REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
LEGITIMIDADE PASSIVA
MINISTÉRIO PÚBLICO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário


I - Estando em causa a revisão de uma decisão de um tribunal angolano que, ao abrigo do artigo 15.º c) da Lei sobre o Julgado de Menores (Lei 9/96, de 19 de abril), aplicou a dois menores a medida de "proteção social" de "colocação em família substituta", pelo período de um ano, confiando, assim, à requerente a guarda destes, os titulares dos "interesses em jogo" são a requerente e os menores.
II - Deste modo, quem tem de ser demandado são os dois menores, cuja representação obedece ao disposto nos artigos 16.º e 17.º do Código de Processo Civil.
III - Consequentemente, sendo demandado o Ministério Público, este é parte ilegítima visto que não ocupa qualquer posição na relação material litigada.
IV - Importa não confundir a participação do Ministério Público no processo como parte com a sua intervenção em representação de uma parte, nomeadamente à luz do estabelecido no artigo 21.º do Código de Processo Civil ou do artigo 4.º n.º 1 b) do Estatuto do Ministério Público.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
AA intentou a presente ação de revisão de sentença estrangeira contra o Ministério Público, pedindo que seja revista e confirmada a sentença proferida a 25 de junho de 2024, pelo Tribunal da Comarca do ..., ..., que decidiu:
"Mercê do exposto, ora espelhado, verificam-se, assim os requisitos legais tendentes á aplicação a favor da Candidata a Família Substituta a aludida medida com vista a futura adoção.
A Senhora AA, a Única, que defenderá os interesses dos menores BB e CC e permitirá a estes menores ter um projeto de vida saudável e uma convivência harmonioso.
A aplicação da referida medida cinge-se por um período de 01 (um) ano."
O Ministério Público contestou afirmando que "não tem legitimidade para a ação, o que constitui uma exceção dilatória que conduz à absolvição da instância, nos termos dos arts. 278.º n.º 1 al. d) e 577.º al. e) CPC." Lembra que "afetados pela presente ação, tal como é configurada e atento o objetivo da mesma, são os menores, os quais não figuram na ação. E não o Ministério Público." "(…) a incapacidade dos menores para estar em juízo é suprida pelos seus representantes legais ou, caso não os tenham, por um curador provisório, conforme disposto nos arts. 16.º e 17.º CPC. Só no caso de o representante do incapaz não deduzir oposição é que incumbe ao Ministério Público a sua defesa, sendo, nessa altura, citado para o efeito – art. 21.º CPC. A atribuição estatutária ao Ministério Público da representação dos menores não é uma representação plena e indiscriminada, mas concretizada em diferentes disposições legais substantivas e processuais, que conferem especificamente competência ao Ministério Público para intervir processualmente em representação dos mesmos."
A requerente respondeu dizendo que, "caso seja esse o entendimento e aclamando os princípios da economia processual e aproveitamento dos atos processuais, requer-se que seja nomeado curador provisório, sugerindo a Requerente que seja a sua mãe DD".
Este pedido foi indeferido por despacho de 6-2-2025, com o fundamento de "a nomeação de curador (…) prevista [no artigo 17.º CPC] pressupõe, para além do mais, que o incapaz é parte no processo; que ele demanda ou é demandado. Ora, no nosso caso os menores CC e BB não são requeridos neste processo de revisão de sentença estrangeira".
Cumpriu-se o disposto no artigo 982.º n.º 1 do Código de Processo Civil[1].
A requerente alegou afirmando, em síntese, que a arguida "exceção da ilegitimidade passiva, é sanável por via do incidente de intervenção de terceiros conforme decorre do artigo 316.º, n.º 1, do Código de Processo Civil" e que "o artigo 318.º, n.º 1, a) parte final, (…) contém uma exceção à regra de que o incidente tem que ser deduzido até ao termo da fase dos articulados, permitindo ainda o chamamento nas situações previstas no art.º 261.º do CPC. Nesse sentido e no sentido do cumprimento dos princípios da economia processual e aproveitamento de atos, caso se entenda pela Douta posição do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, devem ser chamados os menores representados pela mãe da Requerente, a fim de figurarem como partes."
E reafirmou que a "sentença proferida cumpre todos os requisitos legais para ser confirmada e para que produza todos os efeitos no ordenamento jurídico Português".
O Ministério Público alegou sustentando que, "conforme posição em sede de contestação, dada a falta de legitimidade do Réu para a ação, deve ser julgada verificada tal exceção dilatória, com a consequente a absolvição da instância, nos termos dos arts. 278.º n.º 1 al. d) e 577.º al. e) CPC."

II
1.º
Cumpre começar por conhecer da exceção de ilegitimidade arguida pelo Ministério Público.

