CAUSA DE PEDIR
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Sumário

Tendo a nossa lei processual acolhido a teoria da substanciação, em detrimento da teoria da individualização, as partes têm o ónus de alegar os factos essenciais sobre os quais assentam a sua pretensão, isto é, o título particular de aquisição desse direito, ou as excepções deduzidas contra a mesma, sob pena daquela pretensão ou destas excepções não poderem ser atendidas.

Texto Integral

Processo: 266/24.0T8PVZ-A.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
A..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., intentou a presente acção de despejo contra AA, residente na Rua ..., Estrada Nacional ..., s/n, Lugar ..., ... ... PVZ.
Alegou, em essência, ter dado arrendamento à ré o imóvel de que é proprietária e que identifica no artigo 1.º da petição inicial, pelo prazo de 5 anos, renovável por períodos sucessivos de dois anos, mediante o pagamento da renda mensal de 7.000,00 €. Mais alegou que a ré não pagou as rendas que se venceram desde Janeiro de 2023 e que cedeu a terceiro a utilização do arrendado e a exploração do estabelecimento nele instalado.
Concluiu pedindo a resolução do contrato de arrendamento por incumprimento da ré, a condenação desta a desocupar e restituir o prédio à autora, inteiramente livre e devoluto de pessoas e bens, e a pagar-lhe as rendas vencidas, no montante de 91.000,00 €, e as vincendas até efetiva desocupação, elevadas ao dobro desde o trânsito da sentença.
A ré apresentou contestação e deduziu reconvenção, alegando, em síntese, o seguinte:
- A ré e o seu marido (actualmente ex-marido) eram os proprietários do prédio acima referido, onde funcionava um estabelecimento de hotelaria explorado pela sociedade B..., Lda., de que aqueles eram sócios e gerentes;
- Para fazer face às suas dívidas pessoais e societárias, na impossibilidade de aceder ao financiamento bancário, o referido casal solicitou um empréstimo a BB, legal representante da autora; foi então acordado que este emprestaria à ré a quantia de 400.000,00 € e que, como justificação e garantia do pagamento desse montante, o casal teria de transferir a propriedade do imóvel acima referido para a autora, de forma simulada, continuando a ré explorar comercialmente o mesmo imóvel (por intermédio de uma nova sociedade, livre de dívidas, com a qual seriam celebrados todos os demais negócios) e a liquidar a quantia mutuada e os juros acordados; mais foi acordado entre a ré e o legal representante da autora que, na data de celebração da escritura de compra e venda, outorgariam um documento que permitisse à primeira, em qualquer momento e por sua iniciativa, voltar a fazer seu o imóvel;
- Por escritura pública de compra e venda de 24.05.2011, a ré e seu então marido declararam transferir a propriedade do imóvel e do respectivo recheio para a autora, pelo preço de 700.000,00 €, sendo certo que o seu valor de mercado era de 2.000.000.00 €; para o efeito, a autora recorreu a um empréstimo bancário de 400.000,00 € (dando o imóvel como garantia), tendo entregue à ré e seu marido a quantia de 70.000,00 € e imputado o remanescente no cancelamento das hipotecas (anteriormente constituídas pela ré e seu marido) e das penhoras que oneravam o imóvel; o restante valor da aquisição foi pago através da emissão de vários cheques, que a ré endossou para posterior levantamento pela autora;
- No dia seguinte, 25.05.2011, foi formalizado entre a ré e a autora o contrato de arrendamento em discussão nestes autos;
- Conforme acordado, a ré continuou a explorar comercialmente o imóvel, em nome da sociedade C..., Unipessoal, Lda., que entretanto constituiu;
- A autora e esta sociedade subscreveram, com data de 07.06.2011, um contrato promessa de compra e venda do mesmo imóvel, pelo valor de 750.000,00 €, convencionando ainda que, até à data da escritura, seriam pagas quantias a título de sinal e princípio de pagamento no valor de 148.500,00 €; com este contrato, pretendiam as partes assegurar o pagamento dos juros do valor mutuado e permitir a recuperação da propriedade plena do imóvel por parte da ré;
