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DIFAMAÇÃO
CRIMES SEMI-PÚBLICOS
AMEAÇA
NULIDADE INSANÁVEL
PROMOÇÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
MATÉRIA DE FACTO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
REPARAÇÃO OFICIOSA DA VÍTIMA
Sumário
1. Tendo os autos prosseguido para apreciação das acusações particulares por crimes de difamação, não pode, em julgamento, por apelo ao regime dos arts. 358.º ou 359.º do Código de Processo Penal, vir a ocorrer uma condenação do arguido por crimes semipúblicos de ameaça. 2. O funcionamento dos mecanismos previstos por essas normas apenas é possível se não houver obstáculos ao nível dos pressupostos processuais, por natureza prévios, que o mesmo é dizer, se tiver havido queixa e acusação pública, as comummente chamadas condições de procedibilidade e de prosseguibilidade, respetivamente. 3. Uma eventual condenação pelos crimes de ameaça, nestas circunstâncias, consubstanciar-se-ia na prática de uma nulidade insanável, prevista pelo art. 119.º, alínea b) do Código de Processo Penal: falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º. 4. Este vício está profundamente ligado ao princípio do acusatório, e abarca desde logo todos os casos em que o processo penal avança à revelia do Ministério Público, isto é, os casos em que o juiz, o assistente ou os órgãos de polícia criminal lhe usurpam o poder de promover a ação penal, mesmo se com a anuência explícita ou implícita do próprio Ministério Público. 5. Não devem os tribunais ser avessos a uma tendencial simplificação das decisões judiciais, nomeadamente por razões de economia processual, clareza, boa comunicação e reforço da sua legitimação como órgãos de administração da justiça em nome do povo. 6. Não podemos ser insensíveis à necessidade e conveniência de, sempre e na medida em que for possível, abreviar e aclarar o texto das sentenças, evitando o desfilar de considerações que em substância nada acrescentam de útil à concretização de um processo equitativo e à boa compreensão e sindicância do que se decide. 7. Esta abordagem, no que toca à matéria de facto, não pode, todavia, ser feita com prejuízo do dever de fundamentação, seja quanto à enumeração dos factos provados e não provados, seja quanto à explicitação, ainda que concisa, da posição assumida a respeito de uns e outros. 8. A não enunciação especificada dos factos não provados e o uso, em seu lugar, de expressões tabelares e genéricas como «não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados» ou, já na motivação de facto, «o Tribunal não responde à demais matéria vertida nas acusações particulares e pedido de indemnização civil, por considerá-la conclusiva, de direito, repetida, remetendo para documentos e sem concretização factual ou irrelevante para o objecto do processo, tanto mais que, na sua grande maioria, ultrapassa até o escopo da legitimidade processual dos assistentes para dedução de acusação particular» constitui uma abordagem que se presta à crítica. 9. Em situações em que seja escassa a matéria de facto que, tendo sido alegada, vem a ser desconsiderada pelo Tribunal de 1ª Instância à luz de referências tabelares como as mencionadas em 8., nenhum mal especial virá aos autos se e quando estivermos diante alegações clara e manifestamente irrelevantes para a boa decisão da causa ou que tenham uma matriz clara e manifestamente conclusiva; isto porque, aí, a posição assumida pelo Tribunal acaba por ser de fácil e intuitiva compreensão, num exercício interpretativo linear do que ficou escrito - não é já esse o caso se estivermos diante matéria extensa, de natureza fáctica ou conclusiva discutível e potencialmente relevante à luz das várias soluções juridicamente plausíveis. 10. Uma das características essenciais do funcionamento do art. 82.º-A do Código de Processo Penal é a sua subsidiariedade em relação ao pedido de indemnização civil: se for deduzido um pedido de indemnização civil, não há espaço para aplicação do art. 82.º-A e, reflexamente, não sendo deduzido um pedido de indemnização civil, pode o tribunal recorrer ao art. 82.º-A para arbitrar oficiosamente uma quantia a título de reparação à vítima. 11. É anómalo o procedimento em que o Demandante faz juntar aos autos uma peça processual que abertamente designa como «pedido de indemnização civil», no qual articula os factos correspondentes a um «pedido de indemnização civil» mas em que depois, incongruentemente, acaba por não quantificar o seu «pedido» num valor preciso e apela à aplicação pelo Tribunal do art. 82º-A do Código de Processo Penal. 12. Nessas circunstâncias, tendo sido admitido liminarmente o pedido, desenha-se uma situação irregular que o Tribunal, antes de finalizada a audiência, deve procurar compor, realizando, com observância do contraditório, as diligências necessárias, como por exemplo, se assim for entendido, dirigindo ao demandante um convite à quantificação daquele pedido.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO
A. Pelo Juízo Local Criminal de … (Juiz …) foi proferida em … de 2024 sentença condenatória do AA, com os demais sinais identificativos constantes dos autos, que contém o seguinte dispositivo: «15. Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
1. i)Condenar o arguido AA pela prática de dois crimes de difamação agravada na pena parcelar, cada, de 90(noventa) dias, de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros). ii)Condenar o arguido AA pela prática de um crime de difamação simples na pena parcelar de 75(setenta e cinco) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros). iii)Condenar o arguido AA pela prática de um crime de injúria na pena parcelar de 70(setenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros). iv)Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 220(duzentosevinte)diasdemulta à taxa diária de €6,00(seiseuros),perfazendoomontanteglobalde €1.320,00(mil,trezentosevinteeuros). v)Julgar o pedido civil formulado pela demandante BB parcialmente procedente por provado e, em consequência, condenar o demandado/arguido no pagamento da quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros desde a data de notificação até efectivo e integral pagamento, absolvendo o arguido/demandado quanto ao demais peticionado. vi)Não arbitrar qualquer quantia ao assistente CC ao abrigo do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal. vii)Valor da acção cível: €25.675,71(milequinhentoseuros). viii)Mais se condena o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta. ix)Custas cíveis pelo demandado e demandante BB na proporção do decaimento.»
Inconformado, o AA interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: «1 – O Tribunal não se pronunciou sobre as declarações prestadas pela testemunha DD, pelo que nos termos do art. 379º, nº 1, al. c) do Cód. de Processo Penal, estamos perante uma nulidade da sentença. 2 - O Tribunal chega a uma conclusão precipitada e errada, concluindo simplesmente que uma vez que a queixa pelo furto dos relógios e ouro foi apresentada pela Sra. mãe do arguido em ..., então o arguido só nesta data teve conhecimento do furto, pelo que não poderia o arguido, à data dos factos objecto dos presentes autos (...) ter conhecimento de que havia sido “roubado”. 3 – O arguido tinha uma caixa com ouro e relógios guardada em casa da sua mãe. 4 – A caixa desapareceu e as únicas pessoas que tinham a chave da casa de sua mãe eram os assistentes. 5 – Os assistentes, no ano de ... convenceram a mãe do arguido a fazer-lhes uma doação da sua casa, negócio que prejudicaria o arguido se não fosse mais tarde, como foi, rectificado pela própria. 6 – Em ... o arguido separou-se da sua mulher, com quem vivia na ..., e começou a viajar para o Continente, tendo conhecimento em ..../2020 da referida doação. 7 – O arguido encontrava-se bastante fragilizado com a sua separação e impossibilitado de regressar à ... por causa do Covid 19. 8 – Esperava o apoio do irmão, aqui assistente, mas, ao invés, foi traído pelo irmão e cunhada, assistentes. 9 – Desesperado, declarou na rede social ... que foi roubado e enviou uma mensagem de voz aos assistentes chamando-lhes “bestas quadradas”. 10 – Verifica-se, contudo, uma causa de exclusão da ilicitude ao abrigo do art. 180º, nº 2 do Cód. Penal, bem como uma causa de desculpa nos termos do art. 35º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma. Pelo que deve o arguido ser absolvido dos crimes a que foi condenado.»
Este recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O Ministério Público respondeu a este recurso, formulando as seguintes conclusões: «1.O Recorrente não se conformando com a douta sentença que o condenou, vem pedir a revogação da mesma, alegando: a) Nulidade da sentença; por não pronúncia de questões que se deveria ter pronunciado – artigo 379º, nº 1, al. c) do CPP. b) Causa de exclusão da ilicitude – artigo 180º, nº 2 do Código Penal, bem como uma causa de necessidade desculpante - artigo 35º, nºs 1 e 2 do Código Penal. 2. Manifesta o Recorrente que o Tribunal não se pronunciou sobre as declarações prestadas pela testemunha DD e, como tal, a sentença é nula nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal. 3. Salvo o devido respeito, não perfilhamos do entendimento defendido pelo Recorrente quanto à qualificação do vício em referência, se o que está em causa segundo a Recorrente é o facto de os fundamentos existentes na decisão recorrida sobre a credibilidade que deveria ter sido conferida a uma testemunha apresentada pela defesa, que não foi considerada no sentido decisório que veio a ser vertido na sentença, não está em causa o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. 4. Em nosso entender, a falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide sobre as questões, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir, e não sobre factos concretos com relevo para a decisão da causa, que constituíam o objeto do processo. 5. Conforme ensina Oliveira Mendes, relativamente ao artigo 379.º do Código de Processo Penal, “No n.º 1 enumeram-se os casos e situações que determinam a nulidade da sentença, razão pela qual só naqueles casos e situações a sentença é nula. (…) A nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar (…). A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão.” 6. Na fundamentação da sentença ao contrário do alegado pelo Recorrente foi feita a devida alusão ao depoimento prestado pela testemunha DD, não da forma como pretendia o Recorrente, mas como o tribunal entendeu valorar. Chegando à conclusão de que os factos em causa se reportam a ... e a queixa apresentada pelo eventual furto de bens pertença do Recorrente ocorreu em .... 7. A apreciação da prova testemunhal pelo julgador é livre, segundo as regras da experiência e da livre convicção, de acordo com o artigo 127.º do Código de Processo Penal, utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objetivos, genericamente suscetíveis de motivação e de controlo, conforme ensina o Professor Figueiredo Dias. Assim, as regras de apreciação da prova impõem que esta análise seja fundada num raciocínio lógico e motivado, espelhado na fundamentação da sentença. 8. Conforme o teor da fundamentação de facto da douta sentença: “Das publicações não se extrai qualquer facto concreto que permita concluir que o arguido se movia do intuito de divulgar qualquer verdade, sendo notório das publicações que pretende deixar suspeitas veladas no ar, colocando um manto de dúvida sobre a conduta dos assistentes” 9. Pelos motivos expostos, entende o Ministério Público que a douta sentença proferida pelo tribunal a quo não padece de qualquer nulidade, não existe qualquer causa de exclusão de ilicitude ou necessidade desculpante, não merecendo provimento as questões suscitadas pelo Recorrente. 10. Bem andou o Tribunal a quo quando decidiu pela condenação do arguido AA, dado que a sentença ora recorrida não é merecedora de qualquer censura, não sendo violadora de qualquer normal legal ou constitucional.»