Conforme resulta do artigo 30.º, "a legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objeto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo"[2]; "é a possibilidade de estar em juízo quanto a certo objeto."[3] Ela é aferida, "em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), isto é, como dizem os n.os 1 e 2 [do artigo 30.º], pelo interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, exprimido pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e pelo interesse direto em contradizer, exprimido pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda"[4]. E essa "titularidade dos interesses em jogo" é apurada "em função da relação jurídica configurada pelo autor."[5]
Ora, no caso sub iudice o que está em causa é a revisão de uma decisão de um tribunal angolano que, ao abrigo do artigo 15.º c) da Lei sobre o Julgado de Menores (Lei 9/96, de 19 de abril), aplicou a dois menores a medida de "proteção social" de "colocação em família substituta", pelo período de um ano, confiando, assim, à requerente a guarda dos menores CC e BB.
Por conseguinte, os titulares dos "interesses em jogo" são, por um lado, a requerente e, por outro, os menores BB e CC, visto que são eles, e somente eles, quem ocupa uma posição na "relação material litigada"[6].
Considerando o exposto, pode dizer-se que "apenas podem ser partes no processo de revisão de sentença estrangeira relativa a direitos privados as partes que figurarem como tal nessa decisão objeto de revisão."[7]
Por outro lado, "como incapacidade de exercício que é, a incapacidade judiciária não impede o exercício do direito em absoluto. Mas apenas o seu exercício pelo incapaz. Daí que, tal como no direito substantivo, seja necessária a intervenção do representante ou curador para suprimento da incapacidade"[8].
Portanto, quem tem de ser demandado são os dois menores, os quais, dado o disposto nos artigos 16.º e 17.º, "são representados, em regra, pelos seus pais ou, quando tal se revele necessário, por tutor"[9], sendo que, segundo o artigo 21.º, somente se "o incapaz, ou os seus representantes, não deduzirem oposição (…) [é que então] incumbe ao Ministério Público a defesa deles".
E não obstante o disposto no artigo 4.º n.º 1 b) do Estatuto do Ministério Público, "no que tange aos menores, não se trata de uma representação plena e indiscriminada: aquela regra geral carece de concretização e a mesma surge precipitada em diferentes disposições legais substantivas e processuais, que conferem especificamente competência ao MP para intervir processualmente em representação de menores."[10]
Aqui chegados, dúvidas não restam quanto à ilegitimidade do Ministério Público para ser demandado nesta ação de revisão de sentença estrangeira.
Importa não confundir a participação do Ministério Público no processo como parte com a sua intervenção em representação de uma parte, nomeadamente à luz do estabelecido no artigo 21.º do Código de Processo Civil ou do artigo 4.º n.º 1 b) do seu estatuto.
2.º
Nas suas alegações, tendo em vista ultrapassar a situação de ilegitimidade passiva que tacitamente reconhece ocorrer, a requerente apela ao disposto nos artigos 316.º n.º 1 e artigo 318.º n.º 1 a), preceitos estes que se inserem no incidente de intervenção provocada.
Em primeiro lugar, regista-se que a requerente não deduziu este incidente, não obstante agora querer dele extrair alguma utilidade.
Em segundo lugar, "é para o caso de preterição de litisconsórcio necessário do lado ativo ou do lado passivo que o (…) [n.º 1 do artigo 316.º] permite a qualquer das partes o chamamento a juízo, como seu associado ou da parte contrária, do interessado com legitimidade para o efeito, definida pelo interesse do chamado igual ao do autor ou do réu, nos termos dos referidos artigos 33.º e 34.º. (…) O chamamento para intervenção principal litisconsorcial assume especial interesse para sanar a ilegitimidade plural, delineada nos artigos 33.º e 34.º"[11]; ele visa ultrapassar a preterição de litisconsórcio necessário.
Ora, "impõe-se o litisconsórcio (…) quando a lei, o negócio jurídico ou a natureza da relação jurídica controvertida exige a intervenção dos vários interessados nesta relação."[12] E "os critérios que presidem à previ­são do litisconsórcio necessário são essencialmente dois: o critério da indisponibilidade individual ou da disponibilidade plural do objeto do processo para o litiscon­sórcio legal e convencional e o critério da compatibilidade dos efeitos produzidos para o litisconsórcio natural"[13]. Pretende-se que os vários os interessados "na relação controvertida" ou "na relação jurídica" mencionadas, respetivamente, nos n.os 1 e 2 do artigo 33.º do Código de Processo Civil, se encontrem lado a lado num só processo, de maneira a se pronunciarem acerca da questão que aí é colocada, que a todos diz respeito, e a se obter a composição definitiva do litígio que tem por objeto essa relação.
Na situação sub iudice, para se falar em litisconsórcio necessário era preciso que, antes do mais, o Ministério Público fosse interessado "na relação controvertida". Só verificado esse pressuposto é que, se depois se concluísse que ele não era o único interessado, então, para respeitar o litisconsórcio necessário, teria de se chamar os restantes interessados, que na situação em apreço, segundo a requerente, seriam "os menores representados pela mãe da Requerente".
Sucede que, face ao que atrás se deixou dito, o Ministério Público não tem nestes autos a qualidade de interessado para os efeitos do artigo 33.º. Por isso, não está aqui em causa uma (eventual) preterição de litisconsórcio necessário, o que é sinónimo de que a ilegitimidade passiva acima exposta não se sana por via dos artigos 316.º n.º 1 e 318.º n.º 1 a).
Aqui chegados, por força do disposto no artigo 278.º d), atenta a sua ilegitimidade, o Ministério Público tem de ser absolvido da instância.

III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se o Ministério Público parte ilegítima, pelo que se o absolve da instância.

Custas pela requerente.
Valor da ação: 30.000,01 €[14].
Notifique.
Registe.

António Beça Pereira
Paulo Reis
Afonso Cabral de Andrade


[1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência.
[2] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, 1980, pág. 153.
[3] Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 334.
[4] Lebre de Freitas, Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª Edição, pág. 92.
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 63.
[6] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 84.
[7] Ac. Rel. Guimarães de 8-11-2018 no Proc. 84/18.5YRGMR, www.dgsi.pt.
[8] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª Edição, pág. 70.
[9] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 51.
[10] Ac. Rel. Évora de 3-12-2015 no Proc. 512/15.1T8BJA-A.E1, citado pelo Ministério Público na sua contestação.
[11] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13.ª Edição, Pág. 90 e 91.
[12] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª Edição, pág. 98.
[13] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 67.
[14] Cfr. artigos 303.º e 306.º.