- Os contratos outorgados entre as partes não corresponderam à vontade real das mesmas, as quais apenas quiseram celebrar um contrato de mútuo; aqueles contratos visaram garantir o pagamento do valor mutuado e dos respectivos juros, permitir que a ré mantivesse a posse do imóvel, explorando-o comercialmente, assumisse as despesas inerentes à sua utilização e impedisse que qualquer outro credor lhe penhorasse novamente esse imóvel ou o seu recheio;
- Este conjunto de negócios simulados permitia que a autora, de forma encapotada, emprestasse dinheiro a juros, praticando, assim, uma atividade para que não estava devidamente autorizada e que constitui um ilícito de natureza criminal, nos termos do DL n.º 298/92 de 31/12;
- A escritura definitiva de compra e venda do imóvel entre a autora e a sociedade C... Unipessoal, Lda. nunca foi concretizada, tendo estas celebrado, em 25.01.2012, um contrato de rescisão do referido contrato promessa e tendo a mencionada sociedade aceitado a perda a favor da autora de 100.00,00 €, correspondente a parte da quantia entregue a título de sinal; percebendo que era impossível cumprir o acordo que havia celebrado com a autora, a ré tentou negociar a venda do imóvel, para assim liquidar os valores mutuados por aquela; apesar de existirem interessados na aquisição do imóvel, por valores próximos ao seu valor real, a autora nunca permitiu que o mesmo fosse vendido, inviabilizando todos os negócios apresentados pela Ré no sentido de liquidar os montantes mutuados pela Autora e “anular” definitivamente os simulados contratos;
- Nunca foi intenção da ré vender o imóvel à autora, muito menos por um valor inferior ao seu valor de mercado, da mesma forma que esta nunca teve a intenção de o comprar; também nunca foi intenção da ré tomar de arrendamento o referido imóvel, nem foi intenção da autora dá-lo de arrendamento, nunca tendo exigido à ré o pagamento de qualquer renda; tratou-se, apenas e só, de uma forma de permitir a manutenção da posse do imóvel pela ré e impedir que terceiros pudessem penhorar o mesmo, ou o seu recheio, por dívidas contraídas pela ré ou pela empresa que o explorava comercialmente.
Concluiu deduzindo o seguinte pedido:
Termos em que, e nos melhores de direito, deve:
I. A presente ação ser julgada improcedente por não provada, e consequentemente a Ré ser absolvida do pedido formulado.
II. Ser a Reconvenção apresentada pela Ré admitida e, nesses termos:
a. Reconhecida a existência de simulação na celebração do negócio jurídico consubstanciado na escritura pública que titulou a transmissão do direito de propriedade a favor da Autora relativamente ao prédio urbano, composto de edifício de cave, rés-do-chão e dois andares, com logradouro, sito no Lugar ..., freguesia ..., do concelho da Póvoa do Varzim, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa do Varzim sob o n.º ... da freguesia ..., sendo tal negócio declarado nulo para todos os efeitos legais;
b. Reconhecida a existência de simulação na celebração do negócio jurídico que se consubstanciou na outorga do contrato de arrendamento para fins não habitacionais, descrito nos art. 2º e 3º da petição inicial, sendo os mesmos declarados nulos para todos os efeitos legais;
c. Reconhecida e declarada a celebração entre Autora e a Ré de um contrato de mútuo titulado através das supra referidas declarações negociais;
d. Ordenado o cancelamento dos registos de propriedade realizados a favor da Autora relativamente ao imóvel identificado em a.
A autora apresentou réplica.
Depois de realizada audiência prévia e de ouvidas as partes, foi proferido saneador sentença onde se considerou que a factualidade alegada não preenche os pressupostos da simulação e, por conseguinte, se julgou totalmente improcedente o pedido reconvencional.

