I - Deve ser admitido um recurso de revista, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, nos casos em que o acórdão recorrido está em contradição, quanto à mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação, com outro acórdão de um dos Tribunais da Relação, ainda que a decisão recorrida tenha natureza interlocutória com incidência exclusiva na relação processual.
II – Esta tese, designada por tese ampla, admite a aplicação conjunta do artigo 629º, nº 2, d), e do artigo 671º, nº 2, b), ambos do CPC, permitindo realizar a função principal do Supremo Tribunal de dirimir conflitos jurisprudenciais.
Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de justiça
I – Relatório
1. No âmbito da presente ação declarativa de condenação, em que são autores, AA e Outros, e ré, a Associação Desportiva do Carregado, vieram aqueles autores interpor o presente recurso de revista do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-03-2022, que decidiu julgar improcedente o recurso de apelação interposto na parte em que determina que as guias emitidas o foram em conformidade com a conta efetuada nos autos e normas relativas às custas processuais.
Em sede de primeira instância, os autores reclamaram da emissão das guias de pagamento da taxa de justiça remanescente, sobre a qual incidiu o seguinte despacho (de 20-09-2021):
“As guias para pagamento da conta de custas n.º ...21 foram emitidas correctamente (como bem refere o ministério Público, foram efectuadas de acordo com o despacho proferido em 24.05.2018), e das mesmas resulta o grau de responsabilidade fixado a título de custas pela sentença proferida em 05.06.2014: ou seja, de 30% para os autores e 70% para a ré.
Por outro lado, e como bem argumenta a ré, o âmbito de aplicação do citado artigo 14.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, limita-se às situações em que exista vencedor da acção em percentagem de 100 %.
Acresce que os autores não apresentaram qualquer nota discriminativa e justificativa de conta de custas de parte, pelo que não existem “custas de parte suplementares”. Razão pela qual se indefere o requerido pelos autores.”.
2. Irresignados com o entendimento sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação, que confirmou o entendimento do tribunal de 1.ª instância, vieram, assim, os autores interpor o presente recurso de revista, ao abrigo do disposto nas alíneas a), b) e c) do n.º1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), invocando a oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-10-2019, proferido no processo n.º 994/12.3TBCSR.L2-1.
3. A questão decidenda prende-se com a invocada contradição de julgados e consiste em determinar se o artigo 14.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais (doravante, RCP), deve aplicar-se aos casos em que haja uma condenação parcial do responsável pelo impulso processual e, nesse caso, se as partes só estão obrigadas ao pagamento de uma parte proporcional do remanescente da taxa de justiça.
4. Colocando-se a questão da inadmissibilidade do recurso, foi dado cumprimento ao disposto no n.º1 do artigo 655.º do CPC (ex vi artigo 679.º do CPC).
5. Os Recorrentes vieram responder, não colocando em causa a inadmissibilidade do recurso de revista excecional, referindo que “os Recorrentes, na última página das Alegações de 04.05.2022, peticionaram que se a revista não foi admitida nos termos do regime da revista excecional, deverá ser admitida nos termos do art. 629º do CPC, em concreto do nº2, d), desse preceito (oposição de Acórdãos). Valem neste contexto as Conclusões 1ª, 2ª e 4ª das Alegações dos Recorrentes de 04.05.2022.
Assim, nos termos do art. 672º, nº5, do CPC, não se verificando in casu os pressupostos da revista excecional, deve a Revista interposta ser admitida nos termos gerais daquele art. 629º, nº2, d), do CPC, o que se requer.”
6. No presente processo, o Relator proferiu um despacho de não admissibilidade do recurso.
7. Os recorrentes, inconformados, apresentaram reclamação para a Conferência, que aqui se considera integralmente transcrita e na qual pugnam pela admissibilidade de recurso de revista, por contradição de acórdãos, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), e do artigo 671.º, n.º 2, al. b), ambos do CPC, formulando a seguinte síntese conclusiva:
«Salvo melhor opinião e com o devido respeito, a Decisão Singular reclamada não respeita o art. 629º, nº 2, d), nem o 671º, nº 2, a), ambos do CPC, pois estes preceitos (e a ordem jurídica) também pretendem evitar, por razões de certeza e segurança jurídicas, que no sistema jurídico convivam acórdãos dos Tribunais de Relação contraditórios relativamente às mesmas questões jurídicas: a unidade do sistema jurídico é necessariamente uma unidade harmoniosa do Direito, onde os cidadãos conhecem a jurisprudência dos Tribunais superiores e podem adequar a sua conduta a essa jurisprudência, nas relações jurídico-materiais ou nas relações jurídico-processuais.
