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REGISTO CRIMINAL
NÃO TRANSCRIÇÃO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
1. Da publicidade dos antecedentes penais dos indivíduos decorrem efeitos estigmatizantes e dessocializadores, pelo que a tendência que, de um modo geral, se observa no direito comparado aponta para que se restrinja ao mínimo indispensável o conteúdo de informação facultado. 2. Nesta senda, a lei da identificação criminal (Decreto-Lei n.º 37/2015, de 05/05) consagra procedimentos tendentes a evitar esta estigmatização, como a reabilitação, legal ou definitiva, ou, judicial ou provisória, tal como resulta dos seus artigos 11.º e 12.º. Entrecorta-se aqui um opção político-legislativa de fundo do Estado de Direito, qual seja a da reabilitação jurídico-penal, que é a causa de cancelamento do registo criminal – a reabilitação constitui a atual configuração da restitutio in integrum do direito romano, mecanismo através do qual o ex-condenado é recolocado na situação anterior à sentença. 3. Ainda neste caminho ressocializador, prevê-se a possibilidade de, em casos específicos, o tribunal determinar que a sentença condenatória proferida não seja transcrita para o registo criminal, quando acedido para os fins a que aludem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do referido diploma legal. 4. O disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 113/2009, de 17/09, determina a exclusão da possibilidade de não transcrição para os certificados de registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei da Identificação Criminal), das condenações pelos crimes previstos nos artigos 152.º. 152.º-A, e no Capítulo V do título I do livro II do Código Penal, ainda que a vítima não seja uma criança/menor, caso a requerida não transcrição se destine aos certificados exigidos para o exercício de profissão, função ou emprego que envolva contacto regular com menores, sendo tal interpretação consentânea com os princípios da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade que enformam também as regras relativas ao registo criminal.
Texto Integral
I RELATÓRIO
1
No processo n.º 53/21...., do Juízo Local Criminal de Barcelos – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido despacho que deferiu o requerimento apresentado pelo arguido de não transcrição da decisão condenatória no registo criminal.
2
Não se conformando com a decisão, o Ministério Público apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:
1ª A M.issa Juíza “a quo”, acolhendo a pretensão formulada pelo condenado AA, em requerimento datado de 11/09/2024, ora constante de fls. 365 a 367 verso, e considerando reunidos os pressupostos formais e material legalmente previstos, ordenou a não transcrição da sentença condenatória que o visou no seu certificado de registo criminal; 2ª Em dissonância, entende o Ministério Público, que se não encontram preenchidos todos os pressupostos previstos no artigo 13.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, que permitem determinar a não transcrição da condenação para o registo criminal; 3ª Aceita-se, neste aspeto em consonância com o despacho recorrido, que se verificam alguns dos requisitos a que se reporta o despacho recorrido, e, nomeadamente, o estar-se em presença de condenação de pessoa singular; de a condenação ser em pena não privativa da liberdade e de não ter o arguido sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza; 4ª Contudo, ainda que a questão possa não ter eminente relevo prático, não pode o Ministério Público aceitar que se considere que a condenação, reportando-se a crime previsto no artigo 152º do Código Penal, não integrasse a exceção prevenida na primeira parte do artigo 13º, n.º 1, da Lei 37/2015, de 5 de maio, por não ser a vítima criança menor, caso a requerida não transcrição se destinasse ao exercício de profissão, função ou emprego que envolvesse contacto regular com menores; 5º Na circunstância, mesmo que verificadas os demais requisitos permissivos, seria mister, para viabilizar a não transcrição, que a condenação se não reportasse aos crimes previstos nos artigos 152º e 152º-A, e no capítulo V do título I do livro II, do Código Penal; 6ª Todavia, na lógica do douto despacho sob recurso, o facto de o crime pelo qual o arguido foi condenado ser o de violência doméstica, previsto e punido no predito artigo 152º, seria irrelevante - e, por isso, não obstativo -, dado o facto de a vítima não ser menor de idade; 7ª Ora a asserção em que assenta o despacho não indica qual seja o seu racional, repousando, se bem se aquilata, na singela afirmação de que a exigência de que a vítima de tais crimes seja menor, resulta diretamente do disposto no artigo 1º da Lei 113/2009, de 17 de setembro; 8ª Sucede que o normativo apenas define o âmbito da própria lei, estatuindo que se destina a estabelecer medidas de proteção de menores contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças, sendo que uma dessas medidas diz justamente respeito aos certificados do registo criminal destinados a recrutamento e, posteriormente, à aferição anual da idoneidade para o exercício de profissões e atividades cujo exercício envolva contacto regular com menores; 9ª Por isso que apenas é lícito concluir que aquilo que o legislador quis vedar foi a possibilidade da não transcrição das condenações por crimes de violência doméstica, maus-tratos e contra a liberdade e autodeterminação sexual, quando o certificado requerido se destinasse a ser utilizado por candidato a emprego cujas funções envolvessem o contacto regular com menores e não exclusivamente os casos em que tais condenações se referissem a vítimas menores; 10º E nenhuma das normas protetivas editadas pela lei inculca que a exclusão da possibilidade da decisão de não transcrição se refira exclusivamente aos casos em que as vítimas daqueles crimes sejam crianças ou jovens menores; 11º Assim, e contrariamente ao decidido, afigura-se que o regime especial e excecional em apreço não tem apenas aplicação quando as vítimas dos crimes de violência doméstica, maus-tratos e contra a liberdade e autodeterminação sexual sejam menores, mas sim, e ao invés, quando os certificados de registo criminal de pessoas condenadas por tais ilícitos, tenham por finalidade instruir processos de recrutamento de trabalhadores para funções que envolvam o contacto com crianças; 12ª A interpretação acolhida no douto despacho recorrido é pois desconforme com o cânone acolhido no artigo 9º, n.