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Inconformada, a ré apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
«1. A Ré ora Recorrente deduziu o pedido reconvencional de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda e de arrendamento do prédio sub judice, invocando que foram outorgados para dissimular um contrato de mútuo e garantir a restituição do valor mutuado e os respetivos juros (alias, usurários).
2. O douto saneador sentença recorrido julgou improcedente esse pedido e declarou extinta a instância por considerar que a pretensão deduzida a título reconvencional é infundada,
3. louvando-se, todavia, em argumentos que não podem ser sufragados
4. Em primeiro lugar, é descabido o argumento de que “não se está perante um negócio fictícia [porque] as partes quiseram contratar” e “quiseram celebrar os referidos contratos”.
5. É claro que as partes quiseram contratar e celebraram os negócios que a Ré qualifica como simulados.
6. Se não o tivessem feito, obviamente não se levantava sequer a questão da simulação que só se coloca quanto a negócios... celebrados, em que exista divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos outorgantes.
7. Em segundo lugar, é descabido 0 argumento de que “a factualidade alegada não permite concluir que as partes não quisessem o negócio; pelo contrário o contrato celebrado foi a forma encontrada para o celebrar”.
8. Para além de envolver uma clara petição de princípios, dando por demonstrado o que está pendente de demonstração (a correspondência – melhor: a falta de correspondência – entre a vontade declarada e a vontade real),
9. tal argumento é clamorosamente desmentido pela alegação dos factos descritos pela Ré nacontestação/reconvenção e no requerimento de 3.9.2024,
10. e que inculcam que a vontade real das partes não era a de vender e comprar e a de arrendar o prédio dos autos (muito menos pelo preço não pago nem recebido de 700.000,00 € e com a contrapartida duma renda que nunca foi exigida, recebida ou paga ao longo de mais de treze anos), antes e apenas a de dissimular e garantir um mútuo de 400.000,00 €.
11. A circunstância de nunca ter sido exigida ou paga qualquer renda demonstra, por si só, que não tem o menor fundamento a afirmação constante do douto saneador sentença de que ocorreu “o cumprimento dos contratos, durante substancial lapso do tempo”.
12. Em terceiro lugar, é descabido o argumento de que “não é concretizado nenhum engano que possa ter sido projetado enquanto intenção que haja presidido à declaração final, nem se alcança o prejuízo concreto e objetivo que possa decorrer para terceiros do negócio simulado”.
13. E é descabido porque a Ré alegou que, além do mais (quer-se dizer: além de dissimular um mútuo usurário), a simulação que invoca foi adotada com a intenção de impedir que o imóvel objeto do presente litígio pudesse vir a responder pelas suas dívidas à Fazenda Nacional, aos Bancos e a credores particulares.
14. Foi adotada, isto é, com a intenção de não só de enganar como até de prejudicar terceiros.
15. Em suma, o conjunto dos factos alegados pela Ré preenche todos os requisitos da simulação relativa: a divergência entre a declaração negocial e a vontade real das partes, decorrente do acordo entre estas, visando enganar e mesmo prejudicar terceiros, consubstanciada na celebração dum negócio fictício (compra e venda e arrendamento dum imóvel) para dissimular o negócio verdadeiro (um mútuo usurário) e impedir que os credores da Ré pudessem cobrar os seus créditos.
16. Ao decidir o contrário, o douto saneador sentença ofendeu o disposto, entre outros, nos artos 240º e 241º, CC, pelo que deve ser revogado».
A autora respondeu a esta alegação, pugnando pela improcedência da apelação.
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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, a questão a decidir consiste em saber se a factualidade alegada pela ré reconvinte, a provar-se, é susceptível de fundamentar a procedência dos pedidos reconvencionais ou de algum deles, designadamente por preencher os pressupostos da nulidade por simulação dos negócios jurídicos em discussão nos autos, ao contrário do que entendeu a decisão recorrida.