E a tutela deste direito fundamental à certeza e segurança jurídicas é precisamente uma das funções essenciais deste Supremo Tribunal de Justiça: a certeza e segurança jurídicas pela uniformização do Direito, superando as contradições jurisprudenciais».
8. O Relator originário proferiu despacho de suspensão de instância, nos termos do disposto no artigo 272.º do CPC, enquanto se aguardava pela decisão de questão semelhante num recurso para uniformização de jurisprudência interposto no processo n.º 735/14.0TBPDL-Q.L1.S1-C. Neste processo, por Acórdão do Pleno das Secções Cíveis, o recurso não foi admitido. Mostrando-se pendente novo recurso para Uniformização de Jurisprudência (processo n.º575/05.8TBCSC-W.L1-A.S1-A), a instância voltou a ser suspensa até à prolação do Acórdão para Uniformização de Jurisprudência (processo n.º575/05.8TBCSC-W.L1-A.S1-A).
9. Após jubilação do Relator originário, o processo foi distribuído à agora Relatora que, constatando já ter sido proferido Acórdão do Pleno das Secções Cíveis, que não admitiu o recurso para uniformização de jurisprudência, no processo n.º575/05.8TBCSC-W.L1-A.S1-A, declarou a cessação da suspensão de instância.
Cumpre, agora, decidir a questão prévia da admissibilidade do recurso.
II - Fundamentação
10. A questão que se coloca é saber se é admissível recurso de revista de decisões interlocutórias fundado em oposição de acórdãos da Relação (interpretação do artigo 629.º, n.º2, alínea d) e a sua articulação com o artigo 671.º, n.º2, alínea a), ambos do CPC).
Esta questão tem gerado controvérsia jurisprudencial, dando origem ao que tem sido designado por uma tese ampla e por uma tese restrita.
O artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, prevê que «Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (corpo do n.º 2 do citado preceito) do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme (alínea d) do nº2 do artigo 629º do CPC).
O artigo 671.º, n.º 2, sob a epígrafe, «Decisões que comportam revista», dispõe o seguinte:
«2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;
b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme».
A respeito da aplicação alínea d) do n.º2 do artigo 629.º do CPC à limitação ao recurso prevista no n.º 2 do art.º 671.º do CPC, a doutrina e a jurisprudência estão divididas:
a) Para uns (tese restritiva), a alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC não abarca a revista de acórdãos da Relação que recaiam sobre decisões que incidam exclusivamente sobre matéria adjetiva, na medida em que o respetivo regime não proclama uma geral irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça. Pelo contrário, segundo os defensores desta interpretação da lei, a alínea b) do n.º 2 do art.º 671.º indica as situações em que, além das já decorrentes das alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 629.º, será admitido o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça: os casos de contraditoriedade do acórdão da Relação com acórdão proferido pelo upremo Tribunal de Justiça.
Para os defensores desta tese, a alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º apenas tem em vista os acórdãos da Relação previstos no n.º 1 do artigo 671.º, isto é, acórdãos que conheçam do mérito da causa ou que ponham termo ao processo, “absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.
A tese restritiva, na perspetiva dos seus defensores, estaria em harmonia com o intuito legislativo de racionalização do acesso ao Supremo (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, post no Blog do IPPC, 02/10/2019, Jurisprudência 2019 (88), em anotação ao acórdão do STJ, de 12.9.2019, processo n.º 587/17.9T8CHV-A.G1-A.S1, e José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª edição, Almedina, 2022, pp. 34 a 36.
Na jurisprudência, cfr., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, datados de 10.12.2019 (processo 704/18.1T8AGH-A.L1.S2); de 12.11.2020 (processo 6333/15.4T8OER-A.L1.S1); de 07.7.2021 (processo 3448/10.9TBVCD-E.P1.S1); de 11.10.2022 (processo 3450/20.2T8STS-A.P1.S1); de 17.01.2023 (processo 8988/19.1T8VNG-D.P1.S1)
b) Já segundo a tese ampla, como se afirma no Acórdão de 25-02-2025 (proc. n.º 32041/16.0T8LSB-C.L1.S1) tanto a letra da lei como a teleologia da norma determinariam a aplicabilidade da alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º do CPC aos acórdãos da Relação referidos no n.º 2 do artigo 671.º (aqueles que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual): este último preceito impede o acesso ao Supremo de uma categoria de decisões da Relação, independentemente da alçada, inserindo-se, pois, na letra da referida alínea d); a inaplicabilidade da recorribilidade excecionalíssima prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º às decisões interlocutórias impediria que o Supremo exercesse a sua função uniformizadora numa vasta área de litígios cuja relevância não pode ser menorizada, nomeadamente tendo em consideração que se manifestam numa via essencial da litigância cível, a do processo comum.