Os Assistentes/Demandantes BB e CC interpuseram também recurso, admitido nos mesmos termos do que fora formulado pelo Arguido, sendo que os Assistentes viriam a ser convidados (já nesta Relação) ao aperfeiçoamento das suas conclusões, convite a que corresponderam, adquirindo então as suas conclusões a seguinte forma final: «Pelo exposto e em conclusões Emerge o presente recurso da discordância em relação à sentença que condenou o arguido/recorrido pela prática de dois crimes de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º e 183, al. a) do Código Penal, pela prática de um crime de difamação simples, p. e p. pelo artigo 180º do Código Penal, pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal; Julgou parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil formulado pela demandante BB e condenou o demandado/arguido no pagamento da quantia de € 1.500,00 a título de danos não patrimoniais, Não arbitrou a quantia peticionada de € 675,71 (seiscentos e setenta e cinco euros e setenta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais; Não arbitrou qualquer quantia ao assistente CC, ao abrigo do artigo 82-A, do Código de Processo Penal, conforme peticionado. As razões de discordância com a decisão são, simultaneamente, de facto e de direito: I. Desde logo, por se entender haver erro notório na apreciação da prova, dada como não provada - alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P. II. Por outro lado, há contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a propósito dos factos provados sob o artigo 6º, al. 1), 2), 3), 4), 5), 6), 7), por um lado, e artigo 7 e 8º, dos factos não provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P; há também contradição insanável na fundamentação entre os factos supra indicados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P. III. Acresce que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que “Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou em que esteja em contradição com os dados como provados.” IV. E “não responde à demais matéria vertida nas acusações particulares e pedido de indemnização civil, por considerá-la conclusiva, de direito, repetida, remetendo para documentos e sem concretização factual ou irrelevante para o objecto do processo, tanto mais que, na sua grande maioria, ultrapassa até o escopo da legitimidade processual dos assistentes para dedução de acusação particular.” V. Ora, deveria o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos alegados em 2, 3, 4, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 das acusações, o que não fez, desconsiderando, ainda, quase todos os documentos que acompanharam tais acusações particulares, por entender serem afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, o que não se pode conceder, pois fez-se prova bastante para dar como provados todos os factos das acusações; VI. Assim como, deveria ter fundamentado a não atribuição de pedido de indemnização ao assistente CC, porquanto em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, igualmente ficaram provados os danos pessoais e profissionais, o que não sucedeu e a isso se deveria ter debruçado o Tribunal a quo, fundamentando a decisão. VII. In casu, estando reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, como se verifica, pelo segmento de transcrição do assistente CC, e segmento de transcrição da assistente BB, impunha-se que o Tribunal a quo arbitrasse uma quantia ao primeiro a título de danos não patrimoniais. VIII. Tendo ficado provado, como ficou, vejam-se, os segmentos das testemunhas arroladas pelos assistentes, e verificados que estão todos os pressupostos da responsabilidade civil delitual ou aquiliana, deveria o Tribunal a quo atribuir o pagamento da quantia € 675,71 a título de danos patrimoniais à assistente BB, porque provado o nexo de causalidade entre o facto e o dano. IX. A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 368.º, n.º 2, al. f), ambos do CPP, e 146.º, n.ºs 1 e 2. X. Verifica-se uma contradição insanável na fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P.), já que os fundamentos para desacreditar umas testemunhas e dar como provados certos factos são os mesmos para dar credibilidade a outras, não se percebendo a seleção face à prova produzida. XI. A concreta concatenação de todos estes elementos faz, legitimamente, à luz das regras da experiência comum e dos juízos de adequação social, gerar a convicção que o arguido efetivamente praticou os crimes de difamação, injúrias, pelo qual vinha acusado e até de ameaças; XII. Pelo exposto, modificada a matéria de facto dada por provada nos moldes supra apresentados, o arguido deverá ser condenado pela autoria material de um crime de como autor material e na forma consumada, pela prática dos crimes de difamação, perpetrados contra a assistente/recorrente BB, p.p. pelo artigo 180.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; XIII. Deve ser o arguido condenado em autoria material e na forma consumada, pela prática dos crimes de injúrias, perpetrados contra o assistente BB, p.p. pelo artigo 181.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; XIV. Deve ser o arguido condenado como autor material e na forma consumada, pela prática dos crimes de difamação, perpetrados contra o assistente CC, p.p. pelo artigo 180.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; XV. Deve ser o arguido condenado em autoria material e na forma consumada, pela prática dos crimes de injúrias, perpetrados contra o assistente CC, p.p. pelo artigo 181.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; XVI. Deve, assim, condenar-se o arguido por dois crimes de difamação agravada, dois crimes de difamação simples, dois crimes de injúria agravada, todos na forma continuada e pela prática de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, n.º 1 do Código Penal; XVII. No que concerne à medida da pena, os critérios legais para tal operação encontram-se previstos nos artigos 71.º, nºs 1 e 40.º, n.º 2, ambos do Código Penal, os quais determinam que a mesma é efetuada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial. XVIII. Pelo que, deve, como se disse, o arguido ser condenado como autor material de um crime de, previsto e punido pelos artigos, do Código Penal [sic], numa pena de prisão suspensa na sua execução, nos termos do disposto do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea m) e aos artigos 41.º, 50.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 71.º, n.º 1 e 2, do Código Penal. Em suma, XIX. A sentença recorrida violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nas disposições legais supracitadas. XX. Considera-se incorretamente julgados os factos provados sob os artigos 2º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 73º, 74º, 76º, 77º, 80º, 89º (que na decisão recorrida nem sequer se fez qualquer menção), factos provados tendentes à formação da convicção de que o arguido praticou ainda aqueles factos. - Normas Jurídicas violadas: artigo 70º, artigo 342º, artigo 483º e artigo 494º do Código Civil, artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. - Impõem solução diversa: - uma melhor apreciação do conjunto da prova produzida, designadamente: - Toda a prova documental junta aos autos. - E uma correcta apreciação daqueles elementos no cotejo com o teor dos depoimentos prestados pelos dois assistentes e pelas testemunhas: - CC (ficheiro 20240206095639_4737337_2871309.wma), com início às 10:28:28 horas - BB (ficheiro 20240206102930_4737337_2871309.wma), com início às 11:09:12 horas - EE (ficheiro 20240206111212_4737337_2871309.wma), com início às 11:19 - FF (ficheiro 20240206112232_4737337_2871309.wma), com início às 11:30:19 horas e termo pelas 11:35:00 horas - GG (ficheiro (20240206113134_4737337_2871309.wma), início às 11:38:00 horas - HH (ficheiro (20240206113950_4737337_2871309.wma) início às 11:53:00h - II (ficheiro (20240206115958_4737337_2871309.wma), início às 12:08:00h - JJ, (ficheiro (20240206120918_4737337_2871309.wma), com início às 12:04:00h - KK (ficheiro (20240206121526_4737337_2871309.wma), início às 12:29:00h A correcta apreciação do conjunto da prova levará necessariamente a uma diferente resposta aos factos em crise, com as legais consequências, como é de justiça. Termos em que, nos melhores de Direito e de Justiça e com o sempre Mui Douto Suprimento de V. Exas., deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida de fls. no sentido aduzido nas conclusões e, em sua substituição: a) Dar como provados todos os factos narrados nas acusações particulares dos assistentes, dos factos que o Tribunal a quo deu como não provados, não os apreciando; b) Condenar o arguido, em autoria material e na forma consumada, pela prática dos crimes de difamação, perpetrados contra a assistente/recorrente BB, p.p. pelo artigo 180.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; c) Condenar o arguido em autoria material e na forma consumada, pela prática dos crimes de injúrias, perpetrados contra a assistente BB, p.p. pelo artigo 181.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; d) Condenar o arguido em autoria material e na forma consumada, pela prática dos crimes de difamação, perpetrados contra o assistente CC, p.p. pelo artigo 180.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; e) Condenar o arguido em autoria material e na forma consumada, pela prática dos crimes de injúrias, perpetrados contra o assistente CC, p.p. pelo artigo 181.º, do Código Penal, agravados, nos termos do disposto no artigo 184.º ex vi artigo 132.º, n.º 2, al. c) e g) do C. Penal; f) Mais se deve considerar procedente a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, quanto ao pedido de indemnização civil formulado por ambos os assistentes. g) Ser julgado procedente por provado o pedido de indemnização civil, e o arguido condenado no valor do pedido de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais. h) Ser julgado procedente por provado o pedido de indemnização civil, e o arguido condenado no valor do pedido de € 675,71 (seiscentos e setenta e cinco euros e setenta e um cêntimos), a título de danos patrimoniais; i) Ser julgado procedente por provado o pedido de indemnização civil, a arbitrar nos termos do artigo 82-A, do CPP, e o arguido condenado no seu pagamento.»
O Ministério Público respondera ao recurso na sua forma inicial, formulando as seguintes conclusões: «1.Estando em causa a questão da apreciação da prova há que dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem tribunal «a quo», pelo que, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode censurá-la se ficar demonstrado que o decidido é totalmente inadmissível face às regras de experiência comum. É o juiz de 1.ª instância quem, de forma direta e imediata, observa as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e as testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou suor do seu rosto, das suas hesitações. Cabe ao juiz de 1.ª instância apreciar a congruência dos testemunhos entre si, o grau de coerência com outras provas que existam e com outros factos objetivamente comprováveis, fazendo assim a apreciação conjunta das provas e realçando os elementos fundamentais para dar maior credibilidade a um testemunho que a outro. A convicção do tribunal é formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se o juízo que optou por uma versão em detrimento de outra. 2.Nos presentes autos não existiu prova legal ou tarifada que se impusesse ao tribunal, cabendo-lhe apreciar a prova segundo as regras de experiência comum e da livre convicção que sobre ela forma (artigo 127.º do Código de Processo Penal). Na fundamentação da douta sentença proferida, o tribunal recorrido enumerou os factos provados e não provados e expôs de forma completa, ainda que concisa, os motivos de facto que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção. 3. O vício de contradição insanável da fundamentação, necessário se torna que estivéssemos perante uma situação de “contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão”. 4. Analisando todo o contexto da fundamentação percebe-se que de facto não existe qualquer contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. 5. Sendo o legislador quem define, de modo explícito, quais são os crimes de natureza particular (referindo-se, expressamente, que o impulso processual depende de queixa e de acusação particular) e os crimes de natureza semi-pública (mencionado, explicitamente, que o procedimento depende de queixa), na aplicação da aludida regra, o legislador é preciso e criterioso, dizendo expressamente, quanto a cada tipo legal de crime, se o mesmo depende de queixa, ou de acusação particular, ou, então, nada diz. E nada dizendo, o crime é de natureza pública; 6. Assim, o crime de ameaça simples depende do direito de queixa, conforme prevê, expressamente, o artigo 153º, nº 2 do Código Penal. O que significa que apenas o Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação, encontrando-se vedada a acusação particular. 7. Perante o exposto é fácil entender que não estando deduzida a respetiva acusação pelos factos que consubstanciam a prática de dois crimes de ameaça, não poderá o Tribunal a quo condenar o arguido, não revestindo os assistentes legitimidade para imputar os referidos factos na acusação particular deduzida, contra o arguido. 8. Estatui o artigo 379º, nº 1, al. b) do CPP, que a sentença é nula quando condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos previstos nos artigos 358º e 359º do CPP. 9. Apenas foram deduzidas duas acusações particulares atendendo a que estariam em causa crimes de natureza particular. 10. Apesar de concordarmos com os Recorrentes que deveria ter sido deduzido respetivo despacho de acusação relativamente aos factos que impunha imputar ao arguido a prática de crimes de ameaça, p. e p., pelo artigo 153º do Código Penal, a verdade é que, o Ministério Público não deduziu a respetiva acusação, nem os assistentes requereram a abertura de instrução a fim de requerer a pronúncia do arguido quanto a esses factos e, ficando coartada a possibilidade de proferir sentença condenatória quanto aos referidos factos. 11. Perante a falta de impulso do Ministério Público, ou a apresentação de requerimento instrutório pelos assistentes, relativo a tais factos, como é evidente, os assistentes ficam impossibilitados de o fazer, com a dedução de acusação, quanto aos mesmos (crime de ameaça), por ilegitimidade, atenta a natureza do crime em causa. 12. Bem andou o Tribunal a quo quando não considerou os factos suscetíveis de integrar a prática de crimes de ameaça, apesar de se encontrarem provados, em nosso entender. 13. Os Recorrentes alegam que a pena de multa aplicada ao arguido, não é adequada, entendendo que deveria ter sido aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução. 14. É também nosso entendimento que, atentos os factos em causa, bem como a postura do arguido em julgamento, não mostrando qualquer arrependimento quanto aos factos, ao contrário, reafirmando o teor das publicações referentes aos assistentes. 15. Assumiu que de facto não deveria ter publicado nas redes sociais como fez, mas esclarece que mantém todo o teor das publicações, não estando arrependido. 16. No que tange à prevenção especial de socialização, considera-se que o arguido evidenciou uma postura em juízo em que não deu sinais de ter interiorizado o desvalor da conduta e nem vontade de empreender uma mudança no seu futuro comportamento de modo a cumprir a legalidade vigente e não praticar novos ilícitos. 17. O arguido já tem averbado no seu CRC duas condenações pela prática de um crime de ofensa à integridade física e um crime de violência doméstica, em penas de multa e de prisão suspensa. 18. Pelo supra exposto, constata-se que o arguido manifesta um profundo desrespeito pelas condenações, não mudando o seu comportamento, tendo infernizado a vida dos assistentes, não olvidar que as publicações efetuadas jamais irão desaparecer das redes sociais. 19. As necessidades que se fazem sentir, como é demais evidente, não se mostram colmatadas com a aplicação de uma simples pena de multa que já lhe foi aplicada e não surtiu efeito, pois o arguido voltou a praticar factos ilícitos. 20. Tal como a pena de multa substituída também não se mostra adequado, pois também da mesma forma, já lhe foi aplicado. Não se mostrando qualquer outra pena, que não a pena de prisão, adequada às exigências preventivas no caso concreto. 21. Fixada a pena de 8 meses de prisão, também a sua substituição. 22. Assim, quanto à sua suspensão, apesar de a lei dar preferência às penas não privativas da liberdade, o que é certo, é que, no caso concreto e perante as penas que já lhe foram aplicadas designadamente a suspensão da execução da pena de prisão, não permite fazer um juízo de prognose favorável relativamente à sua conduta, sucede, porém, que o arguido não averba antecedentes criminais da mesma natureza, podendo ainda com nova suspensão de execução da pena de prisão, existir um juízo de prognose favorável. 23. Com efeito, com a pena de prisão, ainda que suspensa, aplicada ao arguido, entende-se que este se coíbe de voltar a incumprir o determinado em decisões. Pode ainda satisfazer as necessidades de prevenção especial e punição que o caso concreto exige, revelando o arguido um grau de culpa elevado. 24. A escolha e medida da pena, ou seja, a determinação das consequências do facto punível, é levada a cabo pelo Juiz, conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, traduzindo-se numa autêntica aplicação do direito, tornando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena. 25. Assim, e ponderando todos estes fatores, não podemos deixar de concordar com os Recorrentes, nesta parte, sendo que o arguido deveria ser condenado numa pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução com a obrigação de publicar a sentença em jornal com dimensão nacional, considerando a existência de duas condenações averbadas no seu CRC, sendo que o arguido agiu com dolo direto, pelo que foi-lhe aplicada uma pena de multa. 26. Quanto à matéria cível em causa, entendemos não responder, dado que o Ministério Público carece de legitimidade processual quanto à referida matéria – art.º 413º, nº 1, do Código de Processo Penal. Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve dar-se provimento ao recurso relativamente à escolha e medida da pena e, negar-se provimento quanto ao restante e, em consequência, manter-se a Douta Sentença recorrida, revogando-se na parte da pena de multa, devendo aplicar-se pena de prisão, suspensa na sua execução com a obrigação de publicação da douta sentença em jornal com dimensão nacional, com todas as legais consequências.»