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A simulação está prevista na subsecção do código civil que regula a falta e vícios da vontade, integrada na secção dedicada à declaração negocial. Nos termos do n.º 1, do artigo 240.º, que abre aquela subsecção, «[s]e, por acordo entre o declarante e o declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado».
A declaração da vontade negocial é constituída por em elemento externo – a declaração propriamente dita – e outro interno – a vontade real do declarante. Por regra, estes dois elementos são consonantes, havendo uma efectiva autodeterminação de efeitos jurídicos pelo autor da declaração. Mas entre tais elementos pode existir divergência, por falta ou desvio de algum dos subelementos em que se desdobra o elemento interno (vontade de acção, vontade de acção como declaração e vontade de declaração negocial), divergência que pode ser intencional (o declarante tem consciência dela, mas emite livremente a declaração) e não intencional (o declarante não tem consciência da divergência ou, tendo-a, é forçado a emitir a declaração). E pode haver perturbações no processo formativo da vontade, de tal sorte que, embora não haja divergência entre a vontade real (elemento interno) e a declaração propriamente dita (comportamento que exterioriza aquela vontade), aquela se mostra “viciada”.
A simulação é uma das formas que pode revestir a divergência intencional entre a vontade real e a declarada, a par da reserva mental (cfr. artigo 244.º do CC) e das declarações não sérias (cfr. artigo 245.º do CC), situações em que o declarante emite, consciente e livremente, uma declaração com um sentido objectivo diferente da sua vontade real.
O que distingue a simulação destas outras formas de divergência intencional é a circunstância de decorrer do acordo simulatório entre o declarante e o declaratário, celebrado com o intuito de enganar terceiros (vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica” II, 1992 – Reimpressão, p. 169 e 216). Como se afirma no acórdão do STJ de 30.05.1995 (CJSTJ, 1995, II, p. 118), a simulação identifica-se com o propósito de “criar uma aparência” e é nesse “fingimento” que se situa “o desígnio de provocar uma ilusão normalmente destinada a enganar terceiros”.
Para efeitos de simulação, terceiros são «quaisquer pessoas, titulares de uma relação, jurídica ou praticamente, afectada pelo negócio simulado e que não sejam os próprios simuladores ou os seus herdeiros (depois da morte do de cujus) – Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., p. 481. Mas, como ensina Manuel de Andrade (cit., p. 198), «[s]ão terceiros, para efeitos de simulação, quaisquer pessoas que não sejam simuladores, nem seus herdeiros (ou legatários) a menos que (quanto a estes) se trate de herdeiros legitimários que venham impugnar o negócio simulado para defender as suas legítimas»).
Existem vários tipos de simulação. Para além da distinção entre o carácter inocente (quando apenas se verifica o animus decipiendi) ou fraudulento (quando ao intuito de enganar terceiros acresce o intuito de prejudicar ou animus nocendi) da simulação (vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 29.05.2007, processo n.º 07A1334, disponível em www.dgsi.pt), temos ainda a dicotomia entre simulação relativa e absoluta – cfr. artigo 241.º do CC.
De acordo com a doutrina corrente, a distinção entre a simulação relativa e a simulação absoluta radica no facto de existir ou não, por detrás e para além do negócio simulado, qualquer outro negócio. Desta forma, na simulação relativa as partes fingem celebrar um certo negócio jurídico, pretendendo na realidade realizar um negócio jurídico de tipo ou conteúdo diverso, sendo certo que, decalcado sobre o negócio simulado ou aparente, existe um negócio dissimulado. Já no caso de se verificar uma simulação absoluta, constata-se haver tão-somente o negócio simulado e nada mais, querendo com isto dizer-se que, nesta hipótese, os contraentes fingem celebrar um negócio jurídico, quando na realidade não querem celebrar qualquer negócio. Como ensina o Henrich Ewald Horster, «a simulação absoluta verifica-se quando os simuladores fingem concluir determinado negócio, e na realidade nenhum negócio querem celebrar» (Parte Geral do Código Civil Português, 1992, p. 536).