º 2, do Código Civil, posto que se socorre de um pensamento legislativo que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; 13ª Acresce que decorrendo ainda o cumprimento da pena acessória de proibição de, por qualquer forma, contactar e/ou se aproximar da ofendida BB - que cursará ainda pelo menos por mais um ano e meio - que foi aplicada ao condenado, não poderia ser-lhe deferida a requerida não transcrição; 14ª É que, comportando a decretada proibição uma evidente inibição comportamental, a não transcrição é proscrita pelo artigo 13º, n.º 2, da Lei 37/2015 enquanto perdurar a medida; 15ª Por outro lado, o conjunto factual tido como provado na decisão condenatória, não viabiliza, ao contrário do decidido, a formulação do juízo de prognose negativa previsto no artigo 13º n.º 1, em apreço, que se constitui como um seu requisito material de aplicação; 16ª Com efeito, por sentença proferida a 22 de novembro de 2023, transitada em julgado, decidiu-se condenar o ora requerente, como autor de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, e suspender execução de tal pena, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, com a condição de o arguido cumprir a pena acessória aplicada e frequentar programa destinado aos agentes de crimes de violência doméstica; 17ª Mais se decidiu condená-lo na pena acessória de proibição de, por qualquer forma, contactar e/ou se aproximar da ofendida BB, incluindo a proibição de se deslocar ou aproximar à residência desta, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses; 18ª Ora, tal requisito material traduz-se em não decorrer das circunstâncias do crime o perigo de prática de novos ilícitos penais; 19ª No caso, verifica-se que o requerente foi condenado em pena não privativa da liberdade (pena de prisão de 2 anos, suspensa na sua execução por 2 (dois) anos e 6 (seis) meses) e, por outro lado, não apresentava nenhuma condenação averbada no seu certificado de registo criminal; 20ª E daí que nestes aspetos o despacho recorrido não suscite reservas; 21ª Já a apreciação positiva feita pela M.issa. Juíza quanto à verificação do predito requisito material (sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes) não pode, tal como anunciado, ser partilhada; 22ª É que a avaliação das circunstâncias que acompanharam o crime, por si mesmas suscetíveis da indução do perigo da prática de novos crimes, só podem ser - como aliás decorre com nitidez da norma em apreço -, as contemporâneas da prática dos factos - bem como, acrescente-se, em homenagem aos critérios de escolha e determinação concreta da pena, as imediatamente anteriores e posteriores, incluindo as incidências do julgamento; 23ª Todavia, em contraponto, a M.issa Juíza, aderindo embora a acórdão do TRC de Coimbra, datado de 2/2/2022, no qual expressamente se assume que essas circunstâncias são as que acompanham a prática do crime, em vez de nelas centrar a sua atenção, atendeu exclusivamente às condições sociais do arguido tal como existiam na data da sentença, obliterando tudo o resto; 24ª Sucede que a factualidade dada como provada na sentença condenatória, pela sua gravidade e reiteração (que perdurou por cerca de três anos), implica a formulação de um juízo de prognose desfavorável ao condenado quanto à existência de perigo de prática de novos crimes. Ou seja, das circunstâncias que acompanharam o crime não se induz que não haja perigo de prática de novos crimes; 25ª E, tanto assim se ponderou, que se fez acompanhar a execução da suspensão da pena quer da frequência de programa destinado aos agentes de crimes de violência doméstica quer da proibição de, por qualquer forma, contactar e/ou se aproximar da ofendida, sendo aqui de reter que os factos tidos como provados são reveladores de particular gravidade e que as circunstâncias em que foram cometidos - alguns no interior da residência familiar e/ou à vista da filha - evidenciam um comportamento reiterado, obsessivo, resultado de uma personalidade impulsiva e descontrolada, com perfil controlador, aparentemente indiferente ao sofrimento dos outros e aos seus direitos, e, portanto, avessa ao direito; 26ª Por outro lado, o condenado, negou a prática dos factos e não mostrou arrependimento nem evidenciou qualquer consciência critica relativamente ao desvalor das suas ações; 27ª Conclui-se, assim, que o comportamento processual do condenado, apreciado em conjugação com o carácter muito gravoso dos factos praticados e o seu modo e tempo de execução, implicam, necessariamente, a formulação de um juízo de prognose desfavorável, no que respeita ao perigo da prática de novos crimes; 28º Por outro lado, a previsão legal que admite a não transcrição das sentenças para o registo criminal não é - nem pode ser - o regime-regra, nem foi pensado para situações com a gravidade da violência doméstica - crime que têm especiais exigências de prevenção geral e especial -, mas sim, ao invés, para casos excecionais, de reduzida danosidade social; 29ª Em suma, o despacho recorrido, ao considerar preenchido o pressuposto material que permite a não transcrição da sentença do condenado para o registo criminal, deferindo a pretensão do requerente AA, violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015 de 5 de maio. Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências certamente suprirão, revogando o despacho recorrido e determinando a sua substituição por outro que indefira a pretensão de não transcrição da sentença formulada pelo condenado AA, farão, como sempre, Justiça.