A decisão reclamada adotou a tese restrita em relação ao sentido do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, com o seguinte fundamento:
«Por outro lado, o preceito em apreço tem obtido o entendimento do STJ que a previsão se circunscreve aos casos em que se pretenda recorrer de acórdão proferido em ação com valor superior à alçada da Relação mas relativamente à qual esteja legalmente prevista a exclusão do recurso de revista por outro motivo (v.g. procedimentos cautelares, cf. artigo 370.º do Código de Processo Civil; expropriações, cf. artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações), Código de Notariado (artigo 180.º, n.º2), Código de Registo Civil (artigos 240.º, n.º3, 251.º, n.º2, 291.º, n.º2), Código de Registo Comercial (artigos 93.º-A, n.º3, 106.º, n.º4.º), Código da Propriedade Industrial (artigo 46.º, n.º3) – ver, entre outros, Acórdãos de 24/11/2016, processo n.º 1655/13, de 23/06/2016, processo n.º 26-03-2015 e de 17/11/2015, processo n.º3709/12, todos in www.dgsi.pt., isto é, este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por expressa exclusão legal, o que manifestamente não é o caso dos presentes autos».
Esta orientação não é unânime, havendo Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, que defendem uma orientação oposta, como é o caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-01-2020, processo n.º 1303.17.0T8AGD.B.P1.S1 (disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/), entre outros (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-03-2018, proc. nº 3580/14.0T8VIS-A.C1.S1, de 08-11-2018, proc. n.º 1772/14, de 12-09-2019, proc. nº 587/17.9T8CHV-A.G1-A.S1, de 08-09-2021, proc. n.º 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1, de 18-01-2022, proc. n.º 9317/18.7T8PRT.P1.S1 e de 25-02-2025, 32041/16.0T8LSB-C.L1.S1), onde se argumentou do seguinte modo:
«Julgamos, porém, que a relevância jurídica da questão em causa impõe uma análise mais profunda da razão teleológica que subjaz à remissão feita pela al. a) do nº 2 do citado art. 671º, para o art. 629º, nº 2, al. d) (casos em que o recurso é sempre admissível), por forma a aquilatar se esta norma é, ou não, cumulável com o estabelecido na al. b) do nº 2 do referido art. 671º.
E a esse respeito diremos constituir entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência que ao repristinar, com a norma constante do art. 629º, nº 2, al. d) do CPC, «a possibilidade de interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça em casos em que esse acesso seja vedado por razões estranhas à alçada da Relação, ou seja, em que o único impedimento a tal recurso resida em motivos de ordem legal que sejam estranhos à interseção entre o valor do processo e o valor da alçada da Relação», quis o legislador ampliar «as possibilidades de serem dirimidas em última instância contradições jurisprudenciais que, de outro modo, poderiam persistir, considerando o facto de, em regra, emergirem de processos em que, apesar de terem um valor processual superior à alçada da Relação, não admitem recurso de revista (…) ou em que o recuso de revista está condicionado por outros factores (…)», por forma a evitar a propagação de decisões contraditórias, como garantia dos princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei consagrado no art. 13º da CRP.
Mas, se esta foi a vontade do legislador e se a al. a) do citado art. 671.º, n.º 2, remete para a norma do citado art. 629º, nº 2, al. d), cujo segmento faz referência expressa à contradição de julgados entre acórdãos da Relação, sem afastar esta possibilidade, a conclusão a tirar, de acordo com o estipulado no art. 9º, nºs 1 e 3 do C. Civil, é a de que o legislador, intencionalmente, entendeu por bem admitir o recurso de revista dos acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam sobre questão de natureza processual quando o acórdão recorrido da Relação «esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação», não podendo, agora, o intérprete restringir o campo de aplicação do citado art. 629º, nº 2, al. d), ex vi art. 671º, nº 2, al. a). destaque nosso
Aliás, só assim se compreende que o próprio legislador venha logo a seguir, na al. b) do nº 2 do art. 671º do CPC, alargar o recurso de revista aos casos em que os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam sobre questão de natureza processual «estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça».