A lei fulmina de nulidade o negócio simulado (n.º 2 do artigo 240.º do CC), sem distinguir entre a simulação inocente – com o intuito de enganar terceiros mas sem os prejudicar (animus decipiendi) – e fraudulenta – onde ocorre o animus nocendi ou propósito de lesar os terceiros. E o negócio simulado é nulo tanto na simulação absoluta como na relativa, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no artigo 241.º do CC relativamente ao negócio dissimulado. A nulidade gerada pela simulação é, todavia, atípica, já que os simuladores não a podem invocar contra terceiro de boa fé (artigo 243.º, n,º 1, do CC). A este respeito vide Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, p. 845.
Em suma, são requisitos cumulativos da declaração de nulidade com fundamento em simulação do negócio:
- A divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
- O acordo simulatório (pactum simulationis);
- O intuito de enganar (animus decipiendi) ou de prejudicar (animus nocendi) terceiros.
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Distinta da simulação é a figura da venda fiduciária. Esta consiste numa venda do bem como garantia do pagamento da quantia mutuada pelo comprador ao vendedor, num contrato de mútuo que pode ser oculto pelos interessados, obrigando-se o comprador mutuante a revender o bem ao vendedor mutuário, depois de estar pago o mútuo, no prazo acordado por ambos.
Trata-se de um instituto que, já se encontrando contemplado na lei para a alienação fiduciária por contrato de garantia financeira, previsto no Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio, não está previsto na lei para os negócios jurídicos em geral e difere da venda a retro prevista no artigo 927.º do CC, porque nesta última fica especialmente prevista a faculdade de resolução do contrato pelo vendedor, enquanto que na venda fiduciária, tal faculdade não é atribuída ao vendedor, pelo que a revenda do bem pelo comprador ao vendedor constitui apenas um compromisso de natureza obrigacional.
Assim, a venda fiduciária tem uma componente real, pois, de acordo com a vontade das partes, o bem é efectivamente transmitido para a propriedade do comprador e tem uma componente obrigacional, na medida em que, cumprida a obrigação do mutuário, o mutuante não está sujeito à resolução do contrato, encontrando-se vinculado apenas a um dever de revender o prédio com natureza meramente obrigacional (podendo eventualmente recorrer-se à execução específica nos casos em que tenha sido celebrado um contrato promessa e podendo então ser atribuída natureza real, ou, não havendo contrato promessa, a uma mera indemnização por incumprimento contratual), assentando essencialmente o instituto, como o nome indica, na confiança do vendedor de que o comprador lhe revenderá o prédio.
A admissibilidade da venda fiduciária tem sido recusada por alguns autores, que entendem que a mesma só deverá ser admissível quando prevista e regulada na lei, como é o caso do Decreto-Lei n.º 105/2004, sob pena de constituir negócio contrário à lei, dando causa à desprotecção do vendedor (quer no que diz respeito ao carácter obrigacional do dever de revenda do prédio, quer por o valor do bem vendido poder ser superior ao valor da quantia mutuada e não haver acordo de restituição da diferença) e ao prejuízo dos seus outros credores (cfr. Ferreira de Almeida, Contratos III, p. 181 e 182).
A jurisprudência, porém, tem atendido e admitido esta figura, ao abrigo do princípio da autonomia contratual, entendendo que não se verificam, para o vendedor e para os outros credores, os perigos que estão subjacentes à figura do pacto comissório proibida pelo artigo 694.º do CC e entendendo ainda que existem mecanismos de defesa do vendedor, nomeadamente o recurso à anulabilidade do negócio ao abrigo do artigo 282.º do CC, caso sejam alegados e provados factos que integrem a usura (vide, entre outros, os acórdãos do STJ de 16.11.2011, proc. n.º 279/2002, e do TRP de 05.02.2013, proc. 4867/06, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Não estando a venda fiduciária regulada na lei relativamente aos contratos de compra e venda em geral, será prudente uma apreciação casuística, sendo de admitir em princípio o instituto, ao abrigo da autonomia contratual e com vantagens para o comércio jurídico, nomeadamente nos casos em que o bem venha a ser transmitido a terceiros de boa fé (como era o caso objecto do ac. do STJ de 16.11.2011, acima citado).