Chegados os autos a este Tribunal da Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou parecer no sentido de acompanhar a posição que fora expressa pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando em suma pela manutenção da decisão recorrida, com exceção da pena de multa aplicada, revogando-se nessa parte a dita decisão e sendo ela substituída por outra que aplique pena de prisão, suspensa na execução com a obrigação de publicação da sentença em jornal com dimensão nacional.
Cumprido o preceituado pelo art. 417º/2 do Código de Processo Penal, nenhuma resposta foi junta.
Cumpriu-se ainda o contraditório quanto à reformulação das conclusões encetada pelos Assistentes/Demandantes na sequência do convite que para tanto lhes foi feito, nada mais sobrevindo aos autos.
Não se mostra requerida a realização de audiência.
Proferido despacho liminar, foram colhidos os “vistos” e teve lugar a conferência.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 O objeto do recurso
É pacífico, a partir do preceituado pelo n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, que são as conclusões apresentadas pelos recorrentes que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal de 2ª Instância; sem prejuízo, acrescente-se do dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso, como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º, nº 2 e 410º, nº 3, do mesmo Código (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995).
Em ordem a concretizar a delimitação do objeto do recurso nos presentes autos, impõe-se que ponderemos duas questões prévias.
§ 1 Da inquirição da testemunha DD
Defende-se em dado passo no recurso dos Assistentes/Demandantes que não devia esta testemunha ter sido admitida a prestar depoimento [Ponto III, alíneas c) a g)].
Trata-se de uma problemática que não é depois levada especificamente a qualquer das conclusões, com o que, de acordo com o já dito, estará fora do âmbito do recurso; nem tão pouco, aliás, está na origem de um qualquer um pedido autónomo dirigido a esta Relação.
Em todo o caso, sempre diremos, a bem de uma maior clareza processual, que este Tribunal da Relação nunca poderia pronunciar-se sobre essa matéria nas circunstâncias dos autos, dado que a admissão do depoimento em causa teve lugar por via de despacho judicial proferido em audiência de julgamento e que entretanto, na ausência de recurso interlocutório, transitou em julgado.
Recorde-se, com efeito, que no dia ... de ... de 2024, ou seja, dias antes da segunda sessão da audiência de julgamento, o Arguido fez juntar aos autos o seguinte requerimento, que aqui se transcreve na parte relevante: «(…) vem, nos termos do art. 340º do Cód. de Processo Penal, em nome da descoberta da verdade material, e não obstante a audiência de julgamento já se ter iniciado, requerer a inquirição da testemunha: – LL (…)» (referência eletrónica nº 25370689).
E durante a segunda sessão da audiência, realizada a ... de ... de 2024, a Ilustre Defensora do Arguido formulou o seguinte requerimento (referência eletrónica nº 150284840): «Requer a defesa que o AA, possa neste, embora tardio, pois só agora foi possível conferenciar com o Arguido por o mesmo se encontrar em parte incerta, e por só agora ter sido possível ter acesso a duas testemunhas que a defesa considera importantes para a prova dos factos e do caso. Uma testemunha já foi requerida e requer-se então a inquirição da testemunha DD, encontrando-se presente no Tribunal e requer-se a audição da mesma.»
Depois de o Ministério Público e os Assistentes terem deduzido oposição ao requerimento, sobre este veio então a ser proferido o seguinte despacho (referência eletrónica nº 150284840): «No que respeita à primeira testemunha arrolada, a Sra. LL, entende o Tribunal que nada foi invocado quanto à sua necessidade para a descoberta da verdade material, pelo que a deferir sem mais o requerimento este teria um efeito meramente dilatório, motivo pelo qual ao abrigo do artigo 340º, nº 4, al. d) do Código de Processo Penal, se indefere a inquirição da testemunha LL; no entanto, pese embora, também nada tenha sido alegado quanto à testemunha DD, uma vez que a mesma se encontra presente no Tribunal, e a Ilustre Defensora esclareceu a impossibilidade de contactar o Arguido no sentido de obter meios probatórios adicionais, defere-se o ora requerido, determinando-se a audição da testemunha DD, nesta audiência de discussão e julgamento.»
Este despacho era recorrível à luz do preceituado pelo art. 399º do Código de Processo Penal (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pg. 882).
Resultando então dos autos que não foi interposto recurso desse despacho, sempre se imporia, em suma, mesmo que mencionada houvesse sido nas conclusões, que nos abstivéssemos de qualquer apreciação sobre a pertinência ou impertinência da admissão do depoimento da testemunha em apreço, razão pela qual esta matéria escapa ao objeto do recurso.
§ 2 Os crimes de ameaça
Com o recurso que interpõem, pretendem os Assistentes/Demandantes, entre o mais, a condenação do Arguido pela prática de dois crimes de ameaça, previstos pelo art. 153º, nº 1 do Código Penal – isso mesmo defendem nas conclusões XI e XVI e a essa matéria se referem na motivação de recurso, nomeadamente nos seus pontos 51, 52, 59, 60, 61, 78, 80 e 88.
Acrescentam ainda, no ponto 42 da motivação de recurso, que «a vinculação do tribunal quer aos factos descritos na acusação, quer à respectiva qualificação jurídica, não é absoluta. A alteração (substancial ou não substancial) dos factos ou da respectiva qualificação jurídica é possível desde que cumprido o formalismo enunciado nos artigos 358.º e 359.º do C.P.P.».
Que dizer?
Em primeiro lugar, há que ter presente o seguinte: o crime de ameaça previsto pelo art. 153º, nº 1 do Código Penal tem natureza semi-pública, o que significa que o procedimento criminal depende de queixa, em conformidade com o nº 2 da norma.
Significa isso que só uma vez apresentada queixa pelo titular do direito respetivo ou por pessoa pelo mesmo para tanto mandatada, é que poderá o procedimento criminal ser desenvolvido pelo Ministério Público e desembocar numa acusação, necessariamente pública, ou num despacho de pronúncia para julgamento proferido na sequência de um arquivamento do Ministério Público e de um requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente [arts. 49º, nºs 1 a 3, 287º, nº 1, alínea b) e 308º, nº 1 do Código de Processo Penal].
No caso dos autos, o procedimento criminal teve início numa queixa apresentada pela Assistente BB, imputando especificadamente ao Arguido a prática dos crimes de difamação agravada, previsto pelos arts. 180º, 183º, 1 e 2, 184º, este último por via do 132º, nº 2, alínea j) do Código Penal e de perturbação da vida privada, previsto pelo art. 190º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma e de ameaça, este sem referenciar qualquer norma (referência eletrónica nº 17236673/pg. 36 da queixa); e numa queixa apresentada pelo Assistente CC, que viria a dar origem ao processo que entretanto configura o atual Apenso A), imputando ao Arguido a prática também dos crimes de difamação agravada, injúrias, perturbação da vida privada e ameaça, previstos pelos arts. 180º, nº 1, 181º, 182º, 183º, nºs 1 e 2 e 190º do Código Penal, não sendo citada expressamente a norma referente ao crime de ameaça (referências eletrónicas nºs 17236710 e 126484667).
Ora, desenrolados os termos do Inquérito por apelo àquelas duas queixas, o Ministério Público convidou em dado passo os Assistentes a formularem as respetivas acusações particulares (referências eletrónicas nºs 139531338 e 140334793), o que aqueles fizeram (referências eletrónicas nºs 21922472 e 22223421) e viriam a ser objeto de adesão por parte do Ministério Público (referências eletrónicas nºs 140334793 e 141002703). E cumpridas as legais notificações, os autos assim transitaram para a fase de julgamento, tendo as ditas acusações particulares vindo a ser recebidas (referência eletrónica nº 144251782).
Vale a presente exposição por dizer que não se mostra que o Ministério Público tenha chegado a equacionar em despacho a eventual indiciação de crimes de ameaça aquando do encerramento do inquérito, nem tão pouco hajam os Assistentes invocado qualquer vício perante o próprio Ministério Público, ou eventualmente requerendo a abertura de instrução.
A pretensão dos Assistentes de agora, supostamente na base de factos que entendem ter resultado provados, o Arguido ser condenado pela prática de crimes de ameaça, pelos quais não foi deduzida acusação pública, não poderia nunca ser satisfeita; isto porque, a sê-lo, estar-se-ia a praticar uma nulidade insanável, prevista pelo art. 119º, alínea b) do Código de Processo Penal. Vejamos sucintamente porquê.
Prescreve aquela norma, para o que aqui releva, que constitui nulidade insanável «a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 48º».
Este art. 48º do Código de Processo Penal é o que expressamente consigna a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal. E o que o segmento normativo que destacámos do art. 119º, alínea b) nos diz, reportando-se aos «termos do artigo 48º», é que existe uma nulidade insanável quando o Ministério Público não promove o processo penal.