Esta tese tem sido defendida pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes (in Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 65-66), com argumentos que consideramos decisivos e que se relacionam com a asserção de que a tese ampla é aquela que permite realizar aquilo que é a função, por excelência, do Supremo Tribunal de Justiça, a uniformização de jurisprudência:
«A solução mais ampla, como se disse, admite a aplicação, em simultâneo, de ambas as normas, satisfazendo o objetivo de possibilitar a interposição de recurso de revista, quer quando o acórdão recorrido esteja em contradição com acórdão do Supremo, quer quando essa contradição se verifique relativamente a acórdão da Relação, desde que, neste caso, o recurso de revista esteja impedido por motivos não relacionados com o valor da alçada ou com o valor da sucumbência.
Apesar dos argumentos aduzidos em prol de uma vida mais estreita de acesso ao recurso de revista, cremos ser mais ajustada a tese inversa, ou seja, a que admite a aplicação conjunta do art. 629º, nº 2, d), e do art. 671º, nº 2, b).
Para o efeito, destaca-se, desde logo, o elemento literal extraído do n.º 2 do art. 671.º, norma que, referindo-se explicitamente ao recurso de revista de decisões interlocutórias de cariz formal, assegura duas vias alternativas: a que decorre da al. b) (admissão de recurso de revista do acórdão da Relação que esteja em contradição com acórdão do Supremo, verificadas as demais condições aí previstas) e a que resulta da al. a) que, remetendo genericamente para o n.º 2 do art. 629.º, não exclui a norma da al. d).
A par desse elemento formal, constata-se anda, como argumento de ordem racional ou teleológica, o facto de que apenas desse modo se garante a efetiva possibilidade de, por intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, serem sanadas contradições jurisprudenciais estabelecidas ao nível das Relações em torno de questões de direito adjetivo que, por regra, não são suscitadas nos demais recursos de revista. – destaque nosso. Nesta medida, o facto de o art. 674.º, n.º 1, al. b), prever, como fundamento da revista, a violação ou errada aplicação da lei de processo seria meramente platónico se fossem excluídas do campo de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões de direito adjetivo que, sendo objeto de decisões interlocutórias da 1.ª instância, recebessem nas Relações respostas contraditórias. Em tais situações, não sendo possível estabelecer o confronto relativamente a algum acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por se tratar de questões que não costumam surgir no âmbito de recursos de revista, ao abrigo do art. 671º, nº 1 (ou pela via excecional do art. 672º, nº 1), correr-se-ia o risco de persistirem na jurisprudência emanada das Relações decisões de sentido contraditório ou de se consolidarem entendimentos errados, sem possibilidade de serem corrigidos pelo órgão jurisdicional cuja função essencial é a de apreciar questões de direito, quer de direito material, quer de direito adjetivo. destaque nosso
Os exemplos extraídos dos arestos anteriormente referidos [que admitem a interpretação restrita] evidenciam os riscos de uma tal solução, já que uma interpretação restritiva inviabilizaria, por exemplo, a possibilidade de o Supremo sindicar o modo como a Relação apreciou questões relacionadas com nulidades processuais, tempestividade ou extemporaneidade da contestação, contagem do prazo regressivo para junção de prova documental, apresentação do rol de testemunhas, realização de perícia ou de segunda perícia, inspeção judicial, alteração do requerimento probatório, prosseguimento de ação executivo suspensa, liquidação da sanção pecuniária compulsória na ação executiva, etc. O facto de se tratar de matérias de direito adjetivo não pode servir para limitar, por via interpretativa, o direito ao recurso, na medida em que frequentemente é da resolução dessas questões que depende a correta resolução do litígio».
11. Aderimos, pois, pelos motivos doutrinais e jurisprudenciais expostos, à tese ampla e, em consequência, nenhum obstáculo se evidencia para a admissibilidade do presente recurso, ao abrigo da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, desde que se verifique uma contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.
12. O apuramento da contradição jurisprudencial obedecerá a critérios semelhantes aos utilizados para efeitos de admissibilidade de revista excecional (artigo 672.º, n.º 2, al. c), do CPC) ou do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (artigo 688.º, n.º 1, do CPC), devendo os seus pressupostos ser apreciados com rigor (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 73-74).
Para que estejamos perante uma contradição de acórdãos suscetível de justificar uma admissibilidade da revista, em relação a decisões interlocutórias, é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
i) identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, “não bastando que neles se tenha abordado o mesmo instituto jurídico; tal pressupõe que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes, isto é, que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória”(cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, ob. cit., p. 74).