Mas deverá ser considerada inválida a venda fiduciária sempre que no caso concreto se revele não só usurária, mas por qualquer forma abusiva e contrária à lei, segundo os critérios dos artigos 280.º, 282.º, 294.º e 334.º do CC, tendo em atenção que a sua falta de parametrização poderá proporcionar uma situação que estes artigos visam impedir.
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Igualmente distinta da simulação é a figura da fraude à lei.
A doutrina mais recente elege como elementos caracterizadores desta (i) uma pluralidade de atos jurídicos, (ii) a aparência de licitude, (iii) uma articulação teleologicamente preordenada de atos jurídicos (uma operação jurídica complexa), (iv) um resultado final global ilícito e (v) a inexigibilidade de uma intenção fraudulenta (cfr. Ana Filipa Morais Antunes, A Fraude à Lei no Direito Civil Português, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 226 e 232).
Segundo Rui Pinto Duarte (A Fraude à Lei – Alguns Apontamentos, in Revista de Direito Comercial, 30.08.2020, pp. 1601 e seguinte, disponível em https://www.revistadedireitocomercial.com/a-fraude-lei-alguns-apontamentos), «[o] que neste domínio fundamentalmente importa, na verdade, é interpretar a norma proibitiva em causa. Se for de concluir que ela pretende proibir não só o negócio ou negócios que especificadamente visou (contra legem) mas quaisquer outros que conduzam ao mesmo resultado ou a um resultado pràticamente equivalente ou análogo, então a estes outros negócios (in fraudem legis) também se aplica aquela proibição – também eles, ao cabo e ao resto, estão coenvolvidos na proibição legal, tal como os que lhe são directa e abertamente contrários, sem ser preciso, aliás, como não é preciso para estes, uma ilicitude por assim dizer subjectiva (intenção ou consciência fraudatória), mas somente objectiva».
No mesmo sentido vide Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, p. 337 e seguintes) e António Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014, p. 580 e 583). A respeito do conceito de fraude à lei pode ainda consultar-se ainda Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 2005, p. 557), Luís Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II – Fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, p. 580 e 583).
A fraude à lei não tem necessariamente como consequência a nulidade do negócio ou negócios em causa. Como se infere de vários preceitos legais que particularizam situações específicas de fraude à lei (nomeadamente os artigos 21.º, 418.º, n.º 2, e 2067.º do CC; o artigo 38.º da Lei Geral Tributária; o artigo 980.º, al. c), do CPC; os artigos 27.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, e 37.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho) e vem sendo defendido pela doutrina mais recente, o efeito principal da fraude é a desconsideração do efeito fraudulento, ou seja, a irrelevância, em termos de efeitos jurídicos, da conduta fraudulenta. Neste sentido, vide Rui Pinto Duarte, cit., pp. 1612 e seguintes, e a doutrina aí citada, nomeadamente Pedro Pais de Vasconcelos, que afirma o seguinte: «A sanção da fraude à lei não necessita da nulidade, é-lhe suficiente a sanção de ineficácia. A nulidade acarreta a ineficácia e, por isso, parece resolver alguns casos, mas é excessiva porque, na verdade, não é necessária uma ineficácia total (que é excessiva) sendo suficiente uma ineficácia específica, que se limite à desconsideração do que seria a eficácia fraudatória» (p. 1614). Esta é, de facto, a solução mais eficiente, pois permite alcançar o efeito visado pela nulidade, ao mesmo tempo que evita os excessos ou defeitos desta.