E o que vem a ser isto de não promover o processo penal?
Conforme decorre da remissão expressa operada para o citado art. 48º, o que se pretende censurar com uma consequência tão drástica quanto a da nulidade insanável, é algo, precisamente, de drasticamente grave e que está profundamente ligado ao princípio do acusatório, contemplado desde logo no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. Não falta por isso quem sustente que o âmbito de aplicação da norma se esgota na hipótese em que o processo penal avança à revelia do Ministério Público, isto é, aos casos em que o juiz, o assistente ou os órgãos de polícia criminal lhe usurpam o poder de promover a ação penal (João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pgs. 1232-5; Ac. da RE de 19/11/2024, relatado por Fernando Pina, in www.dgsi.pt), mesmo se com a anuência explícita ou implícita do próprio Ministério Público (veja-se a este propósito a situação em que o Ministério Público, no contexto de crimes públicos ou semipúblicos, não deduzindo acusação própria, convida o Assistente a deduzi-la e à qual vem depois aderir, situação de que trata o Assento nº 1/2000, in DR, I-A, de 6/01/2000).
Poderá conjeturar-se a hipótese de ser até algo redutora essa visão da norma, havendo quem sustente que, justamente por estar ligado ao princípio do acusatório, o segmento em causa do art. 119º, alínea b), do Código de Processo Penal poderá ainda acomodar outras áreas de aplicação, a saber, aquelas em que, respeitando o Inquérito a vários acontecimentos históricos com potencial relevância jurídico-penal, o Ministério Público, desenvolvendo embora o inquérito [na falta de inquérito também haverá nulidade insanável, mas por via do art. 119º, alínea d)] e aí praticando ou ordenando atos de investigação relativos a todos eles, nada decide a respeito de tais acontecimentos históricos ou de algum ou alguns deles aquando do despacho de encerramento [neste sentido vide José Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da ação penal”, AA. VV., Mário Ferreira Monte (dir.), Que futuro para o direito processual penal: simpósio de homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, pgs. 553 e sgs.].
Seja como for, não pode ser acolhida a posição dos Recorrentes segundo a qual nada obsta a que o Tribunal proceda a uma alteração de factos e/ou de qualificação jurídica, desde que cumpridos os procedimentos previstos pelos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Na verdade, o funcionamento dos mecanismos previstos nesses arts. 358º e 359º apenas é possível se não houver obstáculos ao nível dos pressupostos processuais, por natureza prévios, que o mesmo é dizer, no caso, se tiver havido queixa e acusação pública, as comummente chamadas condições de procedibilidade e de prosseguibilidade, respetivamente (cfr. nesta matéria a solução a que se chegou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 9/2024, DR, I-A, de 9/07/2024).
Admitir que o Tribunal, na fase de julgamento, poderia operar uma alteração fáctica e jurídica da acusação particular em termos tais que o habilitassem a condenar o arguido por um crime semipúblico pelo qual nem sequer fora apresentada queixa e/ou relativamente ao qual o Ministério Público não fizera ou promovera o inquérito e/ou não tivesse deduzido acusação, implicaria pois, em suma, contornar e, em termos prático-jurídicos, inutilizar, consoante os casos, quer a restrição à legitimidade de promoção do processo penal decorrente da necessidade de queixa, quer o exclusivo da promoção do processo penal, a partir de tal queixa, que cabe ao Ministério Público como titular da ação penal.
Daí decorreria em suma, e por uma dupla ordem de razões, qualquer delas por si própria com pendor decisivo, que não poderia o Tribunal fazer uso dos mecanismos previstos pelos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Mais: não tendo havido acusação pública por eventuais crimes de ameaça, estes, a terem existido, escaparam ao âmbito de incidência possível do julgamento havido em 1ª Instância e consequentemente escapam também ao âmbito de incidência possível deste Tribunal da Relação, face ao estabelecido pelo art. 410º, nº 1 do Código de Processo Penal.
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Aqui chegados, o objeto dos recursos, em síntese, é o seguinte:
Quanto ao recurso dos Assistentes/Demandantes:
i. erro notório na apreciação da prova;
ii. contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão;
iii. falta de fundamentação da não atribuição de indemnização ao Demandante;
iv. impugnação da matéria de facto;
v. qualificação jurídico-penal dos factos;
vi. não atribuição de indemnização por danos patrimoniais à Demandante e insuficiente indemnização pelos danos não patrimoniais.
Quanto ao recurso do Arguido:
i. omissão de pronúncia sobre o depoimento prestado pela testemunha DD;
ii. exclusão da ilicitude ou da culpa.
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2.2 A sentença recorrida: fundamentação de facto e enquadramento jurídico-penal
É a seguinte a fundamentação de facto que consta da sentença recorrida: «6. Da discussão da causa e produção da prova vieram a resultar provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa: 1)No dia ... de ... de 2020, pelas 20h, o arguido, através da rede social ..., fez uma publicação com a fotografia dos assistentes e com o seguinte texto “A ..., Dr. BB e meu irmão, CC e meu sobrinho e minha mãe montaram uma cilada para me colocar fora da minha casa em ... (…) tem como intenção este bando de criminosos roubarem a minha herança e manietar a minha mãe (…)” e, posteriormente, em data não apurada, na mesma rede social publicou o seguinte texto “Os roubados e vilipendiados pela Dr. BB e CC… criminosos que não honram o bom nome da minha família e dos antepassados (…)”. 2)No dia ... de ... de 2020, o arguido remeteu mensagem de voz para o número de telefone do assistente CC, dizendo “Bom, esta mensagem é para o CC e para a BB (…) Adeus, suas bestas quadradas.” 3) O arguido ofendeu os assistentes, imputando-lhes factos e dirigindo-lhes expressões que atentaram contra a sua honra e consideração, bem conhecendo a falsidade das imputações. 4)O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção deliberada de atingir os assistentes na sua honra, honestidade, bom nome, dignidade e consideração, o que conseguiu, bem sabendo que o seu acto era proibido por lei. 5)A assistente BB foi contactada por outros colegas informando-a da publicação, sentindo vergonha, tristeza, angústia, deixando de ter vontade de estar com amigos, colegas e família. 6) A assistente BB é ... há mais de seis anos, integra o ... e é .... 7)A assistente BB teve necessidade de recorrer a ajuda psiquiátrica, chegando a ser internada. 8)O arguido encontra-se no estado civil de … e reside sozinho em casa cedida em usufruto por sua mãe. 9)O arguido encontra-se …, auferindo mensalmente a quantia de €900,00. 10)O arguido é licenciado em …. 11)Por sentença proferida em ... de ... de 2021, transitada em julgado em ... de ... de 2021, no âmbito do Processo N.º 358/19.0..., que correu termos no Juízo Local Criminal do …, foi o arguido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples em ... de ... de 2019, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de €5,00, pena declarada extinta em ... de ... de 2021. 12)Por sentença proferida em ... de ... de 2022, transitada em julgado em ... de ... de 2023, no âmbito do Processo N.º 466/20.2..., que correu termos no Juízo Local Criminal de ..., foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica em ... de ... de 2020, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. 7. Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados. 8. O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência, conjugada com o princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, tendo desconsiderado todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, analisando dialecticamente os meios de prova ao seu alcance, procurando harmonizá-los entre si de acordo com os princípios da experiência comum, sem critérios pré-definidores de valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei diversamente o disponha. Ainda que o arguido não tenha estado presente na primeira sessão de julgamento, ao comparecer, por seu pedido, na segunda data agendada, veio, no essencial, confessar os factos dados como provados, ou seja, que fez duas publicações que visavam os assistentes, seu irmão e cunhada, mas também uma mensagem de voz para o telemóvel do assistente, em que se exalta e apelida ambos os assistentes de bestas quadradas. Refere que está arrependido de o ter feito, mas, no ver do Tribunal – através de explicação do próprio arguido - a penitência queda-se por tê-lo feito nas redes sociais e não propriamente quanto ao teor das injúrias proferidas que, no seu entender, se justificam por conta de comportamentos menos próprios dos assistentes para consigo. Ou seja, se é claro que assume o elemento objectivo dos crimes imputados, está convicto que actuou, não só de boa fé, como ciente de que defenderia interesses legítimos, elevado por um dever de divulgar a verdade. Sucede, porém, que tudo o que fez foi chamar os assistentes de criminosos e bestas quadradas, pelo que não vislumbramos a verdade que pretende publicitar. Em julgamento ouvimos uma testemunha, DD, amiga do arguido, que referiu um furto de um relógio e outros bens ao arguido, que este supõe terem sido retirados pelos assistentes, que serão os únicos com acesso à casa onde os bens do arguido se encontram, o que o levou a apresentar queixa no ano de ...; ora, sendo os factos dos autos de ..., dificilmente o arguido se poderá estar a queixar do mesmo nessas publicações. E ainda que aparente ser, na verdade, um desentendimento que tem a mãe do arguido e assistente no centro, o que se aflorou em julgamento, das publicações não se extrai qualquer facto concreto que permita concluir que o arguido se movia do intuito de divulgar qualquer verdade, sendo notório das publicações que pretende deixar suspeitas veladas no ar, colocando um manto de dúvida sobre a conduta dos assistentes. Já quanto ao sentimento de ofensa, foram claros os assistentes em referir que ao terem conhecimento das publicações, se sentiram profundamente injuriados, em particular, pela repetição das mesmas. Quanto ao pedido de indemnização civil da assistente, o Tribunal fez fé no declarado pela própria, seu marido, e demais testemunhas de acusação, que esclareceram a forma como a actuação do arguido afectou a assistente a nível pessoal e profissional. O Tribunal não responde à demais matéria vertida nas acusações particulares e pedido de indemnização civil, por considerá-la conclusiva, de direito, repetida, remetendo para documentos e sem concretização factual ou irrelevante para o objecto do processo, tanto mais que, na sua grande maioria, ultrapassa até o escopo da legitimidade processual dos assistentes para dedução de acusação particular. * IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-LEGAL 7. Vem imputada ao arguido a prática de dois crimes de injúria agravado previsto e punido pelos artigos 181.º n.º 1, 184.º, 132.º n.º 2 al. c) e g) do Código Penal e dois crimes de difamação previsto e punidos pelos artigo 180.º, 184.º, 132.º n.º 2 al. c) e g) do Código Penal; por uma questão de simplicidade e semelhança do bem jurídico, abordaremos em conjunto ambos os ilícitos criminais. Preceitua o artigo 180.º n.º 1 do Código Penal que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”. Refere o n.º 1 do artigo 181.º do Código Penal que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.” Sucede que vem imputada ao arguido a prática dos crimes na forma agravada dos artigos 184.º do Código Penal 132.º n.º 2 al. c) e g) do Código Penal, porquanto os factos serem praticados contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez e ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, facilitar a fuga ou assegurar impunidade do agente. Cremos evidente que não se mostra provado nenhum destes exemplos padrão, pelo que caem as apontadas qualificativas. Contudo, cremos que a adequada qualificativa, quanto a dois dos crimes de difamação é a do 183.º n.