3
Não foi apresentada resposta.
4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi dito.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
II FUNDAMENTAÇÃO
1 Objeto do recurso:
A
A determinação jurisdicional, prevista no artigo 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei da Identificação Criminal), de não transcrição de uma decisão penal nos certificados de registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º, do mesmo diploma legal, encontra-se legalmente vedada quando os crimes em causa sejam os dos artigos 152.º. 152.º-A, e no Capítulo V do título I do livro II do Código Penal, ainda que a vítima não seja uma criança/menor, caso a requerida não transcrição se destine aos certificados exigidos para o exercício de profissão, função ou emprego que envolva contacto regular com menores?
B
Em caso de resposta negativa à anterior questão, encontram-se preenchidos no caso presente todos os requisitos para que o requerimento de não transcrição da decisão condenatória nos certificados de registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei da Identificação Criminal), seja deferido?
2 Decisão recorrida:
Requereu o arguido, nos termos e pelos fundamentos que constam do seu requerimento, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a não transcrição da sentença no registo criminal. A Digna Magistrada do Ministério Público deduziu oposição ao requerido. O regime da não transcrição está contido no artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, o qual sob a epígrafe “Decisões de não transcrição” nos diz que «1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.os 5 e 6 do artigo 10.º».
Assim, a aplicação do instituto da não transcrição de condenação no certificado de registo criminal, como prevista no citado artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, exige que se encontrem preenchidos cumulativamente os seguintes requisitos:
1. tratar-se de condenação de pessoa singular; 2. essa condenação não se reportar a crimes previstos nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, em que as vítimas sejam crianças menores de idade; 3. a condenação ser em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade; 4. o arguido não ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza; e 5. das circunstâncias que acompanharam o crime presente não se puder induzir perigo de prática de novos crimes. No caso dos autos o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, com a condição de o arguido cumprir a pena acessória aplicada e frequentar programa destinado aos agentes de crimes de violência doméstica. Ora, quanto ao primeiro dos requisitos é inquestionável que se encontra preenchido. No que respeita ao segundo requisito, cumpre assinalar que a restrição prevista no artigo 2.º, n.º 4, al. a), da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, como decorre directamente do artigo 1.º desse diploma, conjugada com os artigos 152.°, 152.°-A e 163.° a 177.°, todos do Código Penal, só se aplica quando as vítimas sejam menores. Veja-se neste sentido o decidido no Ac. do TRL, de 12/09/2019, proferido no âmbito do processo n.º 171/17.7PBMTA-A.L1-9, «A restrição prevista no art.° 2°/4-a) da L 113/2009, de 17/09, não se aplica às condenações pelos crimes previstos nos art.°s 152.°, 152.°-A ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, quando as vítimas não sejam menores, como decorre directamente do art.° 1° da Lei 113/2009, de 17/09, conjugada com os art.°s 152.°, 152.°-A e 163° a 177° do CP, ou seja da possibilidade da não transcrição no registo criminal do arguido;», bem como o decidido no Ac. do TRC, de 02/02/2022, proferido no âmbito do processo n.º 174/19.7T9CTB-A.C1, «A não transcrição de condenação no certificado de registo criminal exige o preenchimento dos requisitos descritos no artigo 13.º, n.º 1, da Lei 37/2015, de 05-05 (i. não ter o arguido sido condenado por crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, em que as vítimas sejam crianças menores de idade; ii. tratar-se de condenação de pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade; iii. o arguido não ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza; iv. das circunstâncias que acompanharam o crime presente não se puder induzir perigo de prática de novos crimes).», ambas as decisões disponíveis em www.dgsi.pt. No caso em apreço diga-se, desde já, que a vítima se reconduz somente à mulher do condenado/requerente, donde, não sendo a vítima menor, temos por verificado o segundo requisito. No que concerne ao terceiro dos requisitos assinalados, como apontou o Ministério Público na promoção que antecede, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão n.º 13/2016, de 7 de Outubro, fixou jurisprudência no sentido de «(…) a condenação em pena de prisão substituída por pena suspensa na sua execução preencher o requisito de condenação em pena não privativa da liberdade nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 57/98, de 10.08;». Portanto, à luz da jurisprudência citada a pena de prisão suspensa na execução, ainda que aplicada em medida superior a um ano, deve ser entendida como pena não privativa da liberdade, para efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 13.