece o artigo 48.º/2, do Código de Processo Civil.
O que inviabiliza ainda a aplicação do instituto da gestão de negócios, que não prescinde da ratificação dos atos praticados pela parte cujo patrocínio o gestor tenha assumido – artigo 49.º do Código de Processo Civil.
É manifesto que improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida – a qual, no entanto, deverá culminar na absolvição da Requerida da instância (artigos 48.º, 278.º n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea h), do CPC), e não já no indeferimento liminar do requerimento inicial.
As custas recaem sobre o Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
Sumário: (…)
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida no sentido da irregularidade do mandato judicial por parte do mandatário que propôs o presente procedimento, absolvendo-se a Requerida da instância.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 27 de março de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
José Manuel Tomé de Carvalho
Mário João Canelas Brás
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[1] CPC Anotado, vol. V, pág. 143.
[2] A. Reis, ob. cit., p. 141 e A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 688.
[3] Segue-se aqui de perto o Ac. STJ de 29/11/2005 (Sousa Peixoto).
[4] Acs. STJ de 07/04/2005 (Salvador da Costa) e de 14/04/2005 (Ferreira de Sousa).
[5] Ac. TRL de 9/07/2014.