º 1 do mesmo diploma legal “se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou, as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. Propõe-se o legislador a tutelar a honra, qualquer que seja a modalidade típica de acção,“numa dupla concepção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa) mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna)” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pg. 495). Poderemos dizer que a honra, enquanto objecto de tutela penal, deverá ser entendida como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana e, nessa medida, como conceito normativo cuja concretização não dispensa a convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social. Deste modo, entendemos o conceito de honra “enquanto bem jurídico necessariamente complexo, como o interesse da estima que cada um tem por si próprio e que se sente em qualquer pessoa, e, simultaneamente, como o valor de apreço ou pelo menos de não desconsideração que se pretende os outros tenham por nós, um e outro protegidos, em termos cumulativos e de forma tendencialmente parificada, através dos tipos legais das injúrias e da difamação” (cfr. Prof. Beleza dos Santos, in Algumas considerações jurídicas sobre os crimes de difamação e de injúria, RLJ, ano 92, pg. 165 e ss.) Em suma, nas palavras de Faria Costa, a honra coincidirá, enquanto bem jurídico penalmente tutelado, quer com o valor pessoal e interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer com a sua própria reputação ou consideração exterior (cfr. in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, Tomo I, pg. 607). Para que determinada conduta possa vir a ser subsumida à materialidade objectiva do tipo ora considerado é desde logo necessária uma ofensa, uma actuação consistente na imputação de um facto ou na formulação de um juízo - o que significa, num e noutro caso, apresentá-los como correctos segundo uma convicção própria - ou na reprodução de tal imputação ou juízo, divulgando-os agora como uma informação alheia. Mas se na difamação posto é que se efectue não perante o próprio, mas operada mediante uma tergiversação, instrumentalizando terceiros, na injúria o acto ofensivo é dirigido ao próprio. Por seu turno, são crimes que só admitem a forma dolosa. Para a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo importa atender ao contexto em que os factos ou juízos pretensamente atentatórios da honra ou consideração são produzidos. Cuello Calon ensina que para apreciar se os factos, palavras e escritos são injuriosos será de ter em conta os antecedentes do facto, o lugar, ocasião, qualidade, cultura e relações entre ofendido e agente, de modo que factos, palavras e escritos que em determinados casos ou circunstâncias se reputam gravemente injuriosos, podem noutros não se considerar ofensivos ou tão somente constitutivos de injúria leve (Cfr. in “Derecho Penal , Parte Especial” , pág. 651). Faria Costa também alerta que “o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.” (cfr. ob.cit. pág. 612). Porquanto esta questão foi muito discutida em sede de julgamento, tem interesse real e efectivo distinguir a imputação dum facto da formulação de um juízo sobre a honra e consideração do sujeito passivo, pois que a causa de exclusão da ilicitude a que se referem os números 2 e 3 do art.180.º do Código Penal diz apenas respeito à imputação de factos. No sentido definitório implícito no tipo legal considerado, por facto há-de entender-se todo o acontecimento ou situação, pertencente ao passado ou ao presente e susceptível de prova e, por juízo, toda a afirmação contendo uma apreciação relativa, não à existência de uma coisa ou de uma ideia, mas ao seu valor. Vertendo o exposto ao caso concreto, dúvidas inexistem que o arguido, no dia ... de ... de 2020, pelas 20h, o arguido, através da rede social ..., fez uma publicação com a fotografia dos assistentes e com o seguinte texto “A …, Dr. BB e meu irmão, CC e meu sobrinho e minha mãe montaram uma cilada para me colocar fora da minha casa em ... (…) tem como intenção este bando de criminosos roubarem a minha herança e manietar a minha mãe (…)” e, posteriormente, em data não apurada, na mesma rede social publicou o seguinte texto “Os roubados e vilipendiados pela Dr. BB e CC… criminosos que não honram o bom nome da minha família e dos antepassados (…)”. No dia ... de ... de 2020, o arguido remeteu mensagem de voz para o número de telefone do assistente CC, dizendo “Bom, esta mensagem é para o CC e para a BB (…) Adeus, suas bestas quadradas.” É inegável que as afirmações, mesmo tendo presente o específico contexto em que foram produzidas, quando conjugadas com o significado que as mesmas assumem para a generalidade das pessoas, encerram claramente uma reprovação ético-social da conduta dos assistentes e, ao apelidá-los de criminosos e bestas quadradas sem mais, não está, naturalmente a imputar qualquer facto. Cumpre, no entanto, verificar se há alguma causa de justificação que interceda pelo arguido, já que a difamação não é punível desde que se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:- a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. Ora não só não se verifica a veracidade da imputação, pois que nada se provou, como inexiste qualquer fundamento sério para, de boa fé, a arguida a reputar como verdadeira, nem a imputação visava realizar qualquer interesse legítimo. Desta forma, as expressões são, em si, ofensivas, e sobretudo se se atender, como se exige, ao contexto em que as mesmas ocorrem, sem qualquer motivo aparente, pelo que é manifesto o propósito do arguido de ofender os assistentes. São qualificações nada lisonjeiras, apontando para um comportamento desadequado dos assistentes e que atentam na sua honra pessoal e profissional. Assim, o uso das expressões proferidas pelo arguido não cabe em qualquer margem de tolerância a atribuir à comunicação entre pessoas onde por vezes se expressam juízos e palavras menos felizes. O que pretende o arguido é a efectiva crítica dos assistentes com a conclusão de os rotular depreciativamente, pelo que não são de banalizar este tipo de juízos atentatórios da auto-estima pessoal e social. Estas declarações não se limitam a denunciar comportamentos alegadamente incorrectos por parte dos assistentes, direito que numa sociedade democrática assiste a qualquer cidadão, mas, cremos, trata-se de um ataque pessoal e, como vimos em sede de matéria de facto que nos absteremos de repetir, não enquadrável em nenhuma das causas de não punibilidade previstas no artigo 180.º n.º 2 do Código Penal, pois que o arguido cuidou de os apelidar de “criminosos” e “bestas quadradas”. Cumpre ainda saber se estamos perante um crime na sua modalidade simples ou se está preenchido o elemento extra para a enquadrar no artigo 183.º do Código Penal. Com efeito “na agravação prevista no art.º 183.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, o legislador partiu de uma lógica que assenta na ideia de que os meios ou as circunstâncias que aumentem o efeito propulsor ou de ressonância da difamação ou injúria mereciam uma maior punição” (cfr. Faria Costa in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 640). In casu, tendo o arguido feito publicações no ..., ao apelidar os assistentes de criminosos, entende-se que o meio utilizado e a forma alargada e despersonalizada como fez a divulgação desse texto, é propulsor de facilitar a sua divulgação por forma a agravar a sua conduta. E tão pouco existem dúvidas que o arguido assim o pretendeu fazer, com a consciência de que ofendia a honra dos assistentes, assim praticando dois crimes de difamação agravada. Já quanto ao apelidar os assistentes de bestas quadradas, porque o fez ao telefone e dirigido a um dos assistentes, não existe qualquer agravação, revertendo os crimes para a modalidade simples, cometendo um crime de injúria simples quanto ao assistente seu irmão, pois que foi a este que ligou quando o apelidou de besta quadrada e um crime de difamação simples na pessoa de sua cunhada, porque o fez por interposta pessoa. Encontrando-se satisfeitos os elementos objectivo e subjectivo dos tipos de crime e não tendo ocorrido qualquer circunstância, causa de justificação da ilicitude, de exclusão de culpa ou condição de punibilidade que interceda e exclua a sua responsabilidade, a sua conduta é, pois, ilícita e culposa, concluindo-se que a arguida cometeu, como autora material, os crimes de difamação e injúria já descritos.»
2.3 Conhecimento do mérito dos recursos
2.3.1 Do recurso dos Assistentes/Demandantes – da nulidade da sentença
2.3.1.1 Da desconsideração de matéria alegada nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização civis
Recordemos as primeiras cinco conclusões do recurso formuladas pelos Assistentes/Demandantes. «I. Desde logo, por se entender, haver erro notório na apreciação da prova, dada como não provada - alínea c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P. II. Por outro lado, há contradição insanável na fundamentação ou entre esta e a decisão a propósito dos factos provados sob o artigo 6º, al. 1), 2), 3), 4), 5), 6), 7), por um lado, e artigo 7 e 8º, dos factos não provados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P; há também contradição insanável na fundamentação entre os factos supra indicados - alínea b) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P. III. Acresce que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova produzida em audiência quanto à matéria de facto tendente à formação da convicção de que “Não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou em que esteja em contradição com os dados como provados.” IV. E, “não responde à demais matéria vertida nas acusações particulares e pedido de indemnização civil, por considerá-la conclusiva, de direito, repetida, remetendo para documentos e sem concretização factual ou irrelevante para o objecto do processo, tanto mais que, na sua grande maioria, ultrapassa até o escopo da legitimidade processual dos assistentes para dedução de acusação particular.” V. Ora, deveria o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos alegados em 2, 3, 4, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 das acusações, o que não fez, desconsiderando, ainda, quase todos os documentos que acompanharam tais acusações particulares, por entender serem afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, o que não se pode conceder, pois fez-se prova bastante para dar como provados todos os factos das acusações;»
E mais adiante acrescentam os Assistentes/Demandantes na conclusão X. o seguinte: «Verifica-se uma contradição insanável na fundamentação (art. 410.º, n.º 2, al. c), do C.P.P.), já que os fundamentos para desacreditar umas testemunhas e dar como provados certos factos são os mesmos para dar credibilidade a outras, não se percebendo a seleção face à prova produzida.»
Estaremos nós diante um vício que se enquadre no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal?
Cumpre começar por notar que os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – os previstos pela indicada norma - têm de radicar no próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. Isso mesmo no-lo diz abertamente a norma.
Ora, lendo o texto da sentença recorrida em si mesmo ou em articulação com as apontadas regras de experiência, não se deduz qualquer dos apontados vícios: na sua aparência externa, não se vê como possa dizer-se que a matéria de facto que ali se dá como provada seja insuficiente para a prolação da decisão de direito, à luz de todas as soluções jurídicas plausíveis; como não se vê que algum de tais pontos da matéria de facto radique numa abordagem notoriamente errada do ponto de vista dos princípios e normas probatórias aplicáveis; como não vemos também que padeça de alguma contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão.
O que da leitura da sentença se perceciona é um outro vício, prévio àqueles que poderiam ter guarida no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, e que se prende com um incumprimento, na parte em apreço, do dever de fundamentação das decisões judiciais, seja na dimensão do dever de enumeração dos factos provados e não provados, seja na dimensão do dever de proceder a um exame crítico da prova, seja na dimensão de pronúncia sobre as questões de que o Tribunal de 1ª Instância deve conhecer, à luz dos arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.
De resto, ainda que os Assistentes/Demandantes não tenham transposto explicitamente esta temática da eventual nulidade da sentença para as conclusões do recurso, não deixaram de referir na motivação deste, sob os pontos 17 a 19, o seguinte, que vale substantivamente como invocação do vício: «17. Com efeito, não resta outra alternativa aos assistentes/recorrentes senão a via do recurso, pois não basta ao Tribunal a quo, perante a imensa prova documental carreada para os autos, que em Audiência de Julgamento foi efectivamente conjugada com a prova testemunhal, vir apenas dar como provados os parcos factos dos inúmeros aduzidos na acusação, e por via disso, deveriam ter sido dados como provados face à prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento; 18. Isto significa que o Tribunal a quo não atendeu aos demais factos aduzidos na acusação, referidos todos eles em Audiência de Discussão e Julgamento, pelas diversas testemunhas arroladas, em consonância com toda a prova documental dos autos, conforme se demonstrará, pelo que se requer a reapreciação da prova, por total violação da Lei pelo Tribunal a quo. 19. Face ao que antecede, dir-se-á ainda que ocorreu uma omissão de pronúncia sobre factos relevantes, e nessa senda coloca-se em crise a livre apreciação da prova, pelo que existe objetivamente uma nulidade de omissão de pronúncia da decisão de facto.»
E mais adiante, nos pontos 46 e 47 da motivação, acrescentam ainda os Assistentes/Demandantes: «46. Ora, é comumente sabido que a fundamentação sobre a matéria de facto tem de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal da racionalidade e coerência do juízo ou do processo lógico que conduziu à formação da convicção do julgador, passando o exame crítico da prova por uma explicação quanto ao processo, sob pena de nulidade nos termos estabelecidos no art.º 379º, nº1, al. a) e 374º, nº2, ambos do CPP. 47. Ademais, porque as nulidades da sentença previstas no art.º 379º, nº 1 do CPP são de conhecimento oficioso em recurso, visto que estas nulidades têm uma tramitação própria e diferenciada do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo o nº 2 do citado preceito legal que tais nulidades “devem ser apreciadas ou conhecidas em recurso”».