º da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, pelo que, igualmente, se encontra verificado o aludido requisito legal. Quanto ao quarto requisito, como se depreende da sentença condenatória e do CRC actualizado junto aos autos o condenado/requerente não tem antecedentes criminais. Por fim, no que respeita ao último dos requisitos apontados, salientamos as explicações vertidas no Ac. do TRC, de 02/02/2022 (indicado supra, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Paulo Guerra): «Recorramos de novo ao aresto do Tribunal da Relação de Évora atrás citado (sublinhado nosso): «É sabido que o fundamento do juízo de prognose, favorável ou desfavorável, quanto à existência, ou não, do perigo de, no futuro, o arguido cometer novos crimes só pode fundar-se em conclusões extraídas das circunstâncias que acompanharam o crime. Aliás, da fórmula negativa usada pelo legislador, “não se puder induzir perigo de prática de novos crimes”, deve concluir-se que a lei apenas exige que não seja efectuado um juízo de prognose desfavorável, de aferição das hipóteses de não verificação do perigo, o que é diferente de outras expressões utilizadas, como, por exemplo, a do nº1 do Artº 50 do C. Penal – “concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”- que denunciam a necessidade de um juízo de prognose favorável. Daí que seja correcto afirmar que este juízo de prognose favorável não se confunde com o que é formulado a propósito da suspensão da execução da pena, não só porque o tribunal não está obrigado a determinar a não transcrição da sentença sempre que esta não seja superior a 1 ano de prisão ou tenha a sua execução suspensa, mas também por tal diferença se compreender por a medida prevista no Artº 13, nº 1, da Lei n.º 37/2015, ser de carácter administrativo e precária, dado o teor do seu n.º 3 onde se diz que ”o cancelamento previsto no n.º1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida decisão”, o que quer dizer que o legislador criou um mecanismo de correcção automática da decisão tomada ao abrigo do nº 1 do Artº 13, em caso de frustração do juízo de prognose efectuado pelo juiz». Ou seja: Só não se decide pela não transcrição da sentença, quando, das circunstâncias que rodearam a prática do ilícito, se não puder concluir que não existe perigo da prática de novos crimes. Dito de outra forma: Tendo em consideração as circunstâncias da prática do crime, a não transcrição da sentença em certos certificados do registo criminal pode ordenar-se desde que não se conclua que há perigo de o agente praticar novos crimes, o que implica não um juízo valorativo positivo, mas antes que não se faça um juízo negativo sobre o comportamento futuro. Tentando densificar melhor o conceito, o Acórdão da Relação de Guimarães datado de 20/1/2014 (Pº 1454/00.0TBBRG-A.G1) doutrinou que tal juízo de prognose deverá, assim, ter por base as circunstâncias que acompanharam o crime, isto é, a culpa do arguido, as exigências de prevenção e a sua atitude perante os factos pelos quais foi condenado.» Aderindo à jurisprudência citada e transcrita, importa apurar se se verifica na factualidade dada como assente nos autos algum elemento que nos permita chegar a um entendimento de que o condenado/requerente irá voltar a prevaricar. Ora, no que respeita à situação social, profissional, económica e familiar do arguido, ficou assente na sentença proferida nos autos que: «x) O arguido tem o 12º ano de escolaridade e, no ano de 2020, certificou-se com um curso de formação pedagógica inicial de formadores. y) A nível profissional, iniciou a sua actividade laboral entre 2004 e 2007, como operário têxtil; depois, explorou um café durante 3 anos; exerceu ainda actividades indiferenciadas, como serviços de jardinagem, durante 1 ano; em 2009 passou a trabalhar na construção civil, passando por várias empresas, a desempenhar funções como armador de ferro, até 2018, altura em que emigrou para a ...; entre o ano de 2019 e 2021, esteve inactivo e sem rendimentos, por causa do acidente que sofreu, sendo que a partir de Janeiro (de 2021) passou a prestar serviços de jardinagem na empresa do irmão, o que se mantém até à actualidade. z) A par da actividade profissional referida, o arguido, assume, no período entre o ano de 2000 e 2008, o comando da EMP01..., delegação de ..., em .... aa) Actualmente o arguido aufere um vencimento mensal de €760,00; nos abastecimentos domésticos (água e luz) despende cerca de € 75,00 mensais, na amortização do crédito à habitação que contraiu gasta mensalmente €482,00 e paga de alimentos à filha a quantia mensal de €106,00. bb) O arguido encontra-se socialmente inserido, convivendo com a namorada, familiares e os amigos do Grupo Desportivo ....» Conclui-se, pois, que o condenado/requerente se encontra bem inserido do ponto de vista social, profissional e familiar. Ora, atendendo àquelas condições pessoais e olhando à concreta conduta criminal do condenado espelhada na sentença, entendemos que destas circunstâncias não se antevê o perigo da prática de novos crimes, pelo que, o requerente pode beneficiar da não transcrição no registo criminal da condenação em apreço, para os fins a que se referem os nºs 5 e 6 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio. Face ao exposto, defere-se ao requerido, determinando-se a não transcrição da sentença no certificado de registo criminal, nos moldes expressos no citado artigo 13.º, da Lei nº 37/2015, de 5 de Maio. Proceda-se à inscrição da não transcrição (artigo 6.º, al g), da Lei n.º 37/2015). Notifique.