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Dispõe assim o artigo 552.º, n.º 1, al. d), do CPC: «Na petição, com que propõe a ação, deve o autor: (...) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação». Em sentido próximo, o artigo 572.º, alíneas b) e c), estatui que, na contestação, o réu deve expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor e expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas. Por sua vez, decorre do artigo 5.º do mesmo código que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas só pode servir-se dos factos essenciais articulados pelas partes (que constituam a causa de pedir e em que se baseiam as exceções invocadas), dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa e dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa (desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar), bem como dos factos notórios e daqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Destas disposições legais resulta clara a necessidade de as partes alegarem os factos essenciais sobre os quais assentam a sua pretensão, isto é, o título particular de aquisição desse direito, ou as excepções deduzidas contra a mesma, sob pena daquela pretensão ou destas excepções não poderem ser atendidas.
A nossa lei processual acolheu, portanto, a teoria da substanciação, em detrimento da teoria da individualização, (cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª ed., Coimbra 1981, p. 353 s.), pelo que incumbia à ré reconvinte a alegação dos factos susceptíveis de fundamentar as pretensões que deduziu por via reconvencional.
Vejamos de a reconvinte cumpriu esse ónus de alegação.
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A pretensão da ré reconvinte traduz-se, como vimos, na declaração de nulidade do contrato de arrendamento invocado pela autora, bem como do contrato de compra e venda por via da qual a ré e o seu então marido transferiram a propriedade do imóvel objecto desse arrendamento para a autora.
O fundamento expressamente invocado para essa pretensão é, como também vimos, a simulação relativa desses contratos. Mas porque o tribunal é livre na indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC) e porque a nulidade é de conhecimento oficioso (cfr. artigo 286.º do CC), o tribunal não pode afastar liminarmente outras causas de nulidade desses mesmos negócios que os factos alegados permitam convocar.
Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considera que a factualidade alegada pela ré reconvinte, mais concretamente a descrição que esta faz dos negócios cuja nulidade pretende ver declara, não traduz qualquer divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos contratantes, consciente e intencionalmente acordada entre estes, reflectindo antes o exercício da sua liberdade contratual, nos termos previstos no artigo 405.º do CC. Considerou ainda que aquela factualidade também não consubstancia o intuito de enganar ou de prejudicar terceiros.
Embora sem o afirmar de modo explícito, o Tribunal a quo parece pressupor que a referida factualidade traduz uma venda fiduciária, ou seja, uma compra e venda que as partes efectivamente quiseram celebrar, como garantia do pagamento da quantia mutuada pelo comprador ao vendedor, obrigando-se o comprador mutuante a revender o bem ao vendedor mutuário depois de paga a quantia mutuada e os respectivos juros.
Embora a descrição dos factos em que a ré baseia a sua defesa e, concomitantemente, a sua pretensão reconvencional se revele prolixa e, até, pouco coerente, não podemos deixar de admitir ser este um dos enquadramentos jurídicos possíveis, naturalmente dependente da factualidade que efectivamente se demonstre.
Mas, como vimos, a validade desta figura negocial é discutível, defendendo alguns autores que, fora dos casos legalmente previstos e regulados, configura um negócio contrário à lei e, por isso, nulo.
Vimos também que, mesmo quem defende a admissibilidade desta figura negocial à luz da autonomia contratual, não deixa de admitir a sua invalidade se, em concreto, a mesma se revelar usurária, abusiva ou de alguma forma contrária à lei, o que apenas pode ser apreciado casuisticamente. Ora, no caso concreto, a ré reconvinte invoca, de modo explícito, a natureza usurária e fraudulenta dos acordos celebrados entre as partes, mantendo-se controvertidos os respectivos factos.