E mesmo na ausência de uma tal invocação, sempre haveria eventualmente de equacionar a possibilidade de conhecer da nulidade a título oficioso, face à sua natureza e ao teor literal do art. 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, no qual se prescreve, desde a alteração que lhe foi feita pela Lei nº 59/98, de 25/08, que «devem ser [aquelas nulidades] arguidas ou conhecidas em recurso» (cfr., entre outros, o Ac. da RP de 6/02/2019, relatado por João Pedro Nunes Maldonado; vide ainda José Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, Almedina, 2022, pgs. 801-802).
Dito isto, apreciemos então a problemática suscitada.
Os Assistentes/Demandantes mostram-se inconformados com a posição assumida pelo Tribunal de 1ª Instância ao não enumerar como provados vários factos. Dizem eles, na conclusão V, que «deveria o Tribunal a quo ter considerado como provados os factos alegados em 2, 3, 4, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 das acusações, o que não fez, desconsiderando, ainda, quase todos os documentos que acompanharam tais acusações particulares, por entender serem afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito, o que não se pode conceder, pois fez-se prova bastante para dar como provados todos os factos das acusações».
Referem-se em particular aos seguintes pontos das acusações particulares e dos pedidos de indemnização civis, que propugnam ter o Tribunal de 1ª Instância desconsiderado:
(1) Que o Arguido fez a publicação mencionada no ponto 1 dos factos provados para esconder um outro ilícito criminal por si perpetrado, no âmbito do processo n.º 466/20.2..., pelo qual foi condenado na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, sujeito a regime de prova e com vigilância eletrónica, a saber, violência doméstica praticada contra a sua mãe;
(2) Que a publicação [descrita no ponto 1 dos factos provados] esteve exposta e visível por um período de mais de um mês;
(3) Que o Arguido contactou telefónica e pessoalmente outras pessoas, entre elas, alguns familiares e, no caso da Assistente, Colegas de profissão, não só para se vitimizar, como para enxovalhar, [dizendo ser] cada um dos Assistentes um(a) criminoso(a) e um(a) ladrão(a), com o intuito de denegrir a imagem, o bom nome e a reputação de ambos;
(4) Que, para além de a fotografia dos Assistentes ter sido usada sem o seu consentimento, tentou com ela e com o texto descrito [no ponto 1 dos factos provados] denegrir a imagem e bom nome de ambos não só através da sua página pessoal, como por partilha em diversos grupos, chegando ao conhecimento de amigos do assistente, amigos em comum e familiares destes;
(5) Que a Assistente por diversas vezes foi interpelada por inúmeros Colegas de profissão, alguns deles titulares de outros Órgãos da …, e face a esta exposição pública perpetrada pelo Arguido, sentiu-se vexada, humilhada, entristecida e envergonhada, pois em todas as redes sociais, na vida pessoal e profissional, sempre foi pessoa discreta, séria e ponderada no que escreve e publica;
(6) Que a Assistente sempre teve um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades enquanto ... e quanto às funções que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente todos os deveres quer sociais, quer estatutariamente consagrados no ….;
(7) Que honestidade, probidade, retidão, urbanidade, cordialidade e lealdade são palavras de ordem da Assistente e os atos levados a cabo pelo Arguido através desta sua publicação e todas as demais que se seguiram serviram para denegrir a imagem, o bom nome da Assistente, e até a própria …, face à alusão ao cargo que, com zelo, abnegada e honrosamente, a mesma desempenha há mais de 12 anos;
(8) Que o Arguido conseguiu o que pretendia, quanto à Assistente, porquanto ainda hoje, passados que estão mais de dois anos, a Assistente é questionada por Colegas sobre esses acontecimentos, Colegas que a mesma até desconhecia que tinham visto;
(9) Que a primeira publicação do Arguido chegou a um número incalculável de pessoas, face aos comentários que se lhe seguiram do público em geral e de Colegas de profissão;
(10) Que tal conduta do Arguido é evidente pela natureza, teor e alcance de alguns comentários feitos nesta – ... – e noutras redes sociais, ..., ..., messenger, ..., sms´s entre outras, como se vê, por exemplo, a fls. 5, 6, 12, 13 do documento nº 6 junto com a queixa crime;
(11) Que com a sua prática o Arguido fez uso da imagem da Assistente para a prática de atos ilícitos, como bem sabe e disso não pode desconhecer, por ele ter a profissão de ..., e as suas ofensas pessoais e de modo inequívoco à Assistente, enquanto pessoa, ... e enquanto titular de um Órgão da … estatutariamente consagrado, identificaram-na de forma clara;
(12) Que o Arguido o fez intencionalmente, bem sabendo que todas as imputações não eram verdadeiras e para esconder um outro ilícito criminal por si perpetrado;
(13) Que, para além do próprio texto da sua publicação expressar claramente que a Assistente é uma criminosa, ainda se faz [o Arguido] passar por vítima, como se extrai dos comentários do próprio e instigação feita por este a outros para o comentarem, a fls. 9, 14, 15 e 16 do documento nº 6 junto;
(14) Que, conforme amplamente se deixou explanado na queixa crime e aqui se dá integralmente reproduzida, o Arguido lesou gravemente a honra do ofendido, com a prática dos factos descritos e partiu para o ataque gratuito, imputando-lhe factos e com as suas publicações nas redes sociais fez recair sobre o Assistente juízos desonrosos, bem sabendo que eram falsos;
(15) Que, para além do que antecede, o Arguido, por telefone ou por mensagens de voz, injuriou e ameaçou por diversas vezes o Assistente, conforme se alcança do já alegado nos artigos 46º, 49º, 52º, 62º, 69º, 88º e 93º da queixa crime, que aqui se dá por reproduzido;
(16) Que, referindo-se a ele como um filho da puta, cabrão, ladrão e escroque, tal como resulta dos arts. 11º, 46º, 69º e dos CD´s juntos com a queixa crime;
(17) Que os factos praticados foram perpetrados através de meios que facilitam a sua divulgação e permitem chegar a um universo muito alargado de pessoas, como é o caso do ... e ...;
(18) Que o ofendido nunca teve problemas familiares, com amigos, com colegas de trabalho ou com quem quer que fosse e a partir de ........2020 nunca mais teve sossego, face ao que o arguido, persecutoriamente, tem vindo a fazer ao assistente e que continua a fazer até aos dias de hoje;
(19) Que a exposição pública a que foi sujeito, as mensagens, telefonemas, perseguições, perturbações durante o seu período de trabalho e na sua vida pessoal e profissional, afetaram gravemente o Assistente, pessoa de saúde débil;
(20) Que durante estes dois anos e meio, os atos praticados pelo Arguido afetaram gravemente o estado psíquico e físico do Assistente, causando-lhe perturbações na sua vida pessoal, social e profissional, assim como no estado de saúde do mesmo;
(21) Que com o referido comportamento e os factos descritos, o Arguido ofendeu o Assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe expressões que atentaram contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação;
(22) Que o Assistente sempre foi uma pessoa cordial, calma, respeitada por todos no meio onde reside e trabalha, sendo-lhe reconhecida uma grande moral e honestidade, pessoa trabalhadora e íntegra.
Acrescentam os Assistentes que se fez prova bastante para dar como provados todos estes factos, enunciando em seguida os elementos de prova que na sua convicção estribam uma tal posição.
Cumpre então apreciar.
Primeiro ponto: os requisitos da sentença.
Estão eles enunciados no art. 374º do Código de Processo Penal. Com relevo para o que ora nos ocupa, exige-se que a sentença tenha, entre o mais, «[uma] enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» (nº 2).
Trata-se de uma norma que concretiza o dever geral de fundamentação dos atos decisórios previsto pelo art. 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, que por sua vez constitui uma imposição do art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e igualmente presente no art. 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, por via do conceito de processo equitativo e no 14º, nº 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.
Cabe aos tribunais expor os fundamentos das decisões que dirimam os litígios que lhes sejam submetidos. E embora a extensão desse dever de fundamentação possa variar em função da natureza da decisão e das circunstâncias do caso, e embora, ainda, se não exija uma resposta detalhada a todos e cada um dos argumentos expostos pelas partes, impõe-se que haja uma apreciação explícita em relação àqueles que se prefigurem como decisivos para o desfecho dos autos (cfr. Acs. do TEDH Moreira Ferreira v. Portugal (nº 2) [GC], nº 19867/12, § 84, de 11/07/2017, Boldea v. Romania, nº 19997/02, § 30, de 15/02/2007, Lobzhanidze and Peradze v. Georgia, nºs 21447/11 e 35839/11, § 66, de 27/02/2020).
Como já tem sido sustentado, a fundamentação das decisões judiciais cumpre vários propósitos, de ordem endoprocessual e extraprocessual (vide sobre esta matéria o Ac. do STJ de 21/03/2007, relatado por Henriques Gaspar, e Emanuel Alcides Romão Pinto, in Do dever de fundamentação das decisões judiciais como garantia constitucional: em especial a sentença penal, file:///C:/Users/mj01969/Downloads/9218-Artigo-15418-1-10-20200701.pdf):
- em termos endoprocessuais, constitui «uma garantia de racionalidade, de imparcialidade e de ponderação da própria decisão judicial, como um elemento imprescindível de autocontrolo judicial, mormente quanto à apreciação dos argumentos da defesa, da livre convicção do juiz em matéria probatória, bem como da interpretação e aplicação do direito; e visa também assegurar o direito ao recurso, o que só é possível mediante a exteriorização dos fundamentos da decisão adotada, tornando explícita para a defesa qual foi o seu concreto juízo decisório, possibilitando, desse modo, o controlo impugnativo por parte desta» (José Tomé de Carvalho, “Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão penal final no ordenamento jurídico português”, in Julgar, n.º 21, 2013, Coimbra Editora, p. 81);
- e em termos extraprocessuais, «um controlo externo sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, de modo a garantir a transparência do processo e da decisão (…), o que possibilitará um controlo difuso sobre o exercício da jurisdição» (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 2.ª edição, Coimbra: Almedina Editora, 1998, p. 621).
O que vimos de dizer não significa que sejamos avessos a uma tendencial simplificação das decisões judiciais, desde logo por razões de economia processual, clareza e boa comunicação e de reforço da legitimação dos tribunais como órgãos de administração da justiça em nome do povo.
Não podemos com efeito ser insensíveis à necessidade e conveniência de, sempre e na medida em que for possível, abreviar e aclarar o texto das sentenças, evitando o desfilar de considerações que em substância nada acrescentam de útil à concretização de um processo equitativo e à boa compreensão e sindicância do que se decide.
Esta abordagem não pode, todavia, ser feita com prejuízo do dever de fundamentação a que antes nos referimos, seja no que toca à enumeração dos factos provados e não provados, seja no que toca a uma fundamentação, ainda que concisa, da posição assumida em matéria de facto [arts. 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal].
Por outro lado, é também nula a sentença que deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, como decorre do art. 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, aqui cabendo as situações em que o tribunal não tome posição sobre factos concretos alegados e que sejam relevantes para a boa decisão da causa (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pg. 982).
Segundo ponto: o objeto da causa.
A discussão da causa tem por objeto, desde logo, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, a tudo acrescendo ainda o que se reporta à matéria de facto e de direito atinente ao pedido de indemnização civil e à questão da determinação da sanção (arts. 339º, nº 4, 368º, nº 2 e 369º do Código de Processo Penal).
No caso concreto, e para o que aqui releva, o objeto da causa radica, em primeira linha, na matéria de facto e de direito convocada pelos Assistentes/Demandantes nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização civil que deduziram, nos termos em que umas e outros se encontram redigidos.
Repare-se que o Ministério Público aderiu às acusações particulares, tal como estas se encontram redigidas (referências eletrónicas nºs 140334793 e 141002703), e foram elas recebidas, também tal como se encontram redigidas, na fase de julgamento (referência eletrónica nº 144251782).
Por sua vez, os pedidos de indemnização civil, do mesmo modo como se encontram redigidos, foram também admitidos liminarmente (referência eletrónica nº 144251782).