3 O direito.
A A determinação jurisdicional, prevista no artigo 13.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei da Identificação Criminal), de não transcrição de uma decisão penal nos certificados de registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º, do mesmo diploma legal, encontra-se legalmente vedada quando os crimes em causa sejam os dos artigos 152.º. 152.º-A, e no Capítulo V do título I do livro II do Código Penal, ainda que a vítima não seja uma criança/menor, caso a requerida não transcrição se destine aos certificados exigidos para o exercício de profissão, função ou emprego que envolva contacto regular com menores?
“Na sua expressão mais simples, o registo criminal integra o repertório das decisões de natureza penal proferidas pelas instâncias judiciárias do Estado.
Ao contemplar a menção de todos os antecedentes criminais dos indivíduos, ele representa, desde logo, um instrumento indispensável para o funcionamento da justiça penal: não só no nível da determinação e medida das sanções (nomeadamente da escolha da pena), mas ainda com vista ao efetivo cumprimento das interdições de direitos porventura decorrentes da sentença; e não apenas no plano substantivo, como no plano do processo, onde o conhecimento dos antecedentes criminais pode relevar para os mais variados efeitos, desde a aplicação de uma medida de coação processual aos de credibilidade de prova testemunhal ou das declarações do arguido e da própria comprovação do cometimento do facto” - cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pag. 641.
O registo criminal assume uma natureza mista ou complexa, associada ao respetivo acesso, podendo constituir meio de prova, quando acedido por magistrados e polícias, com vista à preparação e julgamento de processos criminais; um instrumento/meio de prova, quando acedido para deteção de incapacidades e interdições profissionais resultantes da lei ou decretadas pelo juiz na sentença; instrumento/medida de segurança, em temos análogos a esta, quando acedido para fins particulares e administrativos, com fundamento em razões de prevenção especial “negativa”, ou seja, numa pura ideia de defesa social contra o perigo de futuras repetições criminosas, deduzido da verificação de altas taxas de reincidência, devendo a respetiva disciplina subordinar-se aos princípios da necessidade, subsidiariedade e da proporcionalidade – cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pag. 645/647.
“Atentos os efeitos estigmatizantes e dessocializadores decorrentes da publicidade em torno dos antecedentes penais dos indivíduos, a tendência que, de um modo geral, se observa no direito comparado aponta para que se restrinja ao mínimo indispensável o conteúdo de informação facultado” – cfr. autor citado, obra citado, pag. 648/649.
Nesta senda, a lei da identificação criminal consagra procedimentos tendentes a evitar esta estigmatização, como a reabilitação, legal ou definitiva, ou, judicial ou provisória, tal como resulta dos seus artigos 11.º e 12.º. Entrecorta-se aqui um opção político-legislativa de fundo do Estado de Direito, qual seja a da reabilitação jurídico-penal, que é a causa de cancelamento do registo criminal – a reabilitação constitui a atual configuração da restitutio in integrum do direito romano, mecanismo através do qual o ex-condenado é recolocado na situação anterior à sentença (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pag. 654, e, para maiores desenvolvimentos, Taipa de Carvalho, História do Direito da Clemência, in Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, UCE, pag. 117).
Ainda neste caminho ressocializador, prevê-se a possibilidade de, em casos específicos, o tribunal determinar que a sentença condenatória proferida não seja transcrita para o registo criminal, quando acedido para os fins a que aludem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do diploma legal que aqui analisamos.
As normas da Lei n.º 37/2015, de 05/05, que estão em causa são as seguintes:
Artigo 13.º Decisões de não transcrição 1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.os 5 e 6 do artigo 10.º 2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma. 3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão.