(ii) que a contradição seja frontal e não meramente pressuposta ou implícita, apenas relevando a oposição concernente a uma questão de direito que apresente natureza essencial para o resultado alcançado em ambos os acórdãos e não uma divergência que tão somente respeite a elementos sem caráter determinante ou se refira a meros obiter dicta;
(iii) que a divergência se verifique num quadro normativo substancialmente idêntico;
(iv) que o acórdão recorrido não tenha acatado solução adotada em sede de uniformização de jurisprudência.
13. Analisando a esta luz a questão da contradição de julgados invocada pelos recorrentes – quanto à questão essencial de saber se o artigo 14.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais (RCP) se deve aplicar também aos casos em que haja uma condenação parcial do responsável pelo impulso processual e, caso afirmativo, se as partes só estão obrigadas ao pagamento de uma parte proporcional do remanescente da taxa de justiça — constata-se que o acórdão recorrido efetivamente interpretou o n.º 9 do artigo 14.º do RCP no sentido de que esta disposição só se aplica desde que o responsável pelo impulso processual não seja condenado a final.
Constatando o acórdão recorrido que os autores foram condenados nas custas na proporção de 30% e que essa decisão não foi alterada nem pela Relação, nem pelo Supremo, o acórdão recorrido concluiu que não devia aplicar-se o n.º 9 do artigo 14.º do Regulamento da Custas Processuais.
14. Diferentemente e partindo de um quadro factual essencialmente idêntico, no que para a questão identificada releva, o acórdão fundamento invocado pelos recorrentes interpretou o n.º 9 do artigo 14.º do RCP no sentido de que o seu âmbito de aplicação abrange os casos em que o responsável pelo impulso processual é condenado a final, desde que o seja só parcialmente (no caso, o recorrente em causa fora condenado na proporção de 25%).
Aí se escreve: “atento o disposto no citado art. 14º, nº9, o autor ou o réu, ainda que obtenham total ganho de causa – ou que o obtenham apenas parcialmente –, nas causas de valor superior a 275.000,00€, como aqui acontece, têm que suportar o valor do remanescente da taxa de justiça, o qual, depois de pago, entra em regra de custas de parte; por via deste mecanismo o Estado está a cobrar custas – taxa de justiça – a quem, verdadeiramente, nada deve – ou deve menos –, obrigando posteriormente a parte vencedora a pedir à parte contrária o reembolso do que pagou, sujeitando-se aos inerentes riscos de solvabilidade. Ora, esse risco deve correr por conta do Estado e não da parte que não deu causa à ação.”.
15. Nesta medida, consideramos que, no caso, existe uma contradição relevante entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento para o efeito do artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, o que faz com que a revista seja admissível.
16. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
I - Deve ser admitido um recurso de revista, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, nos casos em que o acórdão recorrido está em contradição, quanto à mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação, com outro acórdão de um dos Tribunais da Relação, ainda que a decisão recorrida tenha natureza interlocutória com incidência exclusiva na relação processual.
II – Esta tese, designada por tese ampla, admite a aplicação conjunta do artigo 629º, nº 2, d), e do artigo 671º, nº 2, b), ambos do CPC, permitindo realizar a função principal do Supremo Tribunal de dirimir conflitos jurisprudenciais.
III – Decisão
Pelo exposto, revoga-se o despacho reclamado e admite-se o recurso de revista.
Custas pelo recorrido.
Supremo Tribunal de Justiça, 25 de março de 2025
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
António Magalhães (2.º Adjunto)
Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta) – vencida
Declaração de voto de vencida
Com todo o respeito, voto vencida por acolher a denominada tese restritiva, segundo a qual o art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, não abrange o recurso de revista de acórdãos interlocutórios do Tribunal da Relação que incidam exclusivamente sobre matéria adjetiva. A al. b) do n.º 2 do art.º 671.º do CPC indica as situações em que, para além daquelas estabelecidas no art. 629.º, n.º 2, als. a) a c), é admitido o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. Trata-se, justamente, dos casos de contradição entre o acórdão do Tribunal da Relação e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. O disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, não se afigura, pois, cumulável com o regime consagrado no art. 671.º, n.º 2, al. b).
Sendo assim, afastada a aplicação do art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, ao caso em apreço, resta aplicar o disposto no art. 672.º, n.º 2, e concluir que a revista não é admissível.
Maria João Vaz Tomé