Mas, como já deixámos implícito, a factualidade em causa pode permitir diferentes enquadramentos, dependendo da prova que se faça, inclusivamente a simulação dos contratos cuja nulidade é pedida ou de algum deles, maxime do contrato de arredamento.
Na verdade, ainda que de forma pouco coerente – sendo certo que o tribunal a quo sempre poderia convidar a parte a suprir tal incoerência ou imprecisão da alegação, caso o considerasse útil e pertinente, por via do mecanismo previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, al. b), e 4 a 6, do CPC – a ré alegou de forma explícita e reiterada todos os pressupostos da simulação dos contratos em causa. Veja-se o teor, entre outros, dos artigos 69.º, 70.º e 72.º a 75.º da contestação reconvenção, bem como o teor, talvez ainda mais claro, dos artigos 77.º, 78.º e 82.º do mesmo articulado, que passamos a transcrever:
77.º
De facto, nunca foi intenção da Ré vender o imóvel à Autora, da mesma forma que não era intenção sua de o comprar.
78.º
De igual modo, também nunca foi intenção da Ré tomar de arrendamento o referido imóvel, nem da Autora o arrendar.
82.º
Tendo-se tratado, apenas e só, de uma forma de permitir a manutenção da posse do imóvel pela Ré e impedir que terceiros pudessem penhorar o mesmo, ou o seu recheio, por dividas contraídas pela Ré ou pela empresa que o explorava comercialmente.
Sem prejuízo dos factos que se vierem a apurar com base na prova que vier a ser produzida, não vemos como negar que a ré reconvinte efectivamente alegou que, por acordo das partes contratantes (cfr. artigo 128.º do mesmo articulado), estas emitiram declarações negociais consciente e intencionalmente divergentes da sua vontade real (assim se devendo entender a alegação de que as partes quiseram celebrar os aludidos negócios), com o intuito de enganar e, até, prejudicar terceiros, mais concretamente os credores da ré e da sociedade que explorava comercialmente o imóvel objecto daqueles negócios, impedindo-os de penhorar o imóvel em causa para satisfazer os seus créditos.
Assim, não tem razão o Tribunal a quo quando afirma que, “face à factualidade alegada pela ré reconvinte, não há divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”, pois tal divergência é expressamente afirmada pela parte. Também não tem razão quando afirma que “não é concretizado qualquer engano que possa ter sido projetado enquanto intenção que haja presidido à declaração negocial final”; tal engano foi concretizado e traduz-se na aparência da transmissão da propriedade do imóvel para a autora e da sua utilização pela ré como mera arrendatária. Não tem igualmente razão quando afirma que não “se alcança qual o prejuízo concreto e objetivo que pode decorrer para terceiros do negócio dito simulado”; o animus nocendi foi alegado com clareza, correspondendo à intenção de impedir os credores da ré (e da sociedade de que esta é sócia) de penhorarem o imóvel em causa para satisfação dos seus créditos. Do exposto também já decorre que o animus decipiendi e o animus nocendi foram alegados com a concretude necessária, não se limitando a ré a alegações genéricas.
Em suma, os factos alegados pela ré reconvinte são susceptíveis de preencher os requisitos cumulativos da declaração de nulidade dos negócios em causa com fundamento na sua simulação; dito de outro modo, a ré reconvinte cumpriu o seu ónus de alegação, pelo que não podemos secundar a conclusão do tribunal a quo de que o pedido reconvencional é manifestamente procedente.
Estando esses factos controvertidos, impõe-se concluir que o estado do processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do pedido reconvencional e que, por isso, a decisão recorrida se revela precipitada, pelo que importa revogar tal decisão e ordenar o prosseguimento da instância reconvencional, cumprindo-se o disposto no artigo 596.º tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Na total procedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrida (cfr. artigo 527.º do CPC).
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento da instância reconvencional, com cumprimento do disposto no artigo 596.º tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
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Porto, 8 de Abril de 2025
Artur Dionísio Oliveira
Rui Moreira
Anabela Andrade