E por outro lado, repare-se ainda que durante a audiência, mormente em sede de algum saneamento prévio, o Tribunal de 1ª Instância não encetou nenhum tipo de explícita e especificada restrição ao objeto da causa.
A partir daqui, a discussão da causa, até por razões de lealdade processual, passa incontornavelmente, em termos de matéria de facto, e entre o mais, pelo que é alegado nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização civis, leia-se, em tudo o que aí é alegado, incluindo o que resulte da remissão expressa que nessas peças processuais seja feita para elementos que lhe são externos, mas integrados nos autos, como é o caso das queixas formuladas e da documentação oferecida.
Importa, assim, por razões ligadas ao dever de fundamentação das decisões e ao princípio do processo equitativo, que o Tribunal explicite porque desconsidera, não dando como provada ou não provada, parte da matéria alegada sob a capa de matéria de facto nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização civis. Só assim, com efeito, percebendo-se em concreto as razões que direta e concretamente motivam a desconsideração deste ou daquele ponto alegado será possível aos seus destinatários uma suficiente compreensão da decisão; como só assim será possível ao Tribunal de 2ª Instância exercer o seu papel de escrutínio do efetivamente decidido e não especular por si próprio as razões que justificaram em concreto a desconsideração dos factos a, b ou c que se mostravam alegados.
E se estivermos diante matéria com potencial relevo para a decisão, à luz das soluções jurídicas plausíveis, como é o caso, mostra-se perfectibilizado um círculo vicioso de que é difícil sair sem uma reformulação da sentença recorrida.
Repare-se que lê-se nesta, imediatamente em seguida ao enunciado de factos provados, que «não se logrou provar qualquer outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados», não se verificando nessa sequência a enumeração especificada de quaisquer factos.
E na motivação da decisão de facto, lê-se na sua parte final: «O Tribunal não responde à demais matéria vertida nas acusações particulares e pedido de indemnização civil, por considerá-la conclusiva, de direito, repetida, remetendo para documentos e sem concretização factual ou irrelevante para o objecto do processo, tanto mais que, na sua grande maioria, ultrapassa até o escopo da legitimidade processual dos assistentes para dedução de acusação particular.»
Da leitura conjugada de uma e outra destas partes da sentença resulta então que em bom rigor não chega a perceber-se: (i) se o Tribunal de 1ª Instância, fora dos factos que deu como provados, via ou não algum outro, «com relevo para a boa decisão da causa», que, tendo sido alegado, não resultou demonstrado; (ii) que matéria alegada tem ele por «conclusiva» ou «de direito»; (iii) que matéria é desconsiderada por relevar da remissão para documentos (e porquê); (iv) e que matéria ultrapassa «o escopo da legitimidade processual dos assistentes para dedução de acusação particular».
Conceda-se que em situações em que seja escassa a matéria de facto que, tendo sido alegada, vem a ser desconsiderada pelo Tribunal de 1ª Instância à luz de referências tabelares como as em concreto usadas aqui, nenhum mal especial virá aos autos, quando estivermos diante alegações clara e manifestamente irrelevantes para a boa decisão da causa ou que tenham uma matriz clara e manifestamente conclusiva; isto porque, aí, a posição assumida pelo Tribunal acaba por ser de fácil e intuitiva compreensão, num exercício interpretativo linear do que ficou escrito.
Não é esse o caso aqui, face à extensão e potencial relevância pelo menos de parte da matéria que, tendo sido alegada como matéria de facto nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização civis, não vem a ser dada como provada, sob a fundamentação genérica que deixámos atrás mencionada, que cobre distintas realidades. Pense-se por exemplo nas seguintes referências: o tempo em que a publicação descrita no ponto 1) dos factos provados esteve disponível para consulta; a partilha da publicação em diversos grupos; o ter o Arguido contactado outras pessoas apelidando os Assistentes de serem criminosos e ladrões; o modo de ser e estar da Assistente como pessoa discreta, séria e ponderada no que escreve e publica; o ser a Assistente ainda hoje questionada por Colegas sobre os acontecimentos em causa; a atitude do Arguido de ainda se fazer passar por vítima, à luz da documentação junta; que foram várias as vezes em que o Arguido efetuou outras publicações de teor injurioso, como descrito nos pontos destacados da queixa; que o Assistente nunca teve problemas com quem quer fosse e que a partir de ... de ... de 2020 nunca mais teve sossego, face ao comportamento do Arguido; que as condutas do Arguido perturbaram o Assistente, nomeadamente no seu estado de saúde, que é débil (sendo que na acusação particular lê-se, no ponto 22, que é hipertenso, tem problemas cardíacos e já foi submetido a uma cirurgia cardiovascular complexa); e que o Assistente sempre foi uma pessoal cordial, calma e respeitada por todos no meio onde reside e trabalha.
Por outro lado, no que respeita a matéria que, estando alegada nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização (aí consagrada diretamente ou por via das remissões operadas para as queixas ou para documentação junta), importará que o Tribunal de 1ª Instância esclareça, em contexto de exame crítico, por que motivo tem por irrelevante, impertinente ou insuficiente a prova produzida nos autos, nomeadamente de ordem testemunhal, documental ou por declarações dos Assistentes, à qual não é feita qualquer referência especificada na sentença.
Em suma, olhando ao conteúdo da matéria alegada nas acusações particulares e nos pedidos de indemnização civis, aí contida de forma expressa ou por remissão para as queixas ou documentos juntos (recorde-se que aquelas peças processuais, sem nenhuma restrição, foram as admitidas a conformar o objeto do processo, por via do seu recebimento e admissão liminares na fase de julgamento), importaria então que o Tribunal de 1ª Instância tivesse esclarecido, para além do que deu como provado na sentença: (i) se algo mais considerou provado e que não o especificou como tal na sentença apenas por entender sem relevo para a decisão (e porquê); (ii) o que considera ser matéria conclusiva ou de direito; (iii) e o que escapa à legitimidade processual dos Assistentes para dedução de acusação particular.
Perante acusações particulares recebidas e pedidos de indemnização civis admitidos liminarmente, a sentença não é espaço idóneo a desconsiderar, sem uma justificação própria e específica, por que razão não se enumera este ou aquele facto como não provado.
Mesmo concedendo-se que os articulados juntos aos autos padecem de alguma aparente complexificação e prolixidade excessiva e são algo repetitivos, afigura-se-nos que tendo procedido o Tribunal de 1ª Instância como procedeu, a sentença ficou a padecer de nulidade, o que se declarará, não podendo dispensar-se o regresso dos autos à 1ª Instância para o seu suprimento, por via da prolação de nova sentença; um eventual suprimento da nulidade em apreço diretamente por este Tribunal da Relação equivaleria, no caso, ao desaparecimento de um grau de recurso, o que não pode admitir-se (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pg. 985).
2.3.1.2 Do pedido de indemnização civil do Demandante CC
Recordemos as conclusões VI e VII do recurso formulado pelos Assistentes/Demandantes: «VI. (…) deveria [o Tribunal de 1ª Instância] ter fundamentado a não atribuição de pedido de indemnização ao assistente CC, porquanto em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, igualmente ficaram provados os danos pessoais e profissionais, o que não sucedeu e a isso se deveria ter debruçado o Tribunal a quo, fundamentando a decisão. VII. In casu, estando reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, como se verifica (…) impunha-se que o Tribunal a quo arbitrasse uma quantia ao primeiro a título de danos não patrimoniais.»
E de entre os pedidos que formulam na parte final do recurso, figuram os seguintes: «f) Mais se deve considerar procedente a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, nº 1, al. c), do Código de Processo Penal, quanto ao pedido de indemnização civil formulado por ambos os assistentes. (…) i)Ser julgado procedente o pedido de indemnização civil, a arbitrar nos termos do artigo 82-A, do CPP, e o arguido condenado no seu pagamento.»
E recordemos o que este Assistente/Demandara alegara e peticionara nesta matéria, na mesma peça em que formulara a acusação particular e ato contínuo a esta: «II – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
I. Como consequência necessária e direta da ilícita conduta do arguido, ora demandado, resultou para o assistente, ora demandante, prejuízos patrimoniais e não patrimoniais que importa ressarcir.
II. O assistente é uma pessoa séria, respeitada e respeitadora, portador de um comportamento profissional, moral e social irrepreensível, o que é amplamente reconhecido por quem com o mesmo priva.
III. O demandante ficou, e contínua, muito perturbado e incomodado com as expressões proferidas, pelas publicações efetuadas pelo demandado em diversas redes sociais, por sms, pessoalmente ou por telefone.
IV. O assistente dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais, a acusação particular que consta dos artigos anteriores, onde consta que o arguido, ora demandado, o injuriou, difamou e ameaçou.
V. Com as injúrias, perpetradas pessoal, telefonicamente, por mensagens e com as difamações imputadas pelo demandado, o demandante sentiu-se profundamente ofendido, e dominado por um sentimento de enorme injustiça.
VI. Com a conduta do demandado, o demandante ficou extremamente envergonhado e vexado, perante amigos, familiares, conhecidos e outros.
VII. Acresce que, desde essa data, que diversos amigos e familiares lhe fazem perguntas sobre o sucedido e o demandante sente que aqueles ficaram dominados por um ambiente de suspeição, o que o deixa profundamente transtornado e abalado.
VIII.Tudo isto faz com que o demandante ficasse entristecido, envergonhado, deixando de frequentar com assiduidade que era habitual alguns dos locais públicos que sempre frequentou, assim como começou a evitar estar com amigos e familiares para evitar o tema que tanto o perturbava.
IX. Todas estas circunstâncias criaram no demandante uma forte e estigmatizante perturbação do equilíbrio social psíquico e emocional, constituindo um grave atentado à sua personalidade moral, legalmente tutelado pelo artigo 70º do Código Civil.
X. Pelo que, atenta a gravidade e extensão dos danos não patrimoniais, requer-se que o Tribunal, em caso de condenação, arbitre uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, neles estando incluídos também os danos patrimoniais, resultantes da necessidade de ter maiores despesas de saúde, quer médicas quer medicamentosas, tudo nos termos do disposto no artigo 82ºA do C.P.Penal.
XI. Reitera-se, os factos supra descritos atingiram a honra, reputação e consideração do demandado.
XII. Assim sendo, o demandado constituiu-se na obrigação de indemnizar o demandante nos termos do artigo 483º do Código Civil pelos danos culposamente causados.
XIII.Cremos que condutas como as do arguido não podem deixar de ser severamente punidas e que a honra e bom nome das pessoas, pelos quais passam anos a lutar, não podem ser enxovalhados desse modo e os seus autores não serem responsabilizados.
XIV. Os factos supra descritos constituem dano indemnizatório que, considerando o percurso do demandante e a forma como se sentiu ofendido, não pode deixar de ser arbitrado.»
E conclui o Assistente/Demandante a sua peça na 1ª Instância formulando nesta matéria os seguintes pedidos: «(…) III – Ser arbitrada uma quantia, a fixar por este Douto Tribunal, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, nos termos do disposto no artigo 82º-A do C.P. Penal. IV – Ser notificado o demandado para, querendo, contestar o pedido de indemnização civil.»
E recordemos o que consta da sentença recorrida nesta matéria; para além da matéria de facto aí dada como provada, já acima transcrita, consta ali a seguinte fundamentação jurídica para o não arbitramento de qualquer indemnização a este Demandante: «O demandante CC veio ainda deduzir pedido de indemnização cível contra o arguido/demandado pedindo a sua condenação no pagamento de quantia ao abrigo do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal (…) Quanto ao demandante CC, que peticionou o arbitramento de quantia ao abrigo do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, uma vez que nada foi alegado, nos termos desse artigo, quanto a particulares exigências de protecção da vítima que imponham a fixação de indemnização, nada há a arbitrar.»
Cumpre então apreciar.
Há aqui dois apontamentos a fazer.
O primeiro é este: o tribunal não deu como provados, nem especificou como não provados, vários dos factos que vinham alegados pelo Demandante, o que significa que verifica-se aqui o mesmo vício que há pouco sinalizámos sob a categorização da nulidade da sentença, que aqui se dá por reproduzido.
Repare-se, em particular, que o Tribunal de 1ª Instância não se pronuncia sobre vários dos factos que se achavam alegados neste contexto pelo Demandante e nomeadamente os que constavam dos pontos II, III, VI, VII e VIII do articulado do pedido civil e que, à luz das soluções plausíveis da questão de direito, têm potencial relevância para a boa decisão da causa.
Faz sentido, portanto, que a declaração de nulidade da sentença abranja também a parte referente ao pedido de indemnização civil.
Um outro apontamento, porém, justifica-se deixar dito nesta matéria.
No seu «pedido de indemnização civil» o Demandante apelou ao art. 82º-A do Código de Processo Penal; esse pedido foi admitido liminarmente, como mencionámos já; e na sentença recorrida a apreciação feita teve lugar por referência àquela mesma norma.
Todavia, uma das características essenciais do funcionamento do art. 82º-A do Código de Processo Penal é a sua subsidiariedade em relação ao pedido de indemnização civil; diz-nos a norma, no seu nº 1, na verdade, que «não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado (…) o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham».
Ou seja, se for deduzido um pedido de indemnização civil, não há espaço para aplicação do art. 82º-A do Código de Processo Penal; e reflexamente, não sendo deduzido um pedido de indemnização civil, pode o tribunal recorrer ao art. 82º-A para arbitrar oficiosamente uma indemnização à vítima.
O que aconteceu nos autos, salvo o devido respeito, foi anómalo. Anómalo, para começar, o modo como o Demandante fez juntar aos autos uma peça processual que abertamente designou como «pedido de indemnização civil»: para além de lhe dar essa designação, o que já por si é expressivo, articulou os factos correspondentes a um «pedido de indemnização civil». Todavia, incongruentemente com esse seu procedimento, acaba por não quantificar o seu «pedido» num valor preciso, e aponta para o art. 82º-A do Código de Processo Penal.
Entendamo-nos: o Demandante não pode formular um pedido de indemnização sem o quantificar; como não pode convocar o art. 82º-A no contexto de um pedido de indemnização que é com esta norma lógica e legalmente incompatível.
Vale o exposto por dizer que há uma problemática prático-jurídica imposta pela dinâmica dos presentes autos que o Tribunal de 1ª Instância não chegou a equacionar, mas que não pode deixar de pôr-se, que se prende com a estabilização da instância civil quanto ao Assistente CC: ou bem que temos um pedido de indemnização civil (de resto admitido como tal nos autos) e nesse caso terá ele que ser quantificado pelo Demandante e dar origem à desconsideração da figura da reparação oficiosa prevista pelo art. 82º-A do Código de Processo Penal; ou bem que não temos um pedido de indemnização civil (ou pelo menos não temos um pedido de indemnização civil válido ou regular) e então aí o apelo ao mecanismo daquela norma excecional é possível.
Trata-se de matéria que se impõe seja apreciada pelo Tribunal de 1ª Instância, neste caso após contraditório a conceder a todos os sujeitos processuais e depois de realizadas quaisquer outras diligências que venham a ter-se por necessárias neste domínio, como por exemplo, se assim for entendido, um convite ao Demandante CC a quantificar o pedido que deduziu e ao subsequente contraditório.
2.3.1.3 Do pedido de indemnização da Demandante BB
Defende-se no recurso a nulidade da sentença também nesta vertente do pedido de indemnização formulado pela Demandante BB.
Este pedido tem duas vertentes: a alegação de danos patrimoniais, por cuja indemnização se pretende a quantia de € 675,71, e a alegação de danos não patrimoniais, por cuja reparação se pretende a quantia de € 25.000,00.
A sentença recorrida, na base da matéria de facto acima descrita, apreciou o pedido nestes termos, quanto aos danos patrimoniais: «Já quanto à demandante BB, em termos patrimoniais, constatamos que, ainda que tenham sido peticionados € 675,71, a verdade é que se limita a alegar que “teve necessidade de recorrer a ajuda psiquiátrica (…) teve despesas medicamentosas (…) que se juntam e dão como integralmente reproduzidos”, mas em lado algum do articulado se alega a que se referem estes € 675,71. Assim sendo, porque nada de concreto foi peticionado ou alegado quanto a danos patrimoniais, impõe-se absolver o arguido dos mesmos.»
Também neste segmento a sentença é nula, por omissão de pronúncia quanto à matéria de facto alegada.
Recorde-se o que vinha alegado no pedido de indemnização civil (referência eletrónica nº 22253475): «(…) 6. Pelo que, face ao estado psicológico, a Assistente teve necessidade de recorrer a ajuda psiquiátrica, e outras da mesma natureza, chegando inclusive a ser internada, conforme atestam os documentos ora juntos, de consultas médicas psiquiátricas na ... e ..., que se juntam sob os Docs. 6 a 35, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. 7. Bem como, em consequência teve despesas medicamentosas, como ansiolíticos e outros da mesma natureza, que se juntam sob os Docs. 36 a 41, que se juntam e aqui se dão integralmente reproduzidos. (…) X. Pelo que, atenta a gravidade e extensão dos danos não patrimoniais requer-se que, em caso de condenação, a título de reparação pelos prejuízos sofridos por danos patrimoniais, resultantes da necessidade de consultas médicas psiquiátricas (mensais), no valor de € 247,60 (duzentos e quarenta e sete euros e sessenta cêntimos), e despesas medicamentosas, seja a demandante ressarcida pelo arguido do valor de € 428,11 (quatrocentos e vinte e oito euros e onze cêntimos), num total de € 675,71 (seiscentos e setenta e cinco euros e setenta e um cêntimos), conforme Docs. Comprovativos ora juntos.»
Aqui chegados, as passagens que nos permitimos sublinhar correspondem a matéria de facto sobre a qual o Tribunal de 1ª Instância não tomou especificada posição, à semelhança do que se deixara atrás referido, ou melhor, não a incluiu na matéria de facto provada, não se percebendo porém se a considerou não provada ou a desconsiderou por outra razão, à semelhança do já antes dito. Ora, da alegação constante do articulado, ao invés do que se lê na sentença, pode depreender-se, salvo melhor opinião, a que se reporta o valor global de € 675,71 de danos patrimoniais – consultas psiquiátricas e despesas medicamentosas, nas parcelas indicadas, para cuja exata diferenciação ainda pode concorrer a análise da documentação junta.
2.3.2 Do recurso do Arguido
Defendeu também o Arguido a nulidade da sentença, por força do art. 379º, nº 1, alínea c), por omissão de pronúncia.
Isto porque, argumenta, não se pronunciou o Tribunal de 1ª Instância, como se lhe impunha, sobre a credibilidade da testemunha DD quanto ao furto dos relógios e ouro por parte dos assistentes, para fundamentar a exclusão da ilicitude dos factos imputados ao arguido nos termos do art. 180º, nºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal.
Não nos parece que assista razão ao Arguido, desde logo no enquadramento do eventual vício a que se refere. Vejamos.
O art. 379º, nº 1 alínea c) do Código de Processo Penal prevê com efeito a nulidade da sentença «quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)».
Todavia, a circunstância de o Tribunal não fazer de certo depoimento a leitura que dele faz o Arguido não se traduz numa «omissão de pronúncia»; o tribunal pronunciou-se sobre o depoimento e dele retirou as ilações que entendeu retirar.
A «questão» que o Arguido verdadeiramente queria ver tratada na sentença, neste ponto, é a eventual exclusão da ilicitude do seu comportamento, questão essa que na verdade foi tratada na parte do enquadramento jurídico-penal. Entenderá o Arguido que para o efeito havia matéria de facto a extrair do depoimento da testemunha em apreço; mas isso leva-nos a outros potenciais vícios, que não o da «omissão de pronúncia».
Se o Tribunal devia ter retirado deste ou daquele depoimento uma convicção diferente da que veio a expressar ou, dito de outro modo, se do depoimento da mencionada testemunha DD devia ou não ter o Tribunal considerado como demonstrado determinado(s) facto(s) que, estando abrangido(s) pelo objeto da causa, não foi exarado na matéria provada ou não provada, então de duas uma:
- ou o vício radicava (e não radica) no próprio texto da sentença, em si mesmo ou conjugado com as regras da experiência comum, circunstância em que poderia fazer sentido convocar o regime, isso sim, do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, nomeadamente enquadrando a situação nas suas alíneas a) ou c) («insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» e «erro notório na apreciação da prova»);
- ou o vício era posto a descoberto pelo Arguido (e não foi) no contexto da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do preceituado pelo art. 412º, nºs 3, alíneas a) e b) e 4 do Código de Processo Penal, caso em que cabia ao Arguido ter sustentado (e não sustentou) que facto(s) não exarado(s) como provado(s) devia ainda o Tribunal de 1ª Instância ter como tal consignado. Ora, o Recorrente não explicita com efeito que «facto» resultante do depoimento em apreço, e com base em que segmentos do mesmo, haveria a considerar como provado, nem nós o divisamos.
Uma última hipótese de enquadramento normativo do «vício» invocado pelo Arguido seria a falta de exame crítico da prova, a enquadrar no art. 379º, nº 1, alínea a), por referência ao art. 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Mas nem isso também está presente. O exame crítico das provas a que o Tribunal tem de proceder e a sua exteriorização no texto da sentença, é o que nos habilita a compreender o raciocínio seguido para dar estes ou aqueles factos como provados ou não provados; e desse ponto de vista não vemos que a sentença, no que concerne à alegação do Arguido, padeça de qualquer vulnerabilidade suscetível de integrar o apontado vício, dado que o Tribunal expõe suficientemente, à luz do objeto da causa, os pontos de apoio da sua motivação, nesta matéria, ainda que não convença o Arguido.
Improcede o recurso do Arguido, neste ponto.
***
§ único
Em síntese, não procede a nulidade da sentença invocada pelo Arguido, mas procede a invocada pelos Assistentes/Demandantes, nos termos que se deixaram explicitados.
Face ao resultado a que se chegou, fica prejudica a apreciação das demais questões que vinham suscitadas.
3 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se no seguinte:
A. Abstemo-nos de nos pronunciar, porque fora do objeto do recurso e dos poderes de decisão desta Relação, sobre os seguintes pontos do recurso interposto pelos Assistentes/Demandantes:
A.1) A admissibilidade da inquirição, durante o julgamento, da testemunha DD;
A.2) A alegada prática, pelo Arguido, dos crimes de ameaça que os Assistentes/Demandantes lhe imputam;
B. Julga-se improcedente o recurso do Arguido quanto à invocação de nulidade da sentença em razão da alegada falta de apreciação da credibilidade da testemunha DD;
C. Julga-se parcialmente procedente o recurso dos Assistentes, considerando-se nula a sentença, por omissão de pronúncia:
C.1 Quanto à matéria referida acima nos pontos 2.3.1.1, 2.3.1.2 e 2.3.1.3, devendo proceder-se à elaboração em 1ª Instância de nova sentença que supra o vício identificado;
C.2 Quanto à apreciação do problema mencionado em 2.3.1.2, relativo à estabilização da instância civil correspondente ao pedido formulado pelo Demandante CC, devendo aqui proceder-se a uma tal apreciação, com prévio contraditório aos sujeitos processuais e eventual feitura de outras diligências que se tiverem nesse domínio como necessárias;
D. Considera-se prejudicada a apreciação das demais questões.
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Não são devidas custas: em relação ao recurso dos Assistentes, por força do art. 515º, nº 1, alínea b); e em relação ao do Arguido, por força dos arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do Código de Processo Penal, em todos os casos a contrario sensu.
Registe e notifique.
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Lisboa, 3 de abril de 2025
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários; assinaturas eletrónicas)
Jorge Rosas de Castro
Paula Cristina Bizarro
Rosa Maria Cardoso Saraiva