Artigo 10.º Conteúdo dos certificados (…) 5 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou atividade em Portugal, devem conter apenas: a) As decisões de tribunais portugueses que decretem a demissão da função pública, proíbam o exercício de função pública, profissão ou atividade ou interditem esse exercício; b) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas na alínea anterior e não tenham como efeito o cancelamento do registo; c) As decisões com o conteúdo aludido nas alíneas a) e b) proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, comunicadas pelas respetivas autoridades centrais, sem as reservas legalmente admissíveis. 6 - Os certificados do registo criminal requeridos por pessoas singulares para o exercício de qualquer profissão ou atividade para cujo exercício seja legalmente exigida a ausência, total ou parcial, de antecedentes criminais ou a avaliação da idoneidade da pessoa, ou que sejam requeridos para qualquer outra finalidade, contêm todas as decisões de tribunais portugueses vigentes, com exceção das decisões canceladas provisoriamente nos termos do artigo 12.º ou que não devam ser transcritas nos termos do artigo 13.º, bem como a revogação, a anulação ou a extinção da decisão de cancelamento, e ainda as decisões proferidas por tribunais de outro Estado membro ou de Estados terceiros, nas mesmas condições, devendo o requerente especificar a profissão ou atividade a exercer ou a outra finalidade para que o certificado é requerido. (…)
Chamemos ainda a nós o disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, para o que aqui interessa, ou seja, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A, e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal.
Artigo 2.º Medidas de prevenção de contacto profissional com menores 1 - No recrutamento para profissões, empregos, funções ou actividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, a entidade recrutadora está obrigada a pedir ao candidato a apresentação de certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do certificado na aferição da idoneidade do candidato para o exercício das funções. 2 - Após o recrutamento a entidade empregadora ou responsável pelas atividades está obrigada a pedir anualmente a quem exerce a profissão ou as atividades a que se refere o número anterior certificado de registo criminal e a ponderar a informação constante do mesmo na aferição da idoneidade para o exercício das funções. 3 - No requerimento do certificado, o requerente especifica obrigatoriamente o fim a que aquele se destina, indicando a profissão, emprego, função ou actividade a exercer e indicando ainda que o seu exercício envolve contacto regular com menores. 4 - O certificado requerido por particulares para os fins previstos nos n.os 1 e 2 tem a menção de que se destina a situação de exercício de funções que envolvam contacto regular com menores e deve conter, para além da informação prevista nos n.os 5 a 8 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio: a) As condenações por crime previsto nos artigos 152.º, 152.º-A ou no capítulo V do título I do livro II do Código Penal; b) As decisões que apliquem penas acessórias nos termos do n.º 1 do artigo 69.º-B, do artigo 69.º-C e do artigo 152.º do Código Penal, ou medidas de segurança que interditem a atividade; c) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução das indicadas nas alíneas anteriores e não tenham como efeito o cancelamento do registo. 5 - Ao certificado requerido por particulares para o fim previsto no n.º 1 não é aplicável o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto. 6 - No certificado requerido por particulares para o fim previsto no n.º 1 constam também as decisões proferidas por tribunais estrangeiros, equivalentes às previstas nas alíneas do n.º 3. 7 - O disposto no n.º 1 não prejudica a obrigatoriedade do cumprimento de proibições ou inibições decorrentes da aplicação de uma pena acessória ou de uma medida de segurança, cuja violação é punida nos termos do artigo 353.º do Código Penal. (…)
A decisão recorrida entendeu, louvando-se em Jurisprudência que cita, que a não transcrição da condenação apenas está legalmente excluída, para o que aqui interessa, se se reportar a crimes previstos nos artigos 152.º e 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, em que as vítimas sejam crianças menores de idade, ou seja, não há qualquer impedimento legal no tocante ao deferimento da não transcrição quando a vítima dos crimes em causa seja pessoas maiores de idade.
Segundo a decisão recorrida, tal decisão decorre do seguinte:
No que respeita ao segundo requisito, cumpre assinalar que a restrição prevista no artigo 2.º, n.º 4, al. a), da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro, como decorre directamente do artigo 1.º desse diploma, conjugada com os artigos 152.°, 152.°-A e 163.° a 177.°, todos do Código Penal, só se aplica quando as vítimas sejam menores.
O aludido artigo 1.º diz o seguinte:
Artigo 1.º Objecto A presente lei estabelece medidas de protecção de menores em cumprimento do artigo 5.º da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças.
Convoquemos ainda o previsto no artigo 5.º da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso Sexual de Crianças:
Artigo 5.º - Recrutamento, formação e sensibilização das pessoas que trabalham em contacto com crianças 1. Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras para sensibilizar as pessoas que contactam regularmente com crianças nos sectores da educação, saúde, protecção social, justiça e manutenção da ordem, bem como nos sectores relacionados com as actividades desportivas, culturais e de lazer, para a protecção e os direitos das crianças. 2. Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras para garantir que as pessoas referidas no n.º 1 tenham um conhecimento adequado da exploração sexual e dos abusos sexuais das crianças, dos meios de os detectar e da possibilidade prevista no n.º 1 do artigo 12.º. 3. Cada Parte toma as necessárias medidas legislativas ou outras, em conformidade com o seu direito interno, para que as condições de acesso às profissões cujo exercício implique, de forma habitual, contactos com crianças permitam garantir que os candidatos a tais profissões não foram anteriormente condenados por actos de exploração sexual ou abusos sexuais de crianças.
Assim, o pensamento subjacente à decisão recorrida parece-nos ser, sinteticamente, o seguinte:
- a aludida Convenção estatui que se deve garantir que os candidatos às profissões que impliquem contactos habituais com crianças não tenham sido condenados por atos de exploração sexual ou abusos sexuais de crianças;
- a Lei n.º 113/2009 estabelece medidas de proteção de menores em cumprimento de tal Convenção;
- assim, os crimes acima referidos elencados na Lei n.º 113/2009 como excluídos da possibilidade de não transcrição deverão ter como vítimas crianças/menores, nada obstando a essa não transcrição se as vítimas forem maiores de idade.
Não nos parece que assim seja.
Em primeiro lugar, o elemento literal da Lei n.º 113/2009 não consente essa restrição, uma vez que o teor do artigo 2.º, n.º 4, alínea a), do aludido diploma legal não contém tal restrição – isto é, a lei remete expressa e unicamente para as condenações por crime previsto nos artigos 152.º, 152.º-A ou no capítulo V do título I do livro II do Código Penal.
Em segundo lugar, porque nada impede que um diploma legal que vise proteger menores possa selecionar para tal fim previsões típicas cujas vítimas possam ser maiores, mas de cuja ilicitude e correspondente bem jurídico protegido se possa induzir risco potencial para lidar com crianças/menores – na verdade, a comissão do tipo de crime violência doméstica, por exemplo, mas também de maus tratos, pressupõe, de modo geral, uma personalidade do agente que aproveita a debilidade física ou psicológica e a vulnerabilidade afetiva, patrimonial ou financeira das vítimas, e a correspondente dependência, ou seja, numa linguagem mais prosaica, que atinge os mais fracos, e por causa de, por feitio, assim o serem, ou de, pelos mais diversos motivos, nesse estado se encontrarem. Ora, as crianças/menores, por regra, encontram-se também com os adultos, mesmo não familiares, numa relação de vulnerabilidade e de submissão, designadamente quando com estes interagem num contexto institucional - v.g., escola, agremiações desportivas e culturais. Assim, não será certamente de alijar a preocupação da lei com esta questões, sendo, correspondentemente, curial considerar que este tipo de infratores representem um risco para as crianças/menores, até porque, além do mais, um dos segmentos típicos da violência doméstica e dos maus tratos são as ofensas sexuais, o que nos alcandora, não só, mas também, a um vasto campo de desarmonia e desmando da sexualidade humana, cuja materialização e direção pode assumir as mais inesperadas dimensões. Se, portanto, o que está em causa é prevenir e proteger, neste caso as crianças/menores, então compreendemos bem a preocupação da lei, daí se justificando a não restrição explícita (e, portanto, muito menos, tácita) destes crimes aos casos em que as vítimas sejam menores/crianças.
Ainda, porque os menores (quando existem, naturalmente) do agregado onde ocorrem as infrações penais em causa devem ser sempre considerados como vítimas nos crimes de violência doméstica, seja, (atualmente) indubitavelmente, do ponto de vista típico, seja, desde sempre, do ponto de vista material ou substantivo. A este respeito, tenha-se presente a evolução legislativa e jurisprudencial referente ao artigo 152.º do Código Penal, designadamente pela adição da alínea e) ao seu n.º 1, levada a cabo pela Lei n.º 57/2021, de 16/08, na sequência, precisamente, de ingentes críticas doutrinais, esclarecendo que, do ponto de vista típico, também os menores descendentes ali referidos podem ser vítimas autónomas de violência doméstica. No que que a estas questões diz respeito, veja-se o interessante estudo de Margarida Santos O Lugar da Criança Exposta À Violência Interparental: Dúvidas e Perspetivas Em Torno do Prennchimento Do Tipo Legal de Crime de Violência Doméstica, in Prof. Doutor Augusto Silva Dias, In Memoriam, AAFDL, Vol. I, pag. 621 e segs. Independentemente do grau de acerto/sucesso da alteração legislativa efetuada, designadamente no referente à plena supressão das imperfeições que originaram as aludidas críticas, é para nós evidente que o menor exposto à violência interparental é sempre vítima, pelo menos do ponto de vista material ou substantivo, uma vez que é absolutamente inconcebível que tal ser humano não seja acometido de inquietação, angústia, ansiedade, vergonha e demais sentimentos do género, em face de tais desmandos; arriscamos mesmo dizer que o é mesmo que a isso não assista, bastando para tanto que lhe chegue ao conhecimento tal situação – qualquer filho sentirá certamente profunda aflição e comoção se, por exemplo, vir a mãe a chorar, dizendo-lhe esta que foi porque o pai lhe bateu, ou a insultou, ou a ameaçou ou algo do género (perdoe-se-nos o eventual estereotipo, mas as claríssimas estatísticas militam como nossa atenuante). Pantograficamente, podemos intuir que o pensamento do legislador aporta na abstrata consideração de que aquele que pratica estes tipos e infrações não tem a mínima empatia com as crianças/menores que por elas possam ser atingidas, mesmo sendo tais crianças/menores do seu sangue ou afetivamente próximas, pelo que, muito menos a terá com estranhos, o que sensatamente aconselhará a ligar todos os alarmes.
Finalmente, refira-se que a interpretação sufragada na decisão recorrida permite, por exemplo, concluir que se pode ordenar a não transcrição de uma condenação de prisão de 2 anos com execução suspensa por igual tempo, pela prática de um crime de coação sexual p.p. pelo artigo 171.º do Código Penal, de que seja vítima uma pessoa de 18 anos, num certificado de registo criminal de uma pessoa que pretenda ser treinador de uma equipa de futebol do escalão de juvenis (sub-17, jovens com 15 e 16 anos) e juniores (sub-19, jovens com 17 e 18 anos) – ora, não parece que um ou dois ou três anos de diferença possam debelar aqui o risco que impregna o pensamento e a preocupação do legislador, pois o risco de uma recidiva criminal do agente não será certamente afastado por uns meses de diferença da idade da vítima, tanto mais que, muitas vezes, as fisionomias de uns e outros (maiores e menores) são, nestas idades, indistinguíveis, pelo que a teleologia protetora deste regime se justifica plenamente também em casos como este.
Por outro lado, a visão estritamente positivista da decisão recorrida a respeito da interpretação da norma em causa, baseada essencial ou exclusivamente no teor literal do artigo 1.º do diploma em que se insere, pode ser fundadamente contraditada através de uma hermenêutica jurídica mais centrada na jurisprudência dos interesses, ou até na sua sucessora, digamos assim, jurisprudência de valoração – sobre as interessantíssimas e utilíssimas questões relativas à hermenêutica jurídica que particularmente nos toca por ofício, veja-se o abrangente estudo de José Lamego, “Hermenêutica e Jurisprudência”, in Revista Jurídica AAFDL, n.º 6, Abril/Junho de 1986, pag. 61 e segs.
Segundo o autor atrás citado “que a decisão judicial não decorre como mera necessidade lógica da noma legal é uma asserção hoje tornada banal pelo consenso que colhe na discussão metodológica. A crise do formalismo jurídico é o detonador de uma profunda reflexão metodológica, fundamentalmente ligada à questão dos valores e ao indagar da racionalidade de uma argumentação extra sistemática, tentando demonstrar que de facto existe uma racionalidade do argumentar fora do sistema dogmático e dos seus métodos.” (…) A crise do formalismo nas sociedades pós-modernas implica que a administração da justiça não assuma uma forma estritamente «técnica» (…). Esta forma «técnica» consubstanciar-se-ia numa aplicação do Direito de natureza estritamente lógico-subsuntiva.” – pag. 64/65.
Assim sendo, concluímos que o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 113/2009, de 17/09, determina a exclusão da possibilidade de não transcrição para os certificados de registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º da Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei da Identificação Criminal), das condenações pelos crimes previstos nos artigos 152.º. 152.º-A, e no Capítulo V do título I do livro II do Código Penal, ainda que a vítima não seja uma criança/menor, caso a requerida não transcrição se destine aos certificados exigidos para o exercício de profissão, função ou emprego que envolva contacto regular com menores, sendo tal interpretação, em nosso entender, consentânea com os princípios da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade acima referidos,
B Em caso de resposta negativa à anterior questão, encontram-se preenchidos no caso presente todos os requisitos para que o requerimento de não transcrição da decisão condenatória nos certificados de registo criminal a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 37/2015, de 05/05 (Lei da Identificação Criminal), seja deferido?
Atendendo á solução dada à anterior questão, fica, naturalmente, prejudicada apreciação da que se enunciou nesta parte do presente acórdão.
O recurso deve, por isso, ser julgado procedente.
III DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso apresentado pelo Ministério Público e, em consequência, revogam a decisão recorrida, e indeferem o pedido de não transcrição de condenação para os certificados de registo criminal apresentado